A Função Jurídica da Fiança Penal em Face Dos Crimes Inafiançáveis

Marcos Paulo Mendes dos Santos

Resumo:

Este artigo elaborado por meio de uma pesquisa qualitativa-explicativa no método indutivo, tem o objetivo de apresentar um estudo detalhado sobre a função jurídica desempenhada pela fiança penal, bem como confrontar esta funcionalidade com os crimes inafiançáveis e a razão de ser da inafiançabilidade constitucional. A pesquisa dissertada neste trabalho deixa explícito por meio de referenciais teóricos e doutrinários o real papel que a fiança desempenha e demonstra que o mecanismo da inafiançabilidade tornou-se um vácuo jurídico, o qual acaba por trazer à tona uma incoerência  no emprego do instituto da fiança, bem como gera um ambiente de ambiguidade e de desproporcionalidade na utilização da fiança como instrumento do processo  penal. Esta pesquisa evidencia que o problema jurídico enfrentado se soluciona no nível dos direitos e garantias individuais em um contrabalanço de princípios fundamentais, o que justifica uma alteração constitucional a fim de possibilitar que o Estado receba dos acusados por crimes de maior lesão a garantia e cautela processual que a fiança instrumentaliza.

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Palavras-chave: fiança. função. crimes inafiançáveis. desproporcionalidade.

 

Abstract This article elaborated through a qualitative-explanatory research in the inductive method, aims to present a detailed study on the juridical function performed by the criminal bail, as well as to confront this functionality with the non-bailable crimes and the raison d’être of the constitutional unblocking. The research presented in this paper makes explicit, through theoretical and doctrinal references, the real role that bail plays and demonstrates that the bail-out mechanism has become a legal vacuum, which ultimately brings to the surface an inconsistency in the employment of the bail bond institute , as well as creates an environment of ambiguity and disproportionality in the use of bail as an instrument of criminal proceedings. This research shows that the legal problem faced is solved at the level of individual rights and guarantees in a counterbalance of fundamental principles, which justifies a constitutional amendment in order to enable the State to receive from the defendants for crimes of greater injury the guarantee and procedural caution which bail is instrumental.

Keywords: bail, function, non-accountable crimes, disproportionality.

 

Sumário: Introdução.  1 Princípios processuais penais relacionados ao tema. 1.1 Princípio da dignidade da pessoa humana. 1.2 Princípio da proporcionalidade. 1.3 Princípio da igualdade. 1.4 Princípio da presunção de inocência. 2 A fiança penal. 2.1 Conceito e função da fiança. 2.2 Breve histórico da fiança Penal. 2.3 A Fiança como medida cautelar. 2.4 Competência para fixação da fiança. 3 A inafiançabilidade constitucional. 3.1 Os crimes inafiançáveis. 3.2 O objetivo da inafiançabilidade. 4. A fiança penal diante dos crimes de alta lesão. 4.1 Crimes inafiançáveis e prisões cautelares. 4.1.1 Prisões cautelares. 4.1.2 Fiança penal e prisões cautelares. 4.2 Crimes inafiançáveis e princípio da igualdade. 4.3 A função da fiança penal e os crimes inafiançáveis. Conclusão. Referências .

 

INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem como objetivo investigar o instituto da fiança penal no ordenamento jurídico brasileiro, bem como compreender a sua funcionalidade jurídica em confronto com inafiançabilidade constitucionalmente prevista. Para tanto, tem como tema problema averiguar a incompatibilidade da fiança penal com os crimes de alta lesão e a previsão da inafiançabilidade em face do princípio constitucional da igualdade.

A finalidade maior desta pesquisa é construir um estudo que forneça ao leitor, por meio de uma ampla consulta doutrinária e normativa, elementos que formem sua convicção a respeito do papel que a fiança penal exerce e a consequente viabilidade técnico-jurídica da existência e manutenção de vedação da fiança a determinados crimes (crimes inafiançáveis).

O tema deste trabalho é um problema complexo no ordenamento jurídico brasileiro, pois revela um grande paradoxo, o qual se estende à seara do direito processual penal e que, em nível mais elevado, alcança a tutela dos direitos fundamentais. Paradoxo este que mostra uma enorme incoerência no direito, pois a realidade jurídica vigente é que os acusados em crimes inafiançáveis, no gozo da liberdade provisória, não realizam junto ao Estado-Juiz a garantia patrimonial que a fiança aduz e, para estes acusados, não há uma imposição financeira que os desestimule a contrariar a instrução processual, enquanto que, para acusados em crimes de menor lesão, a fiança penal cumpre fielmente este papel.

Para o desenvolvimento deste trabalho foi utilizado como marco teórico referencial a obra de Aury Lopes Junior (2014) intitulada de Direito Processual Penal, mais especificamente o capítulo XV desta literatura, denominado de “Prisões Cautelares e Liberdade Provisória: A (In)Eficácia da Presunção de Inocência”, sobretudo, o subtítulo 08 deste capítulo, intitulado de “Liberdade Provisória. O Novo Regime Jurídico da Fiança”, o qual enfoca o instituto da fiança penal e levanta o problema central desta pesquisa ao esclarecer o papel que a fiança exerce atualmente no ordenamento jurídico.

Por meio do método indutivo, em uma pesquisa qualitativa-explicativa, este trabalho foi desenvolvido em quatro capítulos com vistas a pormenorizar o tema e mensurar as diversas nuances e institutos que se relacionam com a fiança penal e os crimes inafiançáveis.

O primeiro capítulo, dividido em quatro subtítulos, trará o estudo dos princípios processuais penais relacionados ao tema, e se mostra de suma importância, pois, os princípios informadores do direito norteiam e orientam as normas positivadas e principalmente a utilização e aplicação dos institutos jurídicos na prática diária dos operadores do direito. Nesse sentido, serão estudos os princípios da Dignidade da Pessoa Humana, da Igualdade, da Proporcionalidade, da Presunção de Inocência e a afetação destes para com a fiança penal e os crimes inafiançáveis.

No segundo capítulo, a fiança penal será estudada com profundidade, e o capítulo foi dividido em outros quatro subtítulos. Neste capítulo buscar-se-á conhecer o conceito e função da fiança em sentido lato e, sobretudo, no direito processual penal, investigar o seu histórico no ordenamento jurídico brasileiro, entender a fiança penal como a importante medida cautelar que é, bem como compreender como se procede a sua fixação e arbitramento.

O terceiro capítulo, dividido em dois subtítulos, será dedicado à inafiançabilidade constitucional, ao estudo dos crimes inafiançáveis e a busca pela compreensão do objetivo pelo qual a vedação da fiança aos crimes de alta lesão foi implementada no ordenamento jurídico constitucional e infraconstitucional brasileiro.

Finalmente, o quarto capítulo, dividido em três subtítulos, e com o primeiro subtítulo ainda subdividido em mais dois subtítulos, buscará conferir a relação da fiança penal e dos crimes inafiançáveis com o instituto das prisões cautelares, e averiguar a aplicação do instituto da fiança e a previsão da inafiançabilidade em face do princípio constitucional da igualdade, por fim, avaliar a incompatibilidade da fiança penal com os crimes de alta lesão perante todo conhecimento produzido ao longo da pesquisa realizada.

 

1 PRINCÍPIOS PROCESSUAIS PENAIS RELACIONADOS AO TEMA

Ao estudar o instituto da Fiança Penal e suas implicações no âmbito do processo penal, torna-se essencial, antes de tudo, conhecer os parâmetros principiológicos que cercam o tema, pois, os princípios orientadores de direito são fontes mestras do ordenamento jurídico.

Corrobora com essa premissa Marisa Pinheiro Cavalcanti (2013) ao discorrer que à luz do sistema jurídico vigente, a saber, pós-positivista e neoconstitucionalista, os princípios deixaram de ser apenas recomendações jurídicas para alcançar patamar de norma jurídica vinculante, sobretudo, pilares de todo o ordenamento, os quais tem o condão de nortear e balizar a edição de normas infraconstitucionais e a aplicação do direito em todas as searas.

Ao definir a importância e o significado dos princípios para o direito, diversos doutrinadores registram que os princípios além de constarem literalmente expressos em normas constitucionais e infraconstitucionais, também se tornam visíveis, mesmo que de modo não expresso, em razão da formatação do ordenamento jurídico e do sistema político-constitucional estabelecido. O desrespeito ou não atendimento de um princípio, no instante da aplicação do direito ou da edição de uma norma em abstrato, macula todo o ordenamento jurídico, pois os princípios são premissas fundamentais e bases de toda estrutura jurídica.

“Cada ramo do direito possui princípios próprios, que informam todo o sistema, podendo está expressamente previstos em lei ou ser implícitos, isto é, resultar da conjugação de vários dispositivos legais, de acordo com a cultura jurídica formada com o passar dos anos de estudo de determinada matéria. O processo penal não foge à regra, sendo regido, primordialmente, por princípios, que, por vezes, suplantam a própria literalidade da lei. (NUCCI, 2014, p.15).”

Nesse ínterim, torna-se notória a necessidade de investigar os princípios norteadores do processo penal que balizam, orientam e regem a aplicação do instituto da fiança dentro de sua funcionalidade jurídica no âmbito do processo penal, visto que, não é admissível um instituto ser manejado, seja em caráter positivo ou negativo com infringência a princípios basilares do direito.

“As respostas para determinados problemas que surgem no curso de um processo criminal estão muitas vezes nos princípios que o informam, porém, o intérprete ou aplicador da norma não os visualiza, dando interpretações ou aplicando normas em contraposição aos elementos primários de constituição do processo. (RANGEL,2015, p.66-67).”

Em respeito a estas orientações passa-se a analisar os princípios informadores do Processo Penal que possuem estrita relação com o tema, destacando-se nesse sentido, o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, Princípio da Proporcionalidade, Princípio da Igualdade e Princípio da Presunção de Inocência.

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1.1 Princípio da dignidade da pessoa humana

A obra de Moraes (2017) referenda que o princípio da dignidade da pessoa humana ganhou destaque e amparo legal na Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), sendo tratado na CR/88 como fundamento do Estado Brasileiro, erigido a condição de valor supremo devendo ser visto como forma de interpretação e integração de todas as normas do estado brasileiro.

Guilherme de Souza Nucci (2014) leciona que a dignidade da pessoa humana além de ser fundamento da República Federativa do Brasil, previsto no inciso III do Art. 1º da Constituição Federal, é sobretudo princípio orientador e regente de todo o ordenamento jurídico e, portanto, não há como criar institutos jurídicos ou pensar em aplicar o direito de modo que minimamente desgaste a ordem máxima orientada pelo postulado da dignidade da pessoa humana.

Sobre o referido princípio Nádia Regina de Carvalho Mikos leciona:

“De fato, o princípio da dignidade humana tem como reconhecida extensão os direitos e garantias fundamentais que abrangem não só os direitos individuais, coletivos, sociais e políticos, como também os econômicos. O respeito à dignidade da pessoa humana constitui-se, assim, em um dos pilares que sustentam a legitimação de atuação do Estado, coibindo qualquer ato que procure de alguma forma restringir essa atuação, em qualquer que seja a dimensão. (MIKOS,2010).”

A partir destes apontamentos torna-se evidente que o exercício de todo e qualquer instrumento processual deve garantir total respeito ao ditame da dignidade da pessoa Humana e, portanto, nenhum instituto ou ferramenta do processo penal está autorizado a desrespeitar normas de direitos fundamentais do homem.

Segundo Bitencourt (2011), o princípio da dignidade da pessoa humana foi o basilar para a evolução das penas, sustentando que não se pode aplicar sanções que atinjam a dignidade da pessoa humana, como penas cruéis, de tortura, maus-tratos, assim como é proibido aquelas que criem deficiências físicas, como morte, amputação, dentre outras que violem a dignidade do ser humano.

Nesse contexto, pode-se afirmar que a liberdade é um dos maiores bens que o ser humano pode ter e por esta razão, a fim de garantir a ordem social, o Estado encontrou na pena privativa de liberdade o seu limite de imposição sancionatória sobre a pessoa que ofende ou ameaça a ofender bens jurídicos relevantes de outro semelhante, limite este, imposto pelo princípio da Dignidade da Pessoa Humana que não mais admite a existência de penas que descaracterizem a dignidade humana.

Pois bem, ao Estado visando garantir a harmonia social, é dada o dever-poder de avançar sobre determinados direitos dos homens livres, aplicando-lhes sanções, destacando a pena privativa da liberdade, esta substituiu àquelas aplicadas sobre o corpo, tais como a morte, a tortura, podendo ser considerada uma evolução. (…).

Privar o cidadão de sua liberdade é retirar do homem um de seus maiores bens. Infelizmente, a realidade brasileira na execução dessa medida está aquém de suas pretensões, pois o que se vê são celas lotadas, abrigando num espaço ínfimo uma grande população carcerária. Além disso, as estruturas prediais são uma espécie sombria das construções que abrigavam os homens presos em tempos passados, não apresentado condições de salubridade simples, tais como, iluminação adequada, arejamento, instalações sanitárias condizentes. (RIBEIRO JUNIOR, FERREIRA, 2014).”

Nesse sentido, quando se busca estudar a função jurídica da fiança penal atrelada a uma resposta que justifique a razão de o instituto ser vedado aos crimes de maior lesão, ou seja, aos crimes inafiançáveis, é indiscutível que será necessário percorrer um caminho em que, em algum momento, o direito fundamental da liberdade também será elemento de estudo, pois quando se trata de processo penal todo o discurso se volta para o pilar dos direitos fundamentais de primeira geração, a liberdade, bem jurídico do indivíduo acusado que  poderá ser mitigado em proveito da sociedade.

Nesse contexto, o princípio da dignidade da pessoa humana, como máxima do Estado Democrático de Direito, certamente, servirá de baliza que sinalizará o campo de emprego e os limites do instituto da fiança no processo penal.

“A liberdade individual, por decorrer necessariamente do direito à vida e da própria dignidade da pessoa humana, está amplamente consagrada no texto constitucional e nos tratados internacionais, sendo mesmo um pressuposto para o Estado Democrático de Direito em que vivemos. (LOPES JR., 2014, p.47).”

Em suma, ao buscar a avaliação de operadores do direito no que concerne ao princípio da dignidade da pessoa humana e sua afetação com o processo penal, após uma breve investigação ao pensamento de diversos juristas, tornou-se evidente que a fiança penal é conhecida por grande parte dos especialistas como um instrumento que valoriza o princípio da dignidade da pessoa humana e, consequentemente, a primazia dos direitos fundamentais e do Estado Democrático de Direito.

Nesse sentido é o escólio de Paulo Maurício Serrano, Wardirley Rodrigues de Souza Filho e Fabrizio Casagrande Zanellatic:

“Este autor crê que a Carta de 1988 recepcionou a fiança criminal como um instrumento da dignidade da pessoa humana: palavra dada, palavra garantida e, desta sorte, não serviria a fiança para nenhuma indignificação do fiador (NEVES, FILHO, ZANELLATIC,2011, p.7).”

A dignidade da pessoa humana, assim, não é um princípio aplicado com exclusividade apenas ao processo penal, é, na verdade, um postulado em que se fundamenta o Estado brasileiro e, por conseguinte, todo o ordenamento jurídico. E nesse aspecto, quando uma importante premissa trouxer conflito com este postulado, certamente, a prevalência será para que se efetive com rigor a dignidade da pessoa humana.

“A dignidade da pessoa humana é um valor-guia não apenas dos direitos fundamentais, mas de toda a ordem jurídica (constitucional e infraconstitucional), razão pela qual para muitos se justifica plenamente sua caracterização como princípio constitucional de maior hierarquia axiológica-valorativa. (SARLET[1], apud, LOPES JR.,2014, p.47).”

Por derradeiro, ainda no que se refere ao princípio da dignidade da pessoa humana em relação ao processo penal e seus institutos, como a fiança penal, por exemplo; é importante destacar que a sinalização maior que o princípio lança sobre a seara diz respeito à valorização que deve ser dispensada à pessoa incurso em uma ação penal, atenção essa voltada às capacidades e autonomias que este  indivíduo possui, enquanto membro da família humana, capacidades e autonomias que precisam ser atendidas e respeitadas. “O objeto primordial da tutela no processo penal é a liberdade processual do imputado, o respeito a sua dignidade como pessoa, como efetivo sujeito no processo”. (LOPES JR., 2014, p.46).

Portanto, diante da relevante interferência que o princípio da dignidade da pessoa humana insere sobre o ordenamento jurídico, as apreciações trazidas acima são indispensáveis para que se investigue a função da fiança como instituto no processo penal e para que, finalmente, se compreenda o porquê da impossibilidade de aplica-la aos acusados por determinados crimes.

 

1.2 Princípio da proporcionalidade

Apesar de não estar literalmente expresso no texto constitucional, o princípio da proporcionalidade, formulado pela hermenêutica e doutrina, é compreendido como princípio implícito, o qual, parametriza e, sobretudo, equilibra a aplicação dos demais princípios e normas no ordenamento jurídico, em especial na seara processual penal. ( TÁVORA, ALENCAR, 2016).

O princípio da proporcionalidade é consultado de forma corrente, quando no processo penal estudam-se as provas e a aplicação das medidas cautelares, cujo rol é composto pela fiança, objeto focal de estudo deste trabalho.

“Argumenta-se, dessa forma, ser o princípio da proporcionalidade, na verdade, um “princípio hermenêutico”, uma nova categoria, próxima ou análoga a um verdadeiro método de interpretação jurídico posto em prática sempre que houver a necessidade de restringir direitos fundamentais. Objetiva ser uma restrição às restrições dos direitos fundamentais por parte do Estado. Como o processo penal constantemente necessita contrabalancear valores e princípios que rotineiramente se opõem (ex.: o direito à liberdade do individuo e o dever do Estado de punir o culpado), o princípio da proporcionalidade tem grande e variada aplicação no processo penal, ainda que parte da doutrina e da jurisprudência resistam em aceita-lo. ( BONFIM, 2012, p.122).”

Ao estudar a produção acadêmica de Eduardo Silva de Freitas (2015) é possível assimilar que o princípio da proporcionalidade possui definição em sentido amplo (lato) e em sentido estrito (stricto). Quando se passa a observar o referido princípio com amplitude, observa-se, que sua competência é regular a aplicação do direito e seus institutos, para que estes sejam ferramentas que calibrem o exercício de tutelas, poderes e garantias, tanto para quem está na posição de exercer a autoridade do direito que possui, quanto para quem está na posição de se submeter, ou sujeitar-se aos mandamentos impostos pelo ordenamento jurídico regulador, ou seja, um postulado estendido a todos, sem exceção.

Ao observar a competência do princípio em sentido estrito verifica-se que sua baliza, como norte orientador, é promover uma adequação razoável entre os meios e instrumentos de direito utilizados, e a finalidade jurídica para a qual estes meios existem. Na atuação em sentido estrito, haverá, portanto, ofensa ao princípio da proporcionalidade quando os meios utilizados não são apropriados para atingir a finalidade jurídica.

“Também denominado de ponderação de interesses, esta máxima parcial preconiza que o juiz, para solucionar o conflito existente entre as normas, deverá verificar qual delas deverá prevalecer no caso concreto. Assim, a aplicação de um juízo de ponderação de interesses volta-se precipuamente para a análise do caso concreto e constitui-se em eficiente mecanismo de legitimação das decisões judiciais. (NASCIMENTO,2014).”

Por meio deste estudo, compreende-se que é no aspecto estrito do princípio da proporcionalidade que reside a maior competência deste princípio com o processo penal, sobretudo, com a fiança penal, enquanto importante medida cautelar. O princípio da proporcionalidade no viés estrito é formado por dois subprincípios que o configuram, os princípios necessidade e adequação.

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“Necessidade e adequação, portanto, são os referenciais fundamentais na aplicação das medidas cautelares no processo penal. E ambas as perspectivas se reúnem no famoso postulado ou princípio (como prefere a doutrina), da proporcionalidade”. (PACELLI,2017, p.237).”

Maria Geórgia de Oliveira Nascimento também ratifica em sua obra:

“A adequação traduz a relação entre meio adotado e o fim pretendido com a adoção da medida. Assim, o meio deve ser apto para o alcance da finalidade pretendida. O Judiciário apenas intervém nos casos em que a medida for inequivocamente desproporcional, pois não pode imiscuir-se em atividades dos poderes públicos para determinar qual seria a melhor medida.(…).

(…) A necessidade é igualmente denominada de exigibilidade ou princípio da menor ingerência possível. Aqui, o meio utilizado deve ser o menos gravoso possível. Desta forma, a norma de solução apenas será legítima se o conflito for real, não havendo a possibilidade de estabelecer uma forma de convivência simultânea das normas em conflito. (NASCIMENTO,2014).”

Por expressamente se encontrar no esteio que regula a aplicação das medidas cautelares no processo penal, pelos referenciais objetivos “necessidade” e “adequação”, seus elementos formadores, o princípio da proporcionalidade é essencialmente marco sensor que deve dirigir o exercício de aplicação da fiança. E por este mesmo sensor principiológico se deve encontrar a justificativa que demonstre o motivo pelo qual a fiança não pode ser aplicada.

“Art. 282.  As medidas cautelares previstas neste Título deverão ser aplicadas observando-se a:

I – necessidade para aplicação da lei penal, para a investigação ou a instrução criminal e, nos casos expressamente previstos, para evitar a prática de infrações penais;

II – adequação da medida à gravidade do crime, circunstâncias do fato e condições pessoais do indiciado ou acusado. (DECRETO LEI Nº 3689/1941 – CÓDIGO PROCESSO PENAL, BRASIL, 2018).”

Consoante  a importância e o norte que o princípio da proporcionalidade exerce na aplicação do direito, preponderantemente no direito processual penal, é notório que não é vaga sua explanação pelos diversos doutrinadores da seara, e por exercer força elementar na prática penal forense não se pode investigar o instituto da fiança, suas nuances e institutos correlatos sem compreender a máxima jurídica que este princípio, mesmo que implícito, exprime em todo ordenamento do processo penal, sobretudo na sua cautelaridade.

 

1.3 Princípio da igualdade

Ao estudar a Constituição Federal de 1988 observa-se que a máxima entendida como princípio da igualdade é um postulado expresso pelo texto constitucional e mencionado duas vezes no caput do art. 5º da Constituição Federal. Este princípio introduz no ordenamento jurídico brasileiro a cartilha dos direitos fundamentais, os quais são cláusulas pétreas e, portanto, não podem ser abolidos.

“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (BRASIL, 2018).”

De acordo com Alexandre de Moraes (2017) o princípio da igualdade trabalha no ordenamento jurídico como um norte orientador sobre todas as searas do direito, com a finalidade precípua de promover a justiça e equidade entre as pessoas, que genuína e naturalmente, são desiguais e diferentes entre si. Mas, o princípio da igualdade, orienta essa paridade apenas perante o direito e, sobretudo, faz prevalecer a igualdade com função de isonomia, ou seja, igualdade para os iguais e desigualdade para os desiguais.

“O princípio da igualdade consagrado pela constituição opera em dois planos distintos. De uma parte, frente ao legislador ou ao próprio executivo, na edição, respectivamente, de leis, atos normativos e medidas provisórias, impedindo que possam criar tratamentos abusivamente diferenciados a pessoas que encontram-se em situações idênticas. Em outro plano, na obrigatoriedade ao intérprete, basicamente, a autoridade pública, de aplicar a lei e atos normativos de maneira igualitária, sem estabelecimento de diferenciações em razão de sexo, religião, convicções filosóficas ou políticas, raça, classe social. (MORAES, 2017, p.48).”

Quanto ao princípio da igualdade, interessa a este trabalho investigar sua força orientativa capaz de impor limites no âmbito do direito processual penal, especificamente, no que concerne, ao instituto da fiança penal e as nuances da sua aplicação.

Na doutrina processual penal de Edilson Bonfim consta a seguinte abordagem:

“No âmbito do processo penal, às partes devem ser asseguradas as mesmas oportunidades de alegação e de prova, cabendo-lhes iguais direitos, ônus, obrigações e faculdades. (BONFIM,2012, p.109-110).”

No mesmo sentido é o escólio de Pacelli:

“As partes, em juízo, devem contar com as mesmas oportunidades e ser tratadas de forma igualitária. Tal princípio constitui-se desdobramento da garantia constitucional assegurada no art. 5º, caput, da Constituição Federal, ao dispor que todas as pessoas são iguais perante a lei em direitos e obrigações. (PACELLI,2017, p.53).”

Pela lição de Nestor Távora, Rosmar Rodrigues Alencar (2016) compreende-se que, no processo penal, o princípio da igualdade personifica-se principalmente pela faceta da chamada paridade de armas, que introduz a premissa de que no curso processual penal as ferramentas e os institutos utilizados por uma das partes devem do mesmo modo está à disposição da outra parte.

E é nesse aspecto que reside a importância de compreender a parametrização que este princípio introduz, pois ao estudar a fiança penal como ferramenta utilizada para a cautelaridade processual é importante observar se sua aplicação, seja positiva, na afiançabilidade, ou negativa, na inafiançabilidade, permanece ou não, dentro dos contornos da ordem referenciada pelo princípio da igualdade.

“O princípio da paridade de armas, malgrado seja tratado como sinônimo de igualdade ou isonomia no processo penal, tem conteúdo mais rico, indicando o direito da defesa de desempenhar um papel proativo, mormente na produção de prova e no exercício de poderes que possibilitem a plena igualdade, tal como consta do art. 8, do Pacto de São José da Costa Rica.

Sob esse prisma, não basta a outorga de prazos iguais, de contraditório e de defesa ampla. A paridade de armas impõe um plus, consistente no poder do acusado atuar com os mesmos instrumentos garantidos à acusação, a exemplo de formulação de pedidos de interceptações telefônicas e de buscas e apreensão, bem como da admissibilidade de assistente de defesa, possibilitando uma real igualdade. (TÁVORA, ALENCAR, 2016, p.48-49).”

Quanto ao princípio da igualdade e a sua relação com a inafiançabilidade é importante destacar que será objeto de estudo mais à frente. Mas, ainda no que se refere a questão da afiançabilidade e sua estrita relação com o parâmetro estabelecido pelo princípio da igualdade, é importante destacar que em razão de ser  uma cautela que é ligada diretamente à condição financeira e socioeconômica do acusado, muitas vezes a aplicação da fiança fica confundida como uma condição necessária para que o acusado goze do seu direito de liberdade; o que não é verdade, pois, se assim ocorresse, o princípio da igualdade estaria completamente ofendido, porque, no processo penal, pessoas na mesma e idêntica condição judicial não podem ser tratadas de forma diferente, pura e simplesmente em razão das suas condições financeiras e patrimoniais.

Sobre a fiança e o princípio da igualdade, Nestor Távora e Alencar observam:

“Sendo a fiança, um direito, é inimaginável que os incluídos financeiramente pudessem ficar livres, por terem condição de pagar, e os pobres tivessem que ficar reclusos, pelo desprestígio da condição financeira. Como o art. 5º, caput da CF assevera o princípio da igualdade, e esta tem que ser material, tratando-se desigualmente os desiguais, prevê o art. 350 do CPP que “nos casos em que couber fiança, o juiz, verificando a situação econômica do preso, poderá conceder-lhe liberdade provisória, sujeitando-o às obrigações constantes dos arts. 327 e 328 deste código e a outras medidas cautelares, se for o caso”. (TÁVORA, ALENCAR, 2016, p.1398).”

Portanto, diante destas primeiras explanações no que concerne ao princípio da igualdade, torna-se notória que sua compreensão é fundamental para que este trabalho se desenvolva com qualidade em torno do tema que se buscar investigar.

 

  • Princípio da presunção de inocência

Inicialmente é possível compreender que, universalmente, a presunção de inocência se originou na Revolução Francesa, com o advento da Declaração dos Direitos dos Homens e dos Cidadãos, de 1789. No Brasil, a presunção de inocência foi incorporada na Constituição Federal, promulgada em 1988, inserindo-a no rol de direitos fundamentais, expostos no artigo 5º, assim agindo de forma acertada, uma vez que protege os sujeitos acusados de arbitrariedades por parte do Estado. (LOPES JR., 2014).

A obra de Lopes Junior (2014) ressalta ainda que a presunção de inocência é a ordem máxima do direito processual penal brasileiro e que este princípio se abriga na linha de frente quando se invoca os princípios orientadores do processo penal.

Nesse contexto, a atual ordem constitucional é taxativa ao declarar a vedação de tratamento e indicação de alguém como culpado em momento anterior à condenação efetiva: “Art. 5º, LVII – ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória;” (BRASIL, Constituição Federal 1988,2018).

Alexandre de Moraes (2017) leciona que o princípio da presunção de inocência é um dos princípios basilares do Estado de Direito. E como garantia processual penal, visa à tutela da liberdade pessoal, salientando a necessidade de o Estado comprovar a culpabilidade do indivíduo, que é de forma constitucional presumido inocente, sob pena de retrocedermos ao estado de total arbítrio estatal.

Sobre tal princípio Aury Lopes Jr. consolida:

“Pode-se afirmar, com toda ênfase, que o princípio que primeiro impera no processo penal é o da proteção dos inocentes (débil), ou seja, o processo penal como direito protetor dos inocentes (e todos os a ele submetidos o são, pois só perdem esse status após a sentença condenatória transitar em julgado), pois esse é o dever que emerge da presunção constitucional de inocência prevista no art. 5º, LVII, da Constituição. (LOPES JR., 2014, p.46).”

Ao realizar uma síntese conceitual sobre o princípio da presunção de inocência, Nucci (2014) evidencia que a premissa maior expressa por este princípio se remete, preponderantemente, à condição nata da pessoa, ou seja, que toda pessoa possui como elementar natural do status humano a inexistência de culpa e que, para quebrar essa regra, o Estado-acusação precisa por meio de provas irrefutáveis demonstrar ao Estado-juiz que o acusado tenha por meio da sua conduta atingido a imputabilidade.

Ainda nessa literatura, a doutrina afirma que outra baliza máxima que o princípio da presunção de inocência introduz é referenciar a  excepcionalidade e necessidade  que as medidas cautelares exercem no direito, pois são por meio delas que o princípio da presunção de inocência se materializa no processo penal, garantindo que a submissão do acusado à prisão é condição de extrema exceção e somente pode ser aplicada diante de fundamentos objetivos.

“3. PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA: consagrada no art. 5º, LVII, da Constituição, é um princípio reitor do processo penal e seu nível de eficácia denota o grau de evolução civilizatória de um povo. Do “não tratar o réu como condenado antes do trânsito em julgado”, podemos extrair que a presunção de inocência é um “dever de tratamento processual”, que estabelece regras de julgamento e de tratamento no processo e fora dele. Manifesta-se numa dupla dimensão: a) interna: estabelecendo que a carga da prova seja integralmente do acusador; impondo a aplicação do in dubio pro reo; limitando o campo de incidência das prisões cautelares; b) externa: exige uma proteção contra a publicidade abusiva e a estigmatização do acusado, assegurando a imagem, dignidade e privacidade do réu.( LOPES JR., 2014, p.239-240).”

Um dos eixos de foco da investigação deste trabalho é exatamente a respeito do papel que as medidas cautelares exercem para a garantia do princípio da presunção de inocência, pois, a fiança penal, na condição de cautelar processual, de alguma forma, rebate no princípio da presunção de inocência, seja pela afiançabilidade ou pela inafiançabilidade. De qualquer maneira, a possibilidade de aplicação da fiança ou a vedação desta para alguns crimes, de modo nenhum pode ofender a premissa elementar do princípio da presunção de inocência.

Nesse contexto, sobre a presunção de inocência no campo da prisão provisória Pacelli ensina:

“No que se refere às regras de tratamento, o estado de inocência encontra efetiva aplicabilidade, sobretudo no campo da prisão provisória, isto é, na custódia anterior ao trânsito em julgado, e no do instituto a que se convencionou chamar de “liberdade provisória”, que nada mais é, atualmente (Lei nº 12.403/11), que a explicitação das diversas medidas cautelares pessoais, substitutivas da prisão. (PACELLI, 2017, P.39).”

A partir do princípio da presunção de inocência são formuladas duas regras fundamentais do processo penal. A primeira diz respeito a regra da prova ou do juízo, a qual assevera que o compromisso, a responsabilidade ou a obrigação de formar a culpa do acusado cabe de forma privativa, em primeiro momento, ao acusador, e que, de forma nenhuma, essa regra pode ser confundida com a ideia de que é o acusado quem deve demonstrar sua inocência. A segunda, é a regra do tratamento, a qual alimenta o conceito de que enquanto não se transitar em julgado o processo e a culpa não se manifestar plenamente formada, não pode o acusado ser tratado como culpado, e isso assevera que há o impedimento claro de qualquer antecipação de senso condenatório, o que orienta, portanto, que todos os instrumentos do processo penal devem acatar e valorizar esta máxima. (TÁVORA, ALENCAR, 2016).

Corrobora também com os doutrinadores, o jurista Edilson Mougenot Bonfim:

“Este princípio reconhece, assim, um estado transitório de não culpabilidade, na medida em que o referido status processual permanece enquanto não houver o trânsito em julgado de uma sentença condenatória” (BONFIM,2012, p.105).”

Nesse ínterim, não é possível pesquisar sobre a função jurídica da fiança penal e construir um conhecimento sobre a inafiançabilidade se, contudo, deixar de conhecer a aplicação e efetividade do princípio da presunção de inocência, que consta no posto de direitos fundamentais do indivíduo como máxima que orienta o direito penal material, bem como, sobretudo, a prática processual penal.

 

2 A FIANÇA PENAL

A fiança penal é um importante instituto no direito brasileiro e uma das ferramentas de grande expressividade no âmbito do processo penal.

Não obstante, a partir dos ensinamentos de Aury Lopes Junior (2014), é possível observar que, atualmente, apesar da ampliação no poder de alcance que determinadas alterações legislativas investiram sobre o instituto, a fiança penal encontra-se com sua funcionalidade confundida.

Especificamente, porque, por via constitucional ela não pode ser imposta a alguns crimes e esta vedação, ao que tudo indica, não se coaduna com a função jurídica que o instituto exerce. Por isso, em busca de esclarecimentos a respeito deste conflito jurídico, necessário se faz investigar sobre este importante instrumento processual penal e mensurar sua real funcionalidade no ordenamento jurídico.

A priori, a função primordial da fiança penal reside na sua capacidade de garantir segurança e cautela ao processo penal, não somente porque é uma das medidas cautelares, inclusive uma cautelar com força sobre o patrimônio do réu, mas sobretudo, porque entre as garantias processuais previstas na constituição federal, a fiança é um elemento com previsão expressa no artigo 5º, inciso LXVI: “Ninguém será levado à prisão ou nela mantido, quando a lei admitir a liberdade provisória, com ou sem fiança;” (BRASIL, Constituição Federal 1988,2018).

Notadamente por força do excerto constitucional descrito, a fiança penal ganha destaque em razão da sua importância processual, pois sua aplicação sempre está relacionada ao instituto da liberdade provisória. O cenário prévio faz subentender que na possibilidade de aplicação da fiança, o acusado pode comprar do estado-juiz o direito da sua liberdade provisória, enquanto que para as situações em que a fiança penal é vedada, o agente acusado sequer poderia responder à acusação em liberdade. Mas, essa premissa não se sustenta, pois, a presunção de inocência não permite tratar a fiança como meio de pagamento pela liberdade provisória. (LOPES JR, 2014).

Em outros termos, em uma situação de flagrante, por exemplo, o juiz ao não vislumbrar os elementos caracterizadores para se decretar a prisão cautelar, não terá alternativa a não ser conceder a liberdade provisória ao acusado, independentemente da fiança.

Portanto, nessa circunstância, a fiança penal se esvazia da possibilidade de exercer a função de condicionante para a liberdade, visto que a liberdade é a máxima, e a possibilidade ou não de fiança apenas uma forma de como se dará a liberdade provisória durante o curso processual penal.

Por conseguinte, afirma Guilherme de Souza Nucci (2014, p. 277-278) “A finalidade da fiança é garantir o vínculo do investigado ou acusado com o distrito da culpa, impedindo que fuja; afinal, se fizer, perderá o valor dado em garantia”. Nesse sentido, a fiança tem sua funcionalidade restrita ao cunho cautelar processual, como uma garantia por parte do réu de que o processo penal não será frustrado.

Nesse ínterim, a função da fiança penal encontra-se delineada com precisão no Código de Processo Penal.

“Art.319, VIII – fiança, nas infrações que a admitem, para assegurar o comparecimento a atos do processo, evitar a obstrução do seu andamento ou em caso de resistência injustificada à ordem judicial;(DECRETO LEI Nº 3689/1941 – CÓDIGO PROCESSO PENAL, BRASIL, 2018).”

Dada a abordagem inicial torna-se evidente o aprofundamento dos estudos em torno do instituto da fiança penal a fim de mensurar seu conceito, histórico, funcionalidade e aplicação no processo penal, elementos que serão explorados a seguir.

 

2.1 Conceito e função da fiança

Na investigação a respeito da função da fiança penal no ordenamento jurídico brasileiro, é importante, a partir desta primeira análise, definir a conceituação técnica e objetiva no que concerne a fiança como instituto jurídico e a fiança penal como espécie elemento de pesquisa.

Em linhas gerais, segundo Paulo Nader (2018), a fiança no direito civil se trata, pura e simplesmente, de um instituto de garantia para que o direito patrimonial de determinado credor seja satisfeito, ainda que o devedor não cumpra diretamente com sua responsabilidade contratual. A fiança civil, portanto, resume-se em um contrato de garantia pessoal em que determinada pessoa (fiador), se responsabiliza diretamente junto ao credor pela obrigação assumida por outra pessoa (devedor).

Ao realizar um estudo aprofundado sobre a fiança no campo do direito civil, os doutrinadores na seara cível, deixam bem claro,  que apesar de ser utilizada com finalidade de garantia, a fiança penal não pode ser confundida com a fiança cível, pois a primeira utiliza-se como garantia apenas coisas do acervo patrimonial do afiançado para acautelar a instrução processual penal, enquanto que a segunda cria a figura do fiador.

“O vocábulo fiança, também com o sentido de garantia, emprega-se em Direito Processual Penal. Distingue-se da fiança civil, pois não constitui garantia fidejussória. Quando autorizada, o preso em flagrante deposita uma quantia arbitrada e se compromete a comparecer em juízo, sempre que sua presença for solicitada. A constituição Federal, pelo art. 5º, inc. LXVI, dispõe que “ninguém será levada à prisão ou nela mantido, quando a lei admitir a liberdade provisória, com ou sem fiança”, enquanto o Código de Processo Penal regulamenta o instituto. (NADER, 2018, p.510).”

Diversos doutrinadores do processo penal delimitam o conceito da fiança penal em suas obras literárias, e em todos os casos, a fiança é entendida como uma importante medida cautelar, garantidora da instrução processual penal e elemento assegurador para a efetivação da lei penal.

“A fiança é uma contracautela, uma garantia patrimonial, caução real, prestada pelo imputado e que se destina inicialmente, ao pagamento das despesas processuais, multa e indenização, em caso de condenação, mas, também, como fato inibidor da fuga. Ou seja, é a fiança, considerando o elevado valor que pode atingir, um elemento inibidor, desestimulante, da fuga do imputado, garantindo, assim, a eficácia da aplicação da lei penal em caso de condenação. Guarda, por isso, uma relação de proporcionalidade em relação à gravidade do crime e também em relação às possibilidades econômicas do imputado. (LOPES JR, 2014, p.917-918).”

É também unanime entre os estudiosos a afirmação de que a fiança penal é uma justificativa para que o acusado usufrua da liberdade provisória apresentando ao estado-juiz a garantia de que irá cumprir com todas as demandas processuais a fim de que a lei seja efetivada, além de ser uma alternativa ante a prisão preventiva e entre as medidas cautelares.

“Por outro lado, com a reforma legislativa, a fiança como já visto, passou a ter uma natureza hibrida, na medida em que pode ser uma medida alternativa à prisão, que poderá ser decretada autônoma e independentemente  da prisão em flagrante ( CPP, art.319, caput e VIII), mas também uma contracautela à prisão em flagrante ( CPP, art. 310, caput e III). (BADARÓ, 2015, p.1044).”

Exatamente neste ponto que muitos fazem confusão conceitual entre os institutos da fiança e da liberdade provisória, como se para existir a liberdade provisória, o acusado deva ter que prestar fiança. O que não é verdade, pois a fiança ao ocupar sua característica de contracautela, de modo algum é um obstáculo à liberdade provisória, é na verdade apenas a medida cautelar mais visada afim de vincular o acusado ao processo, medida inclusive, indicada pelo constituinte. Nada obsta, por exemplo, de que preenchidos os requisitos da prisão preventiva e na possibilidade de concessão da fiança como medida alternativa à prisão preventiva, o acusado seja preso cautelarmente, ao entender o juízo que a fiança não seja suficiente para garantir cautela ao processo.

Outro ponto importante, inclusive o cerne da problemática desta pesquisa, é que diante da vedação para aplicação da fiança; caso a situação do acusado não se enquadre nos termos da prisão preventiva, deverá ser o acusado mantido em liberdade provisória, sujeitando-se ou não, a outras medidas cautelares diversas da prisão e da fiança, mas a liberdade, contudo, deverá ser satisfeita, e desse modo sem a cautela de cunho patrimonial.

“E, mais, fiança e liberdade provisória são institutos distintos, inclusive com a nova redação do art.319, consagrou-se uma fiança autônoma, que pode ser aplicada até o trânsito em julgado. Portanto, quando se veda a fiança não se proíbe, necessariamente, a concessão de liberdade provisória. Esse é o ponto nelvrágico da questão. (LOPES JR., 2014, p.925).”

Ainda nesse sentido, ao conceituar o instituto da fiança penal, leciona Norberto Avena (2017, p.700) “A fiança constitui uma garantia prestada em prol da liberdade, com o objetivo lato sensu de garantir que o indiciado ou acusado cumprirá suas obrigações pessoais”.

Notadamente, pelas definições conceituais apontadas, é previsível que ainda deve permanecer a linha tênue entre o conceito de fiança penal e liberdade provisória, mas ao realizar um estudo atento e pormenorizado do instituto da fiança penal, em síntese, restará  evidente de que ela se trata de uma garantia patrimonial que o acusado ou investigado presta ao estado-juiz, a fim de que o afiançado usufrua da sua liberdade,  que é regra e um direito fundamental, ao passo que o Estado também terá o mínimo de garantia de que o processo penal e a lei penal serão efetivados.

 

2.2 Breve histórico da fiança penal

É certo que a fiança penal não nasceu no Brasil, mas também é certo que o direito brasileiro é derivado da cultura civilizatória de outros povos, influenciado diretamente pelo direito romano, por exemplo, e, nesse contexto, a fim de conferir precisão e objetividade ao núcleo da pesquisa, é importante se ater ao histórico do instituto a partir do momento em que ele surgiu no ordenamento jurídico pátrio. Para tanto, o melhor parâmetro no caminho por esta investigação histórica certamente reside nos textos das diversas constituições brasileiras.

No ordenamento jurídico brasileiro a fiança penal surgiu na Constituição do Império de 1824, e nesse primeiro momento, ela se tratava de sinônimo único da liberdade provisória, pois somente por meio da fiança poderia um acusado de crime utilizar do direito à liberdade no curso do processo, hoje, condição incompatível com o regime de direitos e garantias fundamentais estabelecido no nosso ordenamento jurídico vigente.

“Art. 179, IX. Ainda com culpa formada, ninguém será conduzido á prisão, ou nella conservado estando já preso, se prestar fiança idônea, nos casos, que a lei a admite: e em geral nos crimes, que não tiverem maior pena, do que a de seis mezes de prisão, ou desterro para fora da Comarca, poderá o Réo livrar-se solto. (CONSTITUIÇÃO POLÍTICA DO IMPÉRIO DO BRASIL 1824. BRASIL, 1824).”

No início do Brasil republicano, o instituto da fiança penal caminhou junto com a nova ordem constitucional estabelecida, Constituição de 1891, e a sua natureza jurídica em nada foi alterada, caracterizando-se ainda, naquele período, como sinônimo da liberdade provisória para os casos em que era admitida.

“Art. 72, (…) § 14 Ninguém poderá ser conservado em prisão sem culpa formada, salvo as excepções especificadas em lei, nem levado a prisão, ou nella detido, si prestar fiança idonea, nos casos em que a lei a admittir. (CONSTITUIÇÃO DOS ESTADOS UNIDOS DO BRASIL, 1891. BRASIL, 1891 BRASIL,1891).”

Mas o ponto de grande relevância no texto da primeira constituição brasileira promulgada foi a inserção do termo “crime inafiançável”, pois, a partir deste registro, tornou-se notório que para os acusados por determinados delitos, a possibilidade de liberdade provisória era uma vedação marcante. A menção de crime inafiançável, sem mencionar especificamente qual tipo penal não admitiria fiança apareceu no art. 20 da constituição de 1891 como uma exceção para a chamada imunidade parlamentar.

“Art 20 – Os Deputados e Senadores, desde que tiverem recebido diploma até a nova eleição, não poderão ser presos nem processados criminalmente, sem prévia licença de sua Câmara, salvo caso de flagrância em crime inafiançável. Neste caso, levado o processo até pronúncia exclusiva, a autoridade processante remeterá os autos à Câmara respectiva para resolver sobre a procedência da acusação, se o acusado não optar pelo julgamento imediato. (CONSTITUIÇÃO DOS ESTADOS UNIDOS DO BRASIL, 1891. BRASIL, 1891).”

A Constituição de 1934 no capítulo dos Direitos e das Garantias Individuais, novamente incluiu o instituto da fiança penal como condição para a liberdade dos acusados, mencionava o art. 113, 22) da Constituição de 1934 “Ninguém ficará preso, se prestar fiança idônea, nos casos por lei estatuídos” (BRASIL,1934).

Quanto aos casos de vedação à fiança, a constituição de 1934 também não especificou quais tipos penais seriam inafiançáveis, mas apenas colocou a inafiançabilidade como exceção à imunidade dos parlamentares.

Apenas no ordenamento jurídico brasileiro de 1937, implantado por meio da Constituição outorgada por Getúlio Vargas, que a fiança penal não foi mencionada como instrumento para a liberdade. Apesar de não explicitamente aparecer no texto da Carta de 1937, a prática de concessão da fiança para determinados crimes era uma realidade, conclusão que se faz por meio de uma interpretação lógica do texto constitucional daquele período, pois ainda assim, o critério da inafiançabilidade foi mencionado como uma exceção para a garantida de imunidade dos parlamentares.

“Art.42 – Durante o prazo em que estiver funcionando o Parlamento, nenhum dos seus membros poderá ser preso ou processado criminalmente, sem licença da respectiva Câmara, salvo caso de flagrante em crime inafiançável. (BRASIL, 1937).”

A constituição de 1946 trouxe novamente de modo expresso o instituto da fiança penal como um instrumento garantidor da liberdade para os acusados de crimes em que se pudesse admiti-la. Novamente a fiança levantada como sinônimo da liberdade provisória. “Art. 141, §21 – Ninguém será levado à prisão ou nela detido se prestar fiança permitida em lei.” (BRASIL, 1946).

A penúltima Constituição brasileira,1967, também fez questão de evidenciar a qualidade da fiança penal como ferramenta útil para livrar acusados da prisão, por ordem do próprio texto constitucional e em casos definidos e regulados por legislação específica, a fiança era notoriamente admitida como meio para manutenção da liberdade.

“Art. 153, §12. Ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita de autoridade competente. A lei disporá sobre a prestação da fiança. A prisão ou detenção de qualquer pessoa será imediatamente comunicada ao juiz competente, que a relaxará, se não for legal. (CONSTITUIÇAO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL, 1967. BRASIL, 1967)”

Nesse sentido, Tais Imanari (2015) corrobora que o histórico da Fiança Penal no panorama das constituições brasileiras faz entender que ao longo do tempo o instituto sempre esteve alçado nas legislações infraconstitucionais, desde o Código Criminal do Império de 1832 até ao Código de Processo Penal de 1941, como um meio necessário para que os acusados por alguns crimes tivessem o benefício da liberdade enquanto eram processados.

Por derradeiro, a Constituição Cidadã de 1988 trouxe uma disciplina muito mais abrangente para o instituto da fiança penal, e inclusive, o texto constitucional deixa expresso a quais tipos penais a fiança é vedada, os chamados crimes inafiançáveis. Mas, ao passo que a Constituição vigente reforçou a competência da fiança para com o processo penal, o constituinte de 1988, por meio do inciso LXVI do art. 5º, fez uma evidente desvinculação entre fiança e liberdade provisória, a ponto de deixar claro que a fiança penal não é uma condição necessária para que o acusado goze do seu direito fundamental de liberdade.

Aury Lopes Junior (2014) apregoa que  em razão das alterações sofridas pelo instituto da liberdade provisória, mais enfaticamente a partir da lei 6.416 de 1977, o instituto da fiança penal também seguiu para um caminho de reformulação, o que se efetivou pela reforma processual penal promovida pela lei 12.403 de 2011, e faz constar o instituto da fiança  no patamar em que hoje se encontra.

“O instituto da fiança foi profundamente modificado na Reforma Processual de 2011, tendo agora um campo de atuação muito maior. A fiança passa a ter duas dimensões de atuação:  aplicada no momento da concessão da liberdade provisória – art.310 – portanto, como condição imposta neste momento e vinculada à liberdade provisória; e como medida cautelar diversa (art. 319). (LOPES JR., 2014, p918).”

Pelo exposto é possível observar que a fiança penal sempre foi um instrumento marcante no processo penal brasileiro, sempre foi medida cautelar destacada pelo constituinte e ao longo do tempo evoluiu como instituto para se adaptar a sua real finalidade para com processo penal.

 

2.3 A fiança como medida cautelar

Antes da alteração promovida pela lei 12.403 de 2011, a fiança era tomada pelo ordenamento jurídico, mais especificamente pela legislação processual penal, como único elemento que caracterizaria a liberdade provisória, pois o regime consistia-se apenas na dualidade de liberdade provisória com fiança ou liberdade provisória sem fiança. No entanto, a partir da reforma de 2011 a fiança ganhou a roupagem de medida cautelar autônoma, e juntamente com outras oito medidas cautelares, a fiança deixou de figurar-se solitária como alternativa à prisão cautelar. (AVENA, 2017).

A compreensão a respeito da grande relevância que a alteração processual de 2011 provocou nos institutos da fiança penal e da liberdade provisória e, consequentemente, no curso do processo penal, é possível ser assimilada ao realizar a leitura sistêmica do art. 321 e seguintes do Código de Processo Penal, e confrontar as redações antes e após a vigência da lei 12.403/2011.

Redação do art. 321 do Código de Processo Penal antes da reforma de 2011:

“Art. 321.  Ressalvado o disposto no art. 323, III e IV, o réu livrar-se-á solto, independentemente de fiança: I – no caso de infração, a que não for, isolada, cumulativa ou alternativamente, cominada pena privativa de liberdade; II – quando o máximo da pena privativa de liberdade, isolada, cumulativa ou alternativamente cominada, não exceder a três meses. (DECRETO LEI Nº 3689/1941 – CÓDIGO PROCESSO PENAL. BRASIL,2018).”

Redação do art. 321 do Código de Processo Penal após a reforma de 2011:

“Art. 321.  Ausentes os requisitos que autorizam a decretação da prisão preventiva, o juiz deverá conceder liberdade provisória, impondo, se for o caso, as medidas cautelares previstas no art. 319 deste Código e observados os critérios constantes do art. 282 deste Código.  (DECRETO LEI Nº 3689/1941 – CÓDIGO PROCESSO PENAL. BRASIL,2018).”

No que concerne a fiança incorporada ao rol das medidas cautelares previstas no Código de Processo Penal, a maioria dos estudiosos afirmam que, além de ter se mostrado como uma grande conquista para a cautelaridade processual, a decisão legislativa introduzida pela reforma processual de 2011 trouxe para o instituto da fiança uma reformulação apropriada, coerente e inovadora com o cenário dos direitos e garantias processuais no processo penal.

“Com a nova lei de cautelares pessoais penais (Lei 12.403/11) a fiança recuperou sua força. Agora é uma cautelar penal, que pode substituir a prisão preventiva ou outras cautelares caso seja constatada sua necessidade para preservar a ordem do processo e garantir a participação do réu nos atos de instrução. Passa a ser possível a determinação do pagamento de fiança em qualquer delito, medida que valoriza o instituto, fazendo com que recupere o prestígio de instrumento cautelar processual apropriado. (BOTTINI, 2011).”

Ao estudar a lição de Eugênio Pacelli (2017) é possível compreender que com o advento da reforma processual, a fiança penal passou a ocupar, de fato, o seu legitimo papel, ou seja, a função de medida cautelar processual penal. Mas, essa inovação legislativa não equiparou a fiança às demais medidas cautelares, a fiança, ainda, em razão da sua evidência histórica, e como medida cautelar alçada nos textos constitucionais permaneceu com destaque diferenciado.

Em contrapartida, apesar de a reforma processual ampliar o seu campo de aplicação, diferentemente das demais medidas cautelares, a fiança é expressamente vedada aos acusados por determinados crimes. As medidas cautelares, em geral, nos termos do art. 282 do CPP somente podem ser aplicadas a infrações penais punidas com privação de liberdade; a fiança, no entanto, para ser aplicada, além de obedecer a esta prescrição também se limita às condições dos artigos 323 e 324 do Código de Processo Penal.

“Art.282 § 1o As medidas cautelares previstas neste Título não se aplicam à infração a que não for isolada, cumulativa ou alternativamente cominada pena privativa de liberdade. (DECRETO LEI Nº 3689/1941 – CÓDIGO PROCESSO PENAL.BRASIL, 2018).”

Atual redação do art. 323 do Código de Processo Penal:

“Art. 323.  Não será concedida fiança:

I – nos crimes de racismo;

II – nos crimes de tortura, tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, terrorismo e nos definidos como crimes hediondos;

III – nos crimes cometidos por grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático; (DECRETO LEI Nº 3689/1941 – CÓDIGO PROCESSO PENAL.BRASIL, 2018).”

Redação vigente do art. 324 do Código de Processo Penal brasileiro:

“Art. 324.  Não será, igualmente, concedida fiança:

I – aos que, no mesmo processo, tiverem quebrado fiança anteriormente concedida ou infringido, sem motivo justo, qualquer das obrigações a que se referem os arts. 327 e 328 deste Código;

II – em caso de prisão civil ou militar;

III – (revogado);              

IV – quando presentes os motivos que autorizam a decretação da prisão preventiva (art.312). (DECRETO LEI Nº 3689/1941 – CÓDIGO PROCESSO PENAL. BRASIL,2018).”

Mesmo diante deste paradoxo, é notável que esse novo regime de diversidade cautelar no processo penal, em que definitivamente a fiança passou a ser identificada como apenas mais uma das medidas cautelares favoreceu o instituto, pois a fiança penal ganhou atributos inovadores que apenas a fortaleceu.

“A fiança ganhou com a lei nº 12.403/2011 tratamento diferenciado, ou seja, pode ser aplicada independentemente de qualquer outra medida de contracautela, não obstante poder ser aplicada cumulativamente com qualquer delas (art. 282, §1º). (RANGEL, 2015. p.921).”

Entre as doutrinas investigadas há uma unanimidade na afirmativa de que ao ser alçada como mais uma das medidas cautelares, a fiança penal foi revitalizada, e, portanto, ganhou folego e valor como instituto no âmbito do processo penal.

 

2.4 Competência para fixação da fiança

A reforma processual penal realizada pela lei 12.403, de 04 de maio de 2011, de fato, ampliou e inovou a força do instituto da fiança penal no ordenamento jurídico. Esta é a avaliação que também faz Aury Lopes Junior (2014). A aplicação da fiança é possível em qualquer fase da persecução penal, ou seja, mesmo na fase administrativa e policial é possível a autoridade de polícia judiciária arbitrar a fiança, logicamente, respeitados os parâmetros legais que a reforma processual de 2011 introduziu.

Neste cenário, a fixação da fiança pode ser tanto de competência do delegado de polícia, autoridade policial, na fase administrativa e investigativa, bem como do juiz, autoridade judiciária, em qualquer fase da ação penal. “Art. 334.  A fiança poderá ser prestada enquanto não transitar em julgado a sentença condenatória.” (BRASIL, Código de Processo Penal, 1941,2018).

“Art. 322.  A autoridade policial somente poderá conceder fiança nos casos de infração cuja pena privativa de liberdade máxima não seja superior a 4 (quatro) anos

Parágrafo único.  Nos demais casos, a fiança será requerida ao juiz, que decidirá em 48 (quarenta e oito) horas. (DECRETO LEI Nº 3689/1941 – CÓDIGO PROCESSO PENAL, BRASIL, 2018).”

Antes da reforma processual de 2011 a competência do delegado de polícia nesta seara era bem mais limitada e não alcançava a possibilidade de este arbitrar fiança aos acusados por crimes que eram sancionados com reclusão.  A esse respeito observa-se a disposição normativa do CPP antes da alteração promovida pela lei 12.403/2011. “Art. 322. A autoridade policial somente poderá conceder fiança nos casos de infração punida com detenção ou prisão simples. (Redação dada pela Lei nº 6.416, de 24.5.1977)”(BRASIL, Código de Processo Penal, 1941,2018).

No entanto, a partir da análise da norma vigente é possível compreender que o critério para definir a competência de fixação da fiança permanece vinculado ao preceito secundário da norma penal incriminadora, ou seja, a competência é definida pelo quantum da pena em abstrato que o tipo penal reserva para o acusado em caso de condenação.

Ao ensinar sobre esse assunto, Guilherme de Souza Nucci (2014) complementa o raciocínio afirmando que, nesse contexto, é necessário adicionar ao quantum, como critério definidor da competência para fixação da fiança, as situações do caso concreto, como por exemplo, o concurso de crimes e as causas de aumento e diminuição de pena.

Concernente a competência para fixação da fiança pela autoridade policial, Nucci discorre:

“Somente pode ocorrer em infrações penais consideradas mais leves, como as punidas com penas privativas de liberdade máxima não superior a quatro anos. Aboliu-se, pela edição da lei 12.403/2011, a distinção entre reclusão e detenção, para efeito de fiança, algo correto e proveitoso. Lembremos que o cálculo do máximo em abstrato previsto para o caso concreto (prisão em flagrante) deve envolver o concurso de crimes. Portanto, se o indiciado for detido por furto simples e receptação simples, em concurso material, não cabe a aplicação da fiança pela autoridade policial, pois o máximo da pena atinge a oito anos de reclusão. Da mesma forma, insere-se eventual causa de diminuição da pena – utilizando a menor redução possível – para prever o máximo possível. (NUCCI, 2014, p. 280).”

Ultrapassada a compreensão no que concerne a regra elementar que define a autoridade competente para conceder a fiança, é importante salientar que a fixação do valor da fiança a ser arbitrada por uma das autoridades mencionadas, também é regulado dentro desta competência, ou seja, toda a regra para fixação da fiança orbita em torno do preceito secundário da norma penal incriminadora, seja o critério da autoridade competente, seja a respeito do valor a ser aplicado.

“Art. 325.  O valor da fiança será fixado pela autoridade que a conceder nos seguintes limites:

I – de 1 (um) a 100 (cem) salários mínimos, quando se tratar de infração cuja pena privativa de liberdade, no grau máximo, não for superior a 4 (quatro) anos;

II – de 10 (dez) a 200 (duzentos) salários mínimos, quando o máximo da pena privativa de liberdade cominada for superior a 4 (quatro) anos

  • 1o Se assim recomendar a situação econômica do preso, a fiança poderá ser:

I – dispensada, na forma do art. 350 deste Código

II – reduzida até o máximo de 2/3 (dois terços); ou

III – aumentada em até 1.000 (mil) vezes.  (DECRETO LEI Nº 3689/1941 – CÓDIGO PROCESSO PENAL, BRASIL, 2018).”

Observa-se que nos limites impostos pela lei, a autoridade competente para fixar a fiança e estabelecer seu valor, ou seja, o delegado ou o juiz, poderá, utilizando-se de uma avaliação razoável, arbitrar valores em um vasto limite de possibilidades, a depender nesse caso das condições patrimoniais e econômicas do acusado que, inclusive, na impossibilidade de oferecer a garantia patrimonial poderá usufruir naturalmente da liberdade provisória, não se sujeitando à fiança, mas à outra medida cautelar diversa.

Ainda no que concerne a competência para fixação da fiança é importante ressaltar que contra qualquer decisão a respeito da fiança é cabível o recurso em sentido estrito nos termos do art. 581 do Código de Processo Penal.

“Art. 581.  Caberá recurso, no sentido estrito, da decisão, despacho ou sentença: (…).

V -que conceder, negar, arbitrar, cassar ou julgar inidônea a fiança, indeferir requerimento de prisão preventiva ou revogá-la, conceder liberdade provisória ou relaxar a prisão em flagrante; (…).      (DECRETO LEI Nº 3689/1941 – CÓDIGO PROCESSO PENAL, BRASIL, 2018).”

No entanto, Edilson Mougenot Bonfim (2012) ensina que apesar de caber o recurso em sentido estrito, como se trata da fiança penal, a saber que esta exerce função de cautela e contracautela na persecução penal é possível que se invoque a instrumentalidade do habeas corpus, quando, por exemplo, o pedido de fiança for indeferido ou negado ao acusado, ou sua imposição for descabida ou construir teor de constrangimento ilegal, e isto se justifica pela razão de que em último patamar o que se buscar garantir com as medidas cautelares é o direito de locomoção do acusado, que goza ainda, do benefício da presunção de inocência.

Corrobora com esse posicionamento o escólio de Guilherme de Souza Nucci:

“Requerida a fixação da fiança, por pleito do indiciado/réu ou do Ministério Público, o juiz tem o prazo de 48 horas para decidir. Ultrapassado tal período, configura-se constrangimento ilegal, passível de impetração de habeas corpus. Cuidando-se de direito à liberdade, o prazo deve ser fielmente respeitado. Por óbvio, se o magistrado indeferir a fiança, igualmente, cabe o questionamento pela via do habeas corpus. (NUCCI, 2014, p.280).”

Diante desta investigação é possível assimilar que o espaço que a fiança penal ocupa no processo penal é amplo e de rara importância, visto que, ela pode ser fixada em qualquer fase da persecução penal, tanto pelo delegado incialmente, quanto pelo juiz durante a ação penal. A lei processual penal trata a fiança com destaque em relação as demais medidas cautelares e a seu teor cuida com especificidade. Entender os critérios de competência para fixação da fiança penal é de extrema valia para percorrer com sucesso a temática deste trabalho que tem a finalidade de esclarecer o conflito jurídico existente entre a real função da fiança penal e a impossibilidade de esta ser aplicada aos acusados por determinados crimes.

 

3 A INAFIANÇABILIDADE CONSTITUCIONAL

Inicialmente, a partir do trabalho de Claudio Watrin Araujo (2011) e do estudo literal das constituições brasileiras, é possível compreender que a opção pela existência de crimes inafiançáveis no texto constitucional não é um posicionamento normativo que surgiu a pouco tempo, a verdade é que a impossibilidade de conceder fiança a determinados crimes é uma opção no ordenamento jurídico brasileiro deste a primeira constituição republicana, ou seja, a constituição promulgada em 1891 já trazia a inafiançabilidade como um mecanismo do direito.

“Art 20 – Os Deputados e Senadores, desde que tiverem recebido diploma até a nova eleição, não poderão ser presos nem processados criminalmente, sem prévia licença de sua Câmara, salvo caso de flagrância em crime inafiançável. Neste caso, levado o processo até pronúncia exclusiva, a autoridade processante remeterá os autos à Câmara respectiva para resolver sobre a procedência da acusação, se o acusado não optar pelo julgamento imediato. (CONSTITUIÇÃO DOS ESTADOS UNIDOS DO BRASIL, 1891. BRASIL, 1891).”

A partir do estudo elaborado no capítulo anterior e da análise das constituições brasileiras é possível entender que ao longo da história republicana do país, a previsão de inafiançabilidade permaneceu expressa em todas as sucessivas constituições brasileiras, mas somente na Constituição cidadã de 1988 o constituinte além de preservar o critério da inafiançabilidade ainda especificou quais crimes não admitiriam fiança.

No entanto, ao longo do tempo, o instrumento da inafiançabilidade, apesar de constar positivado na norma constitucional e infraconstitucional, tornou-se esquecido e pouco questionado em face do ordenamento jurídico.

Nesse sentido corrobora Claudio Watrin Araujo:

“A inafiançabilidade tem sido indubitavelmente um dos institutos mais ignorados do direito brasileiro. Os doutrinadores do direito processual penal já há muito tempo a tratam com um certo desdém, e os constitucionalistas tampouco a veem com grande estima, sendo que alguns dos manuais mais completos não lhe dispensam qualquer atenção. (ARAUJO, 2011).”

Notoriamente, em razão do papel que a fiança exerce no direito processual penal, é extremamente importante compreender o motivo pelo qual o critério da inafiançabilidade foi implementado no ordenamento jurídico.

Ainda, pelo escólio de Araújo (2011), é possível entender que normas constitucionais e infraconstitucionais vigentes tratam a inafiançabilidade como o mecanismo de direito que além de excluir a aplicação do instituto da fiança, é também a ferramenta que se impõe como exceção à imunidade penal de algumas autoridades, mas ao que tudo indica, esta instrumentalização da inafiançabilidade não se justifica em face do papel que a fiança exerce no ordenamento jurídico atual.

Nesse diapasão consta inclusive a premissa definida por Eugenio Pacelli:

“E que não se assuste o leitor: a previsão da inafiançabilidade para os crimes de racismo, tortura, tráfico de drogas, hediondos etc. (art. 5º, XLII, XLIII e XLV, Constituição da República) foi, de fato, uma infeliz opção constitucional. (PACELLI, 2017, p.246).”

Portanto, diante desta breve intervenção fica sinalizado que conhecer com mais especificidade os crimes inafiançáveis e compreender o porquê há a previsão da inafiançabilidade no ordenamento jurídico é imprescindível para que esta pesquisa encontre um diagnóstico ou referencial que justifique a razão de a fiança penal está vedada aos acusados por estes crimes.

 

3.1 Os crimes inafiançáveis

A indicação das infrações penais que não se submetem ao instituto da fiança está expressa na norma constitucional, no capítulo referente aos direitos e garantias fundamentais.

A partir dos ensinamentos de Guilherme de Souza Nucci (2014) é possível entender que todos delitos deveriam ser afiançáveis, mas apesar disso, a constituição federal gravou a vedação ao instituto da fiança exatamente aos crimes de grande lesão, os quais o ordenamento jurídico se inclina a dizer que ofendem os bens jurídicos mais relevantes do indivíduo e da sociedade.

Nesse ínterim, o doutrinador afirma ainda que há esperança que o texto constitucional seja alterado a fim de que se repudie a inafiançabilidade, no entanto, enquanto isso não ocorre, é norma colacionada no texto dos direitos e garantias fundamentais a taxação dos tipos inafiançáveis.

“Art. 5º (…)

XLII – a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei;

XLIII – a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem;

XLIV – constitui crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático; (CONSTITUIÇAO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL, 1988. BRASIL,2018).”

No campo da doutrina e de operação do direito, o pouco que se evoluiu no que concerne aos crimes inafiançáveis tem feito surgir a compreensão de que não cabe à legislação infraconstitucional ampliar ou criar novos delitos inafiançáveis, estando o rol limitado à previsão constitucional, que somente o fez para os  crimes de racismo, tortura, tráfico e terrorismo, os definidos como hediondos, bem como a ação de grupos armados civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático.

Paulo Rangel no seu estudo também salienta essa premissa e reforça esse entendimento da seguinte maneira “Nesse sentido, a lei ordinária não poderia proibir a fiança sem autorização constitucional.” (RANGEL, 2015, p.884).

O escólio de Augusto Yuzo Jouti corrobora:

“Não se olvide que a vedação de liberdade provisória e a inafiançabilidade dialogam-se entre si, pois ambas limitam a presunção de inocência. E nada justifica a lei criar um novo delito inafiançável sem intenção de manter o indivíduo detido, mas apenas para autorizar a prisão em flagrante de alguns sujeitos específicos (como Parlamentares, Magistrados, membros do Ministério Público e Advogados). O legislador ordinário pode, contudo, definir novos crimes hediondos e, consequentemente, surgirá novo crime inafiançável, conforme autorizado pela Constituição Federal.(…).Desse modo, é possível concluir que o legislador ordinário não pode impor a inafiançabilidade a um crime, cuja matéria é reservada à Constituição Federal. Mas poderá acrescentar um novo delito ao rol da Lei n. 8.072/1990, atribuindo-lhe, além da inafiançabilidade, um conjunto de limitações próprias dos crimes hediondos. (JOUTI, 2015).”

A evolução da matéria em nível jurisprudencial tem seguido este mesmo entendimento, a ponto de que em 2007 em decisão por maioria dos votos na ADI nº 3.112-1 do Distrito Federal, o STF declarou inconstitucional a inafiançabilidade prevista na lei 10.826/2003 (Estatuto do Desarmamento).

E nesse aspecto observa-se o voto do relator Ministro Ricardo Lewandowiski:

“Alega-se, ainda, que são inconstitucionais, no aspecto substantivo, os parágrafos únicos dos arts. 14 e 15, que proíbem o estabelecimento de fiança para os crimes de “porte ilegal de arma de fogo de uso permitido” e de “disparo de arma de fogo”. Quanto a esses delitos, acolho o entendimento esposado pelo Ministério Público, segundo o qual se trata de uma vedação dezarrazoada, “porquanto não podem estes ser equiparados a terrorismo, prática de tortura, tráfico ilícito de entorpecentes ou crimes hediondos (art. 5º, XLIII, da Constituição Federal).”

Ademais, como bem assentado na manifestação da PGR, cuida-se, em verdade, de crimes de mera conduta que, “embora reduzam o nível de segurança coletiva, não se equiparam aos crimes que acarretam lesão ou ameaça de lesão à vida ou à propriedade.” (STF ADI Nº3112-1, julgada em 02/05/2007, relator Ministro Ricardo Lewandowisk).”

A outra faceta no que se refere aos crimes inafiançáveis é sua relação com a imunidade criminal de diversas autoridades, especificamente, para excepcionar as respectivas imunidades.

Provém do próprio texto constitucional, inclusive como norma prevista em todas as constituições brasileiras, a situação exclusiva em que os parlamentares federais serão submetidos a prisão, e porventura, a situação é restrita as situações de flagrante de cometimento de crime inafiançável, ou seja, o deputado ou senador apenas será recolhido à prisão ser for flagrado na prática de um dos seis tipos penais que a própria constituição declarou como insuscetíveis de fiança.

“Art. 53 (…) § 2º Desde a expedição do diploma, os membros do Congresso Nacional não poderão ser presos, salvo em flagrante de crime inafiançável. Nesse caso, os autos serão remetidos dentro de vinte e quatro horas à Casa respectiva, para que, pelo voto da maioria de seus membros, resolva sobre a prisão. (CONSTITUIÇAO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL, 1988. BRASIL,2018)”

O critério da inafiançabilidade constitucional também é replicado para excepcionar à imunidade criminal de outras autoridades e, para tanto, as normas infraconstitucionais específicas utilizou a mesma expressão constitucional, garantindo a autoridades como juízes, membros do Ministério Público e advogados no exercício da função a prerrogativa de serem levados à prisão, em situação de flagrante, somente quando imputados em tipo penal inafiançável.

Observa-se o texto positivado da Lei Orgânica da Magistratura Nacional:

“Art. 33 – São prerrogativas do magistrado: (…)

II – não ser preso senão por ordem escrita do Tribunal ou do Órgão Especial competente para o julgamento, salvo em flagrante de crime inafiançável, caso em que a autoridade fará imediata comunicação e apresentação do magistrado ao Presidente do Tribunal a que esteja vinculado (…). (VETADO); (LEI COMPLEMENTAR Nº 35, DE 14 DE MARÇO DE 1979, BRASIL, 2018.)”

Lei Orgânica Nacional do Ministério Público:

“Art. 40. Constituem prerrogativas dos membros do Ministério Público, além de outras previstas na Lei Orgânica: (…)

III – ser preso somente por ordem judicial escrita, salvo em flagrante de crime inafiançável, caso em que a autoridade fará, no prazo máximo de vinte e quatro horas, a comunicação e a apresentação do membro do Ministério Público ao Procurador-Geral de Justiça; (…). (LEI 8.625, DE 12 FEVEREIRO DE 1993, BRASIL, 2018.)”

Redação do Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil:

“Art. 7º São direitos do advogado: (…)

IV – ter a presença de representante da OAB, quando preso em flagrante, por motivo ligado ao exercício da advocacia, para lavratura do auto respectivo, sob pena de nulidade e, nos demais casos, a comunicação expressa à seccional da OAB; (…)

  • 3º O advogado somente poderá ser preso em flagrante, por motivo de exercício da profissão, em caso de crime inafiançável, observado o disposto no inciso IV deste artigo. (…). (LEI 8.906, DE 04 DE JULHO DE 1994, BRASIL, 2018).”

Diante das disposições normativas apontadas acima, combinado com estudo da literatura de Nucci (2014), nota-se que, por mais que a inafiançabilidade constitucional esteja sendo colocada em xeque e ao longo dos anos tenha perdido eficácia no direito brasileiro, ela ainda encontra-se expressa como instrumento do direito tanto pela constituição federal quanto por normas infraconstitucionais, leis estas que a priori foram editadas e publicadas em período posterior à constituição federal e encontram-se em plena vigência.

Ainda, no que concerne aos crimes inafiançáveis e seus tipos penais específicos, vale ressaltar que pela natureza peculiar que possuem, o direito brasileiro positivado os discriminou de maneira própria em leis especiais, leis estas que além de afirmar a definição direta do tipo penal, traçam também, muitas vezes, elementos processuais penais especiais em comparação com os crimes da legislação penal ampla.

A lei 7.716 de 05 de janeiro de 1989, que define os crimes de racismo, em seus vinte e dois artigos, estabelece entre os crimes diretos e equiparados, aproximadamente quinze tipos penais puníveis com reclusão, esta lei regulamenta o inciso XLII do art. 5º da constituição federal, a prática de racismo como crime inafiançável.

A respeito do racismo observe a definição de Nicholas Maciel Merlone:

“Para nós, de modo sintético, Racismo: “ato(s) / conduta(s) que atenta(m) contra a dignidade humana, discriminando determinada parcela da população (raça / etnia / cor). O racismo afronta a Constituição Brasileira (CB), violando seus comandos. Neste quadro, o diploma constitucional sedimenta como objetivo da República: “promover o bem de todos, sem preconceitos, de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.” (art. 3º., IV), inclusive, de preconceito racial. Este crime se encontra regulamentado pelas disposições da Lei Federal n. 7.716/1989. (MERLONE, 2017).”

Quanto a tortura, o segundo tipo penal definido pela constituição federal como insuscetível de fiança, este encontra regulamentação pela lei nº 9.455/97 e incorpora no tipo penal condutas que o Estado brasileiro definitivamente emite repulsa no nível mais elevado possível, além de punir a conduta de tortura propriamente dita, a lei pune também a ação equiparada e a omissão relevante de agentes que possuem o dever de evitar o crime.

A definição do crime de tortura propriamente dito e a pena definida encontra-se no art. 1º da lei 9.455/97:

“Art. 1º Constitui crime de tortura:

I – constranger alguém com emprego de violência ou grave ameaça, causando-lhe sofrimento físico ou mental:

  1. a) com o fim de obter informação, declaração ou confissão da vítima ou de terceira pessoa;
  2. b) para provocar ação ou omissão de natureza criminosa;
  3. c) em razão de discriminação racial ou religiosa;

II – submeter alguém, sob sua guarda, poder ou autoridade, com emprego de violência ou grave ameaça, a intenso sofrimento físico ou mental, como forma de aplicar castigo pessoal ou medida de caráter preventivo.

Pena – reclusão, de dois a oito anos. (LEI 9.455, DE 07 DE ABRIL DE 1997, BRASIL, 2018).”

O tráfico ilícito de entorpecentes, crime também inafiançável, possui regulamentação no ordenamento jurídico pela lei 11.343 de 2006, esta lei, além de regulamentar o crime de tráfico cria o sistema nacional de políticas públicas sobre drogas que tem a finalidade de criar meios para reinserir os usuários e dependentes de drogas na sociedade. Além de trazer a definição e pena do tráfico ilícito de entorpecentes no art. 33 da lei, os demais artigos da norma descreve e penaliza condutas equiparadas e prescreve aplicações processuais penais específicas.

“Art. 33.  Importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda, oferecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar, entregar a consumo ou fornecer drogas, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar:

Pena – reclusão de 5 (cinco) a 15 (quinze) anos e pagamento de 500 (quinhentos) a 1.500 (mil e quinhentos) dias-multa. (LEI 11.343, DE 23 DE AGOSTO DE 2006, BRASIL, 2018.).”

Entre os crimes inafiançáveis, o terrorismo é o que possui a regulamentação mais recente no ordenamento jurídico brasileiro, somente no ano de 2016, por meio da lei nº 13.260 que o terrorismo adquiriu conceito e definição no direito brasileiro. A lei do terrorismo especifica as condutas tidas como terroristas, sanciona, e como de praxe, no que se refere as leis penais especiais aponta elementos procedimentais específicos para investigação e a tramitação de ação penal nos casos de terrorismo.

A literatura de Paulo Eduardo Bicalho Carvalho aponta o seguinte:

A definição de terrorismo está no art. 2º da Lei, estabelecendo que o terrorismo consiste na prática por um ou mais indivíduos dos atos previstos neste artigo, por razões de xenofobia, discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia e religião, quando cometidos com a finalidade de provocar terror social ou generalizado, expondo a perigo pessoa, patrimônio, a paz pública ou a incolumidade pública.(…) .

As condutas descritas como atos de terrorismo devem ter essas razões e essas finalidades, pois, do contrário, não haverá crime de terrorismo. Perceba-se que esta finalidade diz respeito ao dolo específico. Trata-se de um delito de tendência, pois além de exigir o dolo natural, exige-se a finalidade específica: terror social ou generalizado. (CARVALHO, 2017).”

No que se refere aos crimes hediondos, se tratam, por sua vez, de vários tipos penais inafiançáveis e encontram a natureza como hediondos, quando mencionados pela lei 8.072 de 1990, portanto, segundo Rabeschini (2014) o rol dos delitos definidos na lei nº 8072 é um rol taxativo e, para tanto, no direito brasileiro, para que um crime seja considerado hediondo deverá necessariamente ser elencado pelo legislador na lista apresentada por esta lei.

A Lei de Crimes Hediondos não criou tipos penais mas selecionou da legislação penal já existente alguns tipos penais e os caracterizou com o adjetivo hediondez. Trata-se de um critério puramente formal.

No sentido semântico, hediondo é aquele crime que causa repugnância, aversão, repudio pela sociedade em geral e, por consequência, presume-se que o indivíduo que o pratica possui um maior grau de periculosidade. (RABESCHINI, 2014).”

Cabe ressaltar que entre os crimes que a lei 8.072/90 elenca como  hediondos destacam-se: O homicídio (art. 121 CP), quando praticado em atividade típica de grupo de extermínio, ainda que cometido por um só agente, e homicídio qualificado (CP, art. 121, § 2o, incisos I, II, III, IV, V, VI e VII); lesão corporal dolosa de natureza gravíssima (art. 129, § 2o   CP) e lesão corporal seguida de morte (art. 129, § 3o  CP), quando praticadas contra autoridade ou agente descrito nos arts. 142 e 144 da Constituição Federal; latrocínio (art. 157, § 3, CP); extorsão qualificada pela morte (art. 158, § 2o  CP); estupro (CP, art. 213, caput e §§ 1o e 2º); estupro de vulnerável (art. 217-A, caput e §§ 1o, 2o, 3o e 4o  CP); epidemia com resultado morte (art. 267, § 1o, , CP); falsificação, corrupção, adulteração ou alteração de produto destinado a fins terapêuticos ou medicinais (art. 273, caput e § 1o, § 1o-A e § 1o-B, com a redação dada pela Lei no 9.677, de 2 de julho de 1998); favorecimento da prostituição ou de outra forma de exploração sexual de criança ou adolescente ou de vulnerável (art. 218-B, caput, e §§ 1º e 2º CP); o crime de genocídio previsto nos arts. 1o, 2o e 3o da Lei no 2.889, de 1o de outubro de 1956; e o de posse ou porte ilegal de arma de fogo de uso restrito, previsto no art. 16 da Lei no 10.826, de 22 de dezembro de 2003, todos estes tentados ou consumados.

Por derradeiro a última categoria de delitos que a constituição federal declara como inafiançável são os chamados crimes por ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado democrático de Direito. No entanto, diferentemente dos demais tipos, o inciso XLIV do art. 5º da constituição federal não foi regulamentado por lei específica. Mas segundo Luciano Feldens (2012) as situações no caso concreto que podem enquadrar-se na situação de inafiançabilidade pelo parâmetro do art. 5º, XLIV, C.F, podem ser por exemplo, crimes definidos na lei 7.170/83, lei da segurança nacional, e o tipo penal do art. 288- A do Código Penal.

“Em doutrina já se propôs que o mandado constitucional de criminalização previsto no artigo 5º, inciso XLIV da CF estaria satisfeito pela Lei 7.170/83, no que define os crimes contra a segurança nacional, a ordem política e social. (FELDENS,2012).”

Art. 288 – A do Código Penal Brasileiro, crime de constituição de milícia privada:

“Art. 288-A.  Constituir, organizar, integrar, manter ou custear organização paramilitar, milícia particular, grupo ou esquadrão com a finalidade de praticar qualquer dos crimes previstos neste Código:  Pena – reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito) anos. (DECRETO-LEI No 2.848, DE 7 DE DEZEMBRO DE 1940. CÓDIGO PENAL, BRASIL, 2018).”

Diante da ampla análise no que concerne aos crimes inafiançáveis pode-se concluir que, por mais que a constituição e demais normas infraconstitucionais deliberem sobre um vasto campo de aplicação da inafiançabilidade como meio para regular direitos no processo penal, a aplicação deste mecanismo não se justifica em face de princípios de direito que regulam o ordenamento jurídico e nem converge com a competência funcional que a fiança penal exerce atualmente no direito processual penal brasileiro.

Por esta análise, se justifica a próxima abordagem ainda na seara da inafiançabilidade constitucional.

 

3.2 O objetivo da inafiançabilidade

Mesmo diante da incoerência jurídica que aparentemente se apresenta seria imprudente concluir que o constituinte tenha colocado o critério da inafiançabilidade no texto constitucional em vão e que, do mesmo modo o legislador infraconstitucional tenha sem justo motivo replicado o instrumento da inafiançabilidade como regra para exceção às imunidades criminais, por isso que entender a finalidade do critério da inafiançabilidade torna-se ponto marcante desta pesquisa.

Segundo a doutrina de Eugênio Pacelli (2017), o propósito constitucional ao vedar a fiança aos acusados por determinados crimes era de que, consequentemente, deixassem de usufruir da liberdade provisória. Para referido doutrinador este posicionamento constitui um duplo equívoco, tanto com o instituto da fiança, quanto com o instituo denominado de liberdade provisória, pois conforme o ordenamento jurídico, não seria a situação de liberdade uma exceção, mas sim a regra e, portanto, o termo a ser cunhado deveria ser prisão provisória e não, liberdade provisória, como se fundou o instituto.

E que não se assuste o leitor: a previsão da inafiançabilidade para os crimes de racismo, tortura, tráfico de drogas, hediondos etc. (art. 5º, XLII, XLIII e XLV, Constituição da República) foi, de fato, uma infeliz opção constitucional. Primeiro, porque, se o objetivo era impedir a liberdade provisória daquele que fosse preso e acusado pela prática de tais delitos, a escolha não foi só infeliz, mas tola; é o próprio constituinte quem afirma que ninguém será preso senão por ordem escrita e fundamentada da autoridade judicial. (…)

Segundo, se o objetivo era o estabelecimento de um regime de liberdade mais gravoso para os autores de crimes mais graves, não se deveria fazer alusão a inafiançabilidade, cujo sentido, desde o ano de 1977 se reporta apenas à proibição de aplicação da liberdade provisória mediante fiança, não impedindo, contudo, a restituição liberdade mediante o comparecimento aos atos do processo (…). (PACELLI, 2017, p.246-247).”

Nesse mesmo diapasão, Guilherme de Souza Nucci (2014) ratifica que o aparente propósito do constituinte ao criar o mecanismo da inafiançabilidade era levantar um sistema penal e processual penal com maior repressão em desfavor dos acusados nestes crimes, mas tal repressão não se opera no sentido de impedir ao acusado o acesso ao direito fundamental da presunção de inocência ou de gozar do seu direito de liberdade provisória, o que esvazia a inafiançabilidade do seu caráter repressivo.

“Cuidou-se, na época da Assembleia Nacional Constituinte, de um equívoco nítido do legislador. Pretendendo mostrar-se rigoroso em face de tais crimes, proibiu a fiança. De nada adiantou, pois sempre foi concedida a liberdade provisória, sem fiança, mais benéfica ao acusado. Enfim, nada se pode fazer, a não ser aguardar futura reforma na Carta Magna, com prudência e bom senso. (NUCCI,2014, p.280).”.

Aury Lopes Junior (2014) também deflagra em sua obra a evidente incoerência que o constituinte criou ao estabelecer a inafiançabilidade no direito brasileiro, pois se por alguma razão o sentimento era impedir que o acusado por crime inafiançável não utilizasse da liberdade provisória o objetivo acabou por não ser atingido em face da própria estrutura constitucional dos direitos fundamentais.

Auy Lopes Junior leciona:

“O que não se pode tolerar é simplesmente manter alguém preso por ser o crime inafiançável. Não, isso não pode ocorrer, pois o sistema cautelar possui diversas alternativas para tutelar uma situação de perigo e não há possibilidade de execução antecipada de pena. (LOPES JR., 2014, p.919).”

A partir da literatura de Edilson Mougenot Bonfim (2012), assimila-se que em razão deste cenário jurídico, surge na prática processual penal uma situação incômoda e desproporcional, pois ao não atingir o objetivo da prisão cautelar obrigatória com a inafiançabilidade, o direito acaba por permitir que acusados por crimes de alta lesão, como os inafiançáveis, passem ao regime da liberdade provisória sem a dificuldade de prestar fiança ao Estado, enquanto que, os acusados em crimes de menor ofensividade em comparação com os inafiançáveis sujeitam-se ao arbitramento da fiança, caso não sejam hipossuficientes, mesmo que a liberdade provisória lhe seja um direito evidente.

“Assim para os crimes mais graves – e que, em virtude disto, o constituinte erigiu à categoria de inafiançáveis e insuscetíveis de graça e anistia – passou-se a admitir a liberdade provisória sem fiança e, para os que não se incluam no rol do art. 5º, XLIII, da CF ( e portanto, menos graves), impõe-se uma restrição maior consistente na concessão da liberdade provisória desde que paga regularmente a fiança. (BONFIM, 2012, p. 682).”

Na sua obra, Aury Lopes Junior (2014) conclui o raciocínio a respeito do objetivo da inafiançabilidade da seguinte maneira: “Portanto, quando se veda a fiança não se proíbe, necessariamente, a concessão de liberdade provisória” (LOPES JR. 2014, p. 925).

A premissa do autor ainda é sustentada com o raciocínio acerca da consequência lógica e notória que a inafiançabilidade constitucional gera para o processo penal, porque em razão da impossibilidade de arbitramento da fiança aos acusados pelos crimes taxados como inafiançáveis restará ao Estado para garantir a cautelaridade processual aplicar qualquer uma das outras oito medidas cautelares, o que retira da fiança seu protagonismo entre as medidas cautelares.

“Em qualquer situação, a inafiançabilidade acaba por impor, para concessão da liberdade provisória, a submissão do imputado a uma ou mais medidas cautelares diversas, mais gravosas do que a fiança, entre aquelas previstas no art. 319 do CPP. Ou seja, a inafiançabilidade veda apenas a concessão da liberdade provisória com fiança, mas não a liberdade provisória vinculada a medidas cautelares diversas, mais gravosas que o mero pagamento de fiança. (LOPES JR., 2014, p.926).”

A partir do estudo apresentado acima é possível compreender que o objetivo da inafiançabilidade, quando esta foi alçada como norma constitucional não foi uma decisão coerente do constituinte, pois o aperfeiçoamento do instituto da fiança penal ao longo do tempo no direito brasileiro fez a fiança se aproximar cada vez mais da sua finalidade cautelatória, enquanto que a inafiançabilidade por esta mesma razão e em compasso com a estrutura do ordenamento jurídico perdeu sua efetividade, funcionalidade e eficácia, a ponto de até mesmo não se justificar em face do direito processual penal atualmente em vigor.

 

4 A FIANÇA PENAL DIANTE DOS CRIMES DE ALTA LESÃO

Os crimes inafiançáveis estudados no capítulo anterior, taxados pela constituição federal e regulamentados pelas leis especiais mencionadas, tratam-se de infrações penais de alta lesão, as quais o legislador constituinte achou por bem não permitir o arbitramento da fiança e, por esta razão, tornaram-se elementos focais de pesquisa, pois a regra da inafiançabilidade não tem se justificado em face da função jurídica que a fiança penal exerce, no entanto, ao mesmo tempo é vasto no campo das normas positivadas a utilização do termo “crimes inafiançáveis” para construir instrumentos no processo penal.

Além do apontamento constitucional, a legislação processual penal, por meio da lei 12.403 de 2011 ratificou a inafiançabilidade por meio da redação do art. 323 do Código de Processo Penal.

“Art. 323.  Não será concedida fiança

I – nos crimes de racismo;

II – nos crimes de tortura, tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, terrorismo e nos definidos como crimes hediondos;

III – nos crimes cometidos por grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático; ;(DECRETO LEI Nº 3689/1941 – CÓDIGO PROCESSO PENAL, BRASIL, 2018).”

Por isso, em razão do confronto existente em torno da função jurídica da fiança penal e a vedação dela, este estudo demanda um pouco mais de análise no que se refere aos crimes inafiançáveis, ou seja, a inafiançabilidade constitucional e sua repercussão em outros institutos e, nesse sentido, observa-se também o apontamento de Claudio Watrin de Araujo:

“Tendo a garantia real abandonado o núcleo da estrutura da liberdade provisória, não há mais possibilidade de se argumentar que a simples inafiançabilidade transubstancia proibição total de obtenção de liberdade provisória. Aqui reside a mutação constitucional pela qual passou o instituto, visto que agora ele já não abarca mais a polêmica presunção de nocividade social, restringindo-se apenas à impossibilidade de acesso a uma medida cautelar em particular, sem que se recuse a imposição das demais. O texto constitucional quanto a negação de fiança permaneceu idêntico, mas toda a carga de significado entregue a ela pela ordem infraconstitucional foi modificada, outorgando-lhe novas funções dentro do sistema processual penal. (ARAÚJO, 2011, p.2)”

Nesse aspecto torna-se de suma importância verificar a convergência ou divergência dos crimes inafiançáveis com os institutos correlatos, sobretudo no que se refere ao instituto da liberdade provisória e os outros instrumentos cautelares, como as prisões não definitivas, por exemplo. Nesse sentido relata a literatura de Eduardo Luiz Santos Cabette:

“O nó górdio da questão acha-se em algo extremamente simples, ou seja, definir em que consiste a fiança e saber distingui-la do instituto da liberdade provisória. É uma inconveniente confusão desses conceitos que tem sido um importante ingrediente para o tratamento equivocado da inafiançabilidade na legislação brasileira. (CABETTE, 2007).”

Portanto, como manifestado acima, diante das demandas que exprimem a necessidade de esclarecimentos, passa-se a estudar a relação dos crimes inafiançáveis com as prisões cautelares e, por consequência, por derradeiro, compreender o instituto da fiança nas faces da afiançabilidade e inafiançabilidade nesse confronto, inclusive diante do parâmetro estabelecido pelo princípio da igualdade que norteia o processo penal, para finalmente mensurar a relação de incompatibilidade da fiança penal com os crimes de alta lesão.

 

4.1 Crimes inafiançáveis e prisões cautelares

A partir da doutrina de Nestor Távora e Rosmar Rodrigues Alencar ( 2016) nota-se que a primeira relação que parece existir entre os crimes inafiançáveis e as prisões cautelares seria o conceito prévio e superficial de que, por serem inafiançáveis, os delitos de grave lesão taxados pela constituição seriam também insuscetíveis da liberdade provisória e, portanto, estariam inscritos automaticamente com a presunção da prisão cautelar; raciocínio que notoriamente  não vigora e colide frontalmente com os direitos fundamentais.

“É interessante notar que o legislador, quando pretende dar um tratamento mais rígido ao processamento de algumas infrações, se vale do expediente de vedar a concessão da liberdade provisória. Dessa maneira, havendo prisão, o agente responderia a persecução penal no cárcere, em verdadeira antecipação de pena, suprimindo-se do magistrado, no caso concreto, a aferição da necessidade do cárcere cautelar. (TÁVORA, ALENCAR, 2016, p.1371).”

Essa falsa relação de presunção da prisão cautelar para os crimes inafiançáveis é também confrontada e derrubada nos primeiros esclarecimentos que Aury Lopes Junior (2014) faz a respeito do assunto na sua literatura.

Ainda que a Constituição contenha um claro projeto penalizador, e nisso houve um retrocesso civilizatório, chegando ao extremo de resgatar a “inafiançabilidade”, jamais nela foi contemplada a prisão cautelar obrigatória. (…)

Mas, repetimos, jamais foi recepcionada a prisão cautelar obrigatória, até porque não seria cautelar, mas sim antecipação de pena, absolutamente incompatível com a presunção de inocência e todo rol o de direitos fundamentais. (LOPES JR, 2014, p.924).”

O escólio de Eugenio Pacelli (2017) também explica que a legislação processual penal vigente no ordenamento jurídico brasileiro antes da Constituição de 1988, e até mesmo antes das reformas processuais infraconstitucionais, trazia uma evidente relação dos crimes inafiançáveis com a prisão em flagrante em uma reunião de argumentos com o notório interesse de deixar os acusados por crimes inafiançáveis excluídos da presunção de inocência.

“A redação original do Código de Processo Penal de 1941 impedia, em regra, a concessão de liberdade durante o processo para aqueles que tivessem sido presos em flagrante por crimes inafiançáveis. A prisão em flagrante, quando aliada à inafiançabilidade do delito, possuía, então, um nítido caráter de antecipação de culpa. (PACELLI, 2017, p.255).”

Com a Lei 12.403/2011, não sendo hipótese de prisão ilegal, ou ainda, não havendo a possibilidade de conversão da prisão em flagrante em preventiva, o juiz deverá de ofício conceder liberdade provisória, com ou sem fiança, a depender do caso em análise.

A partir destes apontamentos surge no horizonte a necessidade de aprofundar um pouco mais a investigação no que concerne as prisões cautelares e suas modalidades, pois o objetivo destas em relação aos crimes inafiançáveis  não tem se justificado em face do atual ordenamento jurídico, e consequentemente essa relação incongruente não tem sido coerente com a função jurídica que a fiança penal exerce.

 

4.1.1 Prisões cautelares

 

A prisão não é mais a regra no direito penal e processual penal brasileiro, é na verdade a exceção em face do nosso sistema constitucional vigente, afinal, todo a estrutura dos direitos fundamentais se firma nos pilares da liberdade. E essa afirmação se valida pela disposição do próprio texto constitucional. (LOPES JR.,2014).

“Art. 5º (…)

LIV – ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal; (…)

LXI – ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei; (…)

LXVI – ninguém será levado à prisão ou nela mantido, quando a lei admitir a liberdade provisória, com ou sem fiança; (CONSTITUIÇAO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL, 1988. BRASIL,2018).”.

Ainda no estudo deste assunto, Lopes Jr. (2014), lembra que antes do regime constitucional garantista de 1988, o qual revigorou a presunção de inocência e a liberdade como base de direito fundamental,  houve época no direito brasileiro que a prisão do acusado durante o processo era uma regra, o contexto jurídico impunha sem questionamentos a prisão cautelar compulsória, nos casos por exemplo, em que o crime era punido com reclusão igual ou superior a dez anos.

Nessas circunstâncias a situação de liberdade era, portanto, precária, o que fez originar o termo cunhado de “liberdade provisória”, situação que o ordenamento jurídico vigente não mais admite.

“Então, hoje, deve-se partir da premissa de que “provisória” deve ser a prisão cautelar. A liberdade é a regra, não necessitando ser legitimada e tampouco se deve admitir, tão passivamente, o emprego do adjetivo “provisória” quando do que se trata é de um valor dessa dimensão. (LOPES JR., 2014, p.913).”

Guilherme de Souza Nucci (2014) ao iniciar o estudo sobre as modalidades de prisão cautelar afirma não existir, no conceito geral de prisão, a diferenciação entre cautelar e definitiva, restando apenas para a definição a assertiva de que a prisão em qualquer caso, se trata da privação da liberdade do indivíduo, da capacidade que o Estado tem para restringir o direito de ir e vir da pessoa por meio do recolhimento desta ao cárcere. E que a mera diferença entre prisão definitiva e cautelar reside tecnicamente no âmbito de regulação de uma e de outra, a saber, o direito penal material ocupa-se da prisão definitiva e o processo penal regula a sistemática da prisão provisória.

“Enquanto o Código Penal regula a prisão proveniente de condenação, estabelecendo as suas espécies, forma de cumprimento e regimes de abrigo do condenado, o Código de Processo Penal cuida da prisão cautelar e provisória, destinada unicamente a vigorar, quando necessário, até o trânsito em julgado da decisão condenatória. (NUCCI, 2014, p.248).”

O escólio de Norberto Avena (2017) assevera que a partir da sistemática processual penal atualmente estabelecida,  a prisão em flagrante, por ser medida meramente administrativa, a cargo do delegado de polícia a qual é rapidamente suprimida e transformada em outra condição jurídica para o acusado na persecução penal, não mais pode ser considerada como modalidade de prisão cautelar, o que faz restar, portanto, a prisão preventiva e a prisão temporária como as únicas modalidades de prisões provisórias.

“Ora, se o flagrante prende, mas não é hábil a manter o indivíduo preso, deflui-se que, no atual sistema, perdeu ele a natureza de prisão cautelar, subsistindo como tal, no sistema processual penal, apenas, as seguintes: a prisão preventiva, (…) e a prisão temporária (…). (AVENA, 2017, p.598).”

Por meio da obra de Paulo Rangel (2015), é possível compreender que, assim como a fiança, a prisão preventiva é um dos instrumentos cautelares do processo penal e regulada pelo código de processo penal,  podendo ser aplicada em qualquer fase da persecução penal, no entanto, diferentemente da fiança penal, a prisão preventiva ou qualquer prisão processual somente pode ser decretada por ordem fundamentada pelo poder judiciário.

A comprovada, e não apenas alegada, necessidade é o que fundamenta a existência da prisão preventiva. Em verdade, não só da prisão preventiva, mas de toda e qualquer prisão antes da pena. No caso da preventiva, essa necessidade será verificada na análise dos pressupostos do fumus boni iuris e do periculum in mora.

A lei 12.403/2011 exige, expressamente, que para que seja decretada prisão preventiva (bem como qualquer medida cautelar) haja necessidade e adequação da medida, evitando-se, assim, que seja decretada uma custódia cautelar sem necessidade. (RANGEL, 2015, p.804).”

E além do mais, como ferramenta cautelar, a prisão cautelar, seja ela preventiva ou temporária, é sempre a última medida cautelar a ser vislumbrada, pois a prisão retira do acusado seu direito fundamental de liberdade de locomoção e, de certa forma, passa a ser uma espécie de cumprimento antecipado de pena, mesmo o acusado ainda não possuindo em seu desfavor um seguro decreto condenatório.

Esse entendimento é ratificado por Guilherme de Souza Nucci:

“Por isso, sempre que inviável a medida cautelar, por qualquer razão, havendo os requisitos do art. 312 do CPP, impõe-se a prisão preventiva. Nesse cenário, emerge a prisão cautelar como última ratio, consagrando a intervenção mínima do Estado na liberdade individual. (NUCCI, 2014, p.251).”

A doutrina de Fernando Capez (2012) esclarece que a fundamentação para decreto da prisão preventiva por parte do juiz deve vir embasada em pelo menos algum dos requisitos descritos no art. 312 do Código de Processo Penal.

Art. 312.  A prisão preventiva poderá ser decretada como garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal, ou para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria.

Parágrafo único.  A prisão preventiva também poderá ser decretada em caso de descumprimento de qualquer das obrigações impostas por força de outras medidas cautelares. DECRETO LEI Nº 3689/1941 – CÓDIGO PROCESSO PENAL, BRASIL, 2018).

Em qualquer circunstância de acusação que não se verifique o preenchimento de pelo menos algum dos referidos requisitos, o acusado deve se livrar solto, independentemente do crime a que tenha sido acusado. De forma alguma, a prisão cautelar (preventiva/temporária) está atrelada ao tipo penal imputado ao acusado.

“Não existe mais prisão cautelar obrigatória, estando esta condicionada à análise dos pressupostos e requisitos da prisão preventiva. (…).

A prisão processual só terá cabimento quando fundamentadamente demonstrados os requisitos de urgência autorizadores da custódia cautelar (CPP, art. 312, caput) e quando não for cabível a sua substituição por outra medida cautelar (CPP, art. 282, §6º). (CAPEZ, 2012, p.302).”

No que se refere a prisão temporária compreende-se que foi introduzida no direito processual penal brasileiro pela lei 7. 960 de 1989, e apesar de incluir no rol dos crimes a qual é cabida, apenas crimes considerados graves e ainda alguns tipos inafiançáveis, ela não se justifica em razão de ser os crimes inafiançáveis, mas pura e simplesmente para garantir situações específicas e necessárias da persecução penal. (CAPEZ,2012).

Com prazo de duração da aplicação definida em lei, de 05 dias (rol comum da lei) ou 30 dias (crimes hediondos e equiparados), a prisão temporária tem a finalidade objetiva de atender necessidades procedimentais, especificamente, na fase investigativa e administrativa.

“Art. 1° Caberá prisão temporária:

I – quando imprescindível para as investigações do inquérito policial;

II – quando o indicado não tiver residência fixa ou não fornecer elementos necessários ao esclarecimento de sua identidade;

III – quando houver fundadas razões, de acordo com qualquer prova admitida na legislação penal, de autoria ou participação do indiciado nos seguintes crimes: (…). (LEI Nº 7.960, DE 21 DE DEZEMBRO DE 1989.BRASIL,2018).”

No que se refere à desvinculação da prisão temporária com os objetivos da inafiançabilidade, ou surgimento dos crimes inafiançáveis, a doutrina de Norberto Avena (2017) corrobora com entendimento de que nenhuma prisão cautelar pode sacrificar a presunção de inocência e de que qualquer prisão cautelar precisa ser fundamentada e, portanto, não existe tipo penal com presunção de cautelaridade prisional.

“Assim como ocorre em relação à prisão preventiva, também a decretação da prisão temporária deve ser devidamente fundamentada, embasando-se o juiz em fatos concretos que indiquem a sua real necessidade e atendendo aos termos previstos na lei que a regulamenta. Do contrário, a decisão será nula, ensejando a revogação da custódia. Tal exigência decorre tanto do princípio constitucional do estado de inocência, inserido ao art. 5.º, LVII, da Constituição Federal, como da garantia de fundamentação das decisões judiciais, incorporada aos arts. 5.º, LXI, e 93, IX, da mesma Carta. (AVENA,2017, p.689).”

Diante do breve estudo no que concerne às prisões cautelares é possível assimilar que elas existem para garantir que o Estado execute seu papel investigativo e julgador e somente podem ser admitidas mediante a presença de requisitos concretos e objetivos previamente definidos em lei, e sobretudo mediante decisão fundamentada da autoridade judiciária, que para aplica-las deve justificar que outra medida cautelar menos gravosa não é eficaz.

E finalmente, que no cenário das prisões cautelares a inafiançabilidade permanece sem motivo aparente que a justifique como opção constitucional e legislativa em face da função específica que a fiança penal executa na persecução penal.

 

4.1.2 Fiança penal e prisões cautelares

A partir do escólio de Aury Lopes Junior (2014) e da disciplina normativa do Código de Processo Penal se observa que a relação entre a fiança penal e as prisões cautelares está estritamente definida no ponto de incompatibilidade causal entres estes institutos.

“A necessidade da prisão preventiva é incompatível com a fiança, por elementar, pois são situações excludentes. Dessarte, o fato de ser o crime inafiançável não acarreta, por si só, a prisão preventiva do agente. (LOPES JR.2014, p.927).”

O cerne da questão reside no fato de que, por serem as prisões provisórias os instrumentos de cautelaridade processual penal mais rígidos possíveis, e aplicadas como ultima ratio, não é possível existir, no sistema,  a situação de prisão cautelar conjugada com a prestação de fiança, isso porque, a fiança exerce o papel de medida cautelar diversa e substitutiva da cautela prisional, conforme se depreende da dicção do art.282 do CPP: “Art. 282.  (…). § 6o  A prisão preventiva será determinada quando não for cabível a sua substituição por outra medida cautelar (art. 319).” (CÓDIGO DE PROCESSO PENAL,1941, BRASIL,2018).

Por isso, quando não presentes os requisitos objetivos que determinam a prisão cautelar e, no caso concreto, se pode aplicar uma medida cautelar diversa da prisão, necessariamente deverá ser aplicada ao acusado a situação de liberdade provisória com a imposição ou não da fiança ou de outra medida cautelar diversa da prisão, restando, portanto, inconcebível no mesmo caso, existir concomitantemente a prisão cautelar com a prestação da fiança.

Art. 310.  Ao receber o auto de prisão em flagrante, o juiz deverá fundamentadamente:           

 I – relaxar a prisão ilegal; ou           

II – converter a prisão em flagrante em preventiva, quando presentes os requisitos constantes do art. 312 deste Código, e se revelarem inadequadas ou insuficientes as medidas cautelares diversas da prisão; ou            

III – conceder liberdade provisória, com ou sem fiança.   (…)

Art. 321.  Ausentes os requisitos que autorizam a decretação da prisão preventiva, o juiz deverá conceder liberdade provisória, impondo, se for o caso, as medidas cautelares previstas no art. 319 deste Código e observados os critérios constantes do art. 282 deste Código.  (CÓDIGO DE PROCESSO PENAL,1941, BRASIL,2018).”

E, ainda no estudo desta doutrina, vale ressaltar, novamente, que não se podem confundir os institutos da fiança penal com o da liberdade provisória, pois a fiança como medida cautelar é apenas um adjetivo da situação de liberdade provisória, ou seja, a fiança como medida cautelar diversa da prisão  apenas qualifica a situação da liberdade provisória vivida pelo acusado, liberdade provisória com ou sem fiança, e por esse ponto, pode-se verificar que do mesmo modo que a afiançabilidade não é sinônimo da liberdade provisória, a inafiançabilidade também não pode ser tomada como sinônimo de prisão cautelar.

“Com a nova redação do art. 319, foi estabelecido um sistema polimorfo, com um amplo regime de liberdade provisória, com diferentes níveis de vinculação ao processo, estabelecendo um escalonamento gradativo, em que no topo esteja a liberdade plena e, gradativamente, vai-se descendo, criando restrições à liberdade do réu no curso do processo através da imposição de medidas cautelares diversas, como o dever de comparecer periodicamente, pagar fiança, proibição de frequentar determinados lugares, obrigação de permanecer em outros nos horários estabelecidos, proibição de ausentar-se da comarca sem prévia autorização judicial, monitoramento eletrônico, recolhimento domiciliar noturno e, quando nada disso se mostrar suficiente e adequado, chega-se à ultima ratio do sistema: a prisão preventiva.(LOPES JR., 2014, p.913).”

Diante desta análise percebe-se que a fiança penal, pela função que ela exerce no processo penal, a priori, de cautela ou contracautela, enquanto o acusado encontra-se solto, no gozo da liberdade provisória acaba por não se justificar em situação de notória necessidade da submissão do acusado a prisão cautelar, e o fato de ser o crime inafiançável, por si só, também não orienta a aplicação presuntiva da prisão cautelar, pelo fato de que pode não estarem vislumbrados, no caso concreto, os requisitos objetivos em que se fundamenta a decretação da prisão cautelar.

 

4.2 Crimes inafiançáveis e o princípio da igualdade

Como visto anteriormente, o princípio da igualdade é um postulado constitucional que orienta o processo penal a fim de que se efetive a isonomia e a igualdade de armas e de condições para as partes na persecução penal.

“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (BRASIL, 2018).”

No entanto, pelo escólio de Vilvana Damiani Zanellato (2015), é possível verificar que o princípio da igualdade no jogo entre afiançabilidade e inafiançabilidade não tem mais se efetivado no conjunto do ordenamento jurídico, pois, não se tem conferido isonomia na prática de aplicação da fiança, a ponto de isso ofender inclusive, o princípio da proporcionalidade.

Essa premissa efetivamente se justifica, porque, para acusados de crimes menos graves há, no processo de cautelaridade processual, a imposição da fiança como qualificação da liberdade provisória, enquanto que para acusados por crimes mais graves (inafiançáveis) a liberdade provisória se manifesta sem imposição da fiança.

Ora, isto é um notório desequilíbrio, pois, ambos os acusados, os por crimes afiançáveis e os por crimes inafiançáveis, estarão igualmente incursos em ação penal e ambos precisam respeitar a instrução processual penal de igual modo, por isso, não se explica a existência de uma desigualdade processual, pura e simplesmente ser o crime afiançável ou não.

Acusados por crimes menos lesivos e acusados por crimes mais lesivos (inafiançáveis) estão em igualdade de condições no sistema processual e não justifica o acusado por crime inafiançável se encontrar em uma situação mais confortável e benéfica em relação à liberdade provisória, frente ao acusado por crime afiançável.

O segundo ponto refere-se ao fato de que a manutenção da inafiançabilidade, ou não, de um tipo penal, na atualidade, serve apenas para (paradoxalmente) agravar a situação daquele que é preso em flagrante por crime afiançável. (…) ao crime mais grave não cabe fiança, porém, se não estiverem presentes os requisitos da prisão preventiva será concedida liberdade, mesmo assim, sem qualquer pagamento como condição!

Em suma: crime afiançável (menos grave) + pagamento de fiança = liberdade; de outro lado, crime inafiançável (mais grave) + não pagamento de fiança = liberdade. Isso porque, ninguém (parlamentar, ou não) mais poderá ser mantido preso em flagrante pela mera justificativa de ser o crime inafiançável. (ZANELLATO, 2015).”

Superado este primeiro ponto, é possível notar, a partir da  lei processual penal, que sem justo fundamento o regime cautelar processual não se implementa também de forma igualitária para acusados por crimes afiançáveis e acusados por crimes inafiançáveis quando o objetivo da norma é retirar  a condição financeira como obstáculo para acesso ao direito da liberdade provisória. (RANGEL,2017).

A disciplina do instituto da fiança penal positivada entre os artigos 321 e 350 do Código de Processo Penal cria, mais especificamente no art. 350 da lei processual, um regime de liberdade provisória a favor dos hipossuficientes, denominado de liberdade provisória sem fiança por miserabilidade jurídica, que se volta exclusivamente para os acusados por infrações penais afiançáveis.

“Art. 350.  Nos casos em que couber fiança, o juiz, verificando a situação econômica do preso, poderá conceder-lhe liberdade provisória, sujeitando-o às obrigações constantes dos arts. 327 e 328 deste Código e a outras medidas cautelares, se for o caso.

Parágrafo único.  Se o beneficiado descumprir, sem motivo justo, qualquer das obrigações ou medidas impostas, aplicar-se-á o disposto no § 4o do art. 282 deste Código. (CÓDIGO DE PROCESSO PENAL,1941, BRASIL,2018).”

Mas a aplicação desta norma demonstra uma notória desigualdade processual entre o acusado pobre que comete crime afiançável, o qual, como se afiançado fosse, estará sujeito ao regime de obrigações previstos nos arts. 327 e 328 do CPP, e o igualmente pobre, mas, acusado por crime inafiançável, o qual poderá usufruir da liberdade provisória sem necessariamente está vinculado a estas obrigações.

Esta situação claramente distancia a isenção da fiança prevista no art. 350, CPP, a qual tem o objetivo de resguardar o direito de liberdade provisória para o acusado hipossuficiente, da isonomia e da paridade de armas definido pelo princípio da igualdade

Apregoa Paulo Rangel:

“É curioso que ao pobre e ao rico que cometerem crimes inafiançáveis seja permitida a liberdade provisória do art. 310, paragrafo único, e a do art. 321, ambos, do CPP. Porém, ao pobre que cometer um crime afiançável ser-lhe-á concedida a liberdade provisória do art. 350. Ou seja, há, data vênia, tratamento diferenciado dado ao pobre, que terá mais obrigações a cumprir por estar em liberdade provisória nos termos do art. 350; quanto ao rico, por ter cometido um crime inafiançável, terá a liberdade provisória do art. 310, parágrafo único, ou a do art. 321. (RANGEL, 2017, p.863).”

Em face do princípio da igualdade, após acurada pesquisa, não se verificou na lei, na doutrina ou jurisprudência processual penal, um argumento sequer que demonstre uma justificativa plausível para que os acusados por crimes de alta lesão, como é o caso dos inafiançáveis, estejam vedados a prestar fiança ao Estado.

Portanto, ao que tudo indica, a notória diferenciação entre acusados afiançáveis e inafiançáveis ofende o princípio da igualdade, pois a lei criou uma distinção que não promove isonomia, muito menos a equidade.

 

4.3 A função da fiança penal e os crimes inafiançáveis

Entende-se,  para todos os efeitos, que a função da  fiança penal é ser uma garantia patrimonial prestada pelo imputado ao Estado, com a finalidade, primeiramente, de assegurar o pagamento das despesas processuais, multa e indenização, em caso de condenação, e sobretudo, também, ser um fator inibidor da fuga garantindo o vínculo do acusado com curso do processo. (LOPES JR., 2014)

Diante dessa relevante função exercida pela fiança no direito processual penal torna-se inconsistente a opção pelo constituinte e por vez do legislador infraconstitucional o estabelecimento da inafiançabilidade e a taxação de crimes inafiançáveis. Essa premissa é reforçada por Guilherme de Souza Nucci (2014), Eugenio Pacelli (2017) e Aury Lopes Junior (2014), pois todos afirmam que a opção pelo estabelecimento de crimes inafiançáveis foi um grande equívoco e um erro da constituição.

“E que não se assuste o leitor: a previsão da inafiançabilidade para os crimes de racismo, tortura, tráfico de drogas, hediondos etc. (art. 5º, XLII, XLIII e XLV, Constituição da República) foi, de fato, uma infeliz opção constitucional. (PACELLI, 2017, p.246).”

Por meio do estudo destas doutrinas observa-se que objetivo da inafiançabilidade não é coerente de forma alguma com o papel que a fiança penal desempenha no ordenamento jurídico, o qual é sobretudo ser uma medida cautelar diversa da prisão; e como já estudado, a fiança não é sinônimo de liberdade provisória, e nem a inafiançabilidade (vedação da fiança) sinônimo de prisão cautelar obrigatória.

Por conseguinte, ainda sobre esse tema, Claudio Watrim Araujo (2011) introduz o entendimento de que a disposição normativa atual a respeito da fiança nos aspectos quanto a afiançabilidade e a inafiançabilidade tem produzido um cenário de notória fuga à razoabilidade e, por consequência um conflito que se alça no campo dos direitos fundamentais, conflito este que somente se resolve na conjugação entres os princípios informadores do direito penal e processual penal.

O resultado desse confronto entre princípios apesar de marcar a prevalência da presunção de inocência e da liberdade como máxima, mantém, ainda assim, essa desarrazoada prática processual penal, em virtude da existência da inafiançabilidade como norma prevista no texto dos direitos e garantias individuais.

“Seria a transmutação de um direito fundamental coletivo em um direito fundamental individual do incriminado: em vez de um comando de rigidez, um benefício processual penal, eis que um acusado de um crime de maior potencial ofensivo não apenas poderia obter liberdade provisória, como poderia fazê-lo submetendo-se a menor grau de vinculação. Já dos acusados de outras infrações poder-se-ia reclamar caução, trasladando o desequilíbrio processual dos crimes inafiançáveis por disposição do Código àqueles instituídos por cláusula pétrea do texto constitucional. (ARAUJO, 2011).”

A doutrina de Pacelli (2017) corrobora que essa incoerência apenas se resolve por meio da correta aplicação dos princípios fundamentais de direito que orientam o direito penal e o direito processual penal no ordenamento jurídico.

“As incompatibilidades do texto constitucional em matéria penal e processual penal se resolvem em favor do sistema de garantias individuais! Nem o constituinte é onipotente ou divino!” (PACELLI, 2017, p.247).

Portanto, é a inafiançabilidade o ponto fora da curva, que acaba por destoar a função jurídica da fiança penal no direito processual penal brasileiro, Guilherme de Souza Nucci (2014) aponta uma solução para este imbróglio jurídico, sugerindo que, o correto, nesse caso, seria o repúdio à inafiançabilidade, a busca por uma reforma constitucional com a finalidade de abolir a taxação dos crimes inafiançáveis do texto constitucional.

“Cuidou-se, na época da Assembleia Nacional Constituinte, de um equívoco nítido do legislador. Pretendendo mostrar-se rigoroso em face de tais crimes, proibiu a fiança. De nada adiantou, pois sempre foi concedida a liberdade provisória, sem fiança, mais benéfica ao acusado. Enfim, nada se pode fazer, a não ser aguardar futura reforma na Carta Magna, com prudência e bom senso. (NUCCI,2014, p.280).”

Parece, neste caso, ser uma atitude impossível, pois a inafiançabilidade é taxada no texto dos direitos e garantias individuais, portanto, conforme o art. 60 da própria constituição, impassíveis de alteração no sentido de abolição. No entanto, esta afirmativa parece não prevalecer na visão de diversos juristas, como Paulo Maurício Serrano, Wardirley Rodrigues de Souza Filho e Fabrizio Casagrande Zanellatic (2011), por exemplo, que afirmam que a fiança é um poderoso instrumento de valorização da dignidade da pessoa humana.

“Este autor crê que a Carta de 1988 recepcionou a fiança criminal como um instrumento da dignidade da pessoa humana: palavra dada, palavra garantida e, desta sorte, não serviria a fiança para nenhuma indignificação do fiador (NEVES, FILHO, ZANELLATIC,2011, p.7).”

Neste contexto é possível assimilar que abolir a inafiançabilidade e passar a possibilitar o arbitramento da fiança aos crimes de alta lesão não é em nada reduzir ou abolir direitos individuais, muito antes pelo contrário, é retomar positivamente a valorização dos princípios da presunção de inocência e da dignidade da pessoa humana que são máximas dos direitos fundamentais individuais, além de trazer ao Estado uma importante garantia por parte do acusado de que a lei penal será efetivada.

Portanto, diante da função que a fiança penal exerce no direito não há justificativa para que o ordenamento a impeça de ser arbitrada aos acusados por crimes de grande lesão, como os definidos como inafiançáveis.

 

CONCLUSÃO

A pesquisa desenvolvida  possibilitou estabelecer uma análise sobre o instituto da fiança penal, sua funcionalidade no processo penal, bem como a direta relação da função exercida pelo instituto com os crimes inafiançáveis.

O confronto racional entre a função da fiança penal e a inafiançabilidade permitiu ao longo deste trabalho assimilar um conhecimento sobre o tema que, no direito, extrapola as fronteiras do processo penal e alcança matéria de ordem constitucional que afeta a toda a sociedade.

Neste contexto, os princípios orientadores do direito favorecem o implemento da fiança penal no ordenamento jurídico, visto que os princípios são fortes postulados e balizam as normas e as demais fontes do processo penal.

A inafiançabilidade, quando analisada frente a estes princípios, não se justifica, pois, a vedação da fiança aos acusados por crimes de maior lesão de maneira nenhuma exalta os princípios constitucionais da Dignidade da Pessoa Humana, da Igualdade, da Proporcionalidade e da Presunção de Inocência; pelo contrário, tende a mitigar a eficácia destes no processo penal, em prejuízo dos envolvidos em uma ação penal. Cabe ressaltar, neste ponto, o entendimento de que nenhum instituto criado pelo processo penal pode afrontar tais princípios, a ponto de violar direitos fundamentais.

Conclui-se também que fiança penal apesar de ter sido instituída no ordenamento jurídico brasileiro, pelo menos desde a constituição do império, somente a partir da reforma processual de 2011, lei 12.403, que ela passou, de fato,  a exercer a função de medida cautelar com vistas a assegurar a instrução processual penal e a efetividade da lei penal, pois, anteriormente a essa reforma a fiança era apenas entendida como sinônimo da liberdade provisória e, por um longo período, mesmo após o advento da constituição de 1988, a fiança penal esteve com sua aplicabilidade prejudicada e quase sem uma real funcionalidade, sendo revigorada pela citada reforma que conferiu a ela autonomia, independência, uma maior abrangência, bem como destaque e relevante papel no processo penal.

Não obstante, é possível também assimilar que embora o constituinte traga um rol expresso de alguns crimes  insuscetíveis de fiança, tinha-se, em princípio, como flagrante objetivo, tratar os acusados por estes crimes com maior rigor e, sobretudo, marcar a ação penal nestes crimes com uma certa presunção de acatamento da prisão cautelar. No entanto, conclui-se que esta intenção não se sustenta em face do princípios constitucionais orientadores do processo penal e também é um posicionamento normativo que não converge com a função típica desempenhada pela fiança penal (medida cautelar), pois quando se proíbe a fiança, apenas se veda a possibilidade de o acusado prestar ao Estado uma garantia patrimonial como segurança para o curso do processo. Portanto a inafiançabilidade  acaba por não se sustentar no sistema jurídico vigente.

É possível compreender que não podem os crimes inafiançáveis trazerem consigo a presunção para aplicação das prisões cautelares, pela razão, dentre outras, de que as prisões cautelares somente podem ser aplicadas caso os requisitos legais para a fixação destas sejam implementados no caso concreto,  além do que são as últimas medidas cautelares processuais a serem tomadas, no caso em que as demais medidas menos gravosas não sejam suficientes.

Portanto, foi possível assimilar que o impedimento de arbitrar fiança aos acusados por crimes de alta lesão não se justifica em face da função jurídica que a fiança penal exerce, qual seja, de medida cautelar diversa da prisão, aplicada como uma garantia patrimonial para vincular o acusado ao curso processual penal e garantir a efetividade da lei penal. Ser o crime inafiançável não é justificativa para que o acusado seja impedido de usufruir da liberdade provisória, ou tampouco, ver seus direitos processuais reduzidos em qualquer sentido, em relação aos acusados por crimes afiançáveis

Ademais ofende a baliza definida pelo princípio constitucional da igualdade a diferença processual penal estabelecida pela inafiançabilidade, pois em prejuízo dos acusados pelos crimes de menor lesão, os acusados em crimes inafiançáveis utilizam-se da liberdade provisória sem apresentar ao poder judiciário uma garantia patrimonial, o que denota uma diferenciação injustificada entre acusados afiançáveis e inafiançáveis, o que não faz validar a premissa da isonomia constitucionalmente expressa, a de que todos são iguais perante a lei.

É conclusivo, pelas pesquisas, admitir que a solução deste paradoxo, e a eliminação desta incoerência jurídica somente se pode efetivar com a abolição da inafiançabilidade no texto constitucional, meio pelo qual, a fiança como instrumento que valoriza o processo penal e, sobretudo, os direitos e garantias individuais do processado, poderá ser aplicada aos acusados por crimes de maior lesão e, com isso, excluir do ordenamento jurídico toda e qualquer contradição no que se refere a função jurídica da fiança penal.

 

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