A greve no serviço público

1. Prenúncio.


A liberdade sindical, que compreende o auto-governo das ações para a defesa dos interesses profissionais, tem sido elencada como premissa para sociedade verdadeiramente democrática. Para que uma sociedade seja realmente livre e democrática, deve comportar as possibilidades de organização e atuação coletiva dos trabalhadores em busca das liberdades sociais. Neste particular, sindicato e greve são instituições que corroboram com o ideal contemporâneo de democracia.


Todavia, ainda se encontra na doutrina e em julgados restrições destas liberdades sindicais a uma certa categoria de trabalhadores: os servidores públicos. Cumpre, então, enfrentar o direito de greve no Serviço Público numa perspectiva compromissária da efetivação dos direitos sociais e da máxima eficácia das normas constitucionais.


Neste intento, é necessário perpassar historicamente o fenômeno da greve para a adequada compreensão do seu sentido e posterior caracterização conceitual. Adiante, tratar-se-á da temática da liberdade sindical e o direito de greve para o âmbito do Serviço Público, enfocando suas especificidades, para que se possa analisar criticamente os fundamentos do entendimento do Supremo Tribunal Federal no pertine ao exercício do direito aludido.  


2. A autotela laboral coletiva.


Preliminarmente, é mister compreender a greve como manifestação fidedigna de autotutela coletiva nas relações de trabalho. Trata-se de instrumento de que se vale a coletividade para reivindicar melhores condições de trabalho, mediante atuação própria e direta. É meio de autodefesa porque seu exercício independe de autorização ou manifestação do Estado ou do sujeito passivo, conforme leciona Ronald Amorim:


“A idéia de autotutela pode significar, num primeiro e precipitado pensamento, uma ação permitida ao indivíduo para proteção ou defesa de seus interesses, sem a invocação dos mecanismos ou do aparelhamento que a ordem pública lhe põe à disposição com tal objetivo”. (SOUZA, 2004, p. 39).


Destaca-se que a idéia autotutela não surge com exclusividade na seara laboral, ocorrendo como exceção nos ordenamentos jurídicos em observância ao princípio do monopólio estatal na resolução dos conflitos, através da prestação jurisdicional. Apesar da regra posta, tem-se a legítima defesa e o estado de necessidade no âmbito penal, à superação do perigo iminente, o desforço incontinenti e algumas prerrogativas do direito de vizinhança no Direito Civil, bem como no Direito Comercial e Aeronáutico a prerrogativa de desfazimento da carga ante ao perigo manifesto. Em tais situações, o ordenamento jurídico positivo consagra a autotutela, como faz de igual modo com a greve.


A consagração contemporânea no direito positivo da greve não desvela a historicidade que lhe deu origem. De fato, a atipicidade e mutabilidade da greve no plano jurídico denotam um processo histórico árduo de afirmação fática deste instituto. Convém enunciar a orientação histórica que seguiu o direito de greve de delito (repressão) em seus primórdios para, tempos depois, ser fato jurídico (tolerância), reconhecimento amplo (positivação) e regulamentação (limitação).


Em síntese apressada, a greve inicialmente era tida como fato antijurídico, inclusive com a tipificação de crime de conspiração, a exemplo das Combination Act’s de 1799 -1800 na Inglaterra ou mesmo o Código de Napoleão de 1810 na França que imputava à greve a qualificação de crime apenado com prisão e multa. A fase seguinte da descriminalização, conquistada a muito custo, suor e sangue, bem sintetizado por Márcio Túlio Viana na assertiva de que “O Direito do Trabalho é obra desses homens que se perderam, por já não terem o que perder” (VIANA, 2005, p. 261), implicou o momento de tolerância com as associações sindicais. Somente em 1947, a Lei Tafty-Hartley nos Estados Unidos dispões expressamente sobre o reconhecimento do direito de greve, iniciando a fase da positivação.


A partir desta crua alusão histórica, pode-se compreender a evolução do direito de greve como intrinsecamente associada ao modelo político vigente, como explica o professor fluminense Arion Sayão Romita, socorrendo-se da tricotomia de Piero Calamandrei:


“a) greve-delito – concepção paternalista e autoritária do Estado, ou seja, regimes corporativos aparelhados de órgaos destinados a solucionar por via impositiva o conflito coletivo de trabalho (competência normativa dos Tribunais do Trabalho); b) greve-liberdade – concepção liberal do Estado, que se desinteressa da greve, tida como fato socialmente indiferente, sujeita apenas a punição quando enseja violência ou atos de perturbação da ordem pública: enquanto episodio de luta de classes, o Estão assiste como mero expectador; c) greve-direito – concepção social-democrática do Estado – a greve é considerada socialmente útil e é protegida pelo ordenamento jurídico”. (ROMITA, 1998, p. 592-593)


No Brasil, o Código Penal de 1890 atribuía à paralisação coletiva a qualidade de delito, contudo o citado artigo não vigorou por mais do que três meses, quando fora revogado passando à omissão normativa acerca da greve. A Carta de 1937, com a índole notoriamente fascista, (re)introduziu a  proibição,  definindo-a como recurso anti-social, complementando-se com a Legislação Penal de 1940. A Constituição de 1946 garantiu o direito de greve, embora o Decreto Lei 9.070/46 tenha limitado seu alcance a partir de uma regulamentação excessivamente restritiva. Durante a Ditadura Militar, novas regulamentações restritivas foram acrescidas com a Lei 4.030/64 e Decreto-Lei 1.632/78. Felizmente, a Constituição de 1988 assegurou a amplitude inédita ao direito de greve, que seria limitada pela Lei 7.783/89 – frisamos a célere atuação legiferante para limitar o texto constitucional, destinada à regulamentação do seu exercício.


A rápida descrição acima confirma a assertiva de Rodrigues Pinto que a história da greve como “a saga para a consolidação de uma morfologia jurídica levou-a do extremo de delito ao de Direito Constitucional” (PINTO; 2000, p. 105). Independentemente da sua natureza jurídica, a paralisação coletiva do trabalho compreende a resposta máxima dos trabalhadores às condições gravosas de trabalho, configurando-se como atos de insurgência e rebeldia, objetivando forçar o empregador a proceder a negociação coletiva.


Neste sentido, o conceito de greve foi precisamente articulado, com singular expressividade, pelo professor baiano Washington da Trindade como “Direito de Prejudicar” (apud RIBEIRO, 1998, p. 509 ). Jean Claude Janvillier define como “cessação concertada do trabalho pelos assalariados, visando constranger o empregador, por esse meio de pressão, a ceder à suas reivindicações sobre a questão que é objeto do litígio” (apud SUSSEKIND, 2002, p. 591). 


Para Arion Romita a greve consiste na “abstenção coletiva de trabalho deliberada por uma pluralidade de trabalhadores (do setor privado ou do público) para obtenção de um fim em comum.” (ROMITA, 1998, p. 593)


Francesco Santoro-Passarelli (1995, p. 63) desnuda o significado jurídico do reconhecimento do direito de greve. “A abstenção concertada do trabalho para a defesa dos interesses profissionais coletivos que não constitui inadimplemento da obrigação de trabalhar” (l’astensione concertata dal lavoro per la tutela di interessi professionali colletivi non constituisce inadempimento dell’obbligazione di lavoro).


O histórico da positivação do direito de greve teve como resultado seu reconhecimento como direito fundamental, com a devida inscrição na Carta Magna. Pondera José Afonso (2003, p. 303), baseando na melhor técnica constitucional, que não se trata de direito, mas sim de garantia, uma vez que assegura faculdade da paralisação coletiva como meio de forçar, durante o processo negocial, o atendimento aos reclames de melhores condições de trabalho. Não sendo um fim em si mesmo, eis que a greve serve instrumentalmente à negociação coletiva, configura-se como garantia.


Prossegue José Afonso atribuindo à garantia de greve, elencado no artigo nono da Constituição uma compreensão ampla, em consonância os preceitos e valores constitucionais da liberdade sindical.


“Diz-se que a melhor regulamentação do direito de greve é a que não existe. Lei que venha a existir não deverá ir no sentido da sua limitação, mas de proteção e garantia. Quer dizer, os trabalhadores podem decretar greves reivindicativas, objetivando a melhoria das condições de trabalho, ou greves de solidariedade, em apoio a outras categorias ou grupos reprimidos, ou greves políticas, com o fim de conseguir transformações sócio-econômicas que a sociedade requeira, ou greves de protesto.” (SILVA, 2003, p. 304)


A amplitude pugnada pelo constitucionalista, infelizmente, não tem sido acolhida pelos Tribunais Regionais do Trabalho, que, de maneira conservadora, qualificam como greves abusivas aquelas não atinentes às condições de trabalho, como as greves políticas ou de solidariedade. Da mesma forma, a liberdade sindical e amplitude da greve consagradas devem ser alocadas também nas relações coletivas de trabalho no Serviço Público.


3. Relações Coletivas de Trabalho no Serviço Público.


A nota diferencial das atividades desenvolvidas pelo Serviço Público, quando comparadas com a iniciativa privada, refere-se à inexistência de intento lucrativo, eis que os interesses perseguidos pela Administração Pública são os interesses de toda a comunidade. A prestação do serviço em prol do bem comum, aloca o servidor público em um patamar teoricamente superior, singularmente dirigido pelo princípio da continuidade do Serviço Público.


Para a realização deste bem comum, a Administração Pública organiza-se em múltiplos entes, com competências, funções e âmbitos distintos, centralizados ou dispersos, vide artigo 37 da Constituição e o Decreto 200 de 1969. A pluralidade organizativa também engendra uma pluralidade nos vínculos de trabalho. Pode-se delinear, pelo menos, quatro modalidades de vínculos: a) os agentes políticos, tais como chefes do Poder Executivo, Parlamentares, Juízes, Promotores e Procuradores, regidos por leis próprias; b) os servidores público com vínculo institucional, regidos pela lei 8112/90; os empregados públicos, submetidos aos contrato de trabalho, regulado pela Consolidação das Leis do Trabalho, com algumas derrogações pelos artigos 37 a 41 da Constituição; d) os trabalhadores temporários, contratados em regime de exceção, com vínculo estatutário ou contratual, conforme função desenvolvida. As outras modalidades, como militares e funções de confiança, não serão analisadas, em razão das particularidades que lhe cercam.


Quando se lida com empregados das Empresas Públicas ou Sociedades de Economia Mista, componentes da Administração Pública Indireta, não se vislumbra qualquer problema quanto ao exercício da sua liberdade sindical, em especial do direito de greve. Isto se explica em face do quanto estipulado no artigo 173, § 1º, que estabelece o regime de Direito Privado para estes entes estatais.


Em consideração à finalidade do bem comum, esperava-se que as condições de trabalho no Serviço Público estivessem em patamares remuneratórios superiores ao da iniciativa privada, ou senão, quando garantias que atribuíssem interesse pelo ingresso no serviço. Efetivamente, este perfil foi o caracterizador no trabalho no âmbito do Estado. Contudo, o que se tem verificado nos últimos anos é uma verdadeira precarização ou aviltamento do trabalho no Serviço Público.


Neste direcionamento, o servidor público não se relacionava com o Estado nos moldes do conflito capital-trabalho, pois sua condição estatutária enseja a personificação do interesse público materializado na atuação do servidor. A condição de ingresso no Serviço Público envolvia, assim, uma idéia de fidúcia, expressa pela capacidade do servidor em representar a atuação pública, desconfigurando o conflito de classe (porque não havia empregador, ou mesmo que este era a própria coletividade) e, por conseguinte, tornava desnecessária a ação sindical, conforme relato de Washigton da Trindade:


“Explicava-se, pois, o papel do servidor público encarnando o órgão a que estava vinculado, não apenas para exercer a função, mas representá-lo, transmudando-se na pessoa jurídica como ente moral, segundo o estatuto que normativa seus atos. Para essa concepção jurídica do Estado a sindicalização dos seus servidores seria algo impensável, sobretudo pela fidúcia imanente que nascia das relações entre o Poder Público e seus servidores, mais precisamente, seus funcionários”. (TRINDADE, 1989, p. 416)


Os avanços tecnológicos e científicos, especialmente acelerados pelo processo de globalização, importaram um redimensionamento da relação trabalhador no âmbito estatal. “A concepção fiduciária do Poder Público caiu do seu pedestal por influencia da aceleração científica e tecnológica, que exigiu uma revisão da Teoria do Estado e na teoria da Sociedade Civil” (TRINDADE, 1989, p 422).


Arion Sayão Romita elucida os argumentos articulados no Brasil que obstacularizam o direito de greve no serviço público:


“Argumenta-se que o trabalho dos servidores públicos afeta de forma mais acentuada o interesse de maior número de membros da coletividade. As greves no serviço público infligem um dano maior à coletividade do que à administração. Além disso, os funcionários públicos gozam de uma série de vantagens que reforçam seu poder de barganha, a começar pela garantia de emprego e pela quase certeza, no Brasil, de que os vencimentos correspondentes aos dias de paralisação não deixarão de ser pagos. Os serviços públicos funcionam em regime de monopólio, de sorte que seus usuários, em caso de greve, não encontra alternativa, sofrendo incômodos injustificáveis”. (ROMITA, 1998, P. 591).


Além disto, o programa neoliberal em muito contribuiu com este novo modelo de Estado, ao pugnar por um Estado mínimo e não-intervencionista. Considerando, pois, que a intervenção estatal na economia, principalmente através das regulações jurídicas e das garantias dos direitos sociais, produz obstáculos e dificuldades para o processo de acumulação de capital e, por conseqüência, prejudica o desenvolvimento do Capitalismo, e que, portanto, precisão ser eliminados. A redução da intervenção estatal proposta se dá através do controle fiscal e inflacionário, privatizações de empresas públicas, redução dos investimentos estatais nas áreas sociais, redução de direitos trabalhistas, política de juros altos, entre outros.


Este modelo político-econômico hegemônico (re)afirma um (neo)liberalismo defensor de um Estado Mínimo, especificamente na seara pública, por meio de um quadro funcional quantitativamente reduzido,  e, de igual, com padrões remuneratórios enxutos e limitados.  A piora nas condições de trabalho no Serviço Público desvela-se pelas incontáveis greves ocorridas nos últimos anos, reveladoras do sentido original da paralisação coletiva: reação última contra condição gravosa de trabalho, insustentável.


Tem-se uma “erosão gradual do poder de decisão unilateral das autoridades governamentais em matérias de relações de trabalho.” (SILVA, p. 253) pressupõe o crescimento dos trabalhadores públicos, de suas organizações, deterioração das condições de trabalho.  Pinho Pedreira (1998, p. 253) prossegue elencando algumas justificativas para essa “erosão”:


a) A deterioração das condições de trabalho no Serviço Público;


b) A inferioridade dos servidores públicos perante os trabalhadores privados, que obtinham vantagens trabalhistas advindas da negociação coletiva, que é inexistente no Serviço Público;


c) A expansão do número de servidores;


d) O reconhecimento de sindicatos no Serviço Público.


Todos estes fatores descuram uma conflituosidade na relação contemporânea entre o Estado e seu servidor anteriormente inexistente.


Agregando mais combustível à incipiente conflituosidade, as normas da Organização Internacional do Trabalho – OIT confirmam a idéia do conflito entre Poder Público e servidores. Para além das disposições sobre a liberdade sindical (Convenção 87 e 98) e da negociação coletiva (Convenção 154) dirigidas expressamente aos trabalhadores do setor privado, a Convenção 151 da OIT destina-se, explicitamente, a afirmar o direito à sindicalização e à negociação coletiva dos trabalhadores do setor público.


Reconhecida a liberdade sindical para os servidores públicos, consoante artigo 37, VI, o exercício do direito de greve há de ser assimilado como a materialização deste, porque é meio de defesa dos interesses profissionais. A tríade sindicato-negociação-greve é indissociável. Pela sua simbologia e expressividade, a lição da Mário De La Cueva acerca da liberdade sindical, situa de forma fidedigna a imprescindibilidade da paralisação coletiva para devida e combativa atuação sindical dos servidores público:


“A doutrina poder ser representada graficamente como um triângulo eqüilátero, cujos ângulos, todos idênticos em graduação, seriam o sindicato, a negociação coletiva e a greve, de tal maneira que nenhuma das três figuras da trilogia poderia faltar porque desaparecia o triângulo. Donde resulta falsa e enganosa a afirmação de que a associação profissional é possível na ausência do direito à negociação coletiva e contratação coletiva ou da greve, pois se o Direito do Trabalho assegura a vida dos sindicatos é para que lutem pela realização de seus fins.” (apud PEDREIRA, p. 259).


Tudo isto conduz ao reconhecimento da atuação coletiva dos servidores públicos que, para obtenção de suas reivindicações perpassa indubitavelmente pelo princípio meio de pressão dos trabalhadores: a greve. 


4. Greve no serviço público.


A história superou a pseudo incompatibilidade da paralisação concertada no Serviço Público, dirimido a colisão entre os direitos sociais dos servidores públicos e o princípio da continuidade dos serviços públicos, notadamente aqueles essenciais à população. Relembra-se que a Constituição de 1967, emendada em 1969, proibia o direito de greve no serviço público e nas atividades essenciais, dispositivo felizmente superado pela atual norma fundamental. Contudo, alguns países ainda não reconhecem o direito de greve neste âmbito, tais como a Alemanha, Dinamarca, Bélgica, Suíça, entre outros. A Constituição Brasileira em vigor trilhou o caminho mais democrático quando dispõe o seguinte:


Art 37 [omissis]


VI – é garantido ao servidor público civil o direito à livre associação sindical;


VII – o direito de greve será exercido nos termos e nos limites definidos em lei específica;”


Todavia, a norma fundamental excepcionou, ressalvando a impossibilidade do direito de greve para duas categorias profissionais indispensáveis à manutenção do Estado e da ordem: os militares e policiais. Assim o fez, com esteio na Convenção 87 da OIT, que acolhe a inexistência de liberdade sindical e da atuação desta na seara militar e policial, em face da hierarquia imprescindível a toda organização militar, sendo um dos pilares basilares, e, de igual modo, sob pena de desestabilizar-se a ordem, quando da paralisação daqueles responsáveis pela atividade policial.


Reconhecida o direito de greve, a polêmica na doutrina jurisprudência nacional desloca-se para o plano da aplicabilidade do preceito constitucional. Neste percalço, duas correntes antagônicas se apresentavam.


A primeira aduzia que o artigo 37, IX tem eficácia limitada, ensejando a necessidade de criação de lei ordinária específica para consecução dos seus efeitos. Nesta corrente, o direito de greve no serviço público é desprovido de auto-aplicabilidade. Por conseguinte, há impedimento do exercício pelos servidores públicos do direito de paralisação coletiva do trabalho. Perfilham esta corrente constitucionalistas da estirpe de Celso Ribeiro Bastos, José Afonso da Silva, Celso Mello, entres outros.


No tocante à natureza e eficácia dos direitos fundamentais, como se caracteriza o direito de greve, José Afonso da Silva afirma que


“Por regras, as normas que consubstanciam os direitos fundamentais democráticos e individuais são de eficácia contida e aplicabilidade imediata, enquanto que as que definem os direitos econômicos e sociais tendem a sê-lo também na Constituição vigente, mas algumas, especialmente as que mencionam uma lei integradora, são de eficácia limitada, de princípios programáticos e de aplicabilidade indireta.” (SILVA, 2003, p. 180).


Nesta linha, o constitucionalista citado atribui ao direito de greve a eficácia limitada, o que hodiernamente, ante a inexistência de lei específica regulamentadora retira todos efeitos do dispositivo constitucional. José Afonso acrescenta, ainda, outro problema, pois “na prática, é quase o mesmo que recusar o direito prometido; primeiro porque, se a lei não vier, o direito inexistirá; segundo porque, não há parâmetro para o seu conteúdo, tanto pode ser mais aberta como mais restritiva” (SILVA, 2003, p. 180). Em 1996, tal postura foi acolhida no Supremo Tribunal Federal, consoante conhecido julgado do Mandado de Injunção (MI 20 – DF), ex vi:


“EMENTA: MANDADO DE INJUNÇÃO COLETIVO – DIREITO DE GREVE DO SERVIDOR PÚBLICO CIVIL – EVOLUÇÃO DESSE DIREITO NO CONSTITUCIONALISMO BRASILEIRO – MODELOS NORMATIVOS NO DIREITO COMPARADO – PRERROGATIVA JURÍDICA ASSEGURADA PELA CONSTITUIÇÃO (ART. 37, VII) – IMPOSSIBILIDADE DE SEU EXERCÍCIO ANTES DA EDIÇÃO DE LEI COMPLEMENTAR – OMISSÃO LEGISLATIVA – HIPÓTESE DE SUA CONFIGURAÇÃO – RECONHECIMENTO DO ESTADO DE MORA DO CONGRESSO NACIONAL – IMPETRAÇÃO POR ENTIDADE DE CLASSE – ADMISSIBILIDADE – WRIT CONCEDIDO. DIREITO DE GREVE NO SERVIÇO PÚBLICO. O preceito constitucional que reconheceu o direito de greve ao servidor público civil constitui norma de eficácia meramente limitada, desprovida, em conseqüência, de auto-aplicabilidade, razão pela qual, para atuar plenamente, depende da edição da lei complementar exigida pelo próprio texto da Constituição. A mera outorga constitucional do direito de greve ao servidor público civil não basta — ante a ausência de auto-aplicabilidade da norma constante do art. 37, VII, da Constituição — para justificar o seu imediato exercício. O exercício do direito público subjetivo de greve outorgado aos servidores civis só se revelará possível depois da edição da lei complementar reclamada pela Carta Política. A lei complementar referida — que vai definir os termos e os limites do exercício do direito de greve no serviço público — constitui requisito de aplicabilidade e de operatividade da norma inscrita no art. 37, VII, do texto constitucional. Essa situação de lacuna técnica, precisamente por inviabilizar o exercício do direito de greve, justifica a utilização e o deferimento do mandado de injunção. A inércia estatal configura-se, objetivamente, quando o excessivo e irrazoável retardamento na efetivação da prestação legislativa — não obstante a ausência, na Constituição, de prazo pré-fixado para a edição da necessária norma regulamentadora — vem a comprometer e a nulificar a situação subjetiva de vantagem criada pelo texto constitucional em favor dos seus beneficiários.” (MI 20, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 22/11/96).


A segunda corrente considera que o dispositivo constitucional tem eficácia contida. Isto é, é provido de todos efeitos e de auto-aplicabilidade, até que as normas disciplinadoras estabeleçam a regulamentação da matéria, observando sempre os limites constitucionais. Rafael Barreto delineia a as normas de eficácia contida:


“[…] são normas em que o constituinte regulou os interesses relativos à determinada matéria, mas abriu margem à atuação restritiva do Poder Público. Elas têm aplicabilidade imediata, direta e integral, mas podem ter seu alcance reduzido pela atividade do legislador infraconstitucional. Todavia, enquanto não vier a legislação restritiva, sua operatividade será plena”. (BARRETO, 2004, p. 268).


Nesta linha, há possibilidade do exercício do direito de greve no serviço, mesmo com a inexistência de lei regulamentadora, considerando que há possibilidade interpretativa de aplicação analógica do diploma específico da Lei de Greve (7783/89), particularmente das disposições das atividades essenciais. Com esta premissa, o Ministro do STF, Carlos Velloso, vencido à época, manifestou sua dissonância no voto proferido nos Mandados de Injunção 369-DF, 219-DF, 384-RJ, 429-RJ, 95-RR, 124-Sp e 278-MG:


Assim, Sr. Presidente, passo a fazer aquilo que a Constituição determina que eu faça, como juiz: elaborar a norma para o caso concreto, a norma que viabilizará, na forma do disposto no art. 5º, LXXI, da Lei Maior, o exercício do direito de greve.


A norma para o caso concreto será a lei de greve dos trabalhadores, a Lei 7783/89. … Sei que na Lei 7783 está disposto que ela não se aplicará aos servidores públicos. Todavia, como devo fixar a norma para o caso concreto, penso que devo e posso estender aos servidores públicos a norma já existe, que dispõe a respeito do direito de greve”. (VELLOSO; 1998, p. 565).


O constitucionalista Dirley da Cunha, de igual modo, diverge do STF, invocando o atributo da aplicabilidade imediata da norma constitucional que assegura o direito de greve no serviço público, vejamos:


“Entendemos, todavia, que a norma do art. 37, VII, da Constituição, é de eficácia contida e, nos termos, do § 1º do art.5º, de aplicabilidade imediata, podendo o direito nela consagrado ser exercido independentemente de lei reguladora. Assim, a lei a que a norma em tela faz menção só é indispensável para a fixação dos limites do exercício do direito de greve, não para o próprio desfrute deste”. (CUNHA JR, 2005, p. 232).


Cabe também transcrever a posição de Rafael Barreto:


“Inobstante elevado magistério que é comum à Colenda Suprema Corte, este entendimento é execrável, pois trata-se de norma constitucional com eficácia contida, e não de eficácia limitada como se quer afirmar. Trata-se, como foi visto, de dispositivo com aplicabilidade plena desde a entrada em vigor da constituição até o surgimento até o surgimento da lei restritiva, motivo não havendo para reprimir o exercício do direito de greve do servidor público”. (BARRETO, 2004, p. 271).


Esclareça-se que aplicabilidade imediata provém da consideração, adequada e contemporaneamente correta, do direito de greve como direito fundamental social, ou seja, integrante dos direitos humanos de segunda geração. Destarte, Washigton da Trindade assevera que “a natureza de um direito do fenômeno da greve decorre de um reconhecimento expresso do legislador fundamental. Quando legislador consagra um direito, a ninguém, nem mesmo ao Judiciário, é dado negar sua existência”. (TRINDADE, 1998, p. 477).


Deve-se, então, realizar o processo hermenêutico no viés da efetividade das normas constitucionais, e não endossar interpretações restritivas, como a que considera o direito de greve no Serviço Público uma norma de eficácia limitada. Sendo a Constituição depositária dos anseios e do programa de uma sociedade, o dever dos operadores jurídicos vincula-se a concretizar, na realidade (efetivar), os preceitos constitucionais. Esta diretriz é denominado de princípio da máxima eficácia constitucional ou princípio da efetividade, como sustenta Luis Roberto Barroso:


“O intérprete constitucional deve ter o compromisso com a efetividade da Constituição: entre interpretações alternativas e plausíveis, deverá prestigiar aquela que permita a atuação da vontade constitucional, evitando, no limite do possível, soluções que se refugiem no argumento da não auto-aplicabilidade da norma ou na ocorrência de omissão do legislador”. (BARROSO, 2003, p. 316).


Na lição do constitucionalista citado, não há dúvidas que a leitura (sob foco do princípio da efetividade) do artigo 37, VII condiz com qualificação de norma de eficácia contida e aplicabilidade imediata. Dirley Cunha arremata:


“Ademais, o direito de greve, como autêntico direito de defesa, não depende de nenhuma prestação positiva do Estado. Logo, uma vez reconhecido constitucionalmente, como efetivamente foi, pode ser exercitado imediatamente, sob pena de, por absurdo, se admitir que uma lei (a que o art. 37, VII, faz referência) tenha mais força que a própria Constituição!” (CUNHA JR, 2005, p. 232).


No mesmo caminho, segue o Procurador do Trabalho Carlos Henrique Bezerra Leite acrescendo que a Emenda Constitucional nº 19/98 ao alterar o texto maior, suprimiu a exigência de lei complementar, dando azo a aplicação de norma já existente (lei de greve), posto que é norma específica sobre a matéria.


Cremos que, em virtude da novel Emenda Constitucional ri. 19/98, que não mais menciona ´lei complementar”, mas, tão-somente, “lei especifica”, a orientação até então reinante no Pretório Excelso está a exigir urgente modificação.


Ora, diante do atual texto constitucional, parece-nos que, enquanto não for editada a referida lei específica para regular o exercício do direito de greve do servidor público, mostra-se perfeitamente aplicável, por analogia, a atual Lei (específica) de Greve (Lei ri. 7.783/89)”. (LEITE, 2006, p.)


Não obstante as objeções opostas, o entendimento de atribuir eficácia limitada ao direito de greve dos servidores públicos foi acolhido em julgados e acriticamente, repetido pelos Tribunais Regionais Federais, o que se constata da decisão abaixo:


Processo:  AMS 2001.34.00.026192-2/DF; APELAÇÃO EM MANDADO DE SEGURANÇA. Relator:  DESEMBARGADOR FEDERAL JOSÉ AMILCAR MACHADO. Órgão Julgador:  PRIMEIRA TURMA. Publicação:    23/01/2006 DJ p.26. Data da Decisão:    07/12/2005. Decisão:   A Turma, por unanimidade, deu provimento à apelação e julgou prejudicada a remessa oficial, tida por interposta. Ementa:   PROCESSUAL CIVIL – APELAÇÃO EM MANDADO DE SEGURANÇA – SERVIDOR PÚBLICO FEDERAL – GREVE – DESCONTOS DOS DIAS NÃO TRABALHADOS – POSSIBILIDADE. 1. Nos termos do entendimento firmado pelo egrégio Supremo Tribunal Federal, quando do julgamento do Mandado de Injunção nº 20, não é possível o imediato exercício do direito de greve, por parte dos servidores públicos, enquanto não regulamentado por lei específica o preceito do artigo 37, inciso VII, da Constituição Federal.  2. Assim, é possível à Administração proceder aos descontos dos dias parados em virtude da adesão dos servidores ao movimento grevista. 2. Precedentes desta Corte. 3. Apelação a que se dá provimento. Remessa  oficial, tida por interposta, prejudicada. 4. Segurança denegada.”  (grifos nossos).


Contudo, em no último julgado do STF no MI-712-8 – PA o ministro Eros Roberto Grau, refletindo a nova composição (mais progressista) da Corte Constitucional, prolatou seu voto no sentido da aplicabilidade do direito de greve. O fundamento para a guinada pela efetividade do exercício da greve não foi debate sobre a tipologia (contida x limitada) da norma constitucional, mas sim a inércia do Poder Legislativo e o papel de garantidor do Supremo na efetividade dos direitos constitucionais, como se vê:


Havendo, portanto, sem qualquer dúvida, mora legislativa na regulamentação do preceito do art. 37, inciso VII, a questão que se coloca é a seguinte: presta-se, esta Corte, quando se trate da apreciação de mandados de injunção, a emitir decisões desnutridas de eficácia?


11. Esta é a questão fundamental a considerarmos. Já não se trata de saber se o texto normativo de que se cuida – — art. 37, VIII — é dotado de eficácia. Importa verificarmos é se o Supremo Tribunal Federal emite decisões ineficazes; decisões que se bastam em solicitar ao Poder Legislativo que cumpra o seu dever, inutilmente.” (STF, 2006)


De outro modo, considerando as desigualdades fáticas e econômicas dos trabalhadores, inclusive dos servidores públicos estão, contemporaneamente, aviltadas pelas governanças liberais em curso, a greve se apresenta como instrumento de confronto, de reação à injustiça da condição gravosa de trabalho. E, nesse sentido, é instrumento de reforma da sociedade guiado pela justiça social, como conclui Arion Romita:


“O reconhecimento pelo Estado do direito de greve em seu bojo a atribuição à greve dessa função instrumental e transformadora: instrumento de atuação da justiça social. Se o interesse de classe é visto como instrumento de justiça social, pouco importa, como afirma Giuseppe Branca, que do outro lado figurem uma empresa privada, o Estado ou outra entidade. Estará em jogo, sempre, um interesse de classe, e abstenção do trabalho será sempre uma greve, exercício de um direito.” (ROMITA, 1998, p. 599).


6. Conclusão.


O processo histórico, árduo para os trabalhadores, de reconhecimento do direito da ação sindical, singularizado no serviço público com a antiga idéia de fidúcia, é um marco de humanização e socialização do direito. A conflituosidade capital-trabalho, outrora exclusiva do setor privado, transpassa para o setor público, proveniente da noção de erosão do poder estatal, impregnado pelo neoliberalismo e da piora manifesta das suas condições de trabalho.


Neste contexto, o reconhecimento da liberdade sindical dos trabalhadores públicos, por si só, importaria reconhecimento do exercício do direito de greve, entendido como inserto na liberdade de atuação dos sindicatos. Tudo isto, depõe em favor de uma postura hermenêutica ampla no reconhecimento e exercício do direito de greve, embora isto não ocorra em face da decisão do STF que condiciona o exercício da paralisação coletiva à existência de lei especifica.


Negar o direito de greve é destruir o principal aporte das reivindicações dos servidores públicos, minorando o próprio texto constitucional que assegura o direito de greve, e, principalmente, porque ataca a essencial forma de atuação destes trabalhadores frente ao contexto de luta por melhores condições de trabalho. Pode-se dizer que tal interpretação conservadora esfacelava a liberdade sindical do texto constitucional.


Ao entender que o dispositivo do artigo 37, VII como norma com eficácia limitada e, não com aplicabilidade imediata ante a eficácia contida, nega-se o constitucionalismo democrático e social. Primeiro, porque se afasta da fundamentação política da liberdade sindical, que é fonte material e formal do direito. Segundo, esvazia o princípio da máxima eficácia constitucional, retirando a força da Carta Magna, postura descabida para um Tribunal Constitucional. Terceiro, porque desvela implicitamente uma fundamentação política conservadora ao desmerecer, taxando de ineficazes, os direitos sociais, no apego à técnica jurídica formalista.


Com a decisão do STF no seguinte da aplicação analógica da Lei 7783/89, o exercício do direito de greve no serviço público foi convalidado ante a mora do legislador. A efetividade da norma em comento seria, obtida graças a mudança de entendimento da Corte Constitucional, revela-se a interpretação em sinergia com o Constitucionalismo Democrático e Social.


 


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Informações Sobre o Autor

Murilo Carvalho Sampaio Oliveira

Juiz do Trabalho na Bahia e Professor Adjunto da UFBA, Especialista e Mestre em Direito pela UFBA, Doutor em Direito pela UFPR, Membro do Instituto Baiano de Direito do Trabalho – IBDT


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