Resumo: Com a evolução dos tempos, bem como das normatividades, visou-se assegurar a seus destinatários um mínimo de diretos e garantias individuais e coletivas, sendo que, por vezes, devido à maximização dessa tutela alguns pontos restaram contraposicionados ou em litígio. Hodiernamente, é o que presenciamos quando nos referimos ao direito à propriedade privada, forte a leitura do Art. 5°, XXII da Constituição Federal, bem como, da função social da propriedade, consubstanciada no inciso seguinte do mesmo diploma (Art. 5°, XXIII). Portanto, embora a questão jurídica ora abordada condiz em famigerada polêmica, o presente artigo tem por objetivo dirimir as eventuais dúvidas que cerceiam o tema sub judice, sendo que, para plena elucidação de sua problemática, faz-se necessária uma abordagem fincada à sublimação de políticas sociais e humanas.
Palavras–chave: Direito, Propriedade Privada, Função Social, Políticas Sociais, Políticas Humanas.
Abstract: With the evolution of time, and the normativities, aimed to ensure the recipients to a minimum of guarantees and direct individual and collective, which sometimes due to the maximization of this guardianship few points left counterpointing or dispute. The present time, is the present that to refer to the right to private property, a strong reading of Art 5°, XXII of the Federal Constitution, and the social function of property, established in item following the same degree (Art. 5°, XXIII). So while the legal question raised now compliant in renowned controversy, this article has for objective to nullify the eventual any doubts that curtail the topic under trial, and that for full elucidation of your problem, it is necessary an approach to the sublimation of based on social policy and human.
Keywords: Law, Private Property, Social Function, Social Policy, Human policies.
Sumário: Introdução. 1. Da evolução do conceito de chancela à propriedade privada e sua função social no Brasil. 2. Da função social da propriedade rural e urbana. 3. Da limitação da propriedade privada e a possibilidade de desapropriação frente à necessidade de sublimação das políticas sociais e humanas. Conclusão. Referências.
INTRODUÇÃO
Desde a antiguidade, o homem, de acordo com a sua concepção de sociedade, tratou de tutelar seu direito à propriedade. Dos Babilônios – que a fizeram por meio do código de Hamurábi – até os Gregos e Romanos – que a estabeleceram por suas respectivas compilações – percebe-se a diferente finalidade pela qual foram instituídas. Enquanto aqueles rigorosamente estabeleciam o total direito à propriedade privada, estes presidiam as relações de sociedade gentílica, onde a propriedade era tida como bem comum a todos os cidadãos.
Os contadores de histórias lembram que um dia o Ser e o Ter se encontraram e logo começaram a discutir sobre qual dos dois era o mais importante. “Sem o Ser, não existe o Ter”, proclamou o Ser. “E sem o Ter, não subsistirá o Ser”, reivindicou o Ter. Depois de longo debate, os dois chegaram à conclusão de que um não incompatibiliza o outro nem sequer o dispensa. Os cientistas do Poder da Mente concluem que o Ser e o Ter são as duas pernas que sustentam harmoniosamente a criatura humana, permitindo-lhe chegar aonde deseja. Sabedoria das sabedorias.[1]
Embora os tempos sejam outros, hodiernamente, verifica-se a mesma temática. De um lado a consciência pública que firma entendimento no sentido de que há de se conceder melhores condições de moradia e habitação a população, e, de outro, a chancela ao direito de propriedade privada.
Neste viés, a função social da propriedade resulta abarcada por diversos ramos do direito, mas, predominantemente, vincula-se ao Direito Agrário, através de um “conjunto sistemático de normas jurídicas que visam disciplinar as relações do homem com a terra, tendo em vista o progresso social e econômico do rurícola e o enriquecimento da comunidade”.[2]
Conseqüentemente, há de se convir que não se pode atribuir um juízo superficial quando se trata de problemática agrária, eis que, para discutir construtivamente sobe essa referida questão, necessitamos ter em mente uma justiça social.
Dessa forma, a resposta ao aparente conflito de interesses e direitos assegurados constitucionalmente parece emanar do principio da proporcionalidade, cujo qual, parece ser dirimido pelo raciocínio de prevalência do direito público ante a estrita égide do direito privado. A concepção individualista de propriedade, a muito, passou a perder força no cenário jurídico, fomentado pelo entendimento, do qual, inclusive, compartilhamos, ao pontilhar que a função social consiste em uma “conditio sine qua non” para a efetivação do direito à propriedade.
1 DA EVOLUÇÃO DO CONCEITO DE CHANCELA À PROPRIEDADE PRIVADA E SUA FUNÇÃO SOCIAL NO BRASIL
O vocábulo “propriedade”, naturalmente nos remete a idéia de legitimação da detentação, uso ou gozo de determinado bem ou objeto, de forma que, assim, configura-se direito pleno, absoluto e perpétuo daquele emitido na posse.
“O primeiro que, tendo cercado um terreno, atreveu-se a dizer: isto é meu e encontrou pessoas simples o suficiente para acreditar nele, foi o verdadeiro fundador da sociedade civil. Quantos crimes, guerras, assassínios, quanta miséria e horrores não teria poupado ao gênero humano aquele que, arrancando as estacas ou enchendo o fosso, houvesse gritado aos seus semelhantes: evitai ouvir esse impostor. Estareis perdidos se esquecerdes que os frutos são de todos e que a terra não é de ninguém!.”[3]
Na sistemática Brasileira, desde a Constituição Imperial era garantido o direito a propriedade em sua plenitude (art. 179, inciso XXII). Avançando no tempo, o legislador republicado de 1891, recepcionou a mesma idéia apenas acrescentando que as minas pertencem aos proprietários do solo, salvas as limitações que forem estabelecidas por lei à bem da exploração deste ramo de indústria (art. 72, §17).
Com a Constituição de 1934 surge o que depois seria mantido pelas sucessoras de 1937 e 1942, ou seja, a primeira noção de que o direito a propriedade não poderia ser exercido contra o interesse social e coletivo. Porém, é só com a constituição de 1946 que se conquista maior objetividade forte a leitura dos arts. 141, §16 e 147, nos quais se estabelecia o condicionamento da propriedade ao bem-estar social e a justa distribuição da propriedade como forma de consagrar a igual oportunidade a todos.
Quase vinte anos após a promulgação da constituinte de 1962, surge a Lei n. 4.132, cujo escopo estabelecia a regulamentação da desapropriação por interesse social. Finalmente, com a Emenda Constitucional n. 1, à Constituição Federal de 1967, é que, de fato, se adotou a função social da propriedade.
“O nosso Direito Agrário positivo acolheu a noção de função social a partir da Lei 4.504, de 30.11.64 – o Estatuto da Terra, a qual foi a primeira dentre todas as legislações latino-americanas sobre reforma agrária, se não a definir a função social da propriedade, aquela que, ao menos, estabeleceu os seus requisitos essenciais”.[4]
Nestes moldes, o Titulo II, Capítulo I, da atual Constituição Federal, datada de 1988, ao tratar dos direitos e garantias fundamentais, trás no bojo de seu art. 5º os precedentes de que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade. Verifica-se a interposição da propriedade como direito fundamental, uma vez que, lhe foi atribuída caráter de inviolabilidade, sendo que, portanto, não se torna possível à modificação nem do direito a propriedade, nem de seu condicionamento a função social, senão com a derrubada da Carta Magna (art. 60, §4, inciso IV da CF/88).
2 DA FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE RURAL E URBANA
O direito a propriedade deve ser encarado pelo seu valor de destino, mas, para isso, devem-se atentar as questões de distinção da propriedade rural e propriedade privada, uma vez que, aquela se dá pelo trabalho e para o trabalho, enquanto que esta pela satisfação das exigências fundamentais consubstanciadas no plano diretor municipal.
Mais transparentemente podemos definir a função social sob dois prismas: a priori, tem-se a função social no que se refere à propriedade urbana, a qual se da quando se atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor (art.182, §2º, da Constituição Federal de 1988), a posteriori, tem-se a função social a ser cumprida no âmbito da propriedade rural onde, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, necessita-se do aproveitamento racional e adequado; a utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; a observância das disposições que regulam as relações de trabalho; e a exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores (art.186, I, II, III, IV, da Constituição Federal de 1988).
Logicamente, “a propriedade rural, mais que a urbana, deve cumprir a sua função social para que, explorada eficientemente, possa contribuir para o bem-estar não apenas de seu titular, mas, por meio de níveis satisfatórios de produtividade e, sobretudo justas relações de trabalho, assegurar a justiça social a toda a comunidade rural.”[5]
3 DA LIMITAÇÃO DA PROPRIEDADE PRIVADA E A POSSIBILIDADE DE DESAPROPRIAÇÃO FRENTE À NECESSIDADE DE SUBLIMAÇÃO DAS POLÍTICAS SOCIAIS E HUMANAS
Embora seja praticamente impossível precisar o número de Estados Soberanos que, atualmente, reconhecem ou, ainda, virão a reconhecer a existência da função social da propriedade, verifica-se o surgimento de uma política social e humana capaz de cessar os ilimitados direitos à propriedade privada. “Como conseqüência da evolução social, pode-se observar o crescimento das ideologias social-democratas que têm como característica comum a limitação do direito de propriedade, vinculando-a ao cumprimento de sua função social”.[6]
Assim, o proprietário que possui apenas por possuir torna-se ilegítimo, tornando a propriedade privada um instituto não mais absoluto, eis que, “a propriedade não pode atender tão-só ao interesse do indivíduo, egoisticamente considerado, mas também ao interesse comum, da coletividade da qual o titular do domínio faz parte integrante”.[7]
Anteriormente à própria Constituição, foi o Estatuto da Terra – Lei n. 4.504/64 – quem primeiro determinou um conceito de função social da propriedade, o que, posteriormente, veio a ser reproduzido por nossa Magna Carta não como mera faculdade, mas sim como uma obrigação de todos os proprietários, de forma que, os limites do conteúdo social e econômico transbordam os limites do direito civil tradicional.
Sob a ótica da ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados alguns princípios, dentre os quais se incluem o princípio da propriedade e sua função social (art. 170 da CF/88). Ressalta-se que, durante muitos anos, o homem foi estimulado a visar o crescimento de sua região mesmo que isso importasse em uma usurpação irresponsável de sua propriedade e os recursos naturais de que ela dispunha.
Tal intento configura total flagrante social, uma vez que as necessidades humanas são infinitas enquanto nossos recursos naturais possuem caráter de finitude. Atualmente, percebe-se a existência da necessidade de limitação do crescimento econômico em compasso a uma instauração de políticas publicas de desenvolvimento sustentável, como forma de garantir o bem-estar social e a pré-existência da espécie humana.
Resta, portanto, assegurado, a todos, o acesso à propriedade da terra, a qual é intrinsecamente condicionada ao bem estar coletivo (caput, art. 2° e art. 12 do Estatuto da Terra) e, por isso, tratada como conditio sine qua non para efetivação do direito a propriedade e uma política atendedora à sublimação das necessidades sociais e humanas. A aplicação desse instituto visa, antes e acima de tudo, a perfeita ordenação do sistema agrário do País, de acordo com os princípios da justiça social, conciliando a liberdade de iniciativa com a valorização do trabalho humano, forte o art. 103 da supracitada normatividade agrária.
Assim:
“O direito de propriedade não se reveste de caráter absoluto, eis que, sobre ele, pesa grave hipoteca social, a significar que, descumprida a função social que lhe é inerente (CF, art. 5º, XXIII), legitimar-se-á a intervenção estatal na esfera dominial privada, observados, contudo, para esse efeito, os limites, as formas e os procedimentos fixados na própria Constituição da República. O acesso a terra, a solução dos conflitos sociais, o aproveitamento racional e adequado do imóvel rural, a utilização apropriada dos recursos naturais disponíveis e a preservação do meio ambiente constituem elementos de realização da função social da propriedade. A desapropriação, nesse contexto – enquanto sanção constitucional imponível ao descumprimento da função social da propriedade – reflete importante instrumento destinado a dar conseqüência aos compromissos assumidos pelo Estado na ordem econômica e social. Incumbe, ao proprietário da terra, o dever jurídico-social de cultivá-la e de explorá-la adequadamente, sob pena de incidir nas disposições constitucionais e legais que sancionam os senhores de imóveis ociosos, não cultivados e/ou improdutivos, pois só se tem por atendida a função social que condiciona o exercício do direito de propriedade, quando o titular do domínio cumprir a obrigação (1) de favorecer o bem-estar dos que na terra labutam; (2) de manter níveis satisfatórios de produtividade; (3) de assegurar a conservação dos recursos naturais; e (4) de observar as disposições legais que regulam as justas relações de trabalho entre os que possuem o domínio e aqueles que cultivam a propriedade. [8]
A desapropriação de imóvel rural, por interesse social, para fins de reforma agrária, constitui modalidade especial de intervenção do poder público na esfera dominial privada. Dispõe de perfil jurídico-constitucional próprio e traduz, na concreção do seu alcance, uma reação do Estado à descaracterização da função social que inere à propriedade privada. A expropriação-sanção foi mantida pela Constituição de 1988, que a previu para o imóvel rural que não esteja cumprindo sua função social (art. 184, caput), hipótese em que o valor da justa indenização — embora prévia — será pago em títulos da dívida pública. A exigência constitucional da justa indenização representa conseqüência imediatamente derivada da garantia de conservação que foi instituída pelo legislador constituinte em favor do direito de propriedade. A inexistência das leis reclamadas pela Carta Política (art. 184, § 3º e art. 185, n. I) impede o exercício, pela União Federal, do seu poder de promover, para fins de reforma Agrária, a modalidade especial de desapropriação a que se refere o texto constitucional (art. 184).”[9]
Logicamente, a desapropriação do imóvel improdutivo ou não atendedor de alguma de suas funções sociais não se trata de um mecanismo de fácil aplicação, eis que contra posiciona dois direitos de igual teor. O que define a problemática ora dirimente é a questão do princípio da proporcionalidade, uma vez que aquele que possui apenas por possuir, sem o atendimento ou convertimento de sua posse em favor das necessidades coletivas, demonstra-se negligente e indiferente com o próximo, ainda mais for levado em consideração o atual contexto de conflitos agrários, dando margem ao que pode se chamar de “quebra” do direito privado à propriedade.
A mudança de sentido da finalidade da propriedade, busca a efetivação e materialização daqueles ideais garantidos abstratamente, ou seja, direito à dignidade, moradia, habitação entre outros. Inequivocamente, trata-se de uma forma de intervenção adotada pelo Estado para amenizar os impactos negativos que assolam determinadas regiões ao longo do nosso vasto território.
A Lei n. 8.629, de 25 de fevereiro de 1993, que regulamentou os dispositivos constitucionais relativos à Reforma Agrária, repete em seu art. 9º o texto inserto no art. 186 da Constituição Federal de 1988, e em seus parágrafos define um por um os pontos caracterizadores do cumprimento da função social, de sorte que cabe à doutrina, aprimorar os conceitos e dilatar o campo de atuação de cada um. Esses requisitos consistem no aproveitamento racional e adequado; na utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; na exploração que favorece o bem estar dos proprietários e dos trabalhadores; e, observância das disposições que regulam as relações de trabalho.[10]
O aproveitamento racional e adequado da propriedade é aquele que atinge os graus de utilização da terra e de eficiência na exploração tal como especificados no art. 6º da mesma lei, ou seja, para ter grau de utilização satisfatório a propriedade deverá atingir 80% de eficiência, calculando-se esse índice pela relação percentual entre a área efetivamente utilizada e a área aproveitada total do imóvel. Já para se chegar ao conceito palpável de grau de eficiência na exploração da terra, que verá ser de 100%, o legislador complicou demasiadamente a fórmula, considerando que a lei não se destina aos economistas, nem muito menos aos doutores em ciências contábeis, mas a agricultores, homens de pés no chão, pouco letrados, responsáveis maiores pela fartura de nossas mesas, das mais humildes às das mansões mais sofisticadas.
Quanto à utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente, entende a lei que tal só se verifica quando essa exploração se faz respeitando-se a vocação natural da terra, sem agressões do tipo queimadas, mas promovendo-lhe a correção de solo necessária à manutenção do seu estado vital de modo a manter o potencial produtivo da propriedade, enquanto por preservação do meio ambiente diz o legislador ser a manutenção das características próprias do meio natural e da qualidade dos recursos ambientais, na medida adequada à manutenção do equilíbrio ecológico da propriedade e da saúde e qualidade de vida das comunidades vizinhas.
Segundo a lei, deve-se entender por exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores, aquela que objetiva o atendimento das necessidades básicas dos que trabalham a terra, observa as normas de segurança do trabalho e não provoca conflitos e tensões sociais no imóvel.
Sintetizando, a função social da terra, como filosofia ou norma programática, nada mais é senão o reflexo palpável dos resultados advindos do trabalho do homem sobre a terra. Função social só se atinge, pois, se houver trabalho efetivo, diuturno, contínuo, do proprietário sobre a terra que cultiva.
Nesse sentido, o artigo 186 da Constituição Federal de 1988 traçou requisitos objetivos para o atendimento da função social da propriedade rural, determinando in verbis:
A função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos: I – aproveitamento racional e adequado; II – utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; III – observância das disposições que regulam as relações de trabalho; IV – exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores”. O mesmo ocorreu com relação à propriedade imobiliária urbana, tendo a Constituição especificado, em seu artigo 182, § 2º, que “a propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor”.[11]
A inovação do constituinte de 1988 não foi um mero acolhimento das tendências mundiais. Embora a melhor doutrina já reconhecesse, por toda parte, a função social da propriedade, não eram poucos os ataques que a noção sofria, fossem oriundos das camadas sociais mais conservadoras, receosas de perderem os poderes absolutos que detinham sobre seus bens, fosse por parte dos setores de esquerda, que, em geral, consideravam a função social como uma fórmula abstrata de legitimação da propriedade capitalista, incapaz de alterar seu aspecto estrutural.[12]
O pioneirismo do constituinte brasileiro, fixando critérios objetivos mínimos de realização da função social, evitou este risco, assegurando a efetividade da fórmula como meio de controle do exercício da situação subjetiva de propriedade, em um modelo que, embora bem sucedido, deixou de ser observado na legislação infra-constitucional mais recente. É, hoje, ampla a invocação jurisprudencial da função social da propriedade, quer pelos tribunais estaduais, quer pelos tribunais superiores, e sua aplicação já há muito supera as hipóteses clássicas suscitadas pela doutrina civilista tradicional. A noção encontra-se de tal forma consolidada na experiência brasileira dos últimos anos, que não há dúvidas de que a garantia da propriedade não pode ser vista mais à parte de sua conformação aos interesses sociais. Em outras palavras: não há, no texto constitucional brasileiro, garantia à propriedade, mas tão-somente garantia à propriedade que cumpre a sua função social.[13]
À propriedade que cumpre sua função social, o ordenamento jurídico atribui ampla proteção. Em nível constitucional, tutela-se, por exemplo, a inviolabilidade do domicílio e limita-se a possibilidade de desapropriação, procurando-se assegurar a justa indenização.[14] Em nível infraconstitucional, o Código Civil de 2002, como já fazia o código anterior, assegura, por exemplo, ao proprietário, o direito a reivindicar o bem de sua propriedade de quem quer que injustamente o detenha.[15]
CONCLUSÃO
A Constituição Federal de 1988 assegura, em seu artigo 5º, inciso XXII, o direito à propriedade. Apressou-se, todavia, o constituinte em determinar, no inciso XXIII, do mesmo artigo, que “a propriedade atenderá a sua função social.” E mostrou-se igualmente diligente ao tratar dos princípios da ordem econômica, referindo-se, no inciso II do artigo 170, à propriedade privada, e, no inciso imediatamente seguinte, à “função social da propriedade”. A postura, refletida nestes dispositivos e em outras passagens do texto constitucional, conduz inevitavelmente à conclusão de que, no direito brasileiro, a garantia da propriedade não pode ser compreendida sem atenção à sua função social.
Sendo assim, o uso e o gozo da propriedade estão diretamente vinculados à função social que a Constituição Federal de 1988 devota à propriedade. Já não se tem um direito individual de propriedade, mas um direito socialmente coletivo. Enquanto o uso desse direito não serve aos interesses da coletividade, promovendo-lhe o bem estar e concorrendo para o progresso econômico e social de seu titular, a propriedade já não pode mais permanecer nas mãos de quem a não trabalha, impondo-se a desapropriação por interesse social a fim de que, redistribuída, possa alcançar, pelo trabalho, a função social a que está fadada.
O direito à propriedade é essencial à preservação da dignidade humana e do acesso material aos bens da educação, cultura, segurança, moradia entre outros. Nesse caso, configura-se um direito fundamental à propriedade, consagrado no art. 5º, caput, da Constituição Federal de 1988. A Constituição Federal preserva assim, o acesso do indivíduo à propriedade, como instrumento de manutenção de sua sobrevivência mínima. E, ao mesmo tempo, reconhece a garantia institucional da propriedade.
Cabe ao princípio da função social, enfim, dar a estabilidade necessária à propriedade, tutelando sua integridade jurídica e procurando tornar sua existência sensível ao impacto social do exercício dos poderes concedidos ao titular do domínio. A função social da propriedade informa, direciona, instrui e determina o modo de concreção jurídica de todo e qualquer princípio e regra jurídica, constitucional ou infraconstitucional, relacionada à instituição jurídica da propriedade.
Informações Sobre os Autores
Danielle Soncini Bonella
Advogada, professora universitária, especialista em Processo Civil, especialista em Direito Municipal, mestre em Direito e doutoranda em Direito Público.
Diogo Frantz
Bacharel em Direito pela UNISC, Linha de Pesquisa Gestão Local e Políticas Públicas, coordenado pelo Profº Drº Ricardo Hermany do Programa de Pós Graduação em Direito/Mestrado da Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC – Santa Cruz do Sul – RS
Wagner Augusto Hundertmarck Pompéo
Acadêmico de Direito