A função socioambiental da propriedade contemporânea

Resumo: O instituto civil da propriedade consolidou-se dentro de uma concepção histórica individualista. Com a inserção da função social da propriedade na Constituição de 1988, isto começou a mudar. A concepção contemporânea de propriedade busca cumprir sua função, não se aplicando apenas para os tradicionais bens imóveis, incidindo, por exemplo, em bens do patrimônio cultural, do meio ambiente e do patrimônio genético. Trata-se de um reordenamento do sistema jurídico que inseriu obrigações aos proprietários em relação à coletividade. Essa é a análise efetuada no presente artigo, de onde infere-se que toda propriedade, seja pública ou privada, móvel ou imóvel, corpórea ou incorpórea, deve atender e cumprir sua função social e ambiental.


Palavras-chave: Propriedade; Direito Ambiental; Função Social.


Abstract: The civil institute of property has been consolidated whitin an individualistic historic conception. With the insertion of the social property in the Federal Constitution of 1988, it begins to change. The contemporary conception property searches to fulfill its function, if not applying only for the traditional real properties, happening, for example, in thing of the cultural patrimony, the environment and the genetic patrimony. This is a effect of the legal system that inserted obligations to the proprietors in relation to the collective. This is the analysis made in the present article, of where it is inferred that all public or private, mobile or immovable, must take care its social and environmental function.


Keywords: Property; Environmental Law, Social Function.


Sumário: Introdução. 1. As diferentes percepções de propriedade privada. 1.1. A contribuição do Direito Romano. 1.2. A diferenciação no período medieval: o feudalismo. 1.3. A Revolução Francesa como marco do Direito Moderno. 2. A Propriedade na visão privatista tradicional e na visão constitucional contemporânea. 3. A função socioambiental da propriedade como novo paradigma biocêntrico. Conclusão


Introdução


O estudo que se pretende apresentar no presente artigo terá como escopo a propriedade no contexto contemporâneo, já relativizada pela função social e ambiental insertas na Constituição Federal de 1988 e no Código Civil de 2002. Trata-se de um novo paradigma da propriedade que rompe com o absolutismo do Direito Privado tradicional, o qual está baseado no poder total do dono sobre o bem apropriado.


Embora não se tenha a intenção de limitar o tema apenas sob o enfoque da propriedade imóvel e privada, este aspecto será explorado neste artigo na parte que trata da evolução histórica das noções propriedade, para demonstrar que as concepções criadas ao longo do tempo, principalmente acerca da propriedade rural, influenciaram nas demais formas de apropriação de bens pelo homem.


Antes disso, porém, faz-se necessário contextualizar o assunto. Para tanto, é preciso entender como as concepções do Estado Liberal foram sendo firmadas ao longo do tempo e reproduzidas com base no sistema jurídico romano de propriedade. Tais concepões sofreram poucas alterações e consolidaram-se na Revolução Francesa, que influenciou boa parte dos Códigos Civis ocidentais.


A reprodução deste modelo de propriedade ocorreu por meio de um ensino jurídico que, via de regra, apenas reproduz conceitos dentro de uma concepção monista e positivista, sem se preocupar em analisar de forma crítica o sistema legal vigente, o qual gera desigualdade social e exclusão, tendo por base a concentração de propriedade.


Esse ensino jurídico conservador, lastreado no inconsciente coletivo dos alunos, vai fazendo com que algumas importantes mudanças no ordenamento jurídico demorem muito para terem eficácia social. A função socioambiental da propriedade é um exemplo disso.


Foi essa modalidade de ensino jurídico que reproduziu as concepções liberais de propriedade, originadas do Código Civil Francês, dentro de uma metodologia de “mera transmissão do conhecimento”[1], ou de simples transferência de informação, sem qualquer preocupação pedagógica, perpetuando o discurso hegemônico liberal do “ensino jurídico da propriedade”[2], como ensina Erouths Cortiano Junior.


Aos poucos, porém, uma nova realidade começa a ser construída baseada na constitucionalização dos direitos, fenômeno jurídico percebido no Brasil com maior intensidade após a Constituição Federal de 1988.


1- As diferentes percepções de propriedade privada


Não se pretende no presente trabalho analisar todos os tipos de propriedade e as diferentes concepções formuladas por diversos teóricos desde os mais remotos tempos. Far-se-á um breve estudo contextualizado sobre algumas percepções de propriedade ao longo da história, analisando a propriedade contemporânea dentro de um novo paradigma social e ambiental.


1.1 A contribuição do Direito Romano


Para Orlando Gomes[3], na evolução histórica da propriedade interessa relembrar a noção deste instituto para os romanos, pois é o modelo que “predomina no regime capitalista” até hoje. Segundo o autor, a propriedade romana passou por longo processo de individualização, conferindo poderes exagerados e exaltando a concepção individualista do proprietário.


Fernanda de Salles Cavedon[4], por sua vez, afirma que o Direito Romano influenciou os principais sistemas jurídicos ocidentais, em especial no âmbito do Direito Privado. Para a autora, a noção de propriedade para os romanos foi sofrendo alterações, deixando de ser exclusivamente individualista quando começou a restringir as formas de uso que trouxessem prejuízo à propriedade alheia.


De qualquer forma, independente dos contornos restritivos que o uso da propriedade romana possa ter tido, a concepção mais marcante deste período é o direito de usar, fruir e dispor da propriedade, possuindo o proprietário um direito absoluto oponível erga omnes que influenciou o Direito Civil ocidental. Neste sentido, Roberto Senise Lisboa[5] afirma que “no decorrer da história do império romano, podem ser constatadas etapas em que a propriedade individual possuiu maior ou menor importância. Entretanto, é inegável que o individualismo, de forma geral, prevaleceu”.


1.2 A diferenciação no período medieval: o feudalismo


Já no período medieval a propriedade diferencia-se no que tange à exclusividade, “tendo como traço dominante a multiplicidade e o desmembramento do domínio, representado pelo regime feudal”[6]. Para Orlando Gomes[7] é a “quebra desse conceito unitário”, havendo concorrência de proprietários sobre o mesmo bem.


O período feudal caracteriza-se, pois, por uma mudança no domínio e uso da terra, fruto da desigualdade social e das “invasões das propriedades privadas”[8] que estavam ocorrendo. O individualismo e o poder absoluto são relativizados, dando lugar ao compartilhamento da terra entre o senhor feudal e o vassalo, em que pese haverem obrigações recíprocas, não consideradas eqüitativas.


Cabe destacar, mesmo assim, o encontro de interesses daqueles que não possuíam terras, mas desejavam e precisam plantar para sobreviver, com aqueles que possuíam propriedades improdutivas e nelas não queriam trabalhar. Essa relação, porém, por ser excessivamente onerosa para o vassalo, aos poucos vai gerando o esgotamento deste modelo, diminuindo os direitos do senhor feudal. Novamente, aos poucos a propriedade volta a adquirir contornos individualistas que se consolidariam, posteriormente, com a Revolução Francesa de 1789.


1.3 A Revolução Francesa como marco do Direito Moderno


A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, oriunda da Revolução Francesa, concebe a propriedade como um direito sagrado e inviolável. Trata-se do marco histórico e ideológico do Direito Moderno, baseado nos ideários de liberdade, igualdade e fraternidade da Revolução.


Todavia, esta concepção de liberdade foi assegurada como um direito do proprietário usar de qualquer forma seus bens, agindo sem precisar se preocupar com a coletividade, dando origem ao Liberalismo que projetava a propriedade restrita ao aspecto individualista. Conforme explica Carlos Marés de Souza Filho, “só homens livres podem ser proprietários, podem adquirir propriedade, porque faz parte da idéia da propriedade a possibilidade de adquiri-la e transferi-la livremente”[9]. Retorna-se, pois, ao modelo ideológico de propriedade semelhante ao conceito que os romanos adotavam, de usar, fruir e dispor de maneira absoluta dos seus bens.


Essa concepção de propriedade foi defendida pelo modelo dogmático positivista desde a Revolução Francesa. De acordo com Plauto Faraco de Azevedo, este ainda é o arquétipo dominante na atualidade, apesar de estar sendo combatido nas últimas décadas. Segundo o autor, “este modelo pode ser compreendido com a ascensão da burguesia ao poder político, após a Revolução Francesa. Com o Código Civil Francês, o Código de Napoleão, surge a Escola da Exegese, que proíbe a interpretação do direito”[10].


Porém, ao contrário do que se possa imaginar, a transformação de terras em propriedade privada na concepção atual, não é um fenômeno universal, “nem histórica nem geograficamente”, conforme afirma Carlos Frederico Marés de Souza Filho[11]. De acordo com o autor, trata-se de uma construção humana recente, como vimos acima, construída com base no mercantilismo dos séculos XVI, XVII e XVIII, bem como nos confrontos, violência e guerras dos séculos XIX e XX, o que ocasionou o “esgotamento teórico e prático” [12] deste modelo.


2- A Propriedade na visão privatista tradicional e na visão constitucional contemporânea


O objetivo deste estudo não é estabelecer definições e conceitos de forma absoluta, mas sim fazer uma análise crítica descritiva das diferentes visões acerca da propriedade.


Neste sentido, temos a visão contemporânea do direito de propriedade, onde já não prevalece, apesar de ainda existir, “aquele absolutismo pernicioso que imperava no conceito do direito de propriedade, conferindo ao titular desse direito prerrogativas excepcionais […] em detrimento dos interesses que seriam os mais caros da coletividade”[13].


José Afonso da Silva[14] explica que:


“o direito de propriedade fora, com efeito, concebido como uma relação entre uma pessoa e uma coisa, de caráter absoluto, natural e imprescritível. Verificou-se, mais tarde, o absurdo dessa teoria, porque entre uma pessoa e uma coisa não pode haver relação jurídica, que só se opera entre pessoas… Demais, o caráter absoluto do direito de propriedade, na concepção da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 foi sendo superado pela evolução, desde a aplicação da teoria do abuso do direito, do sistema de limitações negativas e depois também de imposições positivas, deveres e ônus, até chegar-se à concepção da propriedade como função social, e ainda à concepção da propriedade socialista, hoje em crise.”


Importante destacar a opinião acima, vista sob a ótica constitucionalista, mostrando a superação privatista do conceito de propriedade pelas normas do direito público. Para o autor, o conjunto de normas constitucionais sobre propriedade faz com ela não seja mais considerada como instituição de Direito Privado, uma vez que a perspectiva civilista não “alcança a complexidade do tema, que é resultante de um complexo de normas jurídicas de Direito Público e de Direito Privado”[15].


Para Gustavo Tepedino[16] a Constituição Federal de 1988 introduziu profundas transformações na disciplina da propriedade, sendo que “os civilistas, à época, não se deram conta de tais modificações em toda a sua amplitude, mantendo-se condicionados à disciplina da propriedade pré-vigente”. O autor afirma que:


“a propriedade, portanto, não seria mais aquela atribuição de poder tendencialmente plena, cujos confins são definidos externamente, ou, de qualquer modo, em caráter predominantemente negativo, de tal modo que, até uma certa demarcação, o proprietário teria espaço livre para suas atividades e para a emanação de sua senhoria sobre o bem. A determinação do conteúdo da propriedade, ao contrário, dependerá de centros de interesses extraproprietários, os quais vão ser regulados no âmbito da relação jurídica de propriedade”[17].


Observa-se, pois, a mudança de concepção de propriedade, principalmente após a Constituição Federal de 1988 que lhe atribuiu uma função social. Logo, vista sob as lentes constitucionais, a propriedade só será garantida, nos termos do artigo 5º, XXII, desde que atenda a sua função social, conforme estabelece o artigo 5º, inciso XXIII.


Carlos Frederico Marés de Souza Filho comenta que a propriedade e sua função social foi um dos temas mais polêmicos no processo constituinte de 1988, pois de um lado estava a questão social propugnando por uma propriedade relativizada. De outro lado, a “velha propriedade do século XIX, absoluta, protegida a qualquer preço, como coisa sacrossanta, intocável, como se fosse o supremo direito de cada um e o paradigma único de liberdade”[18].


Neste mesmo sentido o novo Código Civil de 2002, em seu artigo 1.228 reconheceu que o proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, mas que o direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais, preservando a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico, o patrimônio histórico e artístico, evitando a poluição do ar e das águas.


O disposto no artigo 1.228 do Código Civil explicita uma outra função que a propriedade deve atender, que é a função ambiental. Para Juliana Santilli, “o novo ordenamento constitucional obrigou o estatuto civil a redimensionar o direito de propriedade, dando-lhe nova estrutura e novos contornos conceituais”[19].


Na verdade, tal artigo está em consonância com o disposto na Constituição Federal, no seu artigo 225, que trata do meio ambiente como bem de uso comum do povo. De igual forma no inciso II do artigo 186 da Constituição, que trata da propriedade rural e vincula a função social à preservação do meio ambiente. Ainda, a título ilustrativo, no artigo 170 da Constituição, nos princípios gerais da atividade econômica aparecem a propriedade privada, a função social da propriedade e a defesa do meio ambiente.


3 A função socioambiental da propriedade como novo paradigma biocêntrico


Na evolução histórica da propriedade observamos que para os Romanos destacava-se a prerrogativa de usar, fruir e dispor sobre os seus bens. No feudalismo ocorreu o compartilhamento da propriedade rural, possibilitando que mais pessoas tivessem acesso a terra. A Revolução Francesa apresentou a propriedade como um direito sagrado e inviolável, que foi sendo reproduzido pelo capitalismo, estando ainda hoje presente no inconsciente coletivo reproduzido pelo ensino jurídico liberal, baseado na dogmática positivista.


Importante destacar a Constituição de Weimar, ou Constituição do Império Alemão de 11 de agosto de 1919, em seu artigo 153; bem como a Constituição Mexicana de 31 de agosto de 1917, em seu artigo 27. Para Carlos Marés, ambas Constituições “adotam como fundamento do direito o conceito de que a propriedade, para mais de ser um direito é um dever: ‘A propriedade obriga’, define a Constituição de Weimar; ‘a nação terá sempre o direito de impor à propriedade privada as regras que dite o interesse público’, arremata a Constituição Mexicana”[20]. Trata-se de uma importante evolução para chegarmos à propriedade nos moldes hoje conhecido.


A propriedade contemporânea enseja novas observações que indaguem se os bens apropriados atendem à função social e ambiental preconizadas pela Constituição Federal e pelo novo Código Civil. Logo, nesta fase, deve-se voltar os olhos para os tipos de propriedade onde residem interesses da coletividade, a exemplo da propriedade ambiental.


A função socioambiental da propriedade ganha destaque na medida em que se compreende melhor a transformação dos bens oriundos da natureza em propriedade privada. Ou, na visão de Juan Antonio Senent de Frutos, “la naturaleza como propriedad común del género humano a su apropriación privativa[21].


Na perspectiva de uma reflexão crítica sobre apropriação do meio ambiente, observar-se-á como ocorre a transferência de um bem ambiental da coletividade para a esfera patrimonial individual, por meio do acesso às suas informações genéticas, o que Cristiane Derani denomina como direito de acesso como terceira dimensão da apropriação. Neste sentido:


“Este direito de apropriação do novo século é chamado de direito de acesso, numa síntese do direito de acessar informações contidas em um bem. Assim, é possível que este direito de acesso gere direitos de propriedade individualizado, podendo, sem risco de conflito ou sobreposição, falar-se em direitos privados de propriedade sobre um bem, tutelado pelo Código Civil e direitos privados de propriedade às informações contidas naquele bem, tutelado pela propriedade intelectual pertencentes a titulares distintos”[22].


A conseqüência do acesso à informação genética contida numa planta, por exemplo, como visto acima, constitui-se numa forma de apropriação, que irá gerar uma propriedade privada oriunda da biodiversidade. Faz-se necessário avaliar esta complexa relação da apropriação de bens ambientais cujo interesse diz respeito à coletividade, (nos termos do artigo 225 da Constituição), relacionando-o com a função social da propriedade. Para Cristiane Derani, “esse tratamento da relação de propriedade marca a diferença entre Estado liberal e Estado social. Enquanto o primeiro garante a propriedade privada contra terceiros, o segundo preocupa-se com a melhoria da vida social a partir dessa apropriação privada de bens”[23].


Conclusão


A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 5º, expressa essas duas vertentes aparentemente antagônicas, quando garante o direito de propriedade no inciso XXII, mas estabelece que ela atenderá a sua função social no artigo XXIII. Ou seja, a antinomia aparente entre os dois incisos citados resulta da diferença de percepção ideológica do Estado Liberal e do Estado Social.


Portanto, essa é a principal conclusão do presente artigo, de onde infere-se que toda propriedade, seja pública ou privada, móvel ou imóvel, corpórea ou incorpórea, deve atender e cumprir sua função socioambiental. Neste sentido, Paulo Luiz Neto Lobo esclarece:


“A concepção de propriedade, que desprende da Constituição, é mais ampla que o tradicional domínio sobre coisas corpóreas, principalmente imóveis, que os códigos civis ainda alimentam. Coenvolve a própria atividade econômica, abrangendo o controle empresarial, o domínio sobre ativos mobiliários, a propriedade de marcas, patentes, franquias, biotecnologias e outras propriedades intelectuais. Os direitos autorais de software transformaram seus titulares em megamilionários. As riquezas são transferidas em rápidas transações de bolsas de valores, transitando de país a país, em investimentos voláteis. Todas essas dimensões de propriedade estão sujeitas ao mandamento constitucional da função social” (grifamos) [24].


Como se percebe, a função social incide sobre várias formas de propriedade, principalmente se nelas recair algum interesse da coletividade. Logo, as informações genéticas oriundas da biodiversidade, por exemplo, quando apropriados e transformados em propriedade privada, estão sujeitas, também, ao princípio da função social e ambiental previstos no ordenamento jurídico pátrio.


Neste aspecto, Paulo Luiz Neto Lobo ressalta que o meio ambiente é bem de uso comum do povo e “prevalece sobre qualquer direito individual de propriedade, não podendo ser afastado até mesmo quando se deparar com exigências de desenvolvimento econômico (salvo quando ecologicamente sustentável).”[25]


Trata-se, pois, de um novo paradigma da propriedade, sob forte influência das regras constitucionais ambientais. È o que José Robson da Silva[26] denominou de “Paradigma Biocêntrico: do Patrimônio Privado ao Patrimônio Ambiental”.


Com esse novo “Paradigma Biocêntrico que se detecta no sistema constitucional brasileiro[27]”, percebe-se que a influência do discurso da propriedade vista de forma absoluta, reproduzida pelo ensino jurídico por séculos, finalmente começa a ceder espaço para uma nova concepção baseada na função social e ambiental da propriedade. Neste sentido, Juliana Santilli afirma:


“Os manuais de Direito Ambiental costumam incluir a função socioambiental da propriedade entre os princípios desse novo ramo autônomo do Direito, com base numa releitura ‘ambiental’ da função social da propriedade. Consideramos que a função socioambiental da propriedade é muito mais do que um princípio específico do Direito Ambiental: é um princípio orientador de todo o sistema constitucional que irradia os seus efeitos sobre diversos institutos jurídicos. A função socioambiental da propriedade permeia a proteção constitucional à cultura, ao meio ambiente, aos povos indígenas e aos quilombolas”[28].


Essa concepção contemporânea de propriedade busca cumprir sua função socioambiental, não se aplicando apenas para bens imóveis e corpóreos, incidindo, por exemplo, em bens do patrimônio cultural, do meio ambiente, do patrimônio genético e da propriedade intelectual. Trata-se de um reordenamento do sistema jurídico que inseriu obrigações aos proprietários em relação à coletividade, ocasionando o deslocamento do instituto da propriedade do Direito Privado para o Direito Público.


 


Notas:

[1] MARTINEZ, Sérgio Rodrigo. Manual da Educação Jurídica. Curitiba: Juruá, 2004, p. 32.

[2] JUNIOR, Eroulths Cortiano. O Discurso Jurídico da Propriedade e suas Rupturas. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2002.

[3] GOMES, Orlando. Direitos Reais. 19ª ed. Atualizada por Luiz Edson Fachin. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2005, p. 115.

[4] CAVEDON, Fernanda de Salles. Função Social e Ambiental da Propriedade. Florianópolis: Editora Momento Atual, 2003, p.8.

[5] LISBOA, Roberto Senise. Manual de Direito Civil. Volume 4: Direitos Reais e Direitos Intelectuais. São Paulo: 3ª ed., revista e atualizada. Editora Revista dos Tribunais, 2005, p. 163.

[6] CAVEDON, Fernanda de Salles. Op. cit., p. 13.

[7] GOMES, Orlando. Op. cit., p. 115.

[8] BLANC, Priscila Ferreira. Plano Diretor Urbano e Função Social da Propriedade. Curitiba: Editora Juruá, 2004, p. 27.

[9] SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés. A função social da terra. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris. Editor, 2003, p. 18.

[10] AZEVEDO, Plauto Faraco de.Ecocivilização: ambiente e direito no limiar da vida. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005, p. 37.

[11] SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés. Op.cit., p. 17.

[12] Ibidem, p. 18.

[13] MALUF, Carlos Alberto Dabus. Op. cit., p. 17.

[14] SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 12ª. edição revista. São Paulo: Malheiros, 1995, p. 263.

[15] Ibidem, mesma página.

[16] TEPEDINO, Gustavo. Temas de direito civil. 3ª edição. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p.304.

[17] Ibidem, p. 317.

[18] SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés. Introdução ao Direito Socioambiental.Op.cit., p. 22 e 23.

[19] SANTILLI, Juliana. Socioambientalismo e novos direitos. São Paulo: Peirópolis. IEB – Instituto Internacional de Educação do Brasil e ISA- Instituto Socioambiental. 2000, p. 89.

[20] SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés de. O Renascer dos Povos Indígenas para o Direito. Curitiba: Juruá Editora, 2005, p. 173.

[21] FRUTOS, Juan Antonio Senent de.Sociedad del conocimento, biotecnologia y biodiversidad. Revista de Direito Ambiental da Amazônia – HILÉIA. Manaus: Ano 2, nº 2, 2004, p. 119.

[22] DERANI, Cristiane. Tutela Jurídica da Apropriação do Meio Ambiente e as Três Dimensões da Propriedade. Revista de Direito Ambiental da Amazônia – HILÉIA. Manaus: Ano 1, nº 1, 2003, p.71.

[23] DERANI, Cristiane. A Propriedade na Constituição de 1988 e o conteúdo da “função social”. Revista de Direito Ambiental. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais. Ano 7, nº 27, 2002, p.59.

[24] LOBO, Paulo Luiz Neto. Constitucionalização do Direito Civil. Revista de Informação Legislativa, Brasília, n. 141, p. 99-109, jan./mar. 1999, p. 107.

[25] Ibidem, p. 106.

[26] SILVA, José Robson da. Paradigma Biocêntrico: do Patrimônio Privado ao Patrimônio Ambiental. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2002.

[27] Ibidem, p. 375.

[28] SANTILLI, Juliana. Op. cit., p. 86.


Informações Sobre o Autor

Alaim Giovani Fortes Stefanello

Doutorando em Direito Socioambiental pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná – PUC/PR. Mestre em Direito Ambiental pela Universidade do Estado do Amazonas – UEA. Foi presidente do Centro de Estudos em Direito Ambiental da Amazônia – CEDAM. Pós-graduado em Direito Civil e Processo Civil pela Faculdade de Direito do Vale do Rio Doce – FADIVALE/MG. Advogado da Caixa Econômica Federal, onde exerce a Gerência Jurídica Regional no Estado do Paraná, e atua como Instrutor interno da Universidade Corporativa Caixa.


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