1 – O SUBSISTEMA MONETÁRIO INTERNACIONAL
A estrutura do sistema econômico internacional após a Segunda Guerra Mundial foi concebida tendo-se em mente as lições aprendidas durante os turbulentos anos 30. O cenário de recessão econômica mundial, aprofundado pela adoção de políticas monetárias competitivas, não fez outra coisa senão reduzir o já escasso intercâmbio comercial internacional e seguramente contribuiu para a eclosão do conflito militar do final dos anos 30.
Antes disso, os cem anos da era liberal, iniciada em 1815 e bruscamente interrompida com a eclosão da Primeira Grande Guerra, em 1914, conheceram pouca ou nenhuma intervenção dos Estados em temas relativos às transações econômicas e financeiras. Os acordos de comércio buscavam garantir um máximo de liberdade comercial e de navegação e eram relativamente simples, moldando-se sem grande dificuldade ao figurino tradicional do Direito Internacional Público.[1]
A filosofia subjacente aos acordos multilaterais – inaugurados com a Declaração conjunta dos Presidentes Franklin Roosevelt dos Estados Unidos e do Primeiro Ministro Winston S. Churchill do Reino Unido, em agosto de 1941, conhecida como Carta do Atlântico[2], seguida pelo Acordo de Empréstimo entre os Estados Unidos e o Reino Unido, de fevereiro de 1942, o Acordo Constitutivo das Nações Unidas e a Conferência das Nações Unidas que deu origem aos Acordos de Bretton Woods[3] – foi sempre a de que a prosperidade mundial era condição indispensável para uma paz duradoura.[4]
Se a experiência do passado podia servir como guia para os líderes do pós-guerra, então seguramente eles tinham consciência de que a estabilidade econômica, que contribuíra significativamente para a estabilidade política e a relativa paz no período de 1815 a 1914, esteve diretamente relacionada com a estabilidade monetária proporcionada pelo padrão-ouro. Quando o padrão-ouro ruiu, desmoronou todo o sistema político do século XIX.
A instabilidade monetária em que foram jogados os Estados europeus transformou a moeda em bastião político nacional, pois não havia quem não experimentasse os malefícios de sua instabilidade e da inflação. O retorno ao padrão-ouro era desejado pela população porque correspondia à memória da estabilidade do século XIX.
Essa função política do sistema monetário internacional não foi perdida de vista pelos idealizadores dos Acordos de Bretton Woods. Toda a construção do sistema econômico internacional do pós-guerra[5] iniciou pela definição do padrão de estabilidade monetária que se adotaria e pela criação dos instrumentos necessários para mantê-lo.
Em consonância com o que foi dito, o estatuto do Fundo Monetário Internacional estruturou o sistema monetário internacional em vista da estabilidade das moedas e da criação de um sistema de pagamentos para as transações correntes de bens e de serviços, que sempre foram vistas pelos mentores dos acordos de Bretton Woods como condições indispensáveis para a recuperação do fluxo de comércio mundial e, ao mesmo tempo, como antídotos às políticas de concorrência predatória que foram praticadas no entre-guerras.
O instrumento central da política monetária do período pré e pós-Bretton Woods foi o ouro. O ouro, ao qual Keynes[6] atribuíra o adjetivo de relíquia bárbara, tem sua história na política monetária internacional iniciada pela Itália do século 13 e pelo restante da Europa, nos séculos seguintes. Por volta do século 14, o ouro, a prata e o cobre eram os metais que compunham as moedas usadas no comércio e, portanto, os Estados utilizavam padrões bi-metálicos.[7]
Ocupando a Inglaterra um lugar central no comércio internacional e, portanto, buscando uniformidade do uso de sua moeda como moeda de troca aceita no comércio com os demais Estados, era necessário superar os efeitos derivados da Lei de Gresham[8] sobre sua moeda. Essa lei contém uma máxima econômica, que diz que a moeda ruim – a prata – expulsa a moeda boa – o ouro – de circulação. Embora as moedas de ouro dos diversos países mantivessem paridade entre si, não eram, contudo, cunhadas com a integralidade de seu conteúdo de ouro, mas com ouro e prata; assim, as moedas com mais conteúdo de ouro eram mais procuradas.
Essa situação atingia, por volta de 1860, não só a Inglaterra, mas também se repetia na França, Itália e Suíça. Nesses Estados, adotara-se a prata para cunhagem de moedas de menor valor. Novamente, a Lei de Gresham fazia com que a diferença de quantidade de peso de prata nas moedas de igual valor comparativo dos Estados motivasse o público a procurar as moedas do mesmo valor de face, mas com mais prata em sua composição, provocando fuga da moeda nacional. Na Itália, por exemplo, o montante de prata nas moedas era de 83,5% do seu efetivo valor, enquanto as moedas francesas com o mesmo valor de face continham 90% do seu efetivo valor em prata, o que fazia com que houvesse busca da moeda francesa e fuga da moeda italiana.[9]
Essa situação de desigualdade resultou na União Monetária Latina, um tratado internacional firmado em 1865, por meio do qual Bélgica, França, Itália, Suíça e posteriormente a Grécia concordaram em padronizar a quantidade de prata em suas moedas a um percentual de 83,5%. O mesmo fenômeno de harmonização foi reeditado em 1873, quando a Suíça, Dinamarca e Noruega, fortemente dependentes do comércio com a Alemanha, formaram a União Monetária Escandinava, com o objetivo de manter a paridade entre suas moedas, já que a Alemanha adotara o ouro como padrão monetário em 1871.[10]
À Alemanha seguiu-se o Reino Unido e, posteriormente, França e Estados Unidos também adotaram o ouro como único padrão monetário nacional, tanto para as moedas metálicas em circulação quanto para a moeda-papel, inteiramente lastreada em ouro.
Contudo, nem todos os Estados mantinham reservas internacionais em ouro. Para a maior parte deles, incluindo os Estados latino-americanos, as reservas internacionais eram em sua maioria mantidas sob a forma de papel-moeda dos Estados comprometidos com a conversibilidade de suas moedas em ouro.[11]
O crescimento da produção de ouro nos anos 20 já não acompanhava a demanda por moeda decorrente do crescimento da economia e do aumento dos preços, o que fez com que o Reino Unido liderasse a defesa de que os bancos centrais poderiam passar a ter como reservas quantias ilimitadas de moeda estrangeira conversível.
Esse fato diminuiu em muito a pressão sobre o preço e sobre a produção do ouro. De um lado, isso contribuiu para o aumento do intercâmbio comercial e de capitais, mas, por outro, fez com que as reservas existentes estivessem cada vez menos lastreadas na mesma quantidade de ouro.
Adicione-se a isso a ausência de uma coordenação das políticas monetárias para que, como resultado, a França e a Alemanha passassem a obter vantagens em detrimento dos demais Estados. A França, entre 1926 e 1931, tornou-se a maior depositária de ouro no mundo, em face da vantagem competitiva que a taxa cambial[12] depreciada lhe proporcionava. A Alemanha, por sua vez, traumatizada pela hiperinflação do pós I Guerra, aumentou astronomicamente as taxas de juros, atraindo capital americano em larga escala. Ambos os Estados tornaram-se rapidamente superavitários e demandavam ouro em troca das moedas que recebiam dos importadores e investidores, erodindo o lastro de sustentação das demais moedas do sistema.[13]
Quando a vinculação das moedas ao ouro desapareceu, as paridades cambiais passaram a variar. O que se seguiu foi uma divisão dos Estados em três blocos monetários que, ao fim de 1932, eram compostos por: a) Estados que ainda mantinham o padrão ouro – como os Estados Unidos; b) Estados que formavam a área da libra esterlina – como o Reino Unido; c) demais Estados da Europa que mantinham a estabilidade da moeda à custa de controles cambiais.
A desvalorização da libra esterlina e as barreiras cambiais às importações dos demais Estados europeus dificultavam cada vez mais a manutenção da paridade pelos Estados Unidos, que viam crescentes demandas por ouro em troca dos dólares emitidos. Uma política fiscal e monetária mais austera era inevitável, o que levou a economia mundial a uma recessão ainda mais profunda, fazendo com que os Estados que ainda mantinham a paridade fixa deixassem suas moedas flutuarem.[14]
Os déficits em balança de pagamentos impediam a continuidade do ciclo de consumo externo, o que provocava retração da produção interna, emprego e consumo. Esse cenário recessivo implicava rebaixa dos preços nacionais e aumento conseqüente de sua competitividade internacional. Mais competitivos, os produtos nacionais reequilibravam a balança de pagamentos e o ciclo de consumo retornava.
Esse modelo simplista somente poderia ter alguma validade se desconsiderássemos o fluxo de capitais de operações entre residentes e não-residentes, o que pressupõe um sistema econômico internacional restrito apenas a pagamentos pelas trocas de bens e serviços. Quando o ingrediente das transações de capital passou a ser adicionado, a política de juros praticada pelos Estados acabava acelerando as correções. Isso porque o aumento da taxa de juros doméstica provocava a atração de capitais externos, necessários para cobrir o déficit da balança de pagamentos, ao mesmo tempo em que reduzia o consumo interno – e, por conseguinte, a demanda por importações –, já que o crédito torna-se mais caro, da mesma forma como aumentava-se o incentivo para a poupança.
O problema residia, e ainda reside, na confiança que os investidores, atraídos pelas altas taxas de juros, manteriam sobre a disposição dos Estados em defenderem suas moedas. Sempre que essa confiança se via abalada – geralmente em seguida a perdas contínuas de reservas – a fuga em massa de capitais provocava uma crise de balança de pagamentos que poderia estender-se a outros Estados em situação similar.
Da mesma forma, não se podia esquecer que a manutenção de uma política de altas taxas de juros, a longo prazo, provocava crises em terceiros Estados, que viam diminuídas suas reservas, e na própria economia do Estado receptor de investimento, porque reduzia a atividade econômica. As altas taxas de juros poderiam, elas próprias, levar os Estados à desvalorização, porque a diminuição do crescimento econômico enfraquecia a capacidade dos tomadores de recursos financeiros honrarem seus compromissos com as já altas taxas de juros praticadas pelos Bancos. Esses, enfraquecidos, buscavam socorro nos Governos, agora no papel de emprestadores de última instância; esses mesmos Governos, já combalidos pela resistente manutenção de déficits em transações correntes, agora eram chamados a usar os seus parcos recursos em moedas estrangeiras para honrar as obrigações do seu sistema financeiro com banqueiros estrangeiros. A equação, para os investidores, não mais conduzia a um resultado positivo; assim, crescia o temor de uma desvalorização cambial.
Essa descrição, que parece típica dos anos 90 do século XX refere-se, na verdade, à crise que viveu o Banco da Inglaterra, em 1890, por conta das dificuldades financeiras do banco Baring Brothers. O desejo do Banco da Inglaterra de intervir em favor dos credores daquele Banco – com o objetivo hoje tão difundido de evitar o risco de um colapso do sistema financeiro – não pareceu, aos olhos dos investidores estrangeiros, compatibilizar-se com o compromisso do Reino Unido de defender a libra esterlina, haja vista o volume de drenagem de recursos financeiros que era necessário para o Banco da Inglaterra agir como financiador de última instância.
A crise da libra esterlina e a sua conseqüente desvalorização apenas não aconteceu àquela época em razão da intervenção de assistência que promoveram tanto o Banco da França quanto o Banco do Estado da Rússia[15], para contrapor-se à fuga de investidores da moeda britânica.
1.1. O Regime monetário Pós-Bretton Woods
Os Acordos de Bretton Woods não foram a primeira tentativa de se estabelecer uma ordem econômica internacional. Mesmo na primeira metade do século XX, a Liga das Nações, ao final da I Grande Guerra, também era sensível ao problema da estabilidade monetária. Sob sua liderança foram realizadas as Conferências de Bruxelas e Genebra, respectivamente em 1920 e 1922, em que o tema da estabilidade monetária como arranjo fundamental para a estabilidade do comércio foi debatido. Ambas foram frustradas, em boa parte pela resistência dos Estados Unidos em apoiá-las.
A experiência nefasta da depressão dos anos 30, contudo, tornou claro para os EUA que efetivamente era necessário o desenvolvimento de instituições internacionais que coordenassem esforços de cooperação monetária.[16] O regime de flutuação cambial acabara servindo como atrativo para a especulação, pelos altos ganhos que podiam advir da desestabilização do valor das moedas causado por grandes volumes de compras ou vendas. Da mesma forma, a cooperação econômica entre os Estados, embora sofregamente perseguida[17] como forma de superar a recessão e a Grande Depressão dos anos 30, não conseguia superar o aumento das barreiras ao livre comércio nem a constante manipulação cambial.
Isso porque o princípio que orientara os Estados nos 30 anos era o de que os mesmos eram livres para atribuir valor à sua moeda. Esse princípio se originara do Direito Internacional geral ou costumeiro e fora pronunciado pela Corte Permanente de Justiça Internacional – CPJI – em 1929, (Affaire des Emprunts Serbes et Brésiliens). Segundo a CPJI : "C’est un principe généralment admis que tout État a le droit de déterminer lui-même ses monnaies”[18] e decorria naturalmente da afirmação anterior feita pela mesma CPJI, no Caso Lotus, de que os limites à independência dos Estados não se presumem e dependem sempre da submissão voluntária.[19]
Portanto, sob o regime costumeiro, a política monetária adotada pelos Estados era um assunto de política interna, no sentido que lhe empresta o hoje art. 2, par. 7 da Carta das Nações Unidas. Essa disposição costumeira mostraria, contudo, sua nocividade, no ambiente recessivo da primeira metade do século. Os Estados se utilizaram fartamente de práticas de desvalorização predatória da moeda e de barreiras de pagamentos para as transações do comércio internacional, a fim de ampliarem seus superávits de balança de pagamentos e o rancor econômico oriundo dessa guerra comercial contribuiu em muito para o rancor político que foram ingredientes importantes para a eclosão da II Grande Guerra.
Mas os traumas econômicos mundiais que se sucederam no período de 1914 a 1944 haviam colocado definitivamente o tema das relações econômicas entre os Estados no centro das preocupações da Carta das Nações Unidas. Já em seu preâmbulo, a Carta menciona a necessidade de "favorecer o progresso social e instalar melhores condições de vida", enquanto o capítulo IX fala de princípios de "cooperação econômica e social internacional". No art. 55, afirma-se que as Nações Unidas "favorecerão a melhora do nível de vida, o pleno emprego, e as condições de progresso e desenvolvimento dentro de uma ordem econômica e social”.
Assim, o sistema que nasceu dos escombros da II Grande Guerra estruturou-se sob a base da organização política ordenada pelos órgãos principais da Organização das Nações Unidas – ONU, a Assembléia Geral e Conselho de Segurança, e no campo econômico por meio das agências especializadas, que são organizações internacionais intergovernamentais com personalidade jurídica autônoma[20] da ONU, mas vocacionadas à realização de seus fins[21].
A Conferência de Bretton Woods, da qual surgiram o FMI e o Banco Mundial, reuniu 44 Estados, inclusive o Brasil, representado pelo Ministro da Fazenda, A. de Souza Costa e de economistas reconhecidos, como Francisco Alves dos Santos Filho, Eugênio Gudin e Octávio Gouvêa de Bulhões.[22] As discussões, contudo, estavam polarizadas entre duas vertentes de pensamento, as das delegações americana e britânica.[23]
Os americanos eram liderados pelo Secretário do Tesouro Henri Morgenthau, que publicaria em 1948 uma obra clássica sobre relações internacionais[24], e por Henri Dexter White, que oporia o seu plano ao do líder da delegação britânica, Lord Keynes, o autor já célebre que havia previsto as conseqüências nefastas do Tratado de Versalhes[25] em obra também clássica[26] e também havia escrito o livro “A Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda”[27], considerada a obra que introduz a macroeconomia[28] como um ramo da ciência econômica.
O Plano Keynes respondia à previsão britânica de déficits na balança de pagamentos no pós-guerra, à necessidade de financiá-los e, ao mesmo tempo, estabilizar as paridades cambiais. Tal seria obtido, na visão de Keynes, por meio de uma moeda internacional que, ao mesmo tempo, fosse estável e acessível aos Estados deficitários, por meio de linhas de financiamento. O bancor[29] seria emitido por um banco central internacional – International Clearing Union – lastreado pelas reservas dos Estados-Parte superavitários, provendo, assim, a liquidez internacional.[30]
O Plano White, respondendo aos interesses americanos de manutenção e expansão de seus superávits de balança de pagamentos, centrava-se em um modelo de estabilidade cambial garantido pelo dollar exchange standard, o padrão de câmbio do dólar. Previa, assim, a existência de uma organização internacional, mas que estivesse centrada na correção de desequilíbrios temporários do balanço de pagamentos[31] . O Fundo Monetário Internacional – FMI, organização resultante dessa concepção, deteria ouro e moedas nacionais equivalentes às quotas dos Estados-parte.
Mas a diferença entre os dois planos não repousava apenas na questão de responsabilidade dos Estados superavitários pela provisão de liquidez mundial. Keynes também defendia o controle[32] do fluxo de capitais e a flexibilidade das taxas cambiais, com vistas à manutenção do pleno emprego.[33]
No campo monetário surge, então, o Fundo Monetário Internacional – FMI, a partir de 1947, com a missão de zelar pela manutenção das paridades cambiais, pela liberdade de pagamentos por transações correntes e pela provisão de liquidez mundial, enquanto o Banco Internacional para a Reconstrução e o Desenvolvimento, o BIRD, denominado Banco Mundial, passou, a partir de 1945, a ter a missão de financiar projetos de reconstrução européia, em um primeiro momento, e de criação de infra-estrutura de países em desenvolvimento, em um segundo momento.
Sob a égide do FMI, a gestão monetária pelos Estados passou a orientar-se sob uma base convencional. Os Estatutos do FMI[34] impuseram aos Estados obrigações em relação às suas moedas, como a de fixar os seus valores de acordo com um referencial em ouro, o que vigeria até a 2a. Emenda aos Estatutos do Fundo, em 1978.[35]
A Segunda Emenda ao Acordo do Fundo definiu a transição de um modelo jurídico de hard law monetária internacional, com obrigações claras dos Estados em torno da manutenção de um regime de paridades fixas e de não manipulação cambial para um modelo jurídico de soft law monetária internacional, onde obrigações foram substituídas por exortações[36].
O modelo padrão ouro-dólar era superior ao modelo padrão-ouro anterior, uma vez que, diferentemente do ouro, os dólares poderiam ser criados para expandir o comércio mundial e os investimentos no exterior, que efetivamente os Estados Unidos passaram a fazer com a construção de bases militares, empréstimos e investimentos diretos das empresas.[37]
Da proposta original de Keynes, o Acordo do Fundo incorporou a flexibilização das taxas cambiais em caso de desequilíbrios fundamentais em um percentual de 10% ou, acima desse percentual, com aprovação de 2/3 dos votos da Junta de Governadores; da mesma forma, admitiu-se aos Estados a imposição de controles sobre as transações de capital, enquanto foram admitidas barreiras às transações correntes com moedas declaradas escassas pelo Fundo.[38]
A manutenção de um regime de pagamentos internacionais e a estabilidade monetária como papéis básicos desempenhados pelo FMI estão ambos orientados para a garantia da liberalização comercial. Isso fica claro tanto pela leitura dos objetivos[39] quanto pelas demais cláusulas que proíbem limitações às transações correntes[40], proíbem os arranjos cambiais discriminatórios[41] e penalizam[42] fortemente os Estados que porventura abandonem o sistema de paridades fixas.
Como instrumento para a liberalização comercial, o FMI ansiava pela criação da Organização Internacional do Comércio (OIC), expressa na Carta de Havana, que resultava, por sua vez, da Conferência das Nações Unidas para o Comércio e Emprego, em 1947. A frustração desse objetivo pelo Congresso americano não impediu que o Acordo Geral de Tarifas e Comércio – GATT sobrevivesse, mas impediu uma ação articulada daquela organização internacional – OIC – com o FMI.
Do sistema pré-Bretton Woods reproduziu-se o câmbio fixo vinculado ao ouro. Contudo, ao contrário daquele sistema, os acordos de Bretton Woods permitiram o ajuste das paridades nos casos de desequilíbrios fundamentais.[43]
As transações de capital, por sua vez, recaíam dentro da esfera de competência dos Estados, que as poderiam limitar livremente, ao contrário das transações correntes. O FMI, a par de zelar pela manutenção das paridades, também estava encarregado de prover financiamento de cobertura de crises de balança de pagamentos, o que se pensava que evitaria o comportamento nocivo das desvalorizações predatórias, das restrições cambiais[44] aos pagamentos internacionais e o aumento da taxa de juros para atração de capitais do período entre guerras, que tanto haviam contribuído para aprofundar a recessão mundial.
Ao contrário do que se pode imaginar, mesmo no período inicial de vigência do Acordo, o seu funcionamento foi sempre aquém do esperado. A livre conversibilidade das principais moedas européias somente foi adotada em 1958, muito tempo após a frustrada tentativa britânica de adotar a livre conversibilidade, em 1947 – abandonada seis semanas após sua adoção. A proibição de desvalorizações também não durou muito, porque já em 1949 o Reino Unido desvalorizava a sua moeda, sendo seguido por outros 30 Estados[45].
A livre conversibilidade das moedas auxiliou em muito no incremento do comércio entre os Estados, mas também foi um potencial gerador de déficits de balança de pagamento. Tais déficits já não mais podiam ser combatidos com desvalorizações, pois o sistema de Bretton Woods estava assentado sobre o princípio da paridade fixa. A solução monetária mais eficiente seria a redução do acesso ao crédito e a atração de capital estrangeiro por meio do aumento da taxa de juros, a introdução de mecanismos de contenção de saída de moeda e a adoção de uma política fiscal austera, todas medidas fortemente rejeitadas pela política social do estado de bem estar social, o welfare state.
Restava, assim, como única saída para superar o problema da escassez de dólares, o provisionamento de liquidez mundial pelo FMI. Contudo, os recursos do FMI eram ainda muito pequenos frente às necessidades dos Estados. A posição central que os Estados Unidos ocupavam no arranjo monetário internacional tornava-o avalista da liquidez mundial via aumento dos déficits em balança de pagamentos. A paridade ouro-dólar drenava o metal precioso para os Estados Unidos, na mesma medida em que ocorriam emissões americanas.
O aumento de emissões pelos Estados Unidos, além de não satisfazer a necessidade de liquidez mundial, colocava em dúvida a capacidade e a disposição americana de manter o regime de paridade entre o ouro e o dólar. Era natural que, num cenário como esse, os Estados Unidos, paulatinamente, começassem a colocar um freio à saída de dólares do seu território, o que só contribuía para ampliar o problema de liquidez. Portanto, quanto mais atendesse a demanda por liquidez mundial, mais os Estados Unidos plantavam a dúvida sobre a capacidade de manter tal política e mais sofriam demandas de troca da moeda americana por ouro. Quanto mais contivessem as emissões e, por meio da política de juros altos, mais enxugassem a liquidez mundial, mais confiança infundiriam na manutenção do regime de paridade, mas, ao mesmo tempo, mais contribuiriam para a recessão mundial.
Esse dilema ficou conhecido como Dilema de Triffin[46], em homenagem a Robert Triffin, economista belga e professor da Universidade de Yale e foi em resposta a ele que a 1a Emenda ao Acordo do FMI introduziu os Direitos Especiais de Saque – DES[47], os quais objetivavam a provisão de liquidez mundial pelo FMI pela circulação de um título representativo de uma cesta de moedas, título esse emitido pelo próprio FMI.
Durante o período que antecedeu o colapso do sistema de Bretton Woods, a cooperação entre as autoridades monetárias das principais economias européias e dos Estados Unidos adiou o fim do sistema. O Banco de Compensações Internacionais – BIS, na Basiléia, serviu como ponto de convergência dos pontos de vista dos gestores das políticas monetárias e foi das reuniões mensais dos representantes das dez maiores economias da época – conhecido como G10 –que surgiram, por exemplo, os General Arrangements to Borrow – GAB – que em 1961 representou uma injeção extra de seis bilhões de dólares às reservas do Fundo.[48]
Novamente, no âmbito do BIS, o pool do ouro, acordo de 1961 por meio do qual a Suíça, a Inglaterra e os seis Estados das Comunidades Européias comprometeram-se a não converter seus dólares em ouro, reduziu consideravelmente a pressão por desvalorização da moeda americana. Apesar de todos os esforços, a perda da confiança na manutenção da paridade ao ouro da moeda americana provocou em toda a Europa uma corrida para as moedas mais fortes, notadamente o marco, que foi obrigado a valorizar, seguido de outras moedas, o que sinalizou o fim do regime de Bretton Woods. Mesmo posteriormente à declaração oficial de Nixon, em 1971, encerrando o compromisso de manutenção de paridade ouro-dólar americano, tentou-se, ainda, um retorno ao regime de paridade dentro de uma banda cambial, o que ficou conhecido como Acordo Smithshoniano.
O enfraquecimento das disposições do Acordo do Fundo foram contrapostas pelo fortalecimento do papel de supervisão do FMI. Seguiu-se àquele acordo o estabelecimento de um Comitê de 20 Estados, conhecido como C-20[49], com o objetivo de redesenhar o sistema monetário internacional. Assim é que a criação de um novo órgão foi sugerida, o Conselho[50], a ser criado pelo voto majoritário de 85% dos componentes da Junta de Governadores, e embora composto da mesma forma que o Comitê Executivo, ficaria situado hierarquicamente acima desse.
A competência do Conselho seria a de exercitar os mandamentos da Junta de Governadores para supervisionar e gerenciar a adaptação do sistema monetário internacional ao novo paradigma das paridades flexíveis, zelar pelos ajustes de liquidez mundial e acompanhar a evolução da transferência real de recursos aos países em desenvolvimento. O Conselho não foi apontado, mas em seu lugar foi criado o Comitê Interino, que, embora não seja um órgão do Fundo como seria o Conselho, tem suas recomendações avaliadas pelos demais órgãos do Fundo.
Afora a função de supervisão exercida pelo Comitê Interino, o Fundo conta com as observações colhidas no exercício da competência consultiva outorgada pelo artigo IV, por meio do qual o Fundo, ao iniciar procedimentos de consulta sobre determinadas políticas, aparentemente em contradição com as obrigações assumidas pelos Estados, acaba dirigindo o foco de atenção dos demais Estados e dos financiadores públicos e privados para o tipo de política exercida pelo Estado consultado.[51] As consultas sustentadas pelo artigo IV são um instrumento de pressão, por meio do qual a coordenação de políticas monetárias pode ser obtida, na medida em que se revela a extensão das políticas monetárias nacionais.[52]
Os economistas[53] expressam uma visão comum sobre a limitação que os formuladores das políticas econômicas do welfare state possuíam na utilização dos mecanismos de juros, encaixe bancário obrigatório e políticas fiscais para combater os déficits em balança de pagamentos e com isso evitar as desvalorizações cambiais.
Enquanto no regime de paridade fixa do período anterior à I Guerra esses déficits eram combatidos com aumento de juros, enxugamento da liquidez e aumento de impostos, isto é, com políticas deflacionárias e recessivas, no período posterior à II Guerra tais mecanismos eram vistos como geradores de desemprego e, portanto, rejeitados politicamente. A única solução possível seriam os controles sobre transações correntes, agora proibidos pelas cláusulas IV e VIII do Acordo do Fundo. Os controles sobre transações de capital, por sua vez, também eram cada vez menos justificados, diante da crescente necessidade de financiamento privado para superar a crise de liquidez mundial e já num ambiente de livre conversibilidade das moedas.
Num cenário como o de liberdade de transações de capital, contudo, o aumento do déficit da balança de pagamentos é sinônimo de desvalorização monetária, o que incentiva ataques especulativos contra uma moeda, na expectativa que sua desvalorização gere lucros aos detentores de moedas estrangeiras compradas anteriormente à desvalorização.
Essa seqüência continuou sendo repetida durante as décadas que se seguiram aos anos 60 e, muito recentemente, nas crises mexicana de 1994, russa de 1998 e asiática de 1997-1998. Mas, por outro lado, essas agruras serviram para que, paralelamente aos instrumentais de combate às crises, institucionalizados no Acordo do Fundo – como as operações de financiamento e as desvalorizações decorrentes de desequilíbrios fundamentais, bem como as limitações a transações com moedas escassas – desenvolvesse-se um sistema de cooperação monetária entre autoridades monetárias que é responsável, hoje, pelo equilíbrio do sistema monetário internacional.
O fim do regime de paridade fixas, contudo, somente foi oficializado em 1978, com a adoção da 2a Emenda ao Acordo do Fundo, resultado do Acordo de Rambouillet de 1975. A 2a emenda foi acertada no âmbito do G10 e tanto a década de 70 quanto a década de 80 foram marcadas pela atuação concertada das autoridades monetárias desses Estados-parte do G10 para a estabilização das principais moedas mundiais.
O G5[54] assumiu a direção, na década de 80, para a ação concertada de desvalorização do dólar frente ao iene japonês e ao marco alemão – via Acordo do Plaza de 1985. Com a entrada da Itália e do Canadá, passou a denominar-se G7[55], a partir da Cúpula de Tóquio de 1986.
O papel do FMI, a partir do início dos anos 70, viu-se diminuído, passando a assumir a função de articulador para a realização e cumprimento dos acordos de cooperação,[56] já que, oficialmente, após 1978, o regime de vinculação a uma paridade fixa foi substituído pelo regime de taxas flutuantes, ainda que as moedas dos Estados mantidas na Conta Geral de Reservas conservem sua vinculação aos Direitos Especiais de Saque.[57]
Os Estados em desenvolvimento, em especial o Brasil, não podiam, contudo, contar com os mecanismos de cooperação monetária que funcionavam entre os Estados do G7 e, portanto, eram muito mais vulneráveis às flutuações radicais de suas moedas e a ataques especulativos decorrentes da liberdade de transações de capital.
Por essa razão, vivemos, durante os anos 70 e 80, um cenário econômico em que se buscava combater a instabilidade do câmbio por meio do controle sobre o fluxo de capitais e da política de substituição de importações. A recessão mundial iniciada na década de 80 e o agravamento da crise da dívida externa não só reduziram o mercado para nossas exportações, mas também limitariam a entrada de capital externo e as fontes de financiamento.
O Brasil também enfrentou a crise da dívida externa na década de 80, como boa parte dos Estados em desenvolvimento o fez. Longe de superar essa dificuldade, o Brasil manteve os pagamentos externos das amortizações dos encargos da dívida. Esses fatores continuam sendo, até hoje, os itens que mais pesam negativamente em nossa balança de pagamentos. Isso não seria um grande problema se a nossa conta de transações comerciais fosse positiva. Contudo, nossa balança comercial vinha registrando déficits crônicos até 2001, com importações maiores que exportações, apesar da retórica oficial de que haveria uma reversão desse cenário, com crescentes superávits comerciais. Para agravar ainda mais esse panorama, a conta da balança de serviços[58] vinha apresentando déficits assustadores, motivados pela remessa de lucros e dividendos dos capitais investidos no país.
Assim, para o fechamento das contas externas não sobra outra alternativa além do recurso ao capital estrangeiro, seja esse capital de investimento[59], sejam aplicações em carteira, empréstimos e financiamentos. Tal alternativa aumenta o grau de dependência do país e diminui qualquer chance de controle soberano sobre a saída desses mesmos capitais.[60]
O potencial de crise que a continuidade desse quadro projeta é muito grande porque, apesar da entrada de capitais no país ser indispensável para o fechamento da balança de pagamentos, quanto mais investimentos diretos, financiamentos, empréstimos, capitais de curto prazo recebermos, maiores serão as remessas de juros, lucros, dividendos, royalties que terão de ser enviadas ao exterior. Assim, alivia-se no curto prazo o desequilíbrio de balança de pagamentos, mas no médio e longo prazo retornam os déficits na conta de transações correntes.
É neste ponto que reside a vulnerabilidade de nossas contas externas e, de resto, o maior percentual do risco-país que se reflete nas taxas de juros que o mercado exige para acolher os títulos da dívida brasileira. O problema é que a continuidade dessa dependência de capitais estrangeiros incita dúvidas sobre até quando vai a resistência do Estado em manter elevadas taxas de juros[61] e suportar o pagamento do serviço da dívida.
Quando essa dúvida é apoiada em fatos políticos ou econômicos internacionais de repercussão nacional, como recentemente ocorreu com a crise da Guerra do Golfo ou com a Argentina, o risco de fuga em massa do capital pode transformar-se em realidade.
Esse dilema foi vivido pelo Brasil do Plano Real, que de 1994 a janeiro de 1999 sustentou uma taxa de câmbio nominal como estratégia de combate à inflação. A chamada âncora cambial é que assegurava a manutenção do câmbio e, para isso, teríamos de gerar superávits crescentes de balanças de pagamentos, seja pela via da balança comercial – historicamente a via mais difícil – seja pela abertura aos movimentos de capitais – historicamente a via mais fácil.
Se, por um lado, conseguimos vencer a inflação com a âncora cambial, a entrada maciça de capital estrangeiro ampliou em muito a base monetária. O remédio foi o enxugamento do excesso de moeda via política de juros. O aumento na taxa de juros acabou, assim, por comprometer as contas públicas, o que indiretamente compromete a credibilidade sobre a capacidade do governo de sustentar os pagamentos externos. Dessa forma, o que parecia uma solução no curto prazo se transformou num problema no médio e longo prazo.
Mas os prêmios que os Estados dependentes de capitais externos precisam oferecer para manter tais capitais estacionados em nossa economia não se expressam apenas em termos de taxas de juros elevadas, mas também em garantias de estabilidade da moeda, o que exige um sistema cambial comprometido com a liberdade de operações de câmbio para as transações de capital. A liberdade que os estatutos do Fundo concedem aos Estados para imporem restrições às operações de capital é, na verdade, uma não liberdade, porque a sua adoção significa fuga de capitais e desestabilização completa da economia.
Esse cenário de comprometimento de um país com os interesses de capitais residentes no exterior erode os fundamentos econômicos que são necessários para o desenvolvimento e para a busca do emprego. Altas taxas de juros inibem a atividade econômica e incentivam a especulação financeira, enquanto a valorização da moeda acaba comprometendo as exportações, gerando um círculo vicioso que fatalmente acaba em crise de confiança e fuga de capitais.[62] Esse cenário foi visto nesses últimos anos tanto pela Ásia quanto pelo Brasil e pela Rússia.
2 – O SURGIMENTO DO SUBSISTEMA FINANCEIRO INTERNACIONAL
2.1. O Impulso do campo oficial: o enfraquecimento do papel do FMI como provisionador de liquidez mundial
Paralelamente ao desenvolvimento do sistema monetário, desenvolveram-se instituições especializadas na guarda, na circulação e na emissão da moeda. Esse conjunto ordenado de entidades especializadas no tratamento da moeda é que chamamos de sistema financeiro.[63]
O desenvolvimento de um verdadeiro sistema financeiro internacional ocorreu paralelamente à flexibilização das transações puramente de capital, a par das transações correntes, já flexibilizadas para os efeitos do comércio internacional de bens e serviços.A mobilidade do capital é vista como um fenômeno recente, como um efeito colateral da globalização dos mercados financeiros. Contudo, há estudos que remetem esse fenômeno ainda para o século XVIII e principalmente para o período que antecedeu a primeira guerra mundial.
Antes desse período, é verdade, não se poderia falar em um sistema financeiro verdadeiramente internacional. Isso porque anteriormente à centralização monetária em Estados-nação, a Europa convivia com um sistema multi-monetário[64] e o pouco movimento financeiro que se assistia era o de empréstimos soberanos a príncipes e papas. Com a sobrevinda dos Estados-nação, a existência de regimes políticos mais estáveis permitia um maior nível de confiança para os banqueiros, mas ainda não permitia o estabelecimento de um valor monetário nacional e, portanto, de políticas monetárias que garantissem o valor da moeda e taxas cambiais estáveis, porque o valor das moedas era determinado por um fator exógeno ao Estado, isto é, pelo preço internacional da matéria prima de cunhagem das moedas nacionais, que a essa época era o ouro.
Essa situação muda quando os Estados europeus decidem pelo controle do preço do ouro e pela fixação de taxas cambiais vinculadas ao ouro. Nesse período, que foi de 1870 a 1914, assistiu-se a um grande fluxo internacional de capitais para investimento direto e financiamento de Estados e particulares, sem que houvesse pressões sobre as taxas cambiais. Portanto, historicamente viveu-se um período de liberdade de transações de capital e de estabilidade cambial.
Como apontado anteriormente, isso era garantido porque os ajustes dos déficits em balança de pagamentos originados dessa política – saída de capital e gastos com importação de bens e serviços – era obtidos pelos ajustes internos, que implicavam redução das importações e gastos estatais, aumento da taxa de juros, desaceleração econômica, queda de preços e aumento da competitividade externa, com o equilíbrio novamente obtido pela via do superávit na conta de transações correntes e pelo retorno dos capitais.
Os efeitos sociais danosos se davam em uma sociedade pouco organizada e com pouca participação política. Essa ausência de democracia é que dispensava o uso de instrumentos de controle cambial. Esse cenário mudou após as duas Guerras Mundiais e sacrifícios sociais em prol de estabilidade monetária já não são tão facilmente defendidos.
Após a eclosão da Primeira Grande Guerra, os mercados financeiros retornaram aos limites nacionais e os únicos sinais visíveis de circulação de capitais eram os dos empréstimos estatais bilaterais.[65] Essa situação não se modificou grandemente no período entre-guerras, uma vez que as reparações de guerra sobre os países derrotados, somadas à crise de 1929, reforçavam a tendência protecionista européia e o aumento do controle das transações de capital.
Esse conjunto de fatos fez com que a circulação de capitais no período compreendido entre 1924 e 1931 caísse a menos de 20%[66] em relação ao nível observado nos anos do pré-guerra. Essa situação não mudou grandemente no imediato pós II Grande Guerra, porque as economias devastadas pela guerra zelavam pelo uso dos poucos recursos existentes para pagamentos internacionais de importações de bens necessários para a reconstrução e sobrevivência de seus povos.
O compromisso da maior parte dos Estados nos anos que se seguiram ao fim da II Grande Guerra foi o de restabelecer a corrente de comércio internacional, o que pressupunha compromisso com a liberalização dos pagamentos internacionais por transações correntes, isto é, por transações derivadas da aquisição de bens e serviços. A liberdade de transferências de capital oriundas do lado real da economia contrapunha-se à contenção das transferências de capital para operações não vinculadas à aquisição de bens ou serviços, denominadas puramente transações de capital, de que são exemplos financiamentos e investimentos diretos.[67]
A estrutura institucional do sistema de Bretton Woods forneceu, portanto, a base de um compromisso para a estabilização das taxas de câmbio – FMI – para a adoção de políticas comerciais não discriminatórias – GATT – e para a reconstrução das economias devastadas pela guerra – BIRD.
O subsistema monetário criado em Bretton Woods consistia de um sistema de taxas de câmbio em que os Estados participantes mantinham uma taxa de câmbio fixa relativamente a outras divisas e foi mantido enquanto o denominador comum, o dólar americano, manteve a paridade estrita com o ouro. Esse sistema vigorou no período que vai de 1944 a 1971 e foi conhecido como sistema de paridades fixas, mas ajustáveis, em oposição ao sistema de paridades flexíveis.
Foi somente a partir de 1961 que as principais moedas do mundo tornaram-se legalmente conversíveis.[68] A criação de um verdadeiro mercado de moedas e a conseqüente ampliação de fontes de financiamento do comércio contribuíram significativamente para o aumento da corrente de comércio na década de 60, com um crescimento médio de 8% ao ano[69].
Na verdade, a ampliação das fontes de financiamento internacional e, portanto, as transações de capital são um fenômeno que começou, intra-Europa, antes mesmo dos anos 60, mais exatamente no momento em que a conversibilidade passou a ser adotada para as moedas européias, parte do Sistema Europeu de Pagamentos, em 1951.
Com a conversibilidade das moedas e a redução significativa das cotas e tarifas comerciais que as Comunidades Européias auxiliaram a imprimir, o volume de transações correntes aumentou no mesmo nível em que foram relaxadas as barreiras ao fluxo de capitais de financiamento e investimento intra-europeu.
De outra banda, uma onda de investimento americano já havia se iniciado nos anos 50 e foi seguida pela abertura de filiais de bancos americanos na Europa por três razões básicas: a) o incremento das economias européias proporcionado pelo Plano Marshall; b) o comércio com a Europa Oriental, que dificultado às empresas baseadas nos Estados Unidos, não encontrava a mesma resistência legal para empresas baseadas na Europa[70]. Aliás, não é à toa que a estrutura de capital daquelas empresas contavam com participacao relevante do segumento financeiro[71]; c) a adoção das restrições a empréstimos a não residentes, adotada em 1965 pelos Estados Unidos.
O Plano Marshall complementou a demanda de provisão mundial de dólares que faltavam ao Fundo. Keynes havia previsto a constituição de fundos equivalentes a U$ 26 bilhões para a sua International Clearing Union. Ao final da conferência de Bretton Woods, o FMI foi dotado de fundos equivalentes a U$ 8,8 bilhões, que somados aos U$ 13 bilhões gastos no Plano Marshall chega-se a um número próximo ao cálculo da demanda de liquidez internacional feito por Keynes.[72]
Os Estados Unidos passaram, de fato, a garantir a provisão de liquidez mundial. Para isso, dólares deveriam sair maciçamente pela via das importações ou dos investimentos. Dado os crônicos superávits americanos no pós-guerra, foi pela via do investimento maciço americano fora de suas fronteiras que a liquidez foi oferecida.
A conversibilidade das moedas européias foi ampliada para operações fora da Europa em 1959, o que só fez aumentar a mobilidade de capital e incentivar ainda mais a manutenção de depósitos em moedas estrangeiras, principalmente o dólar, em bancos europeus.
À primeira vista, viviam as principais economias mundiais no melhor dos mundos, porque não só o livre comércio progredia com os resultados surpreendentes da Rodada Kennedy[73], mas o fluxo internacional de capitais aumentava e o financiamento de déficits de balança de pagamento parecia abundante, quando suficientemente incentivado pelas taxas de juros.
O problema estava centrado na convivência de um sistema de paridades fixas com mobilidade de capital. Os fluxos internacionais de capitais são extremamente sensíveis aos riscos de mudanças de política econômica e o principal risco que havia à época era seguramente o de desvalorização. Assim, a continuidade dos fluxos de financiamento de déficits de balança de pagamentos continuariam na exata medida em que a confiança dos investidores não fosse abalada por suspeitas de desvalorização da moeda. Quanto mais aumentava a dependência de financiamento dos déficits do balanço de pagamentos, mais aumentava o risco de crise no mercado de moedas.
A Inglaterra foi a primeira vítima desse cenário, em 1967, como havia sido quando aderiu à livre conversibilidade prematuramente em 1949. À desvalorização da moeda inglesa seguiram-se desvalorizações na França. Àquela altura, a autoridade do FMI já estava em muito abalada. A desmoralização do compromisso de prévia autorização para desvalorizações acima de 10%, em casos de desequilíbrios fundamentais da Cláusula IV do Acordo do Fundo já havia ocorrido com a desvalorização da libra esterlina em 1949 e repetiu-se novamente com a mesma libra em 1969. As 72 horas de comunicação prévia ao Fundo não foram respeitados nos dois casos[74], como também não seria respeitado mais tarde pela França, pelo Canadá e pelos Estados Unidos.[75]
À desvalorização da moeda americana seguiu-se a adoção do regime de câmbio flutuante[76] pela libra esterlina em 1972, pelo franco suíço em 1973, juntamente com o iene e a lira. A defesa do dólar foi abandonada pelos bancos centrais europeus em março de 1973 e o dólar também passou a flutuar. A reforma do Acordo do Fundo que se seguiu em 1976, com vigência a partir de 1978, abandonou o sistema de paridades fixas – fixed exchange rates system- em troca de um sistema estável de paridades –stable system of exchange rates – o que não significava nada além de um compromisso de cooperação entre os Estados para a manutenção da estabilidade do sistema, sem que se definisse o que viabilizaria tal estabilidade.
O compromisso dos governos passava a ser o de notificar o FMI de seus arranjos de câmbio, os quais poderiam contemplar várias possibilidades, na forma da nova redação da Cláusula IV: a) a fixação do valor da moeda aos Direitos de Saque Especial – DES ou outro indexador diferente do ouro; b) a fixação do valor da moeda a uma outra moeda ou a uma cesta de moedas, em face de acordos de cooperação monetária; c) qualquer outro tipo de arranjo, à escolha do Estado-membro.[77]
A par dessa mudança, o FMI teve reforçado o seu papel de supervisão e de catalisador da cooperação monetária, fixando princípios específicos a serem seguidos pelos membros. A reforma do Acordo, do ponto de vista prático, não importou em nenhuma mudança significativa do status quo do papel do Fundo.
Desde o final da década de 40, a função de guardião de um sistema de paridades monetárias estáveis vinha-se diluindo e o papel de financiador de déficits de balança de pagamento foi-se rarefazendo para os Estados desenvolvidos, em face da ampliação do fluxo de capitais entre esses Estados e a cooperação monetária estabelecida pelo G10, G5 e G7. Esse último papel, o de financiador de crises de balança de pagamentos, acabou restando apenas para os Estados em desenvolvimento.
Em conclusão, as instituições derivadas dos Acordos de Bretton Woods não tinham como missão lidar com aqueles que se tornariam os componentes mais desestabilizadores das relações econômicas internacionais, ou seja, o fluxo de capitais e a desestabilização dos preços dos produtos primários. [78]
Os Estados que se viam mais combalidos pelas alterações bruscas dos humores do capital internacional eram justamente os países em desenvolvimento, pois suas crises cíclicas de balança de pagamentos derivavam das flutuações que sofriam os produtos primários. O fracasso em estruturar um sistema de estabilização dos preços de produtos primários acabou desaguando na criação, pela Assembléia Geral das Nações Unidas, da Conferência das Nações Unidas para o Comércio e Desenvolvimento – UNCTAD. Uma das mais notáveis realizações dessa organização foi a conquista do Sistema Generalizado de Preferências – SGP, por meio do qual os produtos de países em desenvolvimento teriam tratamento discriminatório favorável nos países importadores desenvolvidos.
É notório que hoje o FMI somente exerce influência sobre os Estados que dependem de suas linhas de financiamento.[79] Os Estados desenvolvidos tem acesso facilitado ao mercado financeiro porque sua saúde econômica e financeira diminui o risco de perdas. Esses Estados contam, também, com a rede de cooperação do G7[80] para ações monetárias – taxas de juros e taxa cambial – concertadas de redução de desequilíbrios[81] de balanças de pagamento; o exemplo marcante da década de 80 foi a correção da sobrevalorização do dólar– feita através do Acordo do Plaza, em 1985, e do Acordo do Louvre, em 1987.
A mesma provisão de recursos para um grupo também seleto é oferecido pelo Banco de Compensações Internacionais da Basiléia – BIS, que detém de 10 a 15% das reservas mundiais em nome dos bancos centrais do G10 e que são utilizadas para empréstimos de curto prazo aos membros. Ademais, a cooperação que o BIS estabeleceu com o FMI permite que desde 1978 seja o BIS um provedor de recursos para o FMI.[82]
A ação concertada do G7 e do G10, embora tenha por prioridade a preservação do equilíbrio das principais moedas do mundo, também se revela na formação dos pools de Bancos Centrais para o levantamento de recursos aos Estados em desenvolvimento com risco de moratória e, portanto, com risco de danos às economias centrais; a pré-condição, geralmente, é a renegociação dos débitos com o FMI e a concordância com a agenda de condições impostas pelo Fundo.
2.2. O Impulso do campo privado: o desenvolvimento do mercado de financiamento privado de moedas europeu[83] – Euromercado e o sistema privado como provedor de liquidez mundial
À tendência à desregulamentação operada, em primeiro lugar, no âmbito do comércio, com o GATT, a partir da década de 50, seguiu-se a liberalização do fluxo de investimento, com a adoção da conversibilidade das moedas ao final da década de 50, atingindo, por último, o campo das finanças, com a liberalização dos mercados financeiros nacionais.
A liberalização financeira consistiu no conjunto de ações políticas que ampliaram a facilidade com que residentes adquirissem direitos e obrigações denominados em moeda estrangeira e não-residentes adquirissem os mesmos direitos e obrigações nos mercados financeiros nacionais.[84]
São três os tipos de operações permitidos pela maior liberalização financeira: operações de entrada, em que residentes podem tomar emprestado no exterior e não residentes podem investir no mercado financeiro doméstico; operações de saída, em qu residentes podem transferir seu capital para o exterior e adquirir ativos e não residentes põem tomar recursos nos mercados domésticos e operações domésticas em moeda estrangeira, em que residentes podem contratar em moeda estrangeira.[85]
A atividade bancária internacionalizou-se rapidamente, ao mesmo tempo em que cresceram os mercados de capitais de ativos de empresas e de papéis dos governos, sem falarmos no mercado internacional de moedas que, de um total de operações diárias de U$ 60 bilhões em 1983, saltou para um total de U$ 11.500 bilhões em 1997.[86]
Há uma série de fatores que podemos considerar como importantes para a emergência desse sistema financeiro privado, embora não exista uniformidade entre historiadores e economistas sobre o grau de importância desses fatores. Contudo, há uma convergência de opiniões em torno da importância que o desenvolvimento do mercado de eurodólares possuiu nesse processo, como a primeira vez na história que um tal volume de recursos em moeda nacional passou a ser transacionado fora das fronteiras e do controle da autoridade emissora.[87]
Esse mercado iniciou sua formação antes mesmo do final da II Grande Guerra, quando, ao final dos anos 40, a ex-União Soviética passou a depositar suas reservas monetárias na França, retirando-as dos demais Estados por receio de que uma iniciativa americana de congelamento de reservas de seu oponente ideológico. A disponibilidade de recursos em moeda estrangeira depositada nos cofres dos bancos comerciais franceses poderia facilmente servir às necessidades de financiamento de Estados combalidos em suas balanças de pagamento.
Contudo, esses recursos ainda não eram suficientes para a demanda de liquidez mundial da época. Um segundo passo na consolidação do mercado de eurodólares seria dado, então, nos anos 60 pelos Estados Unidos. A pressão sobre a moeda americana já era muito grande nessa época, e as dúvidas sobre a manutenção do regime de paridades fixas crescia, juntamente com o aumento do déficit de balança de pagamentos americano.
Não se poderia esperar outra atitude das autoridades americanas que não fosse a imposição de controles sobre a saída de dólares dos Estados Unidos. Assim foi feito. No ano de 1965, os Estados Unidos editaram o Voluntary Credit Restraint Program (VCRP), com o objetivo de reduzir os empréstimos de bancos americanos para não residentes.
O objetivo era reduzir a exposição americana frente aos não-residentes detentores de dólares, já que o lastro em ouro garantido pelo sistema de Bretton Woods era cada dia mais difícil de sustentar. A resposta do mercado financeiro foi a ampliação das atividades das filiais no exterior e o incremento das praças financeiras off shore.[88] Assim, à internacionalização da atividade industrial americana, contemporânea ao Plano Marshall, seguiu-se a internacionalização da atividade financeira.
Um terceiro e decisivo passo para a consolidação desse sistema financeiro privado internacional veio com o fim do regime de paridades fixas de Bretton Woods em 1971. Com as moedas dos principais Estados flutuando, a perspectiva de ganhos de arbitragem de moedas só fez atrair a atenção dos investidores para o mercado de moedas, ampliando ainda mais o volume de recursos em moeda estrangeira. Tais volumes passaram a ser manipulados a partir de mercados de moedas que já não se continham apenas dentro da Europa, mas se faziam presentes nos principais centros financeiros do planeta.
Um quarto passo foi precipitado pela crise do petróleo, na primeira metade da década de 70. O grande volume de moedas de reserva drenadas pelos Estados-membros da Organização dos Países Exportadores de Petróleo – OPEP foi depositado justamente no mercado de eurodólares e uma nova injeção de recursos líquidos sem precedentes terminou por consolidar o sistema financeiro privado como a principal fonte de recursos financeiros disponíveis aos Estados e aos particulares.
Em resumo, o que se verifica é que o mercado de moedas europeu foi-se desenvolvendo na mesma medida em que a aposta contra o dólar foi crescendo, ao final dos anos 60. Após as desvalorizações das principais moedas do mundo, em 1973, esse sistema privado passou a disputar com o sistema público do FMI o papel de financiador dos déficits de balança de pagamentos dos Estados. A sensibilidade do mercado financeiro para as alterações da política econômica dos Estados passou a ser maior, com as taxas de juros puxando o fluxo de investimento de Estado a Estado.
A atividade de intermediação financeira, que tradicionalmente era feita pelos bancos por meio dos contratos de mútuo, foi ampliando seus instrumentos e seus sujeitos. A securitização[89]das dívidas dos Estados em desenvolvimento nos anos 80 e o desenvolvimento do mercado de capitais colocaram à disposição dos Estados os mais variados instrumentos financeiros para a geração dos recursos necessários para a cobertura de déficits de balança de pagamentos e passaram a substituir paulatinamente a necessidade de recurso ao Fundo.
Por conta dessa multiplicação da atividade financeira internacional, a determinação da taxa cambial das moedas passou a ser influenciada fortemente pela demanda que as moedas passaram a ter no mercado financeiro, para operações puramente financeiras – incluindo as operações de proteção cambial (hedge) – e não foi mais determinada pela demanda que lhe faziam as operações comerciais.
O mais impressionante é que as moedas com a função de ativos – reserva de valor – superaram rapidamente as moedas com função de meio de troca. Como ativos, a flutuação em seu valor é sensível a todas as mudanças de expectativas que se produzem no mercado pelos investidores e tomadores[90], muitas vezes distante de qualquer alteração nos fundamentos econômicos no Estado emissor da moeda.[91] A desregulamentação da atividade financeira e o desaparecimento dos limites entre a atividade bancária tradicional – recolhimento de poupança e empréstimo – e as atividades financeiras de intermediação de ativos fez com que os mesmos agentes financeiros expusessem-se em mais de um mercado, arriscando-se a estender a perda no mercado de moedas, por exemplo, para suas operações no mercado de depósitos, o que se conhece comumente como risco sistêmico[92].
Um exemplo impressionante do funcionamento desse novo sistema foi apresentado ao mundo em 1992, na Europa. As negociações que convergiram na assinatura do Tratado de Maastricht em 1992 previam a liberalização completa do mercado de capitais e o início do processo de criação de uma moeda única. As expectativas de ganho em torno das moedas européias parte do Sistema Monetário Europeu – SME – atraíram maciços ingressos de capital de todo o mundo. A subseqüente insegurança sobre a ratificação do Tratado pelos Parlamentos Nacionais deflagrou uma crise de confiança no sistema e o comportamento de boiada do capital provocou uma corrida em direção à porta de saída, quase levando todo o sistema ao colapso, apenas um ano mais tarde, em agosto de 1993.[93]
Embora ainda permanecessem no topo do sistema financeiro internacional, as organizações financeiras multilaterais, como o FMI, o Banco de Compensações Internacionais – BIS da Basiléia, seguidas pelos bancos centrais, é inegável que ao seu lado os bancos comerciais depositários de euromoedas e os centros off shore, tais como os mercados de intermediação de moedas, passaram a desempenhar um papel marcante na provisão de liquidez mundial.
O volume de capitais privados destinados ao financiamento e ao investimento em portfólio em países em desenvolvimento vai aumentando a partir da década de 70, em parte por conta do volume de eurodólares oriundos dos choques do aumento do preço do petróleo. Esse movimento de capitais, que havia diminuído na década de 80, reinicia com força na década de 90, agora liderado fortemente pelo capital privado.
É importante apontar, neste ponto, que o volume líquido de capitais privados[94] superou em mais de quatro vezes o volume líquido de recursos públicos[95] que os países em desenvolvimento receberam na década de 90, tanto como investimento direto, como aplicação em porfólio. A tendência que se observa para os próximos anos[96] é a do aumento do fluxo de capitais para aplicação em porfólio e aquisições de capital – equity – o que estaria a revelar a participação maior de investidores institucionais e o aumento da importância dos instrumentos de securitização.[97]
Analisando os dados do financiamento externo brasileiro, por exemplo, vê-se claramente que a dependência do FMI deixa de existir a partir de 1973, interrompendo uma série histórica anual de recurso ao FMI, que foi de 1965 a 1972, e que mesmo nessa época se traduzia em acordos stand by raramente sacados. Esses acordos serviam, anteriormente, como garantia aos emprestadores privados de que haveria suficiente acesso a recursos públicos, no caso de dificuldades de pagamentos aos privados.[98]
A crise da dívida externa de 1982 não se deu apenas por conta do excessivo endividamento dos países em desenvolvimento, mas porque as linhas de financiamento do mercado privado foram secando à medida que os juros americanos foram aumentados abruptamente em 1979 de uma média de 6 a 8% para 12 a 14%, chegando mesmo a 21%.[99] O aumento da taxa de juros tornava o serviço da dívida insustentável, para aqueles Estados que ainda mantinham crédito, e mais do que isso trocava a direção do crédito dos Estados em desenvolvimento para os Estados Unidos. O endividamento externo excessivo somente era tolerável enquanto mantida a oferta também excessiva de recursos. Quando a direção do investimento externo muda do sul para o norte, o que era tolerável passou aos olhos da comunidade financeira internacional a ser intolerável.
Doutor em Direito Internacional pela Universidade de São Paulo
Professor do Programa de Pós-Graduação da Universidade Luterana do Brasil e Professor do Curso de Pós-graduação em Direito da UFSC
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