A globalização e seu impacto sobre a noção de Estado

Trata-se de uma abordagem referente aos problemas adjetivos à evolução da noção de Estado no cenário mundial em razão do fenômeno da globalização. Para tanto, iniciaremos a investigação científica a partir de breve delimitação do dito fenômeno, caminhando pelo nascedouro do organismo social estatal até alcançar noção moderna deste.

Nas últimas décadas a comunidade global vem sofrendo uma alteração na ordem internacional. Trata-se de fenômeno integralizante dos mercados mundiais, reestruturando as ordens de cada Estado nacional, implicando em certa perda da governabilidade do Estado (sujeição à ordem internacional), em detrimento da noção de universalidade das relações e comportamentos mundiais.

O fato força-nos ao retorno da questão da mutabilidade da noção de Estado cuja origem reporta-se à Antigüidade, na lição de Darcy Azambuja[1]:

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O Estado, porém, não é imutável, é uma das formas da dinâmica social, é a forma política da socialidade, como diz Sturzo (Essai de Sociologie, pág. 61), e por isso varia através do tempo e do espaço. O Estado antigo, o Estado medieval, o Estado que se organizou sob a influência das idéias da Revolução Francesa, eram diferentes do Estado contemporâneo […]. Além disso, em todas as épocas o homem desejou modificar e quase sempre modificou o Estado em que vive.

A nova ordem globalizada advém tanto da intensa circulação de bens, de capitais e tecnologias, como também da universalização de patrões culturais e da necessidade de equacionamento de problemas que afetam na totalidade do planeta.

A globalização, ao se proliferar em toda comunidade internacional, surge como uma saída para a crise do modelo fordista[2], proporcionando uma mudança de mentalidade, com a valorização da qualidade de vida dos povos, dos direitos humanos, da solidariedade, além de trazer novas tendências para a ordem internacional, como um sistema de produção mais flexível, prevalecendo a busca pela qualidade da produção e de trabalhadores multifuncionais, dando maior ênfase à terceirização.

Na medida em que se expande, a globalização traz consigo uma nova ordem supranacional: busca a harmonia das diversas ordens jurídicas. Sua influência atinge as relações dos aparelhos jurídicos dos diversos países, refletida na adoção de tratados e convenções internacionais. As normas aplicadas pelo Estado, já não são mais de sua autoria exclusiva, posto que freqüentemente este aplica normas de outras soberanias.

A questão da soberania[3], inclusive, reforça a idéia de mudança na concepção do Estado Moderno. Desde o século XVI – período em que o Estado adquire a roupagem absolutista – a noção de Estado varia incomensuravelmente. Entendia-se que o governante fora legitimado pelo povo como o único capaz de estabelecer normas.

Na visão contratualista de Hobbes há verdadeiro pacto de submissão atrelado ao monarca, sendo impensável a flexibilização da soberania, como nos tempos modernos. É o que se extrai da obra “O Leviatã” citada por Renato Janine Ribeiro[4], ao analisar o autor supra:

[…] é como se cada homem dissesse a cada homem: Cedo e transfiro meu direito de governar-me a mim mesmo a este homem, ou a esta assembléia de homens, com a condição de transferires a ele teu direito, autorizando de maneira semelhante todas as suas ações.

Hodiernamente, nota-se que o Estado não consegue mais ser o único centro de poder, eis que a nova ordem mundial demanda uma interdependência entre os Estados.

O Brasil, por exemplo, é signatário de diversos tratados internacionais, como o Pacto de São José da Costa Rica[5], o qual trata, dentre outros assuntos, da vedação de prisão por dívida. É signatário, também de tratados junto ao Mercosul que, pelo Cronograma de Las Lenãs, criado pela Decisão Mercosul/ CMC/ Dec. Nº 1/92, dissecou de maneira mais pormenorizada as relações coletivas e individuais de trabalho.

Nesse contexto, as autoridades internacionais encontraram nos Tribunais Internacionais uma forma de melhor integralizar e harmonizar as relações entre as nações, como por exemplo, em matéria penal, pela criação do Tribunal Penal Internacional (17/07/1998, Roma). Este Tribunal atua em circunstâncias excepcionais, pois adota o princípio da complementariedade nos casos em que se configure “incapacidade” ou “falta de disposição” dos Estados de processar os responsáveis pelos crimes incluídos na jurisdição do Tribunal.

Coerente com a nova mentalidade internacional, o constituinte derivado acrescentou, por intermédio da Emenda Constitucional nº 45/2004, o §4º ao artigo 5º da Constituição Cidadã (1988)[6], com o seguinte teor: “O Brasil se submete à jurisdição de Tribunal Penal Internacional a cuja criação tenha manifestado adesão.”

Nota-se, pois, que os reflexos dos novos tempos são encontrados em campos variados, mas ditados entre outros pelo mercado mundial e pelas alianças militares. Atento ao fato, Nicola Matteucci[7] constata verdadeira crise na soberania, afirmando que:

Está desaparecendo a plenitude do poder estatal, caracterizada justamente pela Soberania; por isso, o Estado acabou quase se esvaziando e quase desaparecendo seus limites. […] O golpe maior veio das chamadas comunidades supranacionais, cujo objetivo é limitar fortemente a Soberania interna e externa dos Estados-membros. […] desapareceu o poder de impor taxas alfandegárias, começa a sofrer limitações ao poder de emitir moeda. […] A plenitude do poder estatal se encontra em seu ocaso; trata-se de um fenômeno que não pode ser ignorado.

Destarte, existe um processo de harmonização das legislações dos Estados, rumo à construção de um Direito Comunitário, sendo isto possível pelo impulso da globalização. É certo que as Nações ainda apresentam realidades díspares, entretanto, o Mundo avança para adequar as estruturas, conceitos, costumes, entre outros fatores, à uma realidade uniformizada e atendente aos anseios gerais da comunidade global.

 

Referências
AZAMBUJA, Darcy. Teoria Geral do Estado. 42. ed. São Paulo: Globo, 2002, p. 06.
BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de Política. vol. 2. 5. ed. Brasília: Edunb, 1993, 1318 p.
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal, 1988.
BRASIL. Decreto 678, de 06 de novembro de 1992. Promulga a Convenção Americana sobre Direitos Humanos – Pacto de São José da Costa Rica. In: ____. Diário Oficial da União. Brasília, 1997.
CAVARZERE, Thelma Thais. Direito internacional da pessoa humana. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. 333 p.
DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. 15 ed. São Paulo: Saraiva, 1991, 259 p.
SANTOS, Boaventura de Sousa. A globalização e as ciências sociais. Rio de Janeiro: Cortez, 2002. 572 p.
WEFFORT, Francisco [org.]. Os clássicos da política. vol. 1. 3. ed. São Paulo: Ática, 1991, 287 p.
 
Notas
[1] AZAMBUJA, Darcy. Teoria Geral do Estado. 42. ed. São Paulo: Globo, 2002, p. 06.
[2] Conjunto de teorias de administração industrial preconizadas por Henry Ford (1863 – 1947).
[3] Dalmo Dallari, ao analisar o conceito de soberania, expõe que: “Procedendo a uma síntese de todas as teorias formuladas, o que se verifica é que a noção de soberania está sempre ligada a uma concepção de poder, pois mesmo quando concebida como centro unificador de uma ordem está implícita a idéia de poder de unificação.” DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. 15 ed. São Paulo: Saraiva, 1991, p. 68.
[4] WEFFORT, Francisco (org.). Os clássicos da política. vol. 1. 3. ed. São Paulo: Ática, 1991, p.62.
[5] BRASIL. Decreto 678, de 06 de novembro de 1992. Promulga a Convenção Americana sobre Direitos Humanos – Pacto de São José da Costa Rica. In: ____. Diário Oficial da União. Brasília, 1997.
[6] BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal, 1988.
[7] BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de Política. vol. 2. 5. ed. Brasília: Edunb, 1993, p. 1187.

Informações Sobre o Autor

Graziella Maria Deprá Bittencourt

Especialista em Direito Público e Processual Público pela Cândido Mendes/Consultime (ES). Professora dos Cursos de Graduação em Direito do UNESC – Centro Universitário do Espírito Santo (Campus II), da UVV – Centro Universitário Vila Velha e da Faculdade Estácio de Sá de Vitória.


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