É evidente a desonestidade atual. Por isso, todos nós precisamos exercer mais do que a vigilância costumeira em qualquer acordo ou compromisso firmado, mesmo quando aquele com quem contratamos é nosso conhecido. Em outras formas de contratar, consumidores acostumados com as compras pela internet não raro queixam que em alguns casos não recebem os itens que pagaram. Muito embora esse tipo de encontro de vontades tenha tomado mais espaço nos dias de hoje, proporcionando certa segurança, um contrato escrito, incomum neste tipo de compra, evitará maiores transtornos no futuro. Quando ocorrem problemas, entender a conduta dos contratantes, seus objetivos e suas intenções, será de suma importância para se aferir quem tem razão. É a hermenêutica contratual colocada em prática.
No grego clássico, a palavra her·me·neú·o não raro significa “explicar, interpretar”. Pode também ser entendida no sentido de “traduzir”, correspondendo ao nome do deus grego Hermes (Mercúrio), tido pelos antigos mitologistas não só como mensageiro, enviado e intérprete dos deuses, mas também como padroeiro dos escritores, oradores e tradutores. Em linhas gerais, a hermenêutica consiste em reduzir o que fora acordado e materializado por meio de um contrato às reais intenções dos contratantes, em termos simples, de fácil entendimento. Essa interpretação visa atingir o perfeito e claro entendimento do acordo e seu alcance no momento de contratar com relação ao conteúdo do contrato que realizaram como manifestação escrita de suas vontades espontâneas.
Ao interpretar o significado das linhas contratuais, o intérprete descobre não só a vontade do legislador, mas também a vontade concreta da lei, conjugando-a com a dos contratantes. Ou seja, como nos contratos o elemento essencial de caracterização do vínculo contratual é a manifestação de vontades, a lei, por si só, não impede que ocorram controvérsias sobre a intenção das partes na avença. Ou que a aplicação pura das normas legais relativas aos contratos assegure a obrigatoriedade do pacto celebrado, sendo certo que os contratantes terão de ceder às leis que os regem, gerais ou específicas, dando lugar às suas pretensões iniciais, não permitindo que estas prevaleçam de forma absoluta em todas as situações. Não se busca a analogia contratual, mas sim a intenção dos agentes.
Não se pode deixar de lado o senso de justiça e a função social dos contratos. Como nos contratos em geral existem sempre duas ou mais vontades sendo manifestadas, oriundas dos partícipes, deve, pois, merecer do intérprete a análise de interpretação segura ante aquilo que os contratantes queriam dizer quando contrataram, nem menos nem mais, e que seja equânime e justo para ambos, na exata medida da manifestação de suas vontades. São as regras de ordem geral que devem prevalecer em todos os contratos. Por exemplo, o art. 112 do Código Civil, onde a intenção das partes prevalece sobre as linhas contratuais, ou seja, a teoria da vontade se sobrepondo à da declaração. Ainda mais, o art. 113, consagrado pelo Novo Código, estabelece que ao interpretar um contrato este deverá se ater à boa-fé dos contratantes e aos usos do lugar onde foi celebrado. Já o art. 114, prevê a garantia, nos contratos chamados benéficos, cujo objeto é dado por mera liberalidade, não se podendo interpretar mais do que a parte autora havia prometido. Nem pode o beneficiário pleitear mais do que lhe foi prometido, requer uma restrição nesses contratos.
Há também as regras específicas de interpretação, por exemplo, o art. 423 do Código Civil estabelece o favorecimento das cláusulas ao aderente, no caso de contrato de adesão, quando estas forem ambíguas. No caso de fiança, art. 819, esta será interpretada sempre de modo restritivo, não transcendendo o que estiver escrito e o que foi acordado. É o mesmo caso ao se interpretar um testamento, art. 1899, “prevalecendo a que melhor assegure a observância da vontade do testador”. Nas relações de consumo, o Código de Defesa do Consumidor, art. 47, indica a interpretação sempre em favor do consumidor.
A boa-fé, tanto a subjetiva como a objetiva, fundamental na celebração de qualquer acordo, representa a lealdade recíproca, ou, segundo Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, ausência de intenção dolosa por ambas as partes. Assim sendo, o desrespeito à boa-fé contratual constitui “inadimplemento independentemente de culpa”, consoante o amparo legal previsto no art. 422. A boa-fé contratual é tão importante que deve ser vista antes da assinatura do instrumento contratual. Deve existir nas negociações que o antecedem, na fase de execução e quando produz seus efeitos, além, também, no momento de interpretar as suas cláusulas no caso de desavenças. Caberá às partes enquanto estiverem sob o pacto contratual corresponder às expectativas recíprocas, crer na confiança, colaborar, comunicando os fatos relevantes à outra parte que ensejariam mudanças no acordo e, ainda, sempre que possível, manter certa reserva quanto ao objeto e as partes que o celebram.
Interpretar a boa-fé subjetiva quer dizer que o intérprete deverá certificar-se que quando da manifestação de vontade não havia vícios que afetariam a finalidade do negócio. Significa que o agente em seu íntimo ignorava quaisquer circunstâncias alheias à vontade da outra parte. A interpretação da boa-fé objetiva se focaliza na conduta do agente. É a que corresponde aos moldes do sistema jurídico, quanto à honestidade, legalidade e costumes. Verifica-se a conduta, a maneira como conduziu a avença, dentro do que se espera, agindo sempre com lealdade e cooperação.
Ao se verificar a existência de qualquer conflito de interesses sobre determinado acordo não cumprido, especialmente no que tange à intenção dos contratantes, ou em relação às suas cláusulas, o legislador definiu regras específicas para a solução desses qüiproquós. O ônus da prova quando uma das partes afirma que o sentido literal das cláusulas contratuais é diverso do que pretendiam efetivamente os contratantes, quando da relação jurídica de direito material, será sempre de quem suscitar tal alegação.
Caberá ao juiz aplicar, “ex officio” as regras gerais estabelecidas pelo Código Civil, conjugando-as com princípios e valores morais e éticos. Por exemplo, o art. 421, leva em conta a função social dos contratos. Quais a conseqüências do acordo para a coletividade e os fins pretendidos pelos contratantes. Poderá também o magistrado, na busca pela interpretação de qual parte agiu com boa-fé, sempre presumida, diferentemente da má-fé que deve ser provada, poderá decidir a favor interpretando conforme os usos do lugar da celebração. Essa prática envolve a conservação da própria natureza dos contratos. Verificando a aplicabilidade do acordo feito, extraindo de suas cláusulas o máximo de sua utilidade, o juiz terá meios para se convencer, de um lado se condena a má-fé, ou se, por outro lado, valida o acordo com base na função social do contrato, além, claro, da dignidade humana.
Por mais bem elaborado que possa ser um contrato, contratantes mal intencionados talvez vão procrastinar seus efeitos sob a alegação de duplo sentido nas cláusulas. Se se existir, interpreta-se de modo a produzir os efeitos inicialmente esperados pelas partes, ou, se menos prejudicial, de modo que produza alguma conseqüência ante o acordo feito, mesmo que não o esperado. Valer-se-á, inclusive, dos costumes locais. Existindo ainda a dúvida, interpreta-se de modo contrário à parte que redigiu o instrumento contratual, por uma questão bastante simples. Presume-se que a fazê-lo tinha em mente seu benefício próprio, e não a da outra parte que contraiu a obrigação, talvez, pesada demais do que era previsto.
Quanto ao objeto, existem contratos que dispõe sobre diferenciados produtos, serviços etc. Na multiplicidade de bens, não existindo cláusula expressa em contrário, ou sendo esta duvidosa, interpreta-se no sentido de que todos os produtos ou bens que formam o objeto, inclusive pelo desconhecimento de uma ou ambas as partes, farão parte do objeto como um todo.
Também, quanto à interpretação gramatical, “o que está no fim da frase ordinariamente se refere a toda a frase, e não só àquilo que a precede imediatamente, contanto que este final concorde em gênero e número com toda a frase”. Cabe também destacar a intangibilidade das cláusulas escritas; uma vez acordado,não cabe modificação unilateral, devendo ser cumprida em razão da “pacta sunt servanda”, desde que viole o aspecto social do contrato. Poderá, na sua ocorrência, haver intervenção do Judiciário visando manter o equilíbrio inicial ou o fim social requerido em todos os contratos. É o que a doutrina chama de “rebus sic stantibus”, permitindo a um dos contratantes “invocar a rescisão ou modificação das bases contratuais, quando da ocorrência de um fato superveniente, imprevisível, alheio a vontade das partes, que torna excessivamente onerosa a prestação imposta a uma das partes, em face da outra que se enriquece em sua conseqüência”. Desde que haja injusta alteração do benefício esperado pelas partes.
A hermenêutica contratual nem sempre será simples e deve nortear-se pelos princípios fundamentais de um contrato como a dignidade humana, a função social e a boa-fé. Por mais bem elaborado que seja um acordo os humanos continuarão a ser imperfeitos e intolerantes uns com os outros, o que por si só já é motivo gerador de desavenças. Ter bastante calma ao ler todas as cláusulas do contrato, tomar cuidado ao assinar e entender o que se estipula, pode dar uma garantia maior. Se a linguagem do contrato parecer complicada e houver incerteza quanto a que significam as cláusulas é melhor consultar alguém que conheça do assunto. “Outra coisa a observar são os espaços em branco no contrato ou números e escrita ilegíveis que possam ser alterados mais tarde”, e manter sempre uma cópia de todos os documentos que assinar.
Muitos enfrentam uma tragédia financeira por apenas assinar o contrato deixando de lado a leitura cuidadosa das cláusulas impressas, especialmente as com letras miúdas. Cuidado com alguém que explique: “Não ligue para esta cláusula porque jamais a impomos”, ou: “Esta cláusula não se aplica ao Sr.” Não aceite tais explicações. “Exija que o contrato seja alterado antes de assiná-lo. Nestes dias de crescentes preços e avolumante desonestidade, vale a pena ficar alerta, se quiser evitar ser tapeado” e posteriormente ter de recorrer ao Judiciário pleiteando seus direitos. O que poderá ser tarde demais.
Informações Sobre o Autor
Bruno Soares de Souza
Acadêmico do Curso de Direito das Faculdades Integradas do Oeste de Minas – FADOM/Divinópolis/MG