Resumo: A propriedade é um dos direitos mais inspiradores do direito privado. Este estudo aborda as origens da propriedade e da posse bem como o estudo da função social de ambos os institutos. Esta temática enseja ações possessórias intentadas pelos titulares da propriedade a fim de reaver a sua posse (não sendo a posse anterior de fácil comprovação). Importante ressaltar que as terras objeto de ocupações pelos movimentos sociais são aquelas que não cumprem sua função social. Esse cenário de conflitos de direitos instados pelos movimentos sociais em áreas urbanas ou rurais que não cumpridoras dessa função, ensejam ações de reintegração de posse pelos titulares das propriedades. Após demonstrar os argumentos defendidos pelos movimentos sociais o trabalho dedicou-se ao estudo de dois julgados favoráveis aos movimentos sociais em ações possessórias, os quais, deram reconhecimento e efetividade à direitos existenciais em detrimento de direitos patrimoniais puramente considerados.[1]
Palavras – chave: Direito Constitucional, Direitos Reais, posse, propriedade, movimentos sociais, função social da propriedade, função social da posse, esbulho possessório.
Abstract: The property is one of the most inspiring rights of private law. This study addresses the origins of property and ownership and the study of the social function of both institutes. This theme gives rise possessory actions brought by property owners to recover their possession, which is not always easy to prove. Importantly, the lands subject to the social movements occupations are those that do not fulfill their social function. In this scenario rights conflicts caused by social movements to areas, urban or rural, which do not fulfill their social function, ensejam repossession actions by the holders of property. After demonstrating the arguments of the social movements work devoted to the study of two favorable opinion to social movements in possessory actions, which gave recognition and effectiveness to the existential rights over purely considered property rights.
Keywords: Constitutional Law, Property Law, possession, property, social movements, property social function, possession social function, ownership trespass.
Sumário: 1.Introdução. 2. O direito da propriedade e da posse: das origens históricas à função social. 2.1. Da propriedade. 2.1.1. Origens históricas do direito de propriedade. 2.1.2. Concepção estrutural da apropriação e faculdades do domínio. 2.1.3. Função social da propriedade. 2.2. Da posse. 2.2.1. Origem histórica e teoria da posse. 2.2.2. Concepção estrutural da possessão e faculdades de domínio. 2.2.3. Função social da posse. 3. Os movimentos socias e a função da propriedade e da posse. 3.1. Os movimentos sociais e as ocupações de terra como estratégia de pressionar os governos a realizar o reconhecimento da função social da posse e da propriedade. 3.2. Análise da fundamentação dos julgados do tribunal de justiça do rio grande do sul em casos de ações possessórias contra os movimentos sociais. 3.2.1. Decisão proferida pelo tribunal de justiça. Caso da fazenda primavera. Prevalencia da função social da propriedade. 3.2.2. Análise do julgado proferido pelo tribunal de justiça do rio grande dosul. Caso favorável ao movimento mst. Prevalência da função social da propriedade. 4. Conclusão. 5. Referências.
INTRODUÇÃO
O presente trabalho busca um novo enfoque para os conceitos de função social da propriedade e de função social da posse, através da ótica dos movimentos sociais, mas sem com isso pretender esgotar a problemática relativa ao tema possessório e tendo por base os julgados do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Pretende, também, destacar o papel dominante que o direito privado exerce no ordenamento jurídico, tendo em vista a influência do direito no mundo das relações privadas.
A luta de classes entre proprietários e possuidores exige que se valorizem, no direito brasileiro, os direitos sociais em detrimento dos direitos individuais. Da mesma forma em que se deve tratar essa questão histórica da propriedade observando os efeitos que permeiam, até hoje, os conflitos possessórios fortemente influenciados pelo capitalismo. Por tais razões, esta pesquisa busca analisar, a partir dos julgados das ações possessórias proferidas pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, os fundamentos que embasam essas decisões quando contrárias aos movimentos, observando que os argumentos nem chegam a contemplar o princípio da função social da propriedade, mas atrelam-se, basicamente, ao conceito de propriedade. Já quando os julgados do TJ-RS, no tocante a essas questões possessórias, são favoráveis aos movimentos sociais, há utilização de inúmeros princípios constitucionais para demonstrar a importância da prevalência dos direitos existenciais sobre o direito patrimonial privado.
O trabalho foi dividido em três capítulos. O primeiro trata das origens históricas da propriedade e seus fundamentos de domínio, bem como da função social da propriedade. Logo após, foram estudadas as origens históricas da posse e suas faculdades de domínio, bem como sua função social.
O segundo capítulo foi dedicado ao estudo das atividades dos movimentos sociais nesta ceara, quando da análise dos julgados proferidos pelo Tribunal de Justiça em ações possessórias contra os movimentos sociais.
Nesta perspectiva última, o trabalho subdividiu-se em três subitens, os quais tratam dos movimentos sociais enquanto afirmação dos direitos existenciais e, ainda, como forma de pressionar os governos a realizarem o reconhecimento da função social da posse e da propriedade.
Ao avançar para o entendimento mais recente sobre esta teia de conceitos, o próximo ponto consiste na definição do conteúdo de função social da propriedade e onde ela se insere no ordenamento jurídico e, ainda, sua aplicabilidade nos casos possessórios. Superada essa questão, o conceito de função social da posse é estudado no contexto específico do direito brasileiro, analisando sua extensão e importância para a satisfação das necessidades humanas.
A partir daí, já se começa a estudar a prevalência da posse de terceiros quando o titular do bem não estiver cumprindo a função social da propriedade, argumentos que serão apresentados durante o desenvolvimento do trabalho monográfico. Em seguida, foi realizada a análise de dois julgados favoráveis aos movimentos sociais, ambos proferidos pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, a fim de verificar em que medida e de que maneira a função social da propriedade está sendo observada nas decisões da corte e, ainda, como, neste contexto, ocorre a proteção dos possuidores que ocupam terras, urbanas ou rurais, a fim de suprir suas necessidades através da posse.
Este trabalho, por fim, procurou demostrar e reconhecer a insuficiência do direito para acompanhar a transformação social concreta na qual ocorrem os conflitos dessa ordem, e, ainda, garantir que estas questões de elevadíssima importância, tanto individuais, quanto coletivas, mereçam uma resposta coerente à sua dimensão. Além disso, o trabalho dedicou-se ao estudo dos fundamentos elegidos pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, especificamente, nas decisões que se amparam na consagração do texto constitucional, percebendo que a posse e a propriedade só poderão ser protegidas quando atenderem ao princípio da função social.
Na produção deste trabalho, foi utilizada a metodologia bibliográfica e documental, com analise dos julgados proferidos pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul a partir de conceitos legais e doutrinários.
2. o direito da propriedade e Da posse: das origens históricas à função social
A importância em dedicar este trabalho ao estudo de tal tema constitui ligação direta com princípios e com conteúdo dos direitos que os movimentos sociais reconhecem em consenso. Além de exercerem um papel importante na conscientização dos indivíduos em relação aos direitos sociais, os movimentos elucidam os conceitos de posse e propriedade, quando realizam suas ações diretas, e ressaltaram os inúmeros avanços alcançados através de suas lutas, em uma perspectiva histórica.
Na qualidade de estudante do curso de direito e em virtude de minha atuação junto ao Movimento dos Trabalhadores Desempregados (MTD), a escolha do tema da pesquisa foi fortemente influenciada pela posição política que assumem os movimentos sociais face aos conflitos agrários no estado do Rio Grande do Sul.
Nesse ambiente, uma vez que há apatia estatal para solucionar os conflitos dessa natureza, faz-se necessário o estudo deste tema, a fim de chamar a atenção para a dicotomia dos direitos patrimoniais e dos direitos sociais na sociedade. Esse estudo é importante para o melhor entendimento das estratégias de ação direita dos movimentos sociais como uma forma de cidadania ativa, entendendo que é através dessas ações que os movimentos sociais incluem na pauta estatal demandas que não logram o devido respeito por parte dos órgãos públicos.
2.1. DA PROPRIEDADE
Neste capítulo, a abordagem do tema da propriedade e sua origem histórica objetiva apontar os elementos que constituem a formação desse instituto, de modo que, sem esta análise, seria impossível compreender a sua relação na contemporaneidade. Sendo assim, a estrutura atual do conceito de propriedade vem ressaltar a maneira como ela é utilizada nos procedimentos processuais adotados. Portanto, a crítica se faz presente a fim de que se possa entender como se construiu a hegemonia do conceito de propriedade através dos tempos e que até hoje influencia as decisões nos Tribunais.
2.1.1. ORIGENS HISTÓRICAS DO DIREITO DE PROPRIEDADE
Inicialmente, buscou-se situar a propriedade em sua evolução histórica, pois seria incompreensível a análise deste instituto sem a observância de seu desenvolvimento através dos tempos. Do ponto de vista histórico, pode-se afirmar que a estrutura da sociedade, em geral, está baseada no direito à propriedade.
“Pode-se entender que a propriedade é fenômeno espontâneo, decorrente da necessidade do ser humano, sendo posteriormente regulado a fim de possibilitar a convivência social pacífica”[2].
Na antiguidade, a propriedade era entendida pela perspectiva coletiva, onde o homem tem direito a tudo, e o poder de cada homem sobre as coisas é entendido como meio de sobreviver e preservar a vida e a espécie.
Com a evolução dos tempos, o homem saiu do estado de natureza e surgiu a figura do poder divino, posteriormente reconhecida como a figura do Estado. Foi, então, conferido ao homem o direito à propriedade e, dessa forma, o Estado deveria proteger tudo que pertencia ao homem, dando origem à propriedade privada, que não existia no estado de natureza. Destarte, o Estado é condição primordial para a existência da propriedade.
A propriedade é um dos temas mais representativos da história do Direito, sendo ela um pilar de identificação do indivíduo moderno por compreender em si um indicador de poder econômico e político do homem.
Nos primeiros tempos do direito, a propriedade era considerada como sendo unicamente individual[3], ou seja, tendo o proprietário absoluta liberdade de dispor de seus bens conforme sua vontade. Nesta perspectiva, uma vez dono de um bem, o proprietário podia usar e gozar deste bem independentemente do interesse social e coletivo.
“Foi o Direito romano que estabeleceu um complexo mecanismo de interditos visando tutelar os direitos individuais em relação aos arbítrios estatais. A Lei das doze tábuas pode ser considerada a origem dos textos escritos consagrados da liberdade, da propriedade e da proteção aos direitos do cidadão.”[4]
Também os conceitos religiosos contribuíram consideravelmente para as transformações do conceito de propriedade, na tentativa ideológica de pulverizar mandamentos como “não roubar” já implicitamente considera a ideia de “teu” e “meu”, ou seja, o ter ou não ter deveria ser respeitado conforme escolha divina, sendo assim, apesar de tudo pertencer a deus, o homem poderia ter domínio sobre os bens da terra.
Segundo São Tomás de Aquino, que retoma a análise do tema da propriedade sob a perspectiva da justiça correspondente às relações do homem para com o homem, observa o conteúdo de troca de coisas ou obras. Neste sentido, a caracterização de “meun” e “teum” (meu e teu) em termos abstratos, deve ser elemento essencial dessas relações. Deste modo, o direito de propriedade assume dois significados. A relação hereditária que transmite o bem de pai pra filho e a relação dos homens entre si.[5] De acordo com o autor Fustel Coulange, a religião está intimamente ligada à compreensão de ênfase da propriedade privada, bem como seu caráter de perpetuidade.[6] Até mesmo os pertences dos mortos eram adorados pelos seus antepassados que cultivavam adoração e manutenção dos locais de sepultamentos de seus antecedentes, ou seja, estes lugares eram de propriedade daquela família.
“Há três coisas que, desde as mais antigas eras, encontram-se fundadas e solidamente estabelecidas nas sociedades grega e itálica: a religião doméstica, a família, o direito de propriedade; três coisas que tiveram entre si, na origem, uma relação evidente, e que parecem terem sido inseparáveis. A ideia de propriedade privada fazia parte da própria religião. Cada família tinha seu lar e seus antepassados. Esses deuses não podiam ser adorados senão por ela, e não protegiam senão a ela; eram sua propriedade exclusiva.”[7]
Segundo Engels, em sua obra “A origem da família, da propriedade privada e do Estado”, nos meados da idade média, as relações familiares modificaram-se para dar início ao direito de herança. Sendo assim, nos explica:
“(…) quando a propriedade privada se sobrepôs à propriedade coletiva, quando os interesses da transmissão por herança fizeram nascer a preponderância do direito paterno e da monogamia, o matrimônio começou a depender inteiramente de considerações econômicas.”[8]
Portanto, nasce uma nova forma de pensamento em relação à propriedade, no sentido de meio para acumulação de riquezas, antes menos considerada, dando espaço para a compreensão de escopo social do indivíduo na “polis”, posto o requisito essencial de status de o homem ser ele proprietário de muitos bens. O acúmulo de riqueza representava a história daquela família gerações após gerações.
Nessa perspectiva, Engels, em sua referida obra, aponta estes elementos para ilustrar a organização social da época, vejamos:
“Desse modo, na constituição grega da época heroica, vemos, ainda cheia de vigor, a antiga organização gentílica, mas já observamos igualmente o começo da sua decadência: o direito paterno, com herança dos haveres pelos filhos, facilitando a acumulação das riquezas na família e tornando esta um poder contrário à gens; a diferenciação de riquezas, repercutindo sobre a constituição social pela formação dos primeiros rudimentos de uma nobreza hereditária e de uma monarquia; a escravidão, a princípio restrita aos prisioneiros de guerra, desenvolvendo-se depois no sentido da escravização de membros da própria tribo e até da própria gens; a degeneração da velha guerra entre as tribos na busca sistemática, por terra e por mar, de gado, escravos e gens que podiam ser capturados, captura que chegou a ser uma fonte regular de enriquecimento. Resumindo: a riqueza passa a ser valorizada e respeitada como bem supremo e as antigas instituições da gens são pervertidas para justificar-se a aquisição de riquezas pelo roubo e pela violência. Faltava apenas uma coisa: a instituição que não só assegurasse as novas riquezas individuais contra as tradições comunistas da constituição gentílica, que não só consagrasse a propriedade privada, antes tão pouco estimada, e fizesse dessa consagração santificadora o objetivo mais elevado da comunidade humana, mas também imprimisse o selo geral do reconhecimento da sociedade às novas formas de aquisição da propriedade, que se desenvolviam umas sobre as outras – a acumulação, portanto, cada vez mais acelerada, das riquezas; uma instituição que, em uma palavra, não só perpetuasse a nascente divisão da sociedade em classes, mas também o direito de a classe possuidora explorar a não possuidora e o domínio da primeira sobre a segunda”.[9]
No período da Idade Média, o homem não significava nada estando ele fora da “pólis”, ou seja, a propriedade era elemento subjetivo de posição social e liberdade desse indivíduo. Nesta senda, a propriedade era considerada pelo ordenamento jurídico como sendo perpétua, absoluta e seu titular poderia usar e gozar dela com total autonomia.
2.1.2. CONCEPÇÃO ESTRUTURAL DA APROPRIAÇÃO E FACULDADES DO DOMÍNIO
A propriedade individual, segundo as palavras de Celso Ribeiro Bastos, “é atingida por um caminho que passa pelo fortalecimento da propriedade familiar que se sobrepõe à propriedade coletiva da cidade e gradativamente avulta no seio familiar a figura do pater famílias.”[10]
A propriedade é um instituto compreendido pelo Código Civil Brasileiro e que permite ao seu titular o uso, gozo e a disposição de um bem, além de poder reavê-lo quando injustamente estiver sob posse de outrem.
O caput do artigo 1.228 do código civil traz um conceito histórico do que seja a propriedade, qual seja:
“Artigo 1228 – O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la de quem quer que a possua ou detenha.”
Assim sendo, o artigo indica os elementos essenciais para que se perfectibilize a propriedade, ou seja, devem estar presentes a faculdade de usar, gozar e a de reivindicação. Na ausência destes elementos a propriedade estaria prejudicada.
Vale salientar os ensinamentos de Cristiano Chaves Farias ao descrever que a propriedade “é um direito real por excelência, em torno do qual gravita o direito das coisas’’.[11]Compreendida como um direito pilar da sociedade, a propriedade avoca para si uma gama de contradições, pois contém em si mesma elementos que defendem uma abstração jurídica, ou seja, um direito que não precisa efetivamente ser exercido, mas apenas ser registrado, o que garante sua titularidade.
A propriedade, compreendida no seu contexto de coisa individual, conforme afirma Gomes[12], deve ser considerada em três aspectos para definir seu conceito, os quais são:
“O sintético, o analítico e o descritivo. Sinteticamente é de se defini-lo como Windscheid, como submissão de uma coisa, em todas as suas relações, a uma pessoa. Analiticamente, o direito de usar, fruir e dispor de um bem, e de reavê-lo de quem injustamente o possua. Descritivamente, o direito complexo, absoluto, perpétuo e exclusivo, pelo qual uma coisa fica submetida à vontade de uma pessoa, com as limitações da lei”[13].
Sobre os ensinamentos de Maria Helena Diniz[14]:
“A propriedade é relação fundamental do direito das coisas, abrangendo todas as categorias dos direitos reais sobre coisas alheias, sejam direitos reais limitados de gozo ou fruição, sejam os de garantia ou aquisição.”
Também trata do assunto o jurista Sílvio Rodrigues quando destaca que:
“O domínio é o mais completo dos direitos subjetivos e contém o próprio cerne dos direitos das coisas e ainda, poder-se-ia mesmo dizer que, dentro do sistema de apropriação de riqueza em que vivemos, a propriedade representa a espinha dorsal do direito privado, pois o conflito de interesses entre os homens que o ordenamento jurídico procura disciplinar, manifesta-se, na quase generalidade dos casos, na disputa de bens”[15].
Marcia Motta fez refletir perfeitamente o entendimento de Augusto Teixeira de Freitas acerca do tema de propriedade que defendia a ideia de que a propriedade não era absoluta. No trecho de sua obra, resume bem este posicionamento, qual seja: “(…) Quando elaborara a Consolidação das Leis Civis, Teixeira de Freitas expressava sua discordância contra a utilização dos Registros de Terra como prova de domínio (…).”[16]
A autora demonstra em sua obra as críticas feitas por Teixeira de Freitas ao opor-se à concepção de propriedade absoluta, quando ele expunha não admitir que apenas o elemento de declaração de possuidor já constituísse propriedade, o que naquela época ocorria demasiadamente.
Como se pode perceber, a propriedade percorreu um caminho torneado por interesses econômicos que delinearam a sua estrutura contemporânea. Sendo assim, ainda que percorresse momentos históricos diversos, sempre esteve presente o caráter patrimonial econômico de domínio.
Ocorre que, nos dias atuais, mais precisamente após a Constituição de 1988, esta realidade modificou-se, visto que a propriedade não pode mais ser vista a partir da perspectiva apenas de direito, mas sim, deverá ser observada à luz do princípio da função social da propriedade.
2.1.3. FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE
Para o estudo deste tema procura-se observar a obra de Norberto Bobbio intitulada “Da Estrutura à Função”. Esta obra traz o ensinamento de que o Direito tem, em sua gênese, uma função, a qual sobrepõe a sua estrutura meramente reconhecida.
Quando na análise de temas em que se enfrenta um problema entre direito quanto norma positiva e direito quanto função social, devemos observar o que contemporaneamente os doutrinadores têm considerado a respeito.
Nas sábias palavras de Norberto Bobbio, lê-se os preceituados ensinamentos:
“Tenho razão em considerar que o escasso interessa pelo problema da função social do direito na teoria do direito dominante até os nossos dias seja associado, precisamente, ao destaque que os grandes teóricos do direito, de Ihering a Kelsen, deram ao direito como instrumento específico, cuja especialidade não deriva dos fins a que serve, mas de modo pelo qual os fins, quaisquer que sejam, são perseguidos e alcançados. É de conhecimento geral que uma das afirmações recorrentes de Kelsen – a ponto de ser tornar regra – é que a doutrina pura do direito.”[17]
Segundo Bobbio, nos ensinamentos de Kelsen a respeito dessa questão. observa-se que o último:
“Não considera o objetivo perseguido e alcançado pelo ordenamento jurídico, mas considera, apenas e tão-somente, o ordenamento jurídico; e considera este ordenamento na autonomia da sua estrutura, e não em relação a este seu objetivo”.[18]
Para ele, Kelsen considerava o sistema jurídico como um sistema dinâmico o qual não necessitava de função ou objetivo para sua definição.
O que percebemos ser um grande problema na atualidade, tendo em vista que, não se pode deixar de considerar que uma vez tendo que enfrentar uma questão de ordem norma versus princípios, ou ainda, privilegiando direitos fundamentais em face de direitos puramente patrimoniais, torna-se impossível não considerar o direito quanto função social.
Nesta perspectiva, ainda sobre a temática, Bobbio escreve:
“O outro fenômeno que poderia ter influência sobre a extenuação e, no limite, sobre a deterioração do direito é aquele que se expressa na tendência, a qual é também própria das sociedades tecnicamente avançadas, que vai da repressão à prevenção. Tal como a medicina, ao menos como ela é entendida até agora, o direito não tem a função de prevenir as doenças sociais, mas, sim, de tratá-las (nem sempre de curá-las) quando elas já irromperam”.[19]
Antes da Constituição Federal de 1988[20], o Judiciário manteve a postura como se estivesse de mãos atadas frente aos conflitos de ordem agrária ou rural, que tinham como ponto nevrálgico a propriedade. Contudo, o advento da Carta Magna trouxe à tona o princípio da função social da propriedade, o qual não é mais concebido como absoluto. Muito embora alguns tenham entendido este advento como restrição ao direito subjetivo à propriedade, isso não se configura, sendo atualmente considerado como um elemento que agregou valor, e não restringiu direito algum.
A consequência da evolução do conceito de propriedade combinado com o princípio da função social da propriedade, trazido pela Constituição Federal, trouxe aplicabilidade imediata, ainda que sua funcionalidade não fosse tão simples. Ocorre que a compreensão desse princípio não se confunde com um limitador do direito à propriedade, mas sim a uma medida para alcançá-la, direta ou indiretamente. Todavia, já se passam mais de vinte e cinco anos da publicação de Carta Magna e tais direitos não são devidamente compreendidos.
Historicamente, a sociedade tem sofrido com uma minoria de proprietários de terras em detrimento da maioria da população. Um contexto que resulta em grandes massas de sem-terra, urbanas e rurais, marginalizados e sem condições de vencer o sistema explorador do capital. Os movimentos sociais vêm denunciar as desigualdades e revelar as carências, os focos e as insatisfações da população oprimida, e, através de suas práticas, vêm pressionando o Estado para que consiga dar conta dessa demanda, adequando políticas públicas de forma a atender às necessidades da população beneficiada pela Reforma Agrária.
Muito embora a Constituição Federal de 1988 tenha recepcionado o princípio da função social da propriedade, ele não se promoveu em relação ao princípio da função social da posse. Este pode ser observado a partir da ótica da efetivação dos direitos fundamentais, ainda que não se saiba ao certo o alcance do conteúdo da função social da posse no direito brasileiro. A premissa da função social da posse se legitima na medida em que o direito privado deve estar em consonância com os preceitos constitucionais.
A ideia de propriedade, considerada como direito absoluto, visando apenas e tão somente o direito do proprietário não mais existe no ordenamento jurídico. A propriedade é garantida, entretanto, não é mais absoluta como outrora. Atualmente, por força da Constituição Federal de 1988, ao recepcionar o princípio da função social da propriedade, nos alude ao conceito de que deve-se respeitar a propriedade desde que seja cumprida a sua função social. Pereira[21] exprime bem esta nova realidade, sendo ela:
“[…] certo é que a propriedade cada vez mais perde o caráter excessivamente individualista que reinava absoluto. Cada vez mais se acentuará sua função social, marcando a tendência crescente de subordinar o seu uso a parâmetros condizentes com o respeito aos direitos alheios e às limitações ao benefício da coletividade”[22].
No que diz respeito à legislação pertinente a esse tema, no artigo 1.228, em seus parágrafos 1º e 2º, encontramos as finalidades da função social da propriedade, quais sejam:
“1º) O direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas.
2°) São defesos os atos que não trazem ao proprietário qualquer comodidade, ou utilidade, e sejam animados pela intenção de prejudicar outrem”[23].
Dessa maneira, ficam evidentes as restrições impostas ao direito de propriedade, sendo defeso aos proprietários utilizá-lo de forma absoluta importando assim prejuízo a outrem.
Ainda, nas palavras de Gustavo Tepedino, quando estuda o conceito de função social da propriedade, o autor afirma que:
“(…) tratam-se de “novos parâmetros para a definição da ordem pública, relendo o direito civil à luz da Constituição, de maneira a privilegiar, insista-se ainda uma vez, os valores não patrimoniais e, em particular, a dignidade da pessoa humana, o desenvolvimento da sua personalidade, os direitos sociais e a justiça distributiva, para cujo atendimento deve se voltar a iniciativa econômica privada e as situações jurídicas patrimoniais”..[24]
O estudo do direito privado à luz da Constituição provoca grandes mudanças para os operadores do direito quando interpretam o ordenamento jurídico, ou seja, no caso concreto, onde estejam em conflito direitos patrimoniais e direitos fundamentais, os operadores do direito não devem mais atentar apenas para o texto de lei que protege o direito, mas sim, considerar quais princípios constitucionais estão implícitos em questão.
Em suma, muito embora a propriedade seja garantida pelo ordenamento jurídico, ela não se configura absoluta, sendo rigorosamente observado o princípio da função social da propriedade como basilar na análise dos casos que envolvem conflitos de tal natureza.
2.2. DA POSSE
No que tange ao estudo do conceito de posse, não menos importante, é necessário que encontremos sua classificação dentro do ordenamento jurídico. Nesta perspectiva, faz-se necessário o estudo de suas origens e de como se desenvolveu até a contemporaneidade; e mais, a forma como se relaciona com o conceito de propriedade.
2.2.1. ORIGEM HISTÓRICA E TEORIA DA POSSE
Pouco se fala sobre o instituto da posse no Direito Romano. Ainda que ele existisse de fato naquela época, não foi disciplinado quanto teoria do direito.
Vale dizer que, do ponto de vista histórico, as primeiras civilizações se organizavam pela perspectiva da agricultura, ou seja, este elemento foi predominante para que o homem abandonasse a condição de nômade. Desta maneira, o apossamento do solo vinculava fortemente o homem à sua terra, pois através dela retirava seu sustento.
Na relação do homem com a posse, pode-se dizer que nas primeiras civilizações, o homem poderia possuir tudo aquilo que conseguisse ter consigo, o que por si só não lhe conferia um direito de propriedade, mas sim de mero possuidor.
Contudo, consoante Gomes[25], a posse é concebida como dependente da propriedade, atribuindo a ele dois requisitos: animus e corpus. Esses eram entendidos como elementos em sua dimensão material, ou seja, o poder físico da pessoa sobre a coisa (corpus) e o poder intencional, a vontade de ter a coisa como sua (animus).
Nesta perspectiva, sob o ponto da teoria de Gomes[26].
“[…] exige-se para a posse um estado íntimo difícil de ser precisado concretamente, o que configurava como detentores da coisa o locatário, o comodatário, o depositário e outras formas onde se estabelecesse a simples posse, o que se verificou paradoxal do ponto de vista fático- jurídico”[27].
Ainda sob esta perspectiva, a posse dava-se apenas sobre coisas móveis, não se atribuindo ao solo a posse, ou, quando se atribuía, era de forma coletiva. Sendo assim, não é harmônico o entendimento do surgimento da posse em nossa civilização.
Mas foi através do código de Hamurab (1792 a.c.) que se teceu as normas mais importantes a respeito da propriedade, adaptando as normas antigas e atribuindo um caráter econômico aos direitos reais, contudo, excluindo-se a posse de tal direito, sendo ela considerada apenas um fato e não um direito.
Para Maria Helena Diniz, em sua obra “Direito Civil Brasileiro”, encontramos referências históricas da posse, quais sejam:
“A teoria de Niebuhr defende a tese de que a posse surgiu com a repartição de terras conquistadas pelos romanos. Terras essas que eram loteadas, sendo uma parte dos lotes – denominados possessiones – cedida a título precário aos cidadãos e a outra destinada à construção de novas cidades. Como os beneficiários não eram proprietários dessas terras não podiam lançar mão da ação reivindicatória para defendê-Ias das invasões. Daí o aparecimento de um processo especial, ou seja, do interdito possessório, destinado a proteger juridicamente aquele estado de fato.”[28]
E segue no mesmo entendimento quando sita o renomado autor Ihering no que doutrina sobre as origens da posse o seguinte:
“Já a teoria aceita por Ihering explica o surgimento da posse na medida arbitrária tomada pelo pretor, que, devido a atritos eclodidos na fase inicial das ações reivindicatórias, outorgava, discricionariamente, a qualquer dos litigantes, a guarda ou a detenção da coisa litigiosa. Todavia, essa situação provisória foi-se consolidando em virtude da inércia das partes; como consequência disso aquele que tivesse sido contemplado com a medida provisória, determinada pelo pretor, passava a não ter mais qualquer interesse no prosseguimento da ação reivindicatória, uma vez que sua situação praticamente já lhe assegurava o domínio”.[29]
Destarte, é inegável perceber que a complexidade da origem da posse tem sua concepção diretamente ligada à origem da propriedade.
2.2.2. CONCEPÇÃO ESTRUTURAL DA POSSESSÃO E FACULDADES DE DOMÍNIO
Conforme nos assinala Caio Mário Pereira[30], a posse é uma situação de fato, independente de ser proprietário ou não das coisas, mas sobre ela exerce poderes, defendendo-a e conservando-a. Assim, a pessoa age como se dono fosse, configurando a posse sobre a coisa, atendendo aos elementos de corpus e animus.
Considerados como corpus, a relação material do indivíduo com a coisa; e animus, a intenção de proceder com a coisa tal qual faz o proprietário. Classicamente, a posse tem sido definida como a percepção visível do domínio sobre a coisa, o que está sinalizado no artigo n.º 1.196 do Código Civil de 2002 como: “Art. 1196 – considera-se possuidor todo aquele que tem de fato o exercício, pleno ou não, de alguns dos poderes inerentes à propriedade” [31].
Em decorrência disso, passa-se a classificar a posse sob diversos aspectos, se ela é justa ou injusta, de boa ou de má fé, direta ou indireta, originária ou derivada, o que equivale dizer, influência direta no tocante à proteção possessória, ao usucapião e a uma série de efeitos legais derivados da análise do instituto denominado posse.
Na contemporaneidade, a ideia de propriedade perpétua deixa de existir e começa a ser pensada como a relação de um direito individual, observado, contudo, o princípio da sua função social, ou seja, do direito coletivo. Por sua vez a posse, passa a ser amplamente considerada, sendo reconhecida a subjetividade de seus pressupostos.
Para Savigny, a posse é compreendida pela união de dois elementos, quais sejam, o corpus (o que caracteriza a disposição da coisa em si) e o animus (que surge da intenção de ter a coisa para si). Sendo assim, a posse perfectibiliza-se quando da disposição da coisa somada à vontade de ser dono dela.
Rudolf Von Ihering, no tocante ao mesmo assunto, tem posição diversa, pois não atribui o elemento subjetivo do animus para que se perfectibilize a posse. Ihering acredita que, por ser um elemento subjetivo é de difícil comprovação e, sendo assim, não seria necessário que fosse considerado. Afirma que somente o elemento de corpus seria suficiente, pois o possuidor, quando dispõe da coisa, já age conforme o proprietário.
O código Civil de 2002 adotou a teoria de Ihering quando da redação do artigo 1.196, que reza: ”Art. 1.196. Considera-se possuidor todo aquele que tem de fato o exercício, pleno ou não, de algum dos poderes inerentes à propriedade."
Assim, verifica-se que o artigo em tela não menciona o elemento subjetivo, mas refere-se ao aspecto do comportamento objetivo para que seja configurado possuidor. Os poderes inerentes à propriedade são: usar, gozar, fruir e dispor da coisa.
Nesta perspectiva, observa-se que o legislador não abordou a questão de animus, muito embora em algumas situações específicas a lei aborde esta questão. Ademais, possuidor é aquele que age como se dono fosse.
Consoante a este desdobramento em relação à posse, ou seja, o que o ordenamento jurídico procura defender, em verdade, é a posse como algo fático e não como um direito.
Nas palavras do eminente professor Ovídio Baptista da Silva,
“Neste caso, a proteção jurisdicional não diz respeito a uma relação jurídica de direito material, no sentido em que este conceito ganhou fama e prestígio no direito moderno, de modo que se pudesse dizer, quanto à tutela possessória, o que se diz relativamente à proteção e defesa jurisdicional dos direitos. O ordenamento jurídico protege a posse como puro estado de fato e não o eventual direito à posse. Se quiséssemos ser rigorosos na preservação do conceito dominante na doutrina moderna de direito como relação jurídica, certamente encontraríamos dificuldades invencíveis para explicar a relação possessória e justificar sua proteção jurisdicional. O proprietário, o credor, o herdeiro, ou qualquer outro que esteja, no plano do direito material, na condição de titular de algum direito; ou se afirme tal como demandante nalguma relação processual, somente terá sua demanda reconhecida como procedente se demonstrar a alegada titularidade do direito com base no qual buscará ele proteção jurisdicional. Com a posse ocorre o contrário: o possuidor é protegido por ser possuidor e não por ter algum direito à posse. Por outro lado, aceitando-se a concepção dominante da doutrina contemporânea, segundo a qual todo direito se resume numa relação interpessoal de dominação, não podendo considerar-se jurídica a relação porventura existente entre o possuidor e a coisa por ele possuída, somos forçados a admitir que o ordenamento jurídico, ao proteger a posse, está a oferecer proteção ao fático e não ainda ao jurídico. Na sentença de procedência de uma demanda possessória, o juiz não proclama o reconhecimento de um direito do demandante, mas apenas o protege enquanto possuidor”[32].
Esta lição nos deixa ensinamentos a respeito da posse enquanto conceito jurídico no ordenamento, ou seja, não é reconhecida como um direito e, na maioria dos casos em julgamentos possessórios, é apenas reconhecida como um fato, qual seja, o de possuidor.
Ademais, quando se reconhece o direito à posse, está se reconhecendo apenas enquanto duram seus efeitos, pois não se trata de reconhecê-la como um direito, apenas se está protegendo-a como um direito.
2.2.3. FUNÇÃO SOCIAL DA POSSE
A função social da posse é mais evidente na posse do que na propriedade. Ela presume a expressão natural da necessidade de possuir e não da necessidade de eliminar da propriedade a sua função social.
Albuquerque afirma que:
“A função social da posse como princípio constitucional positivado, além de atender à unidade e completude do ordenamento jurídico, é exigência da funcionalização das situações patrimoniais, especificamente para atender às exigências de moradia, de aproveitamento do solo, bem como aos programas de erradicação da pobreza, elevando o conceito da dignidade da pessoa humana a um plano substancial e não meramente formal. É forma ainda de melhor se efetivar os preceitos infraconstitucionais relativos ao tema possessório, já que a funcionalidade pelo uso e aproveitamento da coisa jurídica, a posse como direito autônomo e independente da propriedade, retirando-a daquele estado de simples defesa contra o esbulho, para se impor perante todos”[33].
E, para finalizar, precisa-se destacar qual é o objetivo da função social da posse que, segundo o mesmo autor:
“A função social da posse tem por objetivo instrumentalizar a justiça com nossos próprios valores e experiências históricas, rompendo o condicionamento histórico herdado das sociedades europeias e harmonizando o instituto da posse com nossa sociedade complexa e pluralista do século XXI, profundamente conflituosa e marcada por grandes diferenças sociais”[34].
Neste sentido, são as colocações de Albuquerque:
“Vale dizer, este gérmen da funcionalização social do instituto da posse é ditado pela necessidade social, pela necessidade da terra para o trabalho, para a moradia, enfim, necessidades básicas que pressupõem o valor de dignidade do ser humano, o conceito de cidadania, o direito de proteção à personalidade e à própria vida”[35].
Conforme se observa, a posse aborda questões principiológicas, em outras palavras, pressupõe o valor da dignidade da pessoa humana, o fundamento do conceito de cidadania e, ainda, o mais relevante, o direito à vida. Valendo-se dessa gama de valores sociais, pode-se afirmar que a posse, por sua vez, não é conflitante com o conceito de propriedade, sendo esse um direito individual garantido, contudo, não mais absoluto, pois o titular do direito de propriedade deve observar o princípio da função social.
A sociedade para qual a norma é direcionada, acabou por produzir uma realidade muito diferente daquela pensada pelos legisladores ao recepcionar apenas o princípio da função social da propriedade.
Tendo em vista que, é por meio da posse que milhões de brasileiros garantem seu direito à moradia e, é certo dizer que se para a propriedade ocorreram modificações consideráveis, também o conceito de posse modificou-se no decorrer dos tempos.
Nesta senda, o estudo desse conceito deveria ser bem mais importante para o direito do que a própria propriedade, tendo em vista que, é por meio da posse que se justifica a verdadeira propriedade. Esta não revestida de posse, é apenas uma ficção jurídica. Em suma, para que se pudesse verificar a verdadeira propriedade bastaria atender ao princípio da função social da posse.
Na sociedade contemporânea, percebe-se que, embora o direito à moradia esteja elencado no art. 6º da Constituição Federal como um direito social, o acesso a ela ainda é bastante precário. Isso por uma série de fatores, entre eles o não agir estatal no sentido de efetivar tal direito o que contribui com o processo de favelização.
Portanto, pensar a posse pelo viés da função social é dar um grande passo no sentido de uma construção teórico-jurídico para promover o acesso à moradia aos mais necessitados. De modo geral, a história tem se adaptados às realidades sociais a fim de conectar os instrumentos jurídicos aos novos paradigmas sociais, conforme nos assinala Orlando Gomes, paradigmas que proporcionem “espargir sobre a codificação civil nuanças sociais que marcam a contemporaneidade no Brasil”.[36]
Por fim, a ideia de que o direito nasce a partir de um fato social já existente vem contribuir ainda mais pra amparar a função social da posse. Deste modo, a função social da posse deve ser considerada como elemento de utilidade da coisa em si, por conseguinte, aquele que usa a coisa dá a ela a função social que merece. Destarte, a posse atende ao interesse do indivíduo e da coletividade enquanto a propriedade atende a um critério político e econômico de status do indivíduo considerado isoladamente, ou seja, a propriedade é uma verdade jurídica já a posse é um fato social.
No tocante à função social da posse, instituto que nasce para satisfazer uma necessidade social e econômica, não deve, em nenhum momento, ser confundido com a função social da propriedade, assim como não deve haver essa confusão quando de sua utilização doutrinária e jurisprudencial.
3. OS MOVIMENTOS SOCIAS E A FUNÇÃO DA PROPRIEDADE E DA POSSE
A distribuição de terras no Brasil é cada vez mais marcada pela exclusão. No que diz respeito a áreas urbanas desocupadas e que não cumprem sua função social, estas resultam num padrão excludente ainda maior, pois não existe um planejamento urbano comprometido com uma gestão inclusiva.
Nas áreas urbanas são muitos os assentamentos informais, ocupações, favelas, loteamentos clandestinos que atestam esta realidade. As palavras de Edésio Fernandes refletem bem esta realidade:
“São muitas as formas de irregularidade: favelas, ocupações, loteamentos clandestinos ou irregulares e cortiços, que se configuram de maneiras distintas no país. Até mesmo loteamentos e conjuntos promovidos pelo Estado fazem parte desse vasto universo de irregularidade. As especificidades se referem às formas de aquisição da posse ou da propriedade e aos distintos processos de consolidação dos assentamentos, freqüentemente espontâneos e informais, já que não foram fruto de uma intervenção planejada pelo Estado nem foram formalmente propostos por empreendedores privados no interior do marco jurídico e urbanístico vigente”.[37]
Importante salientar que as áreas mais atingidas pelas ocupações são aquelas menos indicadas, seguindo os dados trazidos por Fernandes, leia-se:
“Áreas loteadas e ainda não ocupadas. Muitas vezes se desconhece o traçado oficial do loteamento, ocupando-se áreas destinadas para ruas, áreas verdes e equipamentos comunitários. Também é comum as casas serem construídas em desconformidade com a divisão dos lotes. Áreas alagadas. Muitas cidades no Brasil foram tomadas às águas. É comum o aterramento de grandes áreas de manguezal ou charco. Geralmente essas áreas são terrenos de marinha ou acrescidos de marinha (terrenos da União, em faixas litorâneas), aforados ou não a particulares. Áreas de preservação ambiental. As áreas mais atingidas são as áreas de mananciais e as margens de rios e canais, mas existem inúmeras ocupações em serras, restingas, dunas e mangues. Áreas de risco. A baixa oferta de lotes e casas para os pobres faz com que ocorram ocupações em terrenos de altas declividades, sob redes de alta tensão, ou nas faixas de domínio de rodovias, gasodutos e troncos de distribuição de água ou coleta de esgotos”.[38]
Na falta de políticas que se proponham a dar conta desta realidade, os municípios tem enfrentado o problema do desenvolvimento urbano informal e daí decorrendo várias dificuldades.
A ausência de políticas habitacionais que favoreçam à população de baixa renda teve como maior consequência as ocupações urbanas e rurais. Ocorre que estas ocupações se dão nas áreas mais frágeis e locais inadequados ao meio ambiente. O poder público parece não se importar com tais situações, conforme as palavras de Fernandes:
“É um modelo de sociedade que não consegue prover condições mínimas de habitação e convive com as soluções improvisadas da população desde que estejam afastadas das áreas mais visíveis ou valorizadas”.[39]
Neste sentido, fica evidente o conflito entre posse e propriedade, visto que, do ponto de vista jurídico, as populações situadas nestas áreas não tem nenhuma segurança de sua posse, pois o ordenamento apenas reconhece a propriedade como um direito. Neste mesmo contexto, seguem os ensinamentos de Fernandes:
“Posse e registro: Trata-se da segurança da permanência da população nas áreas ocupadas. Isso fica normalmente associado à propriedade, e a propriedade à sua escrituração. Refere-se a um tema social, que é a segurança da posse, mas, do ponto de vista da regularidade urbanística, a regularidade registrária só entra na questão porque toda a ordem urbanística tem início na comprovação da regularidade da propriedade para dar início aos procedimentos e aprovação de qualquer parcelamento ou loteamento é necessário regularizar a propriedade”.[40]
Sendo assim, seria mister avaliar a questão da regularização das áreas urbanas ocupadas como forma de produzir um impacto efetivo sobre a pobreza social.
Tal realidade embasa os movimentos populares a ocuparem as áreas que não cumprem sua função social. Tais atos são utilizados como estratégia política para pressionar os governos locais a regularizar estas ocupações e ainda estão amparados por lei, conforme reza o texto constitucional em seu artigo 184.
“Art. 184. Compete à União desapropriar por interesse social, para fins de reforma agrária, o imóvel rural que não esteja cumprindo sua função social, mediante prévia e justa indenização em títulos da dívida agrária, com cláusula de preservação do valor real, resgatáveis no prazo de até vinte anos, a partir do segundo ano de sua emissão, e cuja utilização será definida em lei”.[41]
Destarte, os movimentos sociais baseiam-se na função social da propriedade, que consta do art.5º XXIII da CF, o qual complementa o artigo 184 do mesmo texto e que parece mais afinado com os preceitos constitucionais do que a mera proteção da propriedade.
No tocante à posse, fundamentação especial dos movimentos sociais quando nas ocupações urbanas ou rurais, vem trazer ao mundo jurídico os conflitos em torno da posse e do domínio, tendo em vista que, aqueles que ocupam e detêm a posse, já estão cumprindo a função social da propriedade, ainda que não possuam o registro de titular do direito.
Sendo assim, é de se observar que nem sempre o ordenamento jurídico de determinado país tem condições de suprir as lacunas e vencer as dicotomias sociais.
3.1. OS MOVIMENTOS SOCIAIS E AS OCUPAÇÕES DE TERRA COMO ESTRATÉGIA DE PRESSIONAR OS GOVERNOS A REALIZAR O RECONHECIMENTO DA FUNÇÃO SOCIAL DA POSSE E DA PROPRIEDADE
O estudo sobre a história dos movimentos sociais é um dos mais relevantes no que diz respeito à função social da posse, contudo, não pretendemos aqui maiores delongas neste sentido, uma vez que o trabalho tem escopo precípuo analisar julgados do Tribunal de Justiça/RS acerca da matéria referida.
Entretanto, após o estudo sobre os institutos da posse, propriedade e a função social de ambas, no sentido mais histórico e conceitual, é natural que tragamos a teoria dos movimentos sociais para exemplificar sua aplicação nos casos concretos que este trabalho pretende estudar, quais sejam, a comparação dos fundamentos utilizados pelo TJ/RS nos casos de esbulho possessório frente aos movimentos sociais.
As invasões de terras realizadas pelos movimentos sociais, em tese, estão classificadas como esbulho violento, posto a frequência de embates físicos entre os ocupantes ao adentrar às fazendas que não cumprem sua função social, ou seja, quebrando cercas, despojando objetos que dificultam a entrada nos locais e, ainda não raro, conflitos com as forças policiais.
Observe-se que não se pretende analisar o esbulho enquanto crime, mas sim analisar a função social da posse e da propriedade enquanto fundamento justificador dessas condutas.
A ação possessória pretende investigar quem tem a melhor posse para que se confira o direito àquele que melhor merecer. Nas ocupações realizadas pelos movimentos sociais, a luta pela terra remonta os tempos da colonização, sendo impossível dissociá-la do monopólio das terras neste período.
O mais importante dos argumentos utilizados pelos movimentos sociais quando se utilizam de estratégias de ocupações para pressionar os governos a reconhecer a função social da posse e da propriedade é, sem dúvida, o princípio estruturante do ordenamento, qual seja, a dignidade da pessoa humana.
Nesta senda, os ensinamentos do eminente Ministro do STF Luiz Edson Fachin:
“A iniciativa econômica privada e as situações jurídicas patrimoniais, refletindo uma nova perspectiva, atentam para valores não-patrimoniais, ou seja, para a dignidade da pessoa humana, sua personalidade, para os direitos sociais e para a justiça distributiva.”[42]
E ainda, neste mesmo sentido, salienta:
“A justiça social passa ser o princípio estruturante da atividade econômica inserta no artigo 170 da Constituição. É, na realidade, a adoção expressa de um novo credo em matéria constitucional, em que o paradigma adotado ultrapassa os sistemas das liberdades meramente formais desaguando nos direitos sociais econômicos. E esta autêntica mudança social e econômica projeta-se intensamente na própria estrutura contratual e no tráfico jurídico. Neste diapasão de exposições, a doutrina nacional, sempre fecunda em temas tão relevantes quanto atuais, acompanha toda essa dinâmica evolução imposta pelos cânones constitucionais. Destarte, a Constituição garantista das liberdades formais converte-se na constituição dirigente para a promoção da justiça social.”[43]
O Direito não mais está colocado como protetor da forma jurídica da propriedade, mas sim, passa a ter um papel de protetor e garantidor da justiça social para qual finalidade, em verdade, deve estar voltado o Direito.
Os movimentos sociais, por consequência, objetivam produzir uma gama de fatos sociais – as ocupações – que remontem as relações entre sujeito e objeto, quebrando a lógica de que o indivíduo é um fim em si mesmo nestas relações.
Valendo-se das palavras de Fachin sobre o assunto, observemos a crítica:
“Ser sujeito, na lógica moderna, nada mais é do que ser capaz de possuir, prescindindo-se de relações pessoais de dependência. Ao mesmo tempo que se aniquila o sujeito, chega-se ao máximo do individualismo.”[44]
Continuando na mesma reflexão, salienta Fachin:
“A partir da noção de sistema fundada na propriedade, o homem pode passar a ser um lugar vazio, em que é suprimida a capacidade criativa originária do indivíduo criativo: o homem só tem conteúdo enquanto enquadrado nos papeis determinados pelo sistema.”[45]
Neste sentido, os movimentos sociais estão por andar lado a lado com as novas interpretações do ordenamento, ainda que se utilizem de ferramentas consideradas problemáticas e não bem resolvidas para o ordenamento jurídico, tendo em vista que o mesmo parece estar construindo a passos mansos a sua adaptação às interpretações da lei à luz de princípios constitucionais tão fundamentais.
3.2. ANÁLISE DA FUNDAMENTAÇÃO DOS JULGADOS DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO GRANDE DO SUL EM CASOS DE AÇÕES POSSESSÓRIAS CONTRA OS MOVIMENTOS SOCIAS.
Para iniciar a análise dos fundamentos dos julgados do Tribunal de Justiça em casos de esbulho possessório faz-se necessário salientar a pretensão deste feito. O presente trabalho pretende demonstrar que das decisões proferidas contra os movimentos sociais nem chega a ser analisado o princípio da função social da propriedade, mas sim, apenas o instituto da propriedade privada em si.
Para estas decisões, a questão do princípio da função social da propriedade parece não estar suficientemente previsto em lei, tendo em vista que, a funcionalização trazida por uma interpretação constitucional parece vencida pelo formalismo do instituto do direito civil, ou seja, a propriedade considerada em si mesma.
Foram diversos os casos pesquisados durante o presente trabalho. Na pesquisa pela palavra MST[46], 28 casos estão publicados de 1991 a 2015. Já quando pesquisado sobre a função social da propriedade, os julgados mais recorrentes são de usucapião, ou seja, não é corriqueiro este fundamento nas ações possessórias contra os movimentos sociais. Quando pesquisado sobre esbulho possessório, surgem diversos julgados de naturezas distintas, tais como, não atendimentos aos requisitos de comprovação de posse anterior; afastamento de lar; litigância de má-fé; dentre outros.
Quase todos os casos julgados contra os movimentos sociais são desfavoráveis a estes, contudo, dois casos em específico nos chamam a atenção, pois, curiosamente, nestes casos foram reconhecidos os direitos fundamentais em detrimento dos direitos patrimoniais.
3.2.1. DECISÃO PROFERIDA PELO TRIBUNAL DE JUSTIÇA. CASO DA FAZENDA PRIMAVERA. PREVALENCIA DA FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE
O primeiro caso estudado foi escolhido pela sua decisão ter sido favorável às famílias que ocuparam uma área de terra que não cumpria sua função social, ressalta-se que este caso é um caso privilegiado dentre tantos outros.
Existem acórdãos que não privilegiam a função social da propriedade quando confrontados com direitos patrimoniais quase que retirando da função social da propriedade o sentido axiológico que a Constituição Federal lhe conferiu.
Entretanto, existem casos em que estes valores são reconhecidos pelo Tribunal de Justiça, como é o exemplo do caso da Fazenda Primavera.
Trata-se de Agravo de Instrumento interposto por José Cenci e outros, contra decisão de reintegração de posse que tem por autora Merlin S/A Indústria e Comércio de óleos Vegetais, oriunda da Comarca de São Luiz Gonzaga/RS.
“Ementa: AGRAVO DE INSTRUMENTO. DECISAO ATACADA: LIMINAR QUE CONCEDEU A REINTEGRACAO DE POSSE DA EMPRESA ARRENDATARIA EM DETRIMENTO DOS "SEM TERRA". LIMINAR DEFERIDA EM PRIMEIRO GRAU SUSPENSA ATRAVES DE DESPACHO PROFERIDO NOS AUTOS DO AGRAVO, PELO DESEMBARGADOR DE PLANTAO. COMPETENCIA DA JUSTICA ESTADUAL. RECURSO CONHECIDO, MESMO QUE DESCUMPRINDO O DISPOSTO NO ART-526 CPC, FACE DISSIDIO JURISPRUDENCIAL A RESPEITO E PORQUE DEMANDA VERSA DIREITOS FUNDAMENTAIS. GARANTIA A BENS FUNDAMENTAIS COM MINIMO SOCIAL. PREVALENCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS DAS 600 FAMILIAS ACAMPADAS EM DETRIMENTO DO DIREITO PURAMENTE PATRIMONIAL DE UMA EMPRESA. PROPRIEDADE: GARANTIA DE AGASALHO, CASA E REFUGIO DO CIDADAO. INOBSTANTE SER PRODUTIVA A AREA, NAO CUMPRE ELA SUA FUNCAO SOCIAL, CIRCUNSTANCIA ESTA DEMONSTRADA PELOS DEBITOS FISCAIS QUE A EMPRESA PROPRIETARIA TEM PERANTE A UNIAO. IMOVEL PENHORADO AO INSS. CONSIDERACOES SOBRE OS CONFLITOS SOCIAIS E O JUDICIARIO. DOUTRINA LOCAL E ESTRANGEIRA. CONHECIDO, POR MAIORIA; REJEITADA A PRELIMINAR DE INCOMPETENCIA, A UNANIMIDADE; PROVERAM O AGRAVOPOR MAIORIA.” (Agravo de Instrumento Nº 598360402, Décima Nona Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Elba Aparecida Nicolli Bastos, Julgado em 06/10/1998).
No presente caso, Merlin S.A. – Industria de Óleos Vegetais celebrou contrato de arrendamento de terras com Agropecuária Primavera na data de 14.05.1997. O Movimento sem-terra, MST, neste mesmo tempo, estava acampado às margens da BR-285, próximo à Fazenda Primavera.
Na data de 04 de setembro de 1998, os integrantes do movimento procederam à ocupação da Fazenda Primavera, o que ensejou a Merlin Industria de Óleos Vegetais ingressar com ação de Reintegração de Posse com pedido liminar contra o movimento sem-terra.
A presente demanda versa sobre conflito de direitos, ou seja, direitos existenciais e direitos de propriedade. Tal tema merece as seguintes considerações:
“Quando se trata de falar de posse ou propriedade imóvel, também aqui o direito, para ser reconhecido como direito, tem que atender aos três requisitos: fato, valor e norma. A questão axiológica (o valor no direito de propriedade) não é menos tormentosa. Contudo, por incrível que possa parecer, a opção valorativa é absolutamente clara. Quando se trata do direito de propriedade, entre defender o valor individual e defender o valor social, o direito brasileiro fez uma opção clara: defendeu o valor social. É por isso que a Constituição Federal, artigo 5º, no inciso XXII, garante o direito de propriedade, mas no inciso em seguida, o XXIII diz que "a propriedade atenderá a sua função social". Também para posse a boa doutrina costuma estender o requisito da função social. Vale a pena notar ainda que o parágrafo primeiro do mesmo artigo da Constituição é claro quando diz: "As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata". Ou seja, não precisamos de outra lei para dizer o que é função social. O que está na Constituição vale e deve ser aplicado. Assim, é lícito interpretar dos termos da Constituição que, o direito de posse e propriedade existem e devem ser garantidos e protegidos. Contudo, somente quando é atendida a função social merecerá a garantia e a proteção.”[47]
Nesta senda, o relatório da presente ação nos traz vários ensinamentos fundamentais quando observamos os elementos que seguem. Vejamos:
“A Senhora Presidenta e Relatora (Desembargadora Elba Aparecida Nicolli Bastos): Merlin S/A Indústria e Comércio de Óleos Vegetais, em 14.5.1997, celebrou com Agropecuária Primavera Ltda. Escritura Pública de Arrendamento de Imóveis Rurais, registrada no livro de Contratos do Tabelionato de Bossoroca, pelo prazo de 10 anos.
Em face da iminência de ver a propriedade invadida pelos integrantes do Movimento dos Sem Terra, acampados às margens da Rodovia BR 285, em frente da Agropecuária Primavera ou Fazenda Primavera, ajuizou Ação de Manutenção de Posse, cuja liminar foi indeferida.
Em 4.9.98, os integrantes do Movimento dos Sem Terra invadiram as dependências da Agropecuária Primavera e expulsaram os funcionários da fazenda, o que ensejou ingressasse a Merlin Indústria e Comércio de Óleos Vegetais S/A com Ação de Reintegração de Posse com pedido liminar contra o Movimento dos Sem Terra, alegando, em síntese, que:
a) na área arrendada com a Agropecuária Primavera estão edificadas as benfeitorias elencadas às fls.;
b) a área arrendada destina-se à produção agrícola de culturas temporárias, o que não pode ser alterado;
c) encontram-se estocados aproximadamente 20 mil sacos de soja, 1.200 sacos de soja semente, 60 toneladas de adubo, defensivos agrícolas, óleo diesel;
d) há exploração da pecuária (80 bovinos);
e) o MST apossou-se do caminhão da fazenda e transporta invasores de outros locais;
f) os escritórios foram invadidos e houve destruição de documentos e equipamentos da fazenda;
g) estão preenchidos os requisitos legais elencados no artigo 927 do CPC;”
Todos os fatos trazidos pela Merlin Indústria de Óleos Vegetais discriminam as possíveis condutas praticadas pelos integrantes do Movimento dos Sem-Terra, contudo, nesta exposição de fatos, impera a valorização puramente material de possíveis danos contra o patrimônio. Segue-se com posicionamento do Ministério Público:
“O Ministério Público manifestou-se pela concessão da liminar requerida; a tentativa de conciliação resultou inexitosa; os representantes do MST foram citados, provavelmente, em audiência, e, quanto aos demais integrantes, determinou-se a citação editalícia.
Conclusos para decisão, entendeu a MM Magistrada em conceder "a liminar de reintegração de posse para determinar que a empresa Merlin Indústria e Comércio de Óleos Vegetais S/A seja reintegrada na posse do imóvel esbulhado", determinando que os integrantes do MST procedessem à desocupação voluntária da Fazenda Primavera no prazo de 5 dias, a contar de 11.9.98, data do deferimento da medida”.
Estando deferida a liminar de reintegração de posse pelo juízo de primeiro grau, o movimento sem-terra entendeu que a única solução para salvaguardar os direitos fundamentais das famílias que ocupantes da área seria agravar da decisão proferida nos autos, o que se observa a seguir:
“Inconformado com a decisão proferida nos autos da Reintegração de Posse, interpôs, José Cenci e outros, Agravo de Instrumento com pedido de efeito suspensivo e concessão de assistência judiciária gratuita, citando, em síntese, que:
a) o recurso é cabível e tempestivo;
b) as peças obrigatórias estão juntadas à inicial;
c) a área correspondente à fração de terras de campos e matos (434ha91ca) localizada no lugar denominado Pessegueiro, no Município de São Luiz Gonzaga é "coisa litigiosa, tanto por iniciativa do titular da propriedade, que pretende anular o arrendamento feito, quanto por credor que já penhorou parte do imóvel e tem até data aprazada para leilão";
d) há interesse tanto do INCRA como do INSS na gleba e, portanto, deve-se questionar a competência da Justiça Federal para processar e julgar a ação;
e) devem ser consideradas em feitos desta natureza, as disposições constitucionais e a Resolução n. 2.200-A da ONU a que aderiu a República Federativa do Brasil;
f) as "ocupações" ou "invasões" de terra não podem ser enquadradas como esbulho possessório pois configuram-se conflito entre direitos que não são prestados "nem pelo Estado, nem pelo livre mercado".
O agravo, recebido pelo eminente Desembargador Rui Portanova, recebeu o deferimento do pedido de suspensão da execução de despejo dos ocupantes da Fazenda Primavera. Neste momento processual, o direito admite considerar a complexidade da situação do caso concreto:
“Em 17 de setembro de 1998, no Plantão, o eminente Desembargador Rui Portanova recebeu o agravo de instrumento, deferindo o pedido liminar para suspender a execução do despejo até decisão final do recurso.
O procurador da agravada foi devidamente intimado e, inconformado com a decisão supra, interpôs Agravo Regimental – não conhecido, em face do que dispõe os artigos 365, III e 385, ambos do CPC –, e ofereceu contra-razões, refutando as pretensões do agravante e requerendo a reforma da liminar deferida.
Vieram as informações da Magistrada; manifestou-se o Ministério Público pelo não provimento do recurso e, a pedido desta Relatora, foi encaminhado ofício dando conta do não cumprimento do artigo 526, do CPC.
Relatei.”[48]
Já em relação ao voto, houve incontrovertidos pontos de vista entre os ilustres desembargadores, o que se verifica a seguir:
“A Senhora Presidenta e Relatora (Desembargadora Elba Aparecida Nicolli Bastos): José Cenci e outros agravaram da decisão da MM Juíza de Direito da 2ª Vara Cível da Comarca de São Luiz Gonzaga que deferiu liminar de reintegração de posse, ajuizada por Merlin S/A Indústria e Comércio, na sequência de ação anterior de manutenção de posse, esta, com liminar indeferida no mês de julho/98.
1. Em regime de urgência neste Tribunal de Justiça, o eminente Desembargador Plantonista Rui Portanova suspendeu a liminar do Juízo de 1º grau, até decisão final do agravo.
2. A agravada Merlin S/A Indústria e Comércio ingressou com agravo regimental, na forma do artigo 233, RITJRGS, contra a decisão que, nesta Corte, suspendeu a liminar.
3. Inadmitido o Agravo Regimental, inicialmente por ausência de autenticação nas peças principais, quais sejam, decisão de primeiro grau e do Desembargador Rui Portanova, ônus do impetrante.
4. O agravo contra a decisão de primeiro grau.
Não conheço o agravo interposto por João Cenci e outros, pelos seguintes motivos:
4.1. Os agravantes não cumpriram com a disposição do artigo 526, do CPC, conforme noticia o Ofício n. 1.266/98, expedido pela MM Juíza da 2ª Vara Cível de São Luiz Gonzaga, a pedido desta Relatora.
Não informaram ao Juízo de origem a impetração do recurso de agravo, nem da relação de documentos que o instruíram. Com isto, deixaram de cumprir o disposto no artigo 526, do CPC.
A finalidade do dispositivo é permitir o Juízo de retratação do Magistrado, ínsita ao recurso de agravo.
Deve cumprir a disposição no prazo de três dias, sob pena de preclusão. Não é suprido o requisito, pedido de informações do Tribunal e comunicação do deferimento liminar ou não.”
Seguiu-se extenso debate sobre matéria de direito a respeito da exigência ou não do cumprimento do requisito exposto do art.526 do CPC, contudo, vejamos os entendimentos acerca do caso concreto:
“Embora a doutrina e a jurisprudência mantenham divergências sobre a obrigatoriedade do artigo 526, do CPC, esta Câmara tem decidido em outros agravos que o descumprimento da disposição do artigo 526, do CPC, tem como consequência o não conhecimento do agravo.
Assim se posicionou a partir da doutrina do Ministro Sálvio F. Teixeira, referida em acórdão do desembargador Guinther Spode que peço vênia para transcrever:
"Dois são os objetivos da norma: proporcionar ao juiz o juízo de retratação e dar ciência à parte contrária do teor do agravo… ‘.Descumprida esta norma, não se conhece do agravo" (Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira, em CPC anotado, 6. ed. atual., Saraiva, p. 360).
Nosso Tribunal de Justiça, através de suas diversas Câmaras Cíveis, vem decidindo nesta mesma linha, valendo salientar: AI n. 197.242.423 (3ª Câmara); AI ns. 197.281.405 e 198.036.998 (4ª Câmara); AI n. 597.027.564 (5ª Câmara); e AI ns. 596.220.814 e 596.183.335 (6ª Câmara).
Aludidas decisões destacam o prejuízo que decorre da omissão porque não enseja ao juízo de origem a possibilidade de retratação (uma das características fundamentais do agravo), além de não se oportunizar ao agravado ciência das razões em que vazada a inconformidade, dificultando-lhe a resposta.
Acrescento ainda a dificuldade que o juiz terá para prestar informações, especialmente quando há nos autos mais de uma decisão e sequer o Magistrado sabe contra qual delas foi interposto o agravo.”
Desde que veio à luz o caso da fazenda primavera, a função do direito foi foco de questionamento, ou seja, mais do que a incidência da norma no caso concreto, o simples fato de coexistir direitos patrimoniais versus direitos fundamentais merece uma leitura diferenciada em detrimento à regra geral. Ocorre que, este entendimento não é pacificado, leia-se:
“José Carlos Barbosa Moreira e grande parte da jurisprudência tem entendido que tem-se sustentado que o descumprimento da norma pelo agravante impede que o tribunal conheça do agravo, rendendo ensejo, inclusive, ao trancamento da respectiva tramitação pelo relator (art. 557, caput) Comentários ao Código de Processo Civil, v. 5, p. 500."
Ainda permito-me transcrever as ementas dos acórdãos ns. 197.242.423, 197.281.405 e 198.036.998:
"Ação de reintegração de posse. Interposição do recurso de agravo. Descumprimento do disposto no artigo 526 do CPC. Não se conhece de recurso por ausência de cumprimento de pressuposto legal obrigatório referente ao juízo de admissibilidade recursal. Portanto, houve infringência ao disposto no artigo 526 do CPC. Agravo não conhecido. Voto vencido".
"Agravo de instrumento. Descumprimento do artigo 526 do CPC. A exigência do artigo 526 do CPC trata-se de pressuposto processual, cujo desatendimento acarreta o não conhecimento do recurso. Agravo não conhecido".
"Agravo de instrumento. Descumprimento dos artigos 526 e 511 c/c 525, § 1º, todos do CPC. A exigência do artigo 526 do CPC trata-se de pressuposto processual, cujo desatendimento acarreta o não conhecimento do recurso. Conforme artigos 511 e 525, § 1º, do CPC, com redação que lhe deu a Lei
n. 8.950/94, o preparo deve ser comprovado quando da interposição do agravo .O fato de ter sido interposto em serviço de plantão, quando não aberto estabelecimento bancário não é motivo justificado para possibilitar o pagamento do preparo posteriormente, mesmo que no mesmo dia. Agravo não conhecido."
Com estas considerações, não tendo os agravantes cumprido com as disposições do artigo 526, CPC, não conheço do agravo, ficando restabelecida a situação anterior à sua interpelação.
Ineficaz a suspensão antes deferida.
É como voto.”[49]
Por conseguinte, o voto do desembargador Guinther Spode refere-se ao acolhimento do recurso, muito embora tenham decidido de forma contrária em outra oportunidade sobre mesma matéria, por se tratar de direitos fundamentais do homem, vejamos:
“A Eminente Relatora, reproduz em seu voto parte de um acórdão de nossa Câmara em recurso de que fui o Relator. Naquela oportunidade entendi de não conhecer do Agravo, porque descumprida a disposição do artigo 526, do CPC.
Peço vênia à Eminente Relatora, porque hoje conhecerei do Recurso mesmo que os agravantes não tenham juntado aos autos do processo cópia do agravo interposto. Justifico porque.
O feito que deu origem à decisão agravada, sem dúvida, versa sobre direitos fundamentais do homem, tratando-se, portanto, de demanda incomum.
Diante desta singularidade, penso não ser possível mantermo-nos presos às amarras da legislação, especialmente da processual que é apenas veículo para se chegar à melhor decisão. Por melhor decisão, deve-se entender, é óbvio, a mais justa. Para se chegar ao justo, nem sempre podemos nos socorrer da legislação específica porque, quando estamos diante de princípios (ainda mais quando universais) de direito, se inverte aquela regra de hermenêutica, segundo a qual a lei especial derroga a geral”.
Neste ponto, concebe-se ao caso uma leitura de direito levada a considerar o valor maior ao conjunto de princípios justificadores do bem comum, ou seja, o pilar onde se ampara o nascimento do próprio direito:
“Ora, se é inquestionável do ponto de vista hermenêutico, que lei especial não derroga lei principiológica, princípios fundamentais de direito, reconhecidos universalmente por óbvio, se sobrepõem a qualquer norma especial de direito interno.
Por esta razão e ainda por outras que enumerei ao analisar o mérito da matéria objeto do presente recurso, que conheço do agravo.” [50]
O desembargador Carlos Rafael dos Santos Jr. acompanha o voto do desembargador Guinther no sentido de acolhimento do recurso, leia-se:
“O Desembargador Carlos Rafael dos Santos Jr.: Eminentes colegas, também vou conhecer do agravo, embora tenhamos votado em sentido diverso numa sessão realizada há poucos dias.
No início do debate sobre a importância, validade e consequência do descumprimento do artigo 526 do CPC, já me havia inclinado por não lhe emprestar a importância que levasse a não se conhecer do recurso quando violado este dispositivo.
Todavia, nesse julgamento citado no voto da Eminente Relatora, entendi, com a maioria que já se anunciava, que seria o caso, até por política judicial para proporcionar ao recurso o juízo de retratação no 1º grau, de também não conhecer do recurso.
Até para evitar tautologia, deixarei de reproduzir as palavras do eminente Desembargador Guinther, mas me parece que, no caso presente, há um interesse
maior. Fiz um levantamento da jurisprudência da nossa Corte e vejo que a maioria está se inclinando por conhecer dos recursos, mesmo que desatendido o dispositivo do artigo 526 do CPC.
Por isso, também conheço do recurso.” [51]
Os votos dos julgadores foram no sentido de conhecer o recurso, uma vez que se tratam de direitos fundamentais do homem, de direitos existenciais, de direitos cujo valor está privilegiado em relação ao instituto de propriedade puramente considerado.
Ainda dentro do voto anterior, cabe ressaltar a sua originalidade:
“Mesmo que já definida minha posição, cabem ainda algumas considerações que, propositadamente deixei para este momento, exatamente para evidenciar não serem estes os fundamentos da decisão, mas aqueles já expedidos.
Segundo Zaffaroni, (havido como o maior, ou pelo menos dos maiores juristas modernos ainda vivo), na sua obra Poder judiciário, crise, acertos e desacertos, Revista dos Tribunais, 1995, traduzido para o português por Juarez Tavares:
"… é certo que o Estado é mais complexo do que outrora e, que as relações jurídicas se multiplicaram". (obra citada, p. 23).
Segue o renomado jurista:
"O limite entre o político e o judicial não pode ser definido formalmente no Estado moderno. A justiça moderna não pode ser "a política" nesse sentido, e hoje mais do que nunca deve-se reconhecer que o poder judiciário é "governo" (obra citada, p. 24).”
Segue o voto com inúmeras citações que são uma verdadeira aula de direito dando atenção aos conceitos estruturais da sociedade, sempre atuais, bem como alude às transformações sociais. Nesta perspectiva, o direito não pode ser considerado como algo simples e puro impedido de se relacionar com os fatos sociais. No que segue, os argumentos do voto:
“Depois de referir que a realidade atual ampliou sobremaneira o espectro colocado sob o crivo judicial, Zaffaroni prossegue, com invulgar sapiência:
"Não obstante essas demandas, reconhecidas universalmente e complicadas mais pela nossa problemática periférica do poder mundial, as estruturas judiciárias ampliaram-se, mas não foram realizadas as transformações qualitativas necessárias para adaptá-las às novas formas de conflito que devem enfrentar. Como é natural, a função manifesta – pouco explícita – é superada pelas demandas, e a distância destas para com as funções latentes ou reais torna-se paradoxal." (…)
É a democratização da nossa sociedade, a liberdade de informação e de crítica que potencializa a criatividade e a expressão do pensamento, como também a aceleração das comunicações, o que precipita o resultado de que o judiciário, que antes era tema de minorias, se instale hoje na opinião pública de nossos países". (op. cit., p. 25).
Os ensinamentos do mestre continuam:
"3. Dificuldade de análise
A análise dos problemas judiciários é dificultada na medida em que se faz pública, com a consequente incidência de fatores eleitorais. Mas isto constitui também um interessante desafio, pois, definitivamente, democratiza o problema.
Inobstante, não se pode atribuir a culpa a outros setores, sem levar em conta de que, em boa parte, se deveria reprovar a omissão dos teóricos a respeito disso. Salvo exceções, não se pode falar de um verdadeiro desenvolvimento teórico do tema na América Latina. Têm sido realizados estudos sociológicos, mas não há tradição de uma ‘sociologia judicial’ na região. Contudo, o que consideramos mais grave é que nem sequer poderemos falar de uma tradição de ‘teoria política da jurisdição’, se entendemos por isso: a) o esclarecimento da função manifesta que se lhe pretende atribuir; b) a análise da função real que exercita e c) a necessária crítica à estrutura institucional para otimizá-la com relação às suas funções manifestas (neste último incluímos especialmente a forma de direção ou governo, a seleção dos juízes e a distribuição orgânica)". (p. 25-26)”.
Relevante a observações da obra de Norberto Bobbio quando cita Kelsen:
“(…) é de conhecimento geral de umas das afirmações recorrentes de Kelsen – a ponto de se tornar típica – é que a doutrina pura do direito não considera o objetivo perseguido e alcançado pelo ordenamento jurídico, mas considera apenas e tão somente o ordenamento jurídico; e considera este ordenamento na autonomia de sua estrutura, e não em relação a este seu objetivo.”[52]
Segue o voto:
“O certo é que nunca se estabeleceu um verdadeiro debate sobre o judiciário e seu modelo." (op. cit., p. 28).
O mais grave, diante de tudo isto é que os arautos da reclamada "reforma" do judiciário, entre eles incluídos até mesmo altos mandatários (ou ex-mandatários) do próprio poder, têm apresentado propostas superficiais, para não dizer ridículas e simplórias, todas elas sem a menor possibilidade de qualificá-lo. Ao contrário, são proposições que diminuem a independência do poder, num indicativo claro de que se caminha para a sua redução a mero apêndice do Executivo. O mais triste é o fato de que tais "reformadores" contam com o apoio de gente nossa, frequentemente homenageada pela própria classe, como beneméritos do poder e da magistratura, quando em verdade estão fazendo o "jogo" dos poderosos, bem ao ensejo da política entreguista proposta.
O que está a perigo portanto, é o próprio Estado Democrático de Direito, pois sem Judiciário independente, inexiste democracia.
Nesta perversa linha ideológica, que visa diminuir a importância do Judiciário, porque ele, com suas decisões contraria o interesse dos poderosos, quando decide em favor da cidadania, optando pela defesa dos direitos fundamentais, em detrimento do aumento das fortunas patrimoniais, têm sido jogada sobre os ombros da justiça questões que não são de sua alçada resolver.
Boa parte de graves conflitos sociais, entre eles o êxodo rural, a reforma agrária, que não se realiza, que deveriam ser resolvidos nas outras duas esferas do Poder Público, especialmente no âmbito do Executivo, têm sua solução deliberadamente protelada por opção ideológica e política, eis que a maioria dos recursos não são aplicados na área social.
Ainda, conforme ensinamentos do jurista Zaffaroni:
"Nesses casos, o deslocamento do conflito está motivado por uma transferência da responsabilidade à agência judiciária, à qual, por sua maior vulnerabilidade (e menor poder), é mais fácil atribuir inoperância, ineficácia, negligência, corrupção etc.
Os operadores das agências políticas estão melhor treinados do que os juízes, no que diz respeito à manipulação da opinião pública. Isto lhes permite repassar conflitos, gerando falsas expectativas de solução no âmbito judiciário. Os juízes, de sua parte, frequentemente satisfazem ao seu narcisismo na medida em que, por lhes serem transferidos graves conflitos sociais, se sentem projetados ao centro da atenção pública. Deste modo, não percebem que estão carentes de atuais expectativas, as quais em seguida gerarão frustrações.
Diante da frustração se produz a deterioração da imagem pública do poder judiciário, o que legitima qualquer sacrifício das garantias e dos direitos.
No tocante ao aspecto referido acima se percebe que se o Estado ocupa o monopólio de produção jurídica deve este mesmo Estado empenhar-se em manter sua estrutura adequada, a fim de que se possa dar a resposta mais próxima às transformações da sociedade. O direito quanto garantidor não pode estar preso a comportamento de produção e status. Violação de direitos e de garantias fundamentais, sob hipótese alguma, deveriam ocorrer. Seguindo o voto:
“(…) o artificial deslocamento dos conflitos sem solução serve não apenas para elidir responsabilidade e para afastar princípios que jazem nas mais elementares garantias republicanas, como também termina destruindo a independência judiciária, porque, depois do descrédito, a intervenção dos poderes partidários no judiciário provoca menor resistência pública ou até é recebida com o beneplácito da opinião pública. Um claro exemplo desta manobra foi o caso peruano." (op. cit., p. 33).
No Brasil, ao que parece, a manobra recentemente também tem sido neste sentido. Esbarrará, contudo, em roucas e impotentes vozes como esta, mas que não silenciará facilmente, mesmo que órfã”.[53]
Nas palavras de Jacques Távora Afonsin, em sua obra “O cesso à terra como conteúdo de direitos humanos fundamentais à alimentação e a moradia”, encontramos uma analise minuciosa desta decisão, tal que passamos a utilizar como marco teórico da análise da referida decisão:
“O agravo de instrumento 598360402, da 19º Câmara Cível do TJ/RS, 06/08/1998, ficou assentado o seguinte: (…)
Liminar que concedeu a reintegração de posse da empresa arrendatária em detrimento dos “sem-terra”. Liminar deferida em primeiro grau suspensa através de despacho proferido nos autos do agravo, pelo desembargador de plantão. Competência da Justiça Estadual. Recurso conhecido, mesmo que descumprido o disposto do artigo 526 do CPC, faz-se dissídio jurisprudencial a respeito e porque a demanda versa direitos fundamentais. Garantia bens fundamentais como mínimo social. Prevalência dos direitos fundamentais das 600 famílias acampadas em detrimento do direito puramente patrimonial de uma empresa. Propriedade: garantia de agasalho, casa e refúgio do cidadão. Inobstante ser produtiva a área, não cumpre ela a sua função social, circunstância esta demonstrada pelos débitos fiscais que a empresa proprietária tem perante a União. Imóvel penhorado ao INSS. Considerações sobre os conflitos sociais e o judiciário. Doutrina local e estrangeira. Conhecido por maioria; rejeitada a preliminar de incompetência, promoveram o agravo, por maioria.” [54]
Para este caso, foi conferido feito suspensivo. Leia-se o texto:
“Como estamos em sede de proteção judicial da posse, temos que, quando o inciso III do artigo 282 do CPC fala em “fundamento jurídico”, na verdade a se referir ao requisito da função social que a Constituição Federal (nos incisos já referidos) (o desembargador referira os incisos XXII e XXIII do artigo 5º da C.F.) traz para possibilitar o exercício do direito de propriedade. Em outras palavras, não basta afirmar a petição inicial como “fundamento jurídico” apenas a propriedade. Pois “jurídico” é o “fundamento” que – de acordo com a Constituição Federal – se assenta também na “função social da propriedade”. Fora disso se estará – indevidamente – sonegando, impedindo, silenciando e afastando a incidência da Constituição Federal no processo judicial. A constituição obriga o juiz, a enfrentar ainda que sem requerimento da parte, o tem pertinente a função social da propriedade.”[55]
Quando do voto do relator, neste momento já em julgamento colegiado, leia-se:
“Em suma, para decidir, ter-se-á, obrigatoriamente de optar entre duas alternativas: 1ª) – o prejuízo patrimonial que a invasão certamente causará (ou até já está causando) à empresa arrendatária das terras ocupadas; 2ª) a ofensa aos direitos fundamentais (ou a negativa do mínimo social) das 600 famílias dos sem-terra que, sendo retirados de lá, literalmente não têm para onde ir. (…) Os doutrinadores afirmam que, havendo necessidade de sacrificar o direito de uma das partes, sacrifica-se o patrimonial, garantindo-se os direitos fundamentais, se a outra opção for esta. Não bastasse a doutrina adotar esta posição bom senso impõe tal direcionamento.”[56]
Ainda no voto do desembargador vogal, ao proferir seu voto, leia-se:
“A Constituição Federal, ao garantir o direito de propriedade e possessório que lhe é inerente, em seu arigo 5º XXII e XXIII, condicionou seu exercício ao atendimento de uma garantia maior, qual seja, a de que este exercício do poder dominial em toda a sua amplitude, fica limitado, ao atendimento de sua função social. Respeitante à terra, mãe provedora de todos nós, já que a extração de nossa subsistência a ela se liga diretamente, deve atender não apenas ao sentido funcional direito, de ser produtiva, senão, também, a um sentido oblíquo, considerando o tempo e o lugar que os fatos se dão, de garantir o abrigo seguro, a casa, a moradia e o sustento do povo, que em exame mais teleológico, é seu verdadeiro senhor.”[57]
Na análise destes votos, observa-se que o acesso à terra claramente pode ser privilegiado frente ao direito puramente de propriedade quando esta propriedade não cumpre sua função social. O titular do direito de propriedade deve cumprir a função social da propriedade, tendo em vista que ela já não é mais compreendida como absoluta.
Ainda nas palavras de Afonsin, aprendemos sua lição:
“Ouve-se, com grade frequência, que a propriedade não é mais um direito absoluto. Tal afirmação costuma preceder, sobretudo, argumentações doutrinárias ou jurisprudenciais que pretendem conferir, contraditoriamente, proteção absoluta à propriedade. Talvez seja o momento de se afirmar o contrário. A propriedade tem algo de sagrado (o que move as montanhas, como quer o poeta), o absoluto da propriedade é a sua função social, que constitui, em síntese, o seu perfil constitucional.”[58]
O autor Augustin Gordilho, em sua obra jurídica que trata de modos de condutas sociais “paralelas”, ao que determina o presente ordenamento jurídico, nos trás um ensinamento importante, qual seja:
“(…) ao menos um dos elementos integrantes da existência de um parasistema (e que implica, por definição, uma contrariedade e um desafio), há de achar-se nas próprias falências do sistema, ao menos falências como as que percebe a comunidade. Poderá sustentar-se, talvez, que não são falências verdadeiras e eu os juristas, por exemplo, consideram magnifica a ordem ali estabelecida; se a comunidade como um todo, porém, não tem a mesma percepção e sente, ao contrário, que o sistema é pouco meritório, então está dada uma das primeiras causas possíveis de aparição de um parasistema, já que nenhum sistema verdadeiramente manda se não tem a sustentação ativa e participativa de toda comunidade: os advogados e juízes, com auxílio da administração e da polícia não bastam para transformar em real e efetivamente vigente, no varejo, um sistema normativo ao qual parte da comunidade não adere verdadeiramente; mais ainda, salvo os catões que sempre existirão nesses âmbitos, muitos advogados, administradores ou juízes, serão também partícipes, em mais de um caso, da aplicação do parasistema, quando as valorações jurídicas básicas da justiça, segurança, boa-fé, razoabilidade, etc, lhes imponham a conclusão de que tal ou qual norma do sistema é, em verdade, desvaliosa”.[59]
Sendo assim, o que se percebe, tanto em áreas rurais, quanto em urbanas, é que, em muitos casos, elas não cumprem sua função social. Não merecendo, quando de sua ocupação pelos movimentos sociais, proteção jurídica da propriedade quanto registro de titularidade, mas sim, a proteção do principio que deve emantar a sua existência, qual seja, a função social.
Destarte, como já foi dito, a ilegalidade de direitos é uma expressão bastante recorrente nas decisões frente aos movimentos sociais quando das ocupações.
O que se pretende destacar aqui é que o direito está em permanente construção, ainda que as normas e princípios já estejam dispostos no ordenamento. No que tange à terra, a interpretação aplicada perpassa ainda por elementos conflitantes.
3.2.2. ANÁLISE DO JULGADO PROFERIDO PELO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO GRANDE DOSUL. CASO FAVORÁVEL AO MOVIMENTO MST. PREVALÊNCIA DA FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE
Seguindo, o julgado agora sob análise foi escolhido para demonstrar, mais uma vez, a prevalência dos direitos fundamentais em detrimento de direitos puramente patrimoniais.
Trata-se de Agravo de Instrumento interposto por PLINIO FORMIGUIERI e VALÉRIA DREYER FORMIGUIERI, contra decisão judicial nos autos da ação de reintegração de posse endereçada contra LOIVO DAL’ AGNOLL e OUTROS que indeferiu a liminar reintegratória, postulada nos termos do artigo 928 do CPC.
“POSSESSÓRIA. ÁREA RURAL. MST. FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE. INVESTIGAÇÃO. POSSIBILIDADE. Função social da propriedade como Direito Fundamental. Construção de nova exegese da norma material e procedimental. Investigação da produtividade e aproveitamento da área em ação possessória. Necessidade. Art. 5°, XXII e XXIII, CF. Lei n°8.629/93. Negaram provimento. Voto vencido
Alegam os agravantes que, na data de 15 de outubro de 2001, tiveram sua propriedade invadida por integrantes do Movimento Sem-Terra. O agravo não teve seu provimento tendo em vista que o juízo entendeu não terem os agravantes demonstrado o atendimento da função social da propriedade.
Muito embora os agravantes tenham juntado certidão de propriedade da área, escritura pública de divisão amigável, bem como os impostos devidamente recolhidos e, alegando que a propriedade era produtiva, ainda assim, não comprovaram a função social da propriedade.
Recebido o recurso e negado efeito suspensivo, os requerentes pleitearam e obtiveram, em regime de plantão, reconsideração do despacho que negou o efeito suspensivo e seu deferimento, todavia, revogado em seguida pelo relator. Após interpor agravo regimental e posteriormente mandado de segurança contra a decisão que revogou a reconsideração da eminente colega cuja liminar foi negada pelo Desembargador José Francisco Pellegrini.
O recurso foi com vistas à Dra. Procuradora de Justiça, que exarou o parecer de fls.251/263, pugnando pelo não provimento do agravo de instrumento. Os agravados Loivo Agnoll, Dilamar de Campos e Airton Tenhago, juntaram as contra-razões de fl. 267/269, pedindo a manutenção da decisão atacada”.[60]
Após o breve relatório da demanda, passados à explanação do voto do relator Desembargador Carlos Rafael dos Santos Junior, no que segue:
“Na discutida decisão, que por cópia veio a estes autos nas fls.68/73, o magistrado assentou a necessidade da demonstração do atendimento, pela propriedade, de sua função social. Viu conflito de direitos patrimoniais e pessoais, e considerou a reduzida parcela da área rural invadida”[61].
Logo em suas primeiras palavras, o relator menciona haver no caso em tela conflito de direitos patrimoniais e pessoais. Muito embora os agravantes aleguem não ser a causa objeto de questionamento sobre a função social daquela propriedade. Vejamos a seguir:
“Todavia, o Juiz, como intérprete da norma jurídica, com a função de dar vida concreta ao preceito abstrato, cabe extrair do direito positivo sua verdadeira concepção teleológica, adequando-o a cada fato concreto que lhe venha a ser submetido. Nessa atividade, muitas vezes, de há de buscar novos rumos, não nos satisfazendo com a interpretação jurídica tradicional. Periodicamente é necessário revisar conceitos, adequando-os aos novos fatos, de nova época, e sob contexto diverso daqueles existentes não apenas ao tempo da criação da norma, mas principalmente quando da fixação da exegese sedimentada”[62].
Nesta perspectiva, retomando os ensinamentos de Norberto Bobbio em sua obra “Da Estrutura à Função”, quando afirma que o jurista torna-se cada vez mais sensível aos fenômenos da sociedade, onde quer que ela se manifeste, no contraste de realidade e normas formais. Por causa disso deve ser muito difícil apreender as tendências de transformação do direito, isto é, quais os reflexos das mudanças sociais sobre as mudanças jurídicas[63].
E o voto segue:
“A respeito da nova concepção da função social da propriedade, pode-se citar, inclusive, autores tradicionais, como Celso Ribeiro Bastos e Ives Gandra Martins, que comentando o inciso XXIII, do artigo 5°, da Constituição Federal/88, lembram que não obstante a garantia do direito de propriedade em si mesmo conste do texto constitucional, este passa a sofrer limitações maiores do que as que havia no regime anterior. Dizem que “Isto, contudo, não significa dizer que o titular da propriedade não possa vir a abusar do seu direito como, de resto, qualquer outro titular de uma relação jurídica. Na medida em que haja o uso degenerado, exclusivamente personalista e egoísta, até mesmo deturpado à luz dos interesses pessoais do próprio possuidor, o direito de propriedade vai expor-se a sanções fundamentalmente de duas ordens: as decorrentes da infringência às normas do poder de polícia, ou então à perda da propriedade na forma da Constituição.” (Comentários à Constituição do Brasil, 1989, São Paulo, Saraiva, v. II, p.125).[64]
No que tange aos argumentos elencados no voto, verifica-se que aludem a uma interpretação estendida ao direito de propriedade trazida pela Constituição Federal de 1988. O texto constitucional procura limitar de certa forma a titularidade de determinada propriedade quando lhe confere algo a mais, a sua função social, ou seja, na medida em que se confere uma função ao titulo de proprietário, o legislador quis lembrar reflexos desta função à sociedade, modificando o conceito de propriedade quando atribuiu valor principiológico a sua existência. Senão vejamos:
“De todo o exposto, a conclusão é única. Não há mais como se vedar, ao Juiz, a investigação acerca da função social da propriedade, quando se vê o Judiciário diante de conflitos agrários como o ora em pauta. Sustentar o contrário, a meu juízo, significa negar vigência ao próprio Texto Maior, submetendo-o a garrote de norma processual que tem por finalidade, exatamente, dar efetividade ao direito material, jamais impedir seu exercício. E isto é violar a lei”[65].
Vê-se nessas explanações a notória interpretação de que a própria aplicação da lei deve merecer consulta aos princípios constantes da Constituição Federal, pois esta é a lei maior da qual decorrem todos os outros direitos. Leia-se a continuidade do voto:
“Com certeza, o tema ainda demandará modificação legislativa no âmbito do processo civil, com a sistematização da investigação judicial da função social da propriedade em cada caso concreto submetido ao Judiciário. Todavia, o Juiz não pode deixar de decidir pela falta de norma infra-constitucional de cunho procedimental. Há de emprestar, às normas processuais, então, caráter amplo, ajustando-as ao novo direito positivo material a fim de não sepultá-lo por eventual atraso legislativo. Assim, a construção de uma nova exegese da norma, necessária à luz de um sistema jurídico aberto e incompleto, “…assume, no seio do sistema, a condição de um de seus pressupostos lógicos, eis que, abolindo a arbitrária dicotomia entre interno e externo, assegura, em face do caso concreto e, principalmente, sem recorrer ao moroso legislativo, sua espontânea e natural modernização.”(Alexandre Pasqualini, Revista da Ajuris, 65, pp.287/288)”[66].
O que se espera dessas decisões quando existirem conflitos entre direitos fundamentais e direitos patrimoniais é que se faça cumprir o reconhecimento da função social da propriedade, não como limitador do direito de propriedade, mas sim, como forma de garantir que seja sua função eja cumprida.
Conforme nos assinala, novamente, Jacques Távora Afonsin:
“Antiga lição de um processualista famoso, como Piero Calamandrei, é dirigida diretamente ao juiz, exatamente em torno do problema da interpretação da lei, em situação análoga à vivida por esse solene precedente do STF, ou seja, aquela em que um ordenamento jurídico que vigorou durante um regime de governo (ditadura por exemplo) passa a ser interpretado sob outro regime (democracia):
O juiz que não se tenha aferrado, de forma irremediável, com o espírito das velhas leis, pode recorrer à interpretação evolutiva, e desta maneira, nas formas elásticas das leis que permaneceram, aparentemente imutáveis, fazer penetrar, através da invocação dos princípios gerais do novo ordenamento, um espírito novo; o interprete que queira realizar o pequeno esforço que implica levantar a cabeça da página de seu Código e olhar por um instante, da sua janela, o que está acontecendo na rua, dá-se conta facilmente que o significado de certos preceitos, cujo texto não foi tocado pelo novo ordenamento, tem na atualidade caráter completamente oposto ao que tinha no regime anterior.” [67]
O voto segue e desdobra-se no não provimento ao agravo intentado pelos agravantes, pois careceu de provas da função social da área objeto da demanda, conforme demonstrado a seguir:
“Com efeito, os autores não demonstraram, através da Declaração de Propriedade própria, o grau de utilização e eficiência de exploração da área objeto da possessória, nos termos e forma previstos na Lei n°8.629/93, única prova legal – e documental por natureza – que autorizaria a imediata reintegração. A prova mencionada, ademais, poderia ter sido obtida pelos proprietários da área muito antes do conflito instalado. O argumento da impossibilidade da vistoria, em razão do alegado esbulho, por força do artigo 2°, § 6°, da norma mencionada, não os socorre, haja vista sabido que os próprios proprietários rurais impedem o Incra de ingressar nas áreas que haveriam de ser vistoriadas.
E não feita esta demonstração imediata, sem qualquer resquício de dúvida se há de aguardar a instrução, quando além de outros meios de prova possíveis, a imediação que o magistrado manterá com a prova trará os esclarecimentos necessários ao desate da questão posta em juízo.
Por tudo isso, nego provimento a este agravo de instrumento, e mantenho a decisão recorrida”[68].
O revisor acompanhou o voto do relator. Já o Desembargador Luis Augusto Coelho Braga teve posicionamento contrário, contudo, foi vencido e por maioria negaram provimento ao recurso.
Para finalizar, entendemos que a propriedade, como é concebida pelo Direito, é considerada legítima e goza de proteção legal. Entretanto, como nos assevera o texto constitucional, assim como posicionamento doutrinário, necessária limitação ao gozo deste direito, qual seja, que ele cumpra sua função social, tendo em vista que o objetivo último de todo o ordenamento deve ser o bem coletivo.
Como bem positivou o constituinte, tal exercício de direito deve ser exercido em consonância com os direitos sociais, não sendo mais a propriedade considerada como absoluta, o que este trabalho procurou demonstrar na análise de julgados bem diferentes em suas fundamentações.
Dessarte, salvo melhor juízo, no conflito entre direitos sociais e direitos puramente patrimoniais, para decidir, deve-se obrigatoriamente atentar para a Constituição Federal, sendo ela a lei maior, de onde derivam os demais direitos.
4. CONCLUSÃO
Este trabalho percorreu um grande estudo acerca da temática da função social da posse e da propriedade, visualizando estes conceitos, inclusive, em julgados do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul.
Teve por objeto as ações de esbulho possessório contra ocupações de movimentos sociais, ou seja, ocupações realizadas por grupos organizados da sociedade em prol de reivindicar a efetivação de direitos e garantias fundamentais elegidos pela Constituição Federal de 1988.
A carta magna, ao recepcionar o princípio da função social da propriedade, traz implícita uma revolução nas normas infraconstitucionais decorrentes desse advento, a exemplo, a releitura necessária do Código Civil à luz da Constituição que lhe é posterior.
Em que pese a propriedade mereça toda proteção de sua titularidade, ela não é mais considerada por si só, ou seja, não emana em seu simples registro o caráter absoluto de propriedade. Sendo assim, como preceito fundamental bem elegido pelo constituinte, a propriedade deve cumprir sua função social.
O presente trabalho procurou demonstrar que as necessidades de moradia não permitem outra forma senão a sua satisfação, pois são elementos essenciais da dignidade de qualquer pessoa. Quando não satisfeitos esses direitos minimamente, justificados por “limites da norma jurídica”, se configura grave violação a direitos que jamais deveriam sofrer qualquer lesão, antes pelo contrário, sua total preservação e proteção por parte do judiciário.
Certo que para a aquisição formal de qualquer propriedade é necessário que se tenha poder aquisitivo para tanto, são as regras do sistema econômico às quais, por óbvio, a terra também está sujeita.
Contudo, em consequência disso, a desigualdade social é uma verdade, muitas vezes mantida às custas de violação de direitos da minoria não possuidora de recursos para a moradia, o que só pelo fato de existir grupos organizados e dispostos a tais ocupações, já demostra a desídia do Estado para com decentes políticas públicas de habitação digna para a população mais carente.
Ao não recepcionar a função social da posse, o ordenamento jurídico suprimiu da propriedade um valor inegável, ou seja, quem possui já está, por isso mesmo, cumprindo a função social. Deste modo, a função social da propriedade merece uma interpretação extensiva quando se trata de ações possessórias, tendo em vista que, os possuidores cumprem a função social quando buscam satisfazer suas necessidades de moradia.
Por certo que esta temática não envolve apenas regramentos de direito privado, mas sim, compreende uma gama de valores constitucionais bem como o interesse do poder legislativo e executivo na produção de leis e políticas públicas que garantam as necessidades sociais.
Esta realidade se torna problematizada pelo direito, o qual tem se debruçado sobre ordenamentos jurídicos, abraçando uma hermenêutica que visa puramente o direito como estrutura e não quanto função.
A função social da propriedade, estudada neste trabalho, procurou observar duas linhas de comportamento do judiciário relativas ao mesmo tema de provocação. A terra vista numa perspectiva de relação entre o titular e a propriedade, defendida por um lado e, por outro lado a terra percebida como bem de produção a seu possuidor.
Em território de direitos humanos versus direitos patrimoniais, a categoria de direitos privados deve ser vencida, quando flagrante conflito entre estes dois institutos, pois os primeiros são infinitamente portadores de maior magnitude (assim quis a carta magna).
Salvo melhor juízo, assim, sempre que o Estado estiver em posição de intervir no espaço terra, em conflitos de direitos, deverá suprir as insuficiências da lei no reconhecimento das garantias fundamentais.
Destarte, os novos paradigmas já estão apontando uma visão de soluções que não somente observam um conjunto de normas frias, mas sim, a dialética. A ditadura do direito estrutural vem cedendo cada vez mais espaço ao direito dialético, tendo em vista as recorrentes provocações da sociedade.
Por fim, nas palavras do ilustre jurista Domingos Dresch: “A propriedade tem algo de absoluto. Algo de sagrado. E o sagrado (o que move as montanhas, como quer o poeta), o absoluto da propriedade é a sua função social, que constitui, em síntese, o seu perfil constitucional.”[69]
Informações Sobre o Autor
Fernanda Vieira Cruz
Advogada, Bacharela em Direito pela Universidade Ipa Metodista do Sul