A gestão dos recursos hidrícos em bacias com conflito de dominialidade: subsídios para a construção de um marco regulatório na Bacia do Rio Uruguai

Resumo: O atual texto constitucional dispõe sobre cooperação entre os entes federados na gerência dos serviços públicos e a Lei 9433/97 determina a articulação entre União e Estados para o gerenciamento dos recursos hídricos de interesse comum. A adoção de um Marco Regulatório para o Uso da Água na Bacia do Rio Uruguai trata-se de uma estratégia a ser considerada, como forma de prevenir e resolver problemas, tensões e deficits hídricos.


Palavras-chave: Recursos Hídricos, Marcos Regulatórios, Legislação e Gestão Ambiental.


Abstract :The current constitutional text makes uses of the cooperation between federated entities in the management of public services, and the Law 9433/97 determines the articulation between Union and states in order to manage common interest aquatic resources. The adoption of a ‘Water usage regulatory policies’ in the Uruguay River basin is a strategy to be considered as a way of preventing and solving problems, tensions and hydric deficit.


Key-words: Aquatic resources, Regulatory Policies, Environment Management and Legislation.


Sumário: 1- INTRODUÇÃO; 2- METODOLOGIA; 3- RESULTADOS; 3.1. A Federação brasileira e a dominialidade das águas; 3.2. A experiência brasileira na adoção de marcos regulatórios como estratégia de gestão dos recursos hídricos em bacias com conflitos de domínio3.2.1. O sistema Curema-Açu; 3.2.2. As bacias dos rios Potí e Longa; 3.3. A Bacia do Rio Uruguai e a necessidade de adoção de um marco legal de regulação do uso das águas; 3.3.1. Mecanismos Inconstitucionais de Cooperação no âmbito internacional; 3.3.2. A necessidade de criação de Mecanismos Inconstitucionais de Cooperação no âmbito interno 4 – CONCLUSÃO; 5 – BIBLIOGRAFIA.


1 – INTRODUÇÃO  


O atual texto constitucional dispõe sobre cooperação entre os entes federados na gerência dos serviços públicos como espécie de colaboração para objetivos comuns e a Lei 9433/97 determina a articulação entre União e Estados para o gerenciamento dos recursos hídricos de interesse comum. Embora essa previsão de cooperação esteja explícita no ordenamento jurídico da Federação Brasileira, no plano da efetividade, podemos considerar que o instrumental disponível para a cooperação administrativa ainda é pouco utilizado. Poucas bacias hidrográficas utilizam “Marcos Regulatórios”. Esse conjunto de regras e critérios acordados e harmonizados entre as autoridades outorgantes, ao envolverem bacias hidrográficas que possuam trechos com dominialidade da União e de Estados, para a sua expedição, necessitam de institutos de cooperação administrativa.


A cooperação entre os Entes Federativos – embora com previsão explícita no texto constitucional e na legislação que estabelece a política das águas –, forma de relacionamento entre União, Estados e Municípios, ainda é pouco utilizada em nosso País no plano da efetividade. O processo de construção de cooperação administrativa entre Entes Federativos com dominialidade sobre recursos hídricos, apresentado através de um Marco Regulatório, pode oferecer as condições para a gestão desses recursos na região.


No presente artigo é feita a analise da possibilidade de adoção de um Marco Regulatório para o Uso da Água na bacia do Rio Uruguai como estratégia a ser considerada, para prevenir e resolver problemas, tensões e deficits hídricos decorrentes de conflitos de domínio e de demandas agroindustriais e do setor  hidrelétrico.


2 – METODOLOGIA


A pesquisa classificada como qualitativa constou de revisão bibliográfica para o estabelecimento das origens do Estado Federal Brasileiro e para o exame dos Marcos Regulatórios vigentes em nosso País dispondo sobre estratégias de gestão de recursos hídricos. Na continuidade, foi desenvolvida uma investigação, profunda e exaustiva, caracterizada como estudo de caso, diagnosticando a situação na Bacia do Rio Uruguai.


Como base conceitual foi analisado o instituto da cooperação administrativa de forma a dar efetividade às competências comuns no Estado Brasileiro. 


Os resultados obtidos na revisão bibliográfica e no estudo de caso serviram como base para a proposição de um Marco legal de regulação do uso das águas na Bacia do Rio Uruguai, com elaboração negociada entre gestores de recursos hídricos. Esses resultados foram integrados numa síntese, de forma a solucionarem o problema da pesquisa, o qual envolve a disponibilização de estratégias de cooperação administrativa na gestão de recursos hídricos em bacias com conflito de dominialidade.


3 RESULTADOS


3.1. A Federação brasileira e a dominialidade das águas


A compreensão de como se estabeleceu a distribuição do poder no território brasileiro, ou seja, a origem da Forma de Estado vigente no Brasil, o modelo de Estado Federal estruturado no decorrer do processo histórico brasileiro e a distribuição de competências aos entes autônomos fornecem subsídios para que se entenda a tradição centralizadora ainda hoje constatada na Federação Brasileira. O Estado Federal representa uma forma de distribuição do poder em determinado espaço geográfico, que conta com a participação de um poder central e poderes periféricos funcionando autônoma e concomitantemente. Existem, no federalismo, duas tendências antagônicas a serem conciliadas: a que conduz à unidade e a que leva à diversidade, ambas condicionadas, especialmente, por fatores de ordem cultural e social.


A idéia de federalismo está relacionada a um conteúdo fortemente autonomista (BASTOS, 1995) assegurado às vontades parciais e ao poder central. Esta autonomia revela-se através de uma descentralização política, com distribuição ao poder central somente das competências que não podem ser realizadas pela vontade parcial. Essa descentralização, característica nuclear da Federação, perpassa a organização do Estado e irradia seus efeitos não só às instituições públicas, mas também à sociedade civil. Os autores são unânimes em incluir entre as características fundamentais do Estado Federal a soberania da Federação e a autonomia das unidades federadas (DALLARI, 1988; HORTA, 1995 e ALMEIDA, 2000). O princípio que mais se destaca no federalismo pode ser traduzido como a possibilidade da convivência de múltiplas identidades mediante a existência de um único pacto político.


O Estado Federal encontra, na Constituição, a base para o ordenamento jurídico vigente, pois a Carta Magna, ao organizar o Estado na sua estruturação fundamental, fornece os elementos necessários para que o pacto entre os entes federativos possa se efetivar. Nossa Constituição, logo no seu primeiro artigo, consagra o País como uma República Federativa, prevendo, no art.18, uma organização político-administrativa que compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos e possuidores das capacidades de auto-organização e normatização própria, autogoverno e auto-administração.


Os princípios da predominância do interesse e da subsidiariedade servem de referencial à distribuição de competências entre os entes federados. Pelo princípio da predominância do interesse, cabem à União as matérias de interesse geral, aos Estados, as matérias de interesse regional, aos Municípios, o que se relaciona ao interesse local e, ao Distrito Federal, o interesse regional e local. O princípio da subsidiariedade estabelece que nada será exercido por um poder de nível superior, desde que possa ser cumprido pelo inferior.


O Estado Federal, ao adotar uma concepção que dê ênfase ao fortalecimento do poder federal, opta pelo federalismo centrípeto. Caso a opção se faça pela preservação do poder estadual, estaremos diante do Federalismo centrífugo (BARACHO, 1997). Afora essas tendências de aproximação e afastamento em relação ao centro, é possível buscar-se um ponto de equilíbrio entre essas forças opostas que atuam na unidade e na diversidade, erigindo-se, neste caso, o federalismo de equilíbrio.


O cenário hoje existente em nível mundial envolve uma valorização crescente da descentralização territorial efetiva como forma de ganhar em agilidade, eficiência e, principalmente, democracia, consagrando o respeito à diversidade cultural, que permite que sejam encontradas soluções criativas que respeitem o sentimento da localidade, da região cultural e, principalmente, do sentimento de cidadania (MAGALHÃES, 2000).


O federalismo existente no Brasil é de origem centrífuga, sendo que, para aperfeiçoar-se, deve buscar constantemente a descentralização. Nossa federação foi criada por segregação, ou seja, a partir de um Estado unitário, o que pode explicar a tradição centralizadora ainda hoje constatada. A adoção de princípios condizentes com uma moderna federação, que naturalmente excluem a centralização e o autoritarismo, pode servir de lastro à concretização do Estado Democrático de Direito idealizado pelo “Poder Constituinte Originário” e previsto no atual texto constitucional (OLIVEIRA, 2006).


No modelo brasileiro de repartição de competências, a Constituição enumera, de forma expressa ou implícita, os poderes da União. Os poderes expressos estão descritos nos artigos 21 e 22 da Constituição Federal. No artigo 21, consta o núcleo irredutível das competências materiais da União, com as matérias deferidas à atuação política e administrativa das autoridades federais. No artigo 22, constam as matérias passíveis de disciplina normativa privativa das autoridades da União. O exercício dessas competências por parte dos Estados só será exercida mediante lei complementar para casos específicos. O texto constitucional também arrola os poderes dos Municípios, entes autônomos que podem legislar sobre assuntos de interesse local, conforme previsão constante no artigo 30. Os Estados têm seus poderes estabelecidos nos artigos 18, parágrafo 4º e 25º. Cabem-lhes os poderes residuais não enumerados, a exploração de gás canalizado, a instituição de regiões metropolitanas, microrregiões, aglomerações urbanas e criação de municípios. 


A metodologia empregada em nosso texto constitucional, na repartição, também prevê as competências comuns aos três entes, artigo 23, e as concorrentes, artigo 24, com a União, Estados e Distrito Federal legislando sobre as matérias aí previstas. A ampliação da competência comum atribuída à União, Estados, Distrito Federal e Municípios, juntamente com os princípios da predominância do interesse e no da subsidiariedade, constituem-se em alternativas importantes que possibilitam ao Brasil avançar no federalismo de equilíbrio.


A experiência brasileira atual da gestão das águas deu-se pela adaptação do modelo francês, o qual se encontra inserido em uma abordagem de publicização das águas e da adoção da bacia hidrográfica como unidade de planejamento. A bacia hidrográfica se constitui na unidade geográfica ideal de planejamento, gestão e intervenção. Mostra-se, ao mesmo tempo, a adoção de um conjunto de organismos reunidos em torno de uma bacia hidrográfica, compatível com a dupla dominialidade das águas prevista à União e aos Estados no texto constitucional. A adoção da bacia hidrográfica como unidade de planejamento e gerenciamento ocasionou também a ampliação e mudança da base institucional de decisão, com o núcleo decisório transferindo-se dos órgãos públicos para os colegiados das bacias hidrográficas. O aumento da demanda observada nos últimas décadas, a distribuição desarmônica nas regiões brasileiras e a degradação ambiental agravam o quadro de escassez relativa dos recursos hídricos, exigindo que a gestão, em nosso País, seja integrada e racional.


A repartição de competências é fundamental à organização do Estado Federal. A ampliação da competência comum atribuída aos três entes federados, constituí-se, juntamente com os princípios da predominância do interesse e no da subsidiariedade, em alternativa que possibilita ao Brasil avançar no federalismo de equilíbrio e na proteção ao meio ambiente, e, em especial, aos recursos hídricos.


A Constituição de 1988 – ao estabelecer que os rios e lagos internacionais ou que banhem mais de um Estado passaram ao domínio da União, e que as águas superficiais ou subterrâneas, fluentes, emergentes ou em depósito, com ressalva às decorrentes de obras da União, passaram a ser consideradas bens dos Estados – alterou o tratamento destinado às águas, acabando com as águas particulares ou comuns, tornando-as bem de domínio público. A redação ampla do Artigo 26, I, da Constituição Federal de 1988, alargou significativamente o domínio dos recursos hídricos estaduais. A União conservou o domínio que já possuía nas Constituições anteriores (MACHADO, 2001).


A Lei 9.433, de 08/01/97, ao dispor sobre estes dispositivos constitucionais, estabeleceu princípios para a gestão deste importante recurso ao adotar a bacia hidrográfica como unidade de planejamento, reconheceu a água como bem econômico, a importância de seus usos múltiplos e a necessidade de gestão descentralizada e participativa. No artigo 4°, determina a articulação da União e dos Estados, tendo em vista o gerenciamento dos recursos hídricos de interesse comum.


Com essa abordagem, estabelecemos uma conexão entre o plano da existência dos institutos políticos e jurídicos relacionados à cooperação entre os Entes Autônomos da Federação Brasileira e o plano da efetividade, onde esse instrumental irá se concretizar, incidindo sobre a realidade social.


3.2. A experiência brasileira na adoção de marcos regulatórios como estratégia de gestão dos recursos hídricos em bacias com conflitos de domínio


Na existência humana, sempre se faz presente a visão associativa. O homem é um ser social que, para sua realização, necessita viver em sociedade. Com o entrechoque de interesses no meio social, com os agentes desejando o mesmo bem, ou tentando impor sua vontade aos demais, surge o conflito que se por um lado pode levar a guerras, por outro, viabiliza a busca pela cooperação e integração.


A cooperação no conflito surge nos momentos de crise econômica ou social, com a necessidade de articulação intersetorial com participação social como forma de buscar alternativas para solução do conflito. A cooperação, processo social em que dois ou mais indivíduos ou grupos atuam em conjunto para a concepção de um objetivo comum, é essencial para a manutenção e continuidade dos grupos sociais.


O serviço público, segundo Oviedo, deduz-se em razão do fim e corresponde a um processo técnico especial de satisfação das necessidades coletivas e gerais, de comodidades públicas, sempre de interesse público (OVIEDO, 1957).


A idéia de cooperação é forte no atual texto constitucional. Do art. 241 da Carta Magna, deprende-se explicitamente o federalismo cooperativo, dispondo uma verdadeira cooperação entre os entes federados na gerência dos serviços públicos como espécie de colaboração para um objetivo comum (DURÃO, 2007).


O atributo cooperacional, presente no caso de convergências de esforços para o atendimento da finalidade pública, caracteriza o convênio administrativo. Esse instituto de cooperação administrativa é utilizado efetivamente para o interesse público em colaboração recíproca. Os convênios administrativos são acordos entre pessoas jurídicas de direito público constitucional – União, Estados, Distrito Federal e Municípios – para execução de objetivos comuns.


Com as transformações do Estado e com a necessidade de criação de órgãos capazes de regular determinados setores do serviço público, recentemente foram criados em nosso país as agências reguladoras. Funcionam como um órgão intermediário entre a sociedade e o Poder Público realizando mediação de interesses, regulação de situações determinadas, e solução de conflitos com celeridade e precisão. As competências atribuidas às agências são as constantes na legislação, pois “inexiste poder para a Administração Pública que não seja concedido pela lei. O que ela não concede expressamente, nega-lhe implicitamente” (MENEZELLO, 2007). Na emissão de decisões administrativas, concretizadas através de atos administrativos, devem estar presentes: a forma, de acordo com os requisitos legais; os motivos justos e justificáveis e a conformidade que a ordem jurídica exige. Os atos normativos de efeito externo que alcancem os agentes regulados são apresentados sob a forma de resoluções, instrumentos aprovados pela diretoria colegiada, resultantes de consultas e de audiências públicas.


Os Marcos Regulatórios de Uso da Água são constituidos por um conjunto de regras e critérios acordados e harmonizados entre as autoridades outorgantes, contemplando cadastro, outorga, operação de reservatórios, monitoramento e fiscalização. Ao envolverem bacias hidrográficas que possuam alguns trechos com dominialidade da União e outros com dominialidade de Estados, para a sua expedição, em respeito ao pacto federativo, necessita-se da adoção de institutos de cooperação administrativa, caso dos convênios de integração entre a agência reguladora competente (Agencia Nacional de Águas) e os representantes dos Estados convenentes. Na continuidade, antecedendo a expedição do ato regulatório, há que se observar os procedimentos das Consultas e Audiências Públicas, obrigatórias e vinculadas, com a participação dos agentes regulados.


Embora o federalismo existente no Brasil seja de origem centrífuga e a idéia de cooperação seja forte, o atual texto constitucional dispõe sobre uma verdadeira cooperação entre os entes federados, na gerência dos serviços públicos como espécie de colaboração para um objetivo comum; a Lei 9433/97 determina a articulação da União com os Estados para o gerenciamento dos recursos hídricos de interesse comum, no plano da efetividade, podemos considerar que o instrumental jurídico disponível para a cooperação administrativa ainda é pouco utilizado. São poucas as bacias hidrográficas onde tenham sido adotados “Marcos Regulatórios”. As bacias dos Rios Potí e Longá (CE/PI), Paranã (GO/TO) e Pipiripau (DF/SE) e sistema Curema-Açu (PB/RN) encontram-se entre as bacias que experimentaram essa modalidade de estratégia para a gestão dos seus recursos hídricos. Dos Marcos Regulatórios referidos, faremos, na continuidade, uma pequena síntese dos procedimentos adotados para a instalação desse expediente no sistema Curema-Açu (PB/RN) e nas bacias dos Rios Potí e Longá (CE/PI).


3.2.1. O sistema Curema-Açu


O documento jurídico que dispõe sobre o Marco Regulatório foi apresentado sob a forma de uma Resolução emanada da Diretoria Colegiada da ANA, estabelecendo parâmetros e condições para a outorga preventiva e outorga de direito de uso de recursos hídricos, com o objetivo de regularizar os múltiplos usos e usuários de água do Sistema Curema-Açu. Foi precedido de um convênio de Integração para a gestão integrada, regularização e ordenamento dos usos dos recursos hídricos na bacia do rio Piranhas-Açu, em particular, do sistema Curema-Açu. Como representantes dos Entes Federativos com dominialidade sobre esses recursos hídricos, participaram da celebração desse convênio a ANA, Agência Reguladora responsável pela matéria, no âmbito Nacional, Estados da Paraíba e do Rio Grande do Norte e o Departamento Nacional de Obras Contra as Secas.


O sistema Curema-Açu para fins de estabelecimento de Marco Regulatório para a gestão dos recursos hídricos foi dividido em seis trechos, da montante para juzante. Os três primeiros localizados no Estado da Paraíba e correspondendo, na ordem: ao perímetro da bacia hidrográfica dos reservatórios Curema e Mãe Dágua, ao trecho do Rio Piancó desde a barragem do reservatório Curema até a sua confluência com o Rio Piranhas e o trecho do rio Piranhas a partir da confluência com o rio Piancó até a divisa geográfica dos Estados da Paraíba e Rio Grande do Norte. Os três últimos localizados no Estado do Rio Grande do Norte e correspondendo, na ordem: ao trecho do rio Piranhas a partir da divisa geográfica dos Estados da Paraíba e Rio Grande do Norte até a bacia hidráulica do reservatório Armando Ribeiro Gonçalves, ao perímetro da bacia hidráulica do reservatório Armando Ribeiro Gonçalves e ao trecho do Rio Açu a partir da Barragem do Reservatório Armando Ribeiro Gonçalves até o Paredão das Lages, no Município de Pendências – RN (RESOLUÇÃO ANA 687/2004).


A motivação que deu origem à formação do Convênio de Integração e à posterior expedição do Marco Regulatório fundamentou-se na possibilidade das condições de quantidade de água presentes no sistema Curema-Açu poderem restringir o abastecimento público e demais usos, em especial os referentes à carcinicultura e irrigação, nos Estados da Paraíba e Rio Grande do Norte.


Nesse sentido, foram definidos, na Resolução 687/2004 da ANA: trechos, listados da montante para juzante (Artigo 1º); vazão máxima de 27,30 m³/s para o sistema (Artigo 2° e 3°), vazão mínima para cada trecho e vazão ecológica de 1,0 m³/s no final do trecho nº 6 (Parágrafo único do Artigo 2º); estabelecimento de vazões para a operação da usina hidrelétrica do reservatório Curema e para o Reservatório Armando Ribeiro Gonçalves (Artigos 12 e 13); metodologia para expedição das outorgas (Artigo 5, 6, 7 e 8°); monitoramento da quantidade e qualidade da água do Sistema (Artigo 18, 19 e 20) e vinculação ao instrumento do Convênio de Integração (Artigo 23).


Em síntese, esse processo de construção de cooperação administrativa, apresentado através de um Marco Regulatório, entre os Entes Federativos com dominialidade sobre recursos hídricos, passou a oferecer as condições para a gestão desses recursos na região.


3.2.2. As bacias dos rios Potí e Longa


O Marco Regulatório que dispõe sobre estratégias de gestão de recursos hídricos nas bacias dos rios Potí e Longa, tornado público sob a forma de resolução conjunta (RESOLUÇÃO CONJUNTA ANA/SRH-CE/CEMAR-PI Nº 547 de 5 de dezembro de 2006), teve como motivação a necessidade de harmonizar os critérios, normas e procedimentos relativos à outorga e monitoramento dos usos dos recursos hídricos, à gestão integrada dos reservatórios, à determinação do plano de regularização e ordenamento de usos e à otimização dos investimentos em intervenções hídricas.


Esse marco foi precedido da constituição de um Grupo de Articulação Institucional composto por dirigentes dos órgãos gestores, com poder deliberativo e de um Grupo Técnico Operacional composto por técnicos das instituições gestoras, e pelo Ministério Público dos Estados do Piauí e Ceará, com o objetivo de dar suporte para a definição, a implementação e o acompanhamento do referido instrumento de cooperação administrativa.


No instrumento regulatório, ficaram definidos: a delimitação dos termos outorga, outorga preventiva, marco regulatório e bacias hidrográficas (Artigo 2º); procedimentos e critérios para novos atos de outorga (Artigo 3°); critérios para o pedido e deferimento de outorga (artigo 5° a 12); planejamento, implantação e capacidade máxima de acumulação de açudes (Artigo 14 a 17); vazão de entrega entre Estados (artigo 18 e 19); monitoramento qualitativo e quantitativo das águas (Artigo 20) e manutenção do Grupo de Articulação Institucional e do Grupo Técnico Operacional (Artigo 23).


A metodologia adotada no estabelecimento do Marco Regulatorio que dispõe sobre estratégias de gestão de recursos hídricos nas bacias dos rios Potí e Longá atende as formalidades necessárias ao estabelecimento de cooperação administrativa entre Entes Federativos. Inova em relação à experiencia do Sistema Curema-Açu, pois com a criação do Grupo de Articulação Institucional, com poder deliberativo e do Grupo Técnico Operacional, com o objetivo de dar suporte técnico para a definição, implementação e acompanhamento do Marco Regulatório oferece condições para que as regras de uso dos recursos hídricos negociadas entre os órgãos gestores tenham efetividade.


3.3. A Bacia do Rio Uruguai e a necessidade de adoção de um marco legal de regulação do uso das águas


A Bacia do Rio Uruguai é constituída de águas trasfronteiriças, com um quadro em que a escassez crescente, demandas competitivas e transferências de externalidades são recorrentes e com trechos com dominialidade de diferentes países soberanos (Argentina, Uruguai e Brasil), sendo que no Brasil com domínio de mais de um ente federativo (União e Estados do Rio Grande do Sul e Santa Catarina). Parcelas expressivas da bacia se encontram em territórios desses diferentes países, com distintos regimes jurídicos, políticas ambientais e políticas de recursos hídricos que em regra não se encontram harmonizados. Em conseqüência a preocupação com a universalização do acesso à água, sua conservação para fins múltiplos e a resolução de conflitos de usos tornam o tema prioritário.


A Agência Nacional das Águas (2007) considera que a Bacia Hidrográfica do Uruguai tem grande importância para o País em função das atividades agro-industriais desenvolvidas, pelo seu potencial hidrelétrico e por ser transfronteiriça. O rio Uruguai possui 2.200 quilômetros de extensão e se origina da confluência dos rios Pelotas e Peixe. Nesse trecho, o rio assume a direção leste-oeste, dividindo os estados do Rio Grande do Sul e Santa Catarina. A Bacia Hidrográfica possui, em território brasileiro, 174.612 Km² de área, o equivalente a 2,0% do território nacional. Em função das suas características hidrológicas e dos principais rios formadores, a área foi dividida em 13 unidades hidrográficas, sendo que 4 ficam no estado de Santa Catarina e 9 no estado do Rio Grande do Sul. Cerca de 3,8 milhões de pessoas vivem na parte brasileira da região hidrográfica do Uruguai, com maior concentração nas unidades hidrográficas de Chapecó, Canoas, Ibicui e Turvo.


3.3.1 – Mecanismos Inconstitucionais de Cooperação no âmbito internacional


Como marco para a gestão sustentável dos recursos hídricos na Bacia do Prata, da qual faz parte a Bacia do Uruguai, o Brasil construiu juntamente com os países fronteiriços o Tratado da Bacia do Prata, mecanismo institucional de cooperação que contribui para a continuada cooperação e a ausência de conflitos com os países vizinhos. Esse tratado, desde que efetivamente operacionalizado pode se apresentar como uma alternativa institucional adequada para viabilizar a gestão integrada nessa região, mostrando-se mais eficaz que os tratados mais universais que em regra apresentam limitações na sua efetividade.


Várias experiências no mundo apontam nessa direção, tendo nesses casos sido relatado progresso significativo da legislação internacional sobre cursos de água e uma aceitação crescente dos países em cooperar no gerenciamento de rios compartilhados.


Chenoweth (2000) relata que o caso da bacia do Mekong fornece exemplo de como regras internacionais de cursos de água podem ser aplicadas e formar a base de acordos de cooperação onde fiquem estabelecidos: acesso e troca de dados hidrológicos adequados e precisos; diagnóstico sobre suprimento de água para uso doméstico, irrigação e gerenciamento de secas e acordos de utilização eqüitativa sobre captação de água. Procedimentos todos baseados em dados confiáveis e com aceitação mútua entre os países.


Na bacia do Nilo, os países estão tomando as primeiras providências no sentido da cooperação através da “Conferência do Nilo”, e na coleta de dados e monitoramento do rio. Esses passos iniciais, segundo CARROL, (1999) são os fundamentos para um próximo acordo. Um sistema de captação de água integrado ao setor energético, à proteção ambiental e ao controle de enchentes fornecerá incentivos para a negociação da captação da água no futuro essencial para prevenir conflitos, uso indiscriminado e degradação do rio.


Nessas experiências relatadas há condições de se verificar, no nível internacional, a existência de esforços para a cooperação na gestão de rios compartilhados. Também é relevante considerar a importância em respeitar os contextos culturais, econômicos, e políticos específicos em reformas da legislação na gestão de recursos hídricos. Godden (2005) enfatiza que embora as evidências científicas sejam claras quanto aos limites ambientais dos recursos hídricos em cada país, como a longa degradação dos ecossistemas aquáticos, e apesar do reconhecimento da necessidade de medidas urgentes para registrar a degradação da água, a implantação dessas medidas é filtrada através de complexas prioridades humanas.


3.3.2 – A necessidade de criação de Mecanismos Inconstitucionais de Cooperação no âmbito interno


No Brasil a dominialidade das águas é de competência da União e dos Estados. Há ainda que se considerar que as bacias hidrográficas se constituem na base para o planejamento e a gestão dos recursos hídricos. Assim temos a bacia hidrográfica uma unidade ambiental única, integrada e harmônica e as divisões político-administrativas com uma vinculação a fatores culturais e históricos.


O uso do solo na bacia do Uruguai está vinculado principalmente às atividades agropecuárias e agroindustriais; os principais problemas ambientais encontrados são: despejo de efluentes domésticos sem tratamento nos cursos de água; despejo de efluentes agroindustriais nos cursos de água originados principalmente da suinocultura e avicultura; manejo inadequado de resíduos sólidos urbanos e industriais; drenagem de áreas de banhados e de cursos de água pela lavoura irrigada; desmatamentos, remoção de camadas de solo, desagregação de material rochoso e alteração das características físicas e químicas do solo e da água por atividades mineradoras; exploração indiscriminada de água de subsolo; erosão e compactação do solo agrícola; assoreamento dos cursos de água; contaminação do solo e da água por agrotóxicos e insumos químicos; desmatamento de áreas remanescentes de mata nativa, principalmente ao longo dos cursos de água; processo intenso de arenização; enchentes e estiagens periódicas (BRASIL, 2006).


Neste cenário fica demonstrada a necessidade de integração e de harmonização de procedimentos na gestão de recursos hídricos no trecho da Bacia em que o Rio Uruguai se encontra sob jurisdição brasileira, o que pode ser alcançado através do estabelecimento de um marco regulatório de uso da água. Essa estratégia de gestão pode ser construída através de um conjunto de regras e critérios acordados e harmonizados entre as autoridades outorgantes, contemplando cadastro, outorga, monitoramento e fiscalização. Por envolver bacia hidrográfica com trechos de dominialidade da União e outros trechos com dominialidade dos Estados do Rio Grande do Sul e Santa Catarina, para a sua expedição, em respeito ao pacto federativo, necessita da adoção de institutos de cooperação administrativa, podendo ser concretizado através de convênio de integração entre a Agencia Nacional de Águas e os representantes dos Estados convenentes.


4 CONCLUSÃO


O atual texto constitucional dispõe sobre a cooperação entre os entes federados, na gerência dos serviços públicos como espécie de colaboração para um objetivo comum e a Lei 9433/97 determina a articulação da União com os Estados para o gerenciamento dos recursos hídricos de interesse comum. No entanto, no plano da efetividade, o instrumental jurídico disponível para a cooperação administrativa ainda é pouco utilizado.


No estudo de bacias, incluindo as águas transfronteiriças, a abordagem integrada é fundamental, uma vez que promove a utilização e a gestão coordenada da água e solo contribuindo para a cooperação e a ausência de conflitos entre Países soberanos e entre entes autônomos de um Estado Federal com interesses a montante e a jusante.


A Bacia do Rio Uruguai, por ser transfronteiriça e em função das atividades agroindustriais e do seu potencial hidrelétrico, possui grande importância para o País. Em face do complexo cenário existente, decorrente de conflitos de domínio, e das diversas demandas, a utilização de Marco Regulatório nessa bacia enquanto marco legal de regulação do uso das águas, trata-se de uma estratégia a ser considerada como forma de prevenir e resolver problemas, tensões e déficits hídricos.


 


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RESOLUÇÃO CONJUNTA ANA/SRH-CE/CEMAR-PI Nº 547 de 5 de dezembro de 2006.

RESOLUÇÃO ANA 687 de 03 de dezembro de 2004.


Informações Sobre os Autores

Celmar Corrêa de Oliveira

Doutorando em Recursos Hídricos e Saneamento Ambiental no Instituto de Pesquisas Hidráulicas da UFRGS. Possui mestrado em Direito, linha de pesquisa: Direito Ambiental e Biodireito pela Universidade de Caxias do Sul (2002), especialista em Direito e em Educação, graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1992), graduação em Educação Física pela Escola de Educação Física do Exército (1977); professor concursado da Universidade Estadual do Rio Grande do Sul, na área de Gestão Pública. Tem experiência na área de Direito Público Gestão Pública, Gestão de Recursos Hídricos e Saúde Coletiva, atuando principalmente nos seguintes temas: direito constitucional, direito ambiental, gestão ambiental, gestão pública, gestão de recursos hídricos direitos sociais, sociedade de risco, democracia.

Carlos André Bulhões Mendes

Engenheiro Civil,
Mestre em Recursos Hídricos e Saneamento Ambiental, UFRGS, Brasil
Doutor em Planejamento Ambiental (Ph.D.), 1994University of Bristol, Bristol, England,
Professor no Instituto de Pesquisas Hidráulicas – IPH/UFRGS


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