Resumo: O presente trabalho tem como escopo demonstrar a importância da contribuição e influência do alemão Christian Thomasius no processo de formação do ideal dos direitos fundamentais assim como na construção do atual conceito dos mesmos. A contribuição de Thomasius se dará no plano teórico do Direito Natural Racionalista com a separação entre Direito e Moral e na luta iniciada pelo mesmo pela humanização do Direito penal e processual penal e contra os processos de feitiçaria e heresia.
Palavras-chave: Direito Natural; Racionalismo; Secularização; Direitos Fundamentais; Moral.
Resumen: El presente trabajo tiene como objetivo señalizar la importancia de la contribución e influencia del alemán Christian Thomasius en el proceso de formación del ideal de los derechos fundamentales, así como em la construcción del actual concepto de los mismos. La contribución de Thomasius va a darse en el plano teórico del Derecho Natural Racionalista con la separación entre Derecho y Moral y en la lucha iniciada por el mismo por la humanización del Derecho penal y procesal penal y como oposición a los procesos de hechicería y heresia.
Palabras clave: Derecho Natural; Racionalismo; Secularización; Derechos Fundamentales; Moral.
Sumário: 1. Introdução; 2. Biografia de um intelectual engajado com as causas de seu tempo; 3. O processo de formação do ideal dos direitos fundamentais; 4. A contribuição de Thomasius ao Direito natural racionalista; 5. A luta pela humanização do Direito penal; 6. Considerações finais; Referências.
1. Introdução.
Na elaboração histórica das idéias modernas dos direitos do homem, entre tantos autores, um de suma importância será Christian Thomasius[1], considerado como o iniciador da Ilustração (Aufklärung) na Alemanha[2]. A importância de Thomasius na construção do conceito dos direitos do homem pode ser condensada em sua fundamental contribuição na evolução do novo modelo de direito natural, o iusracionalismo, e em sua destacada luta contra os processos de feitiçaria e defesa da humanização do direito penal, sendo o precursor de Montesquieu, Voltaire e do próprio Marquês de Beccaria na crítica ao processo penal da monarquia absoluta. Thomasius juntamente com Grotius, Pufendorf e Wolf será fundamental na construção do qualificado pelo professor Gregorio Peces-Barba gigantesco sistema do iusnaturalismo racionalista[3], tanto em sua esquematização e teorização na razão humana como na transformação do direito natural divino em direito natural secular. Grotius, Pufendorf, Thomasius e Wolf são os autores iniciadores dessa posição, homens de seu tempo, que já no século XVII e início do XVIII, utilizarão seus esquemas, de acordo com o protagonismo individual característico da burguesia ascendente, para conduzir o novo direito natural, o iusracionalismo, que será a base teórica dos direitos do homem que finalmente serão positivados nos documentos resultantes das revoluções burguesas do final século XVIII[4].
2. Biografia de um intelectual engajado com as causas de seu tempo.
Christian Thomasius nasceu em Leipzig em 1655, no seio de uma família intelectual, seu pai era um conhecido professor de filosofia cultor de Aristóteles. Estudou inicialmente em sua cidade natal e posteriormente em Frankfurt quando ouviu lições sobre Pufendorf e conheceu sua obra que influenciará fundamentalmente o início de seu percurso como teórico do direito natural racionalista. De volta a Leipzig ministrou suas primeiras aulas em alemão, assim inovando, pois até então as aulas eram ministradas em latim[5]. Ainda em Leipzig fundou a primeira revista cultural da Alemanha[6]. Depois de ruidosos problemas com os teólogos luteranos conservadores, por culpa principalmente de seu novo método de ensinar e de sua obra de caráter iluminista, foi deposto de seu cargo de professor e mudou-se para Halle em 1690 para ingressar como docente na Academia de nobres (Ritterakademie). Em Halle, cidade na qual reinava uma maior liberdade e tolerância, em 1694 foi criada uma Universidade, que acabaria por converter-se em um centro de cultura do país, da qual Thomasius seria seu reitor e permaneceria até sua morte em 1728.
Thomasius é considerado por muitos como o iniciador do Iluminismo na Alemanha e por isso o autêntico reformador intelectual de seu país[7]. Das muitas coisas que se hão dito de sua trajetória o mais destacado seria que, além de iniciador do Iluminismo, Thomasius foi um intelectual sem misérias, como o qualifica o título de um dos escritos mais interessantes sobre sua obra de autoria de Ernest Bloch[8], exatamente por seu espírito inquieto, reformista e crítico com as idéias de sua época quando de maneira destacada e com muita personalidade colocou-se à frente de seu tempo defendendo a tolerância e a liberdade, especialmente a liberdade de pensamento do indivíduo frente à religião e ao Estado. Engajado com o seu tempo, sem misérias e sem a mesquinharia do viver fácil daqueles que dizem sim ou fazem vistas grossas diante das misérias de sua época, incomodado com a intromissão por parte do Estado absoluto e da Religião em assuntos particulares da vida do indivíduo, através da punição por atos relativos à vida privada de cada um, tratou de teorizar sobre a separação do Direito da Moral, além de criticar a intolerância religiosa e pedir pela humanização do Direito Processual penal. Norberto Bobbio relata que “(…) a paixão fundamental da vida de Thomasius, a qual revela seu iluminismo reformador, é a liberdade de pensamento. Em torno a esta paixão se move toda sua obra de filósofo e jurista”[9]; Manuel Segura Ortega diz que “(…) sua vida foi uma demonstração constante de luta contra o dogmatismo, a superstição e a ignorância”[10]. Um homem muito incômodo ao seu entorno adormecido e servil, como relata Ernest Bloch, que se houvesse cumprido os desejos de seus contemporâneos, o irritante inovador teria sido aniquilado[11]. Sem nenhuma dúvida, sua influência é percebida por sua obra extensa, devida à precocidade de seus primeiros escritos, em diversos âmbitos da cultura seja na filosofia, no Direito ou na religião.
3. O processo de formação do ideal dos direitos fundamentais.
Dentre as linhas de evolução dos direitos fundamentais desenvolvidas pelo professor Gregorio Peces-Barba estariam os processos de positivação, de generalização, de internacionalização e de especificação[12]. Antes, porém, do início do processo de positivação, ou melhor, do primeiro processo de positivação levado a cabo com as revoluções burguesas do século XVIII, nos parece acertado e didático falar em um anterior processo de evolução que seria o qual chamamos de processo de formação do ideal dos direitos fundamentais. Esse processo de evolução estaria diretamente relacionado com a fundamental pergunta da filosofia dos direitos fundamentais que seria: qual deve ser seu conteúdo? Essa seria, em nossa opinião, a terceira pergunta fundamental relativa aos direitos, uma vez que a primeira e segunda respectivamente seriam: o por quê (?) e o para quê (?) dos direitos fundamentais[13].
Esse processo de formação do ideal dos direitos fundamentais é iniciado na época que o professor Peces-Barba chama de trânsito à modernidade[14]. Para o autor espanhol, os direitos fundamentais são um conceito do mundo moderno resultantes exatamente das condições que surgem justamente nessa época de trânsito da Idade Média para Idade Moderna. O trânsito à modernidade será um longo período, que se iniciará no século XIV e chegará até o século XVIII, no qual pouco a pouco a sociedade irá se transformando e preparando o terreno para o surgimento dos direitos fundamentais. Com as mudanças que se darão no trânsito à modernidade, a pessoa reclamará sua liberdade religiosa, intelectual, política e econômica, na passagem progressiva desde uma sociedade teocêntrica e estamental a uma sociedade antropocêntrica e individualista.
No trânsito à modernidade as estruturas do mundo medieval serão progressivamente substituídas por umas novas, ainda que algumas permanecerão até as revoluções liberais do século XVIII. Ao longo do período em questão é quando se formará a, chamada pelo professor Peces-Barba, filosofia dos direitos fundamentais como aproximação moderna da dignidade humana, em meio das feições características das mudanças que se influem e se entrelaçam. Estas se dariam resumidamente nos campos da economia, da política e da mudança de mentalidade. A profunda mudança na situação econômica com o surgimento e progressivo amadurecimento do capitalismo e com o crescente protagonismo da burguesia, favorecerá a mentalidade individualista diante da visão do homem em estamentos[15].
No campo político o pluralismo do poder será substituído pelo Estado como forma de poder racional centralizado e burocratizado. O Estado é soberano, na construção doutrinal que se inicia com Jean Bodin, ou seja, o Estado não reconhece superior e tem o monopólio no uso da força legitima. Seu crescente poder como Estado absoluto, a utilização do Direito como intrumentum regni, exigirão como antítese, para garantir ao individuo um espaço pessoal, a reclamação de uns direitos. Mas, o Estado absoluto é uma etapa imprescindível. Seu esforço de centralização, de robustecimento de uma soberania unitária e indivisível, sua consideração do individuo abstrato, o homo juridicus como destinatário das normas, criará as condições necessárias para o aparecimento dos direitos fundamentais positivados exatamente com as revoluções liberais contrárias ao Estado absoluto[16].
Uma nova mentalidade, impulsionada pelo humanismo e pela Reforma, se caracterizará pelo individualismo, o racionalismo e o processo de secularização. Em concreto, a Reforma protestante, com a ruptura da unidade eclesial, gerará o pluralismo religioso e a necessidade de uma fórmula jurídica que evite as guerras por motivos religiosos. Neste espaço a tolerância, precursora da liberdade religiosa, será o primeiro direito fundamental[17].
Todos estes elementos citados, e com o fim do domínio intelectual da teologia, o auge da nova ciência e a exaltação do naturalismo, em suas influências complexas, desembocaram em uma importância extrema do individualismo e de sua capacidade de iniciativa. O conceito de contrato social[18] e do Direito que surge se orientará também para explicar o aparecimento dos direitos fundamentais[19].
O iusnaturalismo racionalista representa, segundo o professor Eusébio Fernández, “(…) no âmbito da história do pensamento filosófico-jurídico, a consecução de um marco muito importante dentro do amplo, complexo e nada homogêneo movimento de secularização do mundo moderno[20]”. Dito processo de secularização[21] se delimita exatamente por uma nova concepção do antigo problema da lei natural, e Thomasius será fundamental na construção dessa nova mentalidade. Como diz em seus ensinamentos, o professor Elías Díaz: “Precisamente a ruptura do monolitismo e a uniformidade religiosa por obra da Reforma protestante, levaria coerentemente à necessidade histórica de um iusnaturalismo não fundado de modo iniludível na lei eterna (…)[22]”. No mesmo sentido que o professor Peces-Barba, continua o mestre de toda uma geração de jusfilósofos espanhóis, com o intuito de encontrar
“(…) um conceito unitário de Direito natural, aceito por todos os homens, sejam quais forem suas idéias religiosas, fez-se necessário tornar independente aquele de estas. No novo clima de incipiente racionalismo (séculos XVI e XVII) de afirmação da autonomia e independência da razão humana diante da razão teológica, reflete-se que a base e o fundamento desse Direito Natural não pode ser mais a lei natural, senão que a mesmíssima natureza racional do homem, que corresponde e pertence de igual maneira a todo o gênero humano: a razão, diz-se, é o comum a todo homem. Sobre ela se pode construir um autêntico e novo Direito Natural”[23].
Exatamente a partir desse contexto de mudanças na sociedade, evidentemente que no ocidente, é que começa a aparecer e delinear-se o conceito dos direitos fundamentais entendidos em seu início como direitos naturais, graças à contribuição do iusnaturalismo racionalista. Como sinalizou o professor Antonio Enrique Pérez Luño: “O conceito dos direitos humanos tem como antecedente imediato a noção dos direitos naturais em sua elaboração doutrinal pelo iusracionalismo naturalista”[24].
Na passagem de uma teoria do direito natural a uma teoria dos direitos naturais concretos, que irá desembocar nas declarações de direitos do século XVIII, será de fundamental importância um novo significado que define o iusnaturalismo racionalista e que o diferencia substancialmente de todas as teorias iusnaturalistas anteriores. Como aponta Alessandro Passerin D’Entreves: “A moderna teoria do Direito natural não era, falando com propriedade, uma teoria do Direito objetivo, senão uma teoria de Direitos subjetivos. Produziu-se uma mudança importante baixo o invólucro das mesmas expressões verbais. O ius naturales do filósofo moderno já não é a lex naturalis do moralista moderno nem o ius naturales do jurista romano”[25]. Na formulação do direito natural racionalista será fundamental a separação das questões relativas à Moral do Direito, em outras palavras, a secularização do Direito natural será basilar para o aparecimento dos direitos fundamentais, e isso somente ocorre graças à mudança da mentalidade. Exatamente por esse motivo sinaliza Jürgen Habermas que “(…) a apelação ao direito natural clássico não era revolucionaria (…)”, enquanto que “(…) a apelação ao moderno (direito natural) chegou a sê-lo”[26].
Na mudança de mentalidade que vai propiciar a luta e a positivação dos primeiros direitos fundamentais, então direitos do homem e do cidadão, alguns autores serão fundamentais para seu aparecimento. Serviram como fundamento e base dos mesmos. Estes serão os autores do iusnaturalismo racionalista. Entre eles podemos citar o primeiro período dos pensadores iusnaturalistas da época moderna, que o historiador do Direito Franz Wieacker classifica como precursores e fundadores do iusracionalismo, entre os quais encontram-se Johann Oldendorp, os autores da escolástica tardia espanhola, Johannes Althussius e o fundador por excelência do iusracionalismo Hugo Grotius[27]. Também são dignos de menção os iusnaturalistas racionalistas (ou iusracionalistas) Thomas Hobbes, Baruch de Espinosa, Samuel Pufendorf que Wieacker classifica como a segunda geração[28] de autores dessa corrente tão fundamental à formação do ideal dos futuros direitos humanos. Wieacker classificará Thomasius como pertencente a uma terceira geração dos iusracionalistas, juntamente com Christian Wolf, que servirá de elo entre o iusracionalismo e o Iluminismo[29].
4. A contribuição de Thomasius ao Direito natural racionalista.
A segunda metade do século XVIII, como sabemos, constitui por muitos aspectos um período decisivo para a formação do pensamento filosófico e jurídico contemporâneo; mas será na primeira metade do século das luzes que começarão fundamentalmente a surgir os escritos mais explícitos resultantes de todo o processo anteriormente mencionado que formará o ideal dos direitos fundamentais. De esta forma, a separação do Direito da Moral, a necessidade de incrementar a tolerância religiosa e a crítica das instituições punitivas do antigo regime, todos temas fundamentais na elaboração posterior de um Direito Penal sobre novos fundamentos, serão inicialmente os capítulos principais da luta ideológica a ser travada como prova da mudança de mentalidade que se fazia necessária para a positivação dos direitos fundamentais no final do século em questão.
Não deve surpreender o interesse dos filósofos e juristas da Ilustração demonstrado pela tolerância religiosa e pelo regime repressivo da monarquia absoluta, pois o século XVIII não foi somente o século da razão, foi também o século dos sentimentos, da filantropia e da chamada dulcificação do Direito[30]. E estes valores tinham necessariamente seu ponto de partida no reproche à intolerância religiosa professada e na crítica a um Direito Penal violento, supersticioso e arcaico. Sem nenhuma dúvida as origens ideológicas de ambas críticas se encontram inspiradas no pensamento racionalista, humanitário e secularizador da Ilustração.
Desta forma com Christian Thomasius estamos diante de um autor ao mesmo tempo do início do Século XVIII e da transição com o século anterior, pois como foi visto nasce em 1655 e morre em 1728. Thomasius deve ser situado como iniciador da Ilustração, uma vez vista a importância que concede a luta pela dignidade humana numa autêntica cruzada contra o sistema penal da monarquia absoluta e pela separação do Direito da Moral. É considerado um continuador de Pufendorf, ainda que acrescentará uma importante dimensão original a sua obra, um pessimismo[31] recebido por sua formação luterana e uma fundamental aposta pelo processo de secularização que começa com Grotius. Diante do pensamento católico elogiará esta secularização: “Grocio fue el primero en resucitar de nuevo y empezar a purificar esta utilisima disciplina que había sido totalmente manchada, corrompida y casi muerta por el polvo del escolasticismo; así la disciplina dice por sí misma cuanto la revistió Pufendorf de manera excelente y honrosa y la defendió virilmente de sus variados adversarios (…)”[32].
A filosofia jurídica de Thomasius está condensada em três de suas obras: Institutiones iurisprudentiae divinae libri tres (um tratado de Direito Natural em três tomos intitulado Instituições de Jurisprudência Divina – Frankfurt, 1688 – doravante Instituições); Fundamenta iuris naturae et gentium (Fundamentos de Direito Natural e de Gentes – Halle, 1705 – doravante Fundamentos)[33] e Paulo plenior historia iuris naturalis (História algo mais extensa do Direito Natural – Halle, 1719)[34]. A doutrina divide a obra de Thomasius em duas etapas, uma marcada pelo livro de 1688 e outra pelo livro de 1705. É corrente a afirmação no sentido de que sua obra evolucionou já que na primeira etapa era marcado pela influência de Hugo Grotius e, sobretudo Samuel Pufendorf e a segunda era genuinamente sua[35].
Na obra Instituições de 1688, Thomasius indicada que o Direito Natural é lei escrita no coração de todos os homens[36], conceito que alude a Deus como fonte imediata de Direito natural e, concretamente, a voluntas Dei, não a ratio divina[37]. Thomasius em sua primeira etapa, por sua formação de luterano, participa de um voluntarismo da fundamentação teológica imediata do Direito natural[38]. Afirma que esta lei escrita obriga a fazer o que é necessariamente conforme a natureza do homem racional e abster-se do que a ela repugna, referência à razão como fonte mediata do Direito natural[39]. Estas duas fundamentações, contígua teológico voluntarista de um lado e intermediaria racionalista do outro, se predicam do Direito natural quando Thomasius ainda não evolucionou na direção da distinção total entre Teologia e Filosofia[40].
Em contrapartida na obra Fundamentos, de 1705, o Direito natural se conhece mediante o racionamento de ânimo sereno, sem nenhuma referência à revelação, é a razão individual a que descobre e fundamenta o Direito natural e todo o que a razão se opõe é um preconceito[41]. A referência a Deus permanece como autor da Natureza e, portanto, também da natureza humana, mas com tal afirmação fica claro que Thomasius não segue com a tese de Grotius de que o Direito natural existira ainda que Deus não existisse[42]. Agora sim, de maneira clara ficou estabelecida na obra de Thomasius a fundamental – e então inovadora – desconexão do saber filosófico com relação ao saber dos teólogos, cuja conseqüência mais imediata será a distinção entre Direito e Moral como normativas do comportamento autônomas e distintas.
Na obra de Fundamentos, ainda que nela permanece a influência do barroco e do luteranismo de seus primeiros anos, Thomasius, como foi dito anuncia já a Ilustração e desenvolve com sua distinção entre Direito e Moral a convicção, que se ia consolidando, de que o Estado e seu Direito não eram o instrumento adequado para realizar a concepção do bem de uma Igreja ou confissão, com o que anunciava, além da separação do Estado da religião, também a distinção entre ética pública e ética privada, tão decisiva para a compreensão do conceito de dignidade humana, que é um dos pilares da atual teoria dos direitos fundamentais[43].
A contribuição de Thomasius à histórica separação entre ética publica e ética privada é de fundamental importância. O que realmente elucida sua doutrina de separação entre Moral e Direito é a afirmação de que a obrigação jurídica é essencialmente coativa: como o direito regula as ações externas e somente o externo pode chegar a ser objeto da coação (questões de ética pública), somente essa obrigação é coativa, sem que a coação possa, em câmbio, alcançar ao forum internum da consciência, que é onde se produzem os atos regulados pela Moral (questões de ética privada)[44].
Segundo Antonio Fernández-Galiano é possível que esta tese de Thomasius tivesse uma finalidade bem prática, no sentido de criar um reduto – o foro da consciência – no qual o homem se encontraria a salvo da ação onipotente do Estado, titular da força coativa, que teria assim limitada sua eficácia ao foro meramente externo; mas seja assim ou não, o certo é que a afirmação teve conseqüências importantes para o conceito de direito natural[45]. Uma vez que a coação externa resulta ter um caráter essencialmente jurídico, o direito natural, como conseqüência do afirmado não é, ou não dever ser considerado como Direito, senão simples conselho. Neste sentido Thomasius textual e categoricamente afirma: “(…) la ley natural y divina pertenece más a los consejos que a los mandatos y la ley humana propiamente dicha no se refiere sino a normas imperativas”[46]. Se o direito natural não é Direito, ficará em simples ideal inspirador do único e autêntico Direito que é o positivo[47].
Com um excessivo esquematismo, na opinião de Antonio Blanco González[48], Thomasius distingue três ordens ou sistemas normativos do obrar humano, que tendem uniformemente a conseguir a felicidade na vida, para qual se há de viver honesta, decorosa e justamente, que se referem as três ordens normativas: o moral, o político e o jurídico respectivamente. A Moral e a Política originam deveres imperfeitos. O Direito cria deveres perfeitos, distinção que Thomasius segue a Pufendorf. Blanco González traduz a essência da clássica distinção dos fundamentos de Thomasius caracterizados nos planos do honesto (honestum), do decoroso (decorum) e do justo (iustum)[49]:
“O honesto, identificado ao moral ou ético, provem do princípio faz a ti o quê queiras que os demais façam a si mesmos. Esta forma de comportamento é reflexiva; nasce e reverte no sujeito mesmo, carece de relação intersubjetiva ou alteridade; regula o campo das ações humanas das ações humanas boas, tendentes a alcançar a felicidade interna, motivo pelo qual gera mais que uma obrigação também interna que ninguém, mais que o próprio sujeito, pode exigir.
O decoroso, sinônimo de político, se nutre do princípio faz aos demais o quê queiras que os demais façam contigo. Esta norma de comportamento é de caráter transitivo e biunívoco; requere a existência de, ao menos, duas partes relacionadas entre si, pelo que seu caráter essencial é a bilateralidade. Esta norma regula as relações com os demais e tende a alcançar a benevolência alheia, é dizer, normatiza aquelas noções medias que nem promovem nem perturbam a paz externa, uma vez que em si mesmas não podem ser coativas.
O justo, equiparável ao Direito, provem do princípio não faças aos demais o quê não queiras que façam contigo. Esta norma, igualmente, é transitiva, biunívoca e, ademais, proibitiva, e se refere àquelas relações externas e intersubjetivas que tendem a assegurar a paz externa e que, por afetar a tranqüilidade social, são coercíveis.” (grifos no original).
Desta forma em Thomasius encontramos plenamente situada a fundamental distinção entre Direito e Moral, ao separar o iustum, objeto do Direito, tanto do honestum, objeto da moral individual, como do decorum, objeto da moral social. Neste sentido, com um maior grau de maturidade que os iusnaturalistas anteriores, o autor alemão em sua etapa de Halle, formula a distinção entre o objeto da ciência jurídica e o objeto da teologia moral com a citada descrição das ações humanas referentes às respectivas esferas do iustum e do honestum, e a categorização das chamadas ações medianas, aquelas irrelevantes à consecução seja da paz externa como da paz interna, as que pertencem à órbita do decorum[50]. O honestum se refere à paz interna (a satisfação da íntima consciência) e o iustum à paz externa (a pacífica convivência social). O Direito limitá-se ao campo do iustum, e consiste no respeito aos demais e a abstenção para que cada um goze de seus próprios direitos. Com isto desenvolve-se a categoria autônoma da juridicidade, por seu caráter intersubjetivo e seu caráter coativo. É dizer, o Direito se refere e é competente unicamente nas ações exteriores que relacionam aos homens entre si e que se podem impor coativamente. Com esta afirmação, se produz a autonomia respectiva do Direito e da Moral, e praticamente se favorece – diante das Igrejas intolerantes e também diante do Estado – a liberdade de pensamento e a liberdade religiosa, posto que somente as ações externas podem ser objeto de coação. Para o professor Truyol y Serra, a separação entre Direito e Moral em Thomasius está “(…) inspirada en la finalidad política de excluir de la regulación estatal o eclesiástica lo relativo al fuero de la conciencia y la vida interior (…)”[51]. Toda esta construção tem uma finalidade bem clara no sentido de que o Estado deve limitar-se a garantir a chamada paz externa. Além do que, a distinção entre Direito e Moral que Wolf completará mais tarde, será a base da concepção kantiana do Direito de cujas categorias vivemos ainda atualmente[52]. A filosofia do Direito, nas palavras de Ernest Bloch, com a contribuição de Thomasius perde assim completamente sua vinculação com a teologia, uma vinculação que, de uma maneira ou de outra, todavia havia sido mantida por Pufendorf e os demais autores iusnaturalistas anteriores[53].
5. A luta pela humanização do Direito penal.
5.1. O Direito Penal da Monarquia absoluta.
Segundo o professor espanhol Francisco Tomás y Valiente, é impossível compreender a importância da humanização do Direito penal sem conhecer – ainda que seja brevemente –, como era o sistema jurídico-penal e processual contra o qual irão escrever os filósofos iluministas como Thomasius, Montesquieu, Voltaire e Beccaria[54]. Uma vez que esses autores lutaram por mudanças de uma determinada situação, não é possível entender nem valorizar as censuras e o teor das inovações que foram pedidas pelos mesmos, sem ter alguma idéia sobre qual era a realidade que eles queriam modificar[55].
A Situação do Direito Penal e do Direito Processual Penal no decorrer dos séculos da Monarquia absoluta era caracterizada por um sem fim de arbitrariedades e uma forma cruel de tratar o acusado. Aos olhos do cidadão de hoje era todo um conjunto de barbaridades: a falta de independência dos juizes; o fato de que os procedimentos não serem iguais a todos[56]; a utilização da tortura como pena e como meio de averiguação da verdade; a utilização de penas inumanas e cruéis[57]. Ditas arbitrariedades e crueldades serão os motivos do dissenso com a ordem legal da Monarquia absoluta que os pensadores do século XVIII utilizar-se-ão para gerar o movimento pela humanização do Direito penal e seu procedimento, que ao lado da necessidade de tolerância religiosa serão as causas pioneiras – primeiras necessidades e reflexões – na formação do ideal dos direitos fundamentais. A limitação do poder do Estado será o terceiro grande movimento, mas este surgirá um pouco depois na segunda metade do século XVIII. Dito movimento pela humanização do Direito penal originará uma elaboração baseada na necessidade de segurança jurídica por meio das garantias processuais, igualdade formal, direito à presunção de inocência, direito de ampla defesa, etc.[58]. Thomasius será um dos autores iniciais e fundamentais nessa construção.
Nos países do centro e ocidente da Europa continental, os respectivos Direitos penais e processuais ofereciam quase que idênticos caracteres[59]. A Monarquia absoluta incorreu sempre em um excesso de leis penais, com o intuito de intervir em muitos campos da vida social, até então controlados por reis de poder mais débil, os monarcas se viram obrigados a respaldar seus preceitos com sanções penais nada suaves[60].
Subsistiam os delitos religiosos de procedência medieval, penalizados em geral de maneira muito severa, posto que constituíam os chamados crimina laesae Majestatis divinae (heresia, magia, sacrilégios, etc.), penalizados pela lei real e (também) perseguidos por uma jurisdição eclesiástica ou pela real ordinária (blasfêmias, bigamia, perjúrio, etc.)[61].
O procedimento penal era o inquisitorial, isto é, secreto, com clara desigualdade entre as partes, em prejuízo do acusado, com um sistema de provas legais e de elásticas presunções que permitiam provar quase qualquer acusação contra o réu, o qual dispunha de pouquíssimos recursos defensivos[62]. Em todo o processo estava latente a idéia de que o réu além de delinqüente era um pecador. Por este motivo, como no sacramento da penitência, o réu pecador devia acusar-se de suas próprias culpas, isto é, confessar seu pecado[63]. Considerava-se também que diante do Tribunal da justiça humana a atitude obrigada por parte do delinqüente-pecador era a confissão de seu delito. Assim, a confissão passaria a ser a rainha das provas, entendida sempre como confissão de culpabilidade, mas carecendo de todo valor a afirmação de inocência por parte do réu[64].
Uma vez iniciada a pesquisa ou julgamento inquisitivo contra algum indiciado de culpabilidade, se não havia provas suficientes para condenar-lhe, quase sempre havia (se considerava que havia) indícios suficientes para justificar a aplicação da tortura contra o acusado. Em caso de provas incompletas, a tortura tinha a finalidade de “descobrir a verdade” (quaestio ad eruendam veritatem), entendendo-se que a “verdade” ficava revelada quando o réu atormentado confessava sua culpabilidade, mas não se afirmava insistentemente sua inocência durante o tormento. A confissão pronunciada mediante a dor do tormento não era válida se o réu não a ratificava depois; mas se não realizava a ratificação, podia voltar a ser torturado (duas ou três vezes sucessivas, de acordo com as legislações de cada país) até que ratificasse sua confissão[65].
Os juizes dispunham de uma grande margem de discricionariedade ao aplicar a lei penal. O segredo do processo os fazia terrivelmente temíveis, entre outras razoes, porque na maioria dos casos, suas numerosas arbitrariedades permaneciam ocultas, e não eram conhecidos senão por quem as sofria. Com relativa freqüência os textos legais não determinavam a pena concreta aplicável a um delito, senão que remitiam ao juiz para que este a impusera em função das particularidades do caso julgado. Ao mesmo tempo, a apreciação e valorização das circunstâncias agravantes ou atenuantes dependiam também por inteiro (inclusive quando o delito tivesse pena legal certa) do arbítrio judicial[66].
Nessa escalada do terror punitivo, os reis não se contentavam com esclarecer profusamente a pena de morte para uma multidão de supostos, senão que diante de determinados delitos (por exemplo, os de falsificação de moeda, que tinham muito interesse em reprimir) facilitavam a condenação dos possíveis réus, dotando de valor pleno a certas provas incompletas, como o testemunho (quase sempre secreto) de uma só pessoa, ou premiando a delação dos cúmplices, ou aumentando o valor probatório de certas presunções[67].
5.2. A coerência de Thomasius entre sua teoria e sua proposta de práxis.
Christian Thomasius ocupou-se de diversas questões relativas ao Direito penal de seu tempo, exatamente por ser, como já foi dito, um intelectual sem misérias e engajado com as questões de sua época. Com a finalidade de oferecer soluções práticas aos problemas que suscitava o Direito penal e processual da monarquia absoluta, entre 1685 a 1723 Thomasius publicou seis escritos referidos a questões práticas relativos: 1. à questão da bigamia (De Crimine Bigamiae, de 1685); 2. à heresia e a questão da liberdade religiosa (Problema Juridicum: Na Haeresis sit Crimen, de 1697); 3. ao delito de magia (De Crimine Magiae, de 1701); 4. à prática da tortura como instrumento processual para a averiguação da verdade (De Tortura ex foris Christianorum proscribenda, de 1705); à prerrogativa de graça soberana a propósito do homicídio (De Iure Principis Evangelici aggrantiandi in caussis homicidii, de 1707); e, finalmente, às penas infames como contrárias à correção e reeducação de quem há delinqüido (Problema Juridicum: Na poenae viventium, eos infamantes, sint absurdae et abrogandae?, de 1723). Todos os textos evidenciam o interesse de seu autor na reforma da legislação penal e processual e foram publicados durante o chamado período de Halle, ou seja, na etapa intelectual na qual amadurece sua preparação e vem à luz os Fundamenta Júris Naturae et Gentium. A maioria dos comentaristas da obra de Thomasius apontam como os mais relevantes escritos citados, desde o ponto de vista de sua contribuição à identificação dos problemas mais urgentes da época, e por tanto, os que têm um melhor título a ser recordado como iniciadores da época das luzes em terras alemãs, os relativos à tortura, à heresia e à magia[68].
Além de, como já foi visto, Thomasius ser o precursor do Iluminismo na Alemanha, na opinião de Giovanni Tarello e Mario Cattaneo estamos também diante da primeira expressão do liberalismo alemão[69], ainda que, como muito bem afirma Norberto Bobbio, é inegável que Thomasius foi um defensor da liberdade religiosa, que é historicamente a primeira liberdade a ser defendida e que será a semente ideológica da defesa das liberdades posteriores, mas mesmo assim não pode ser considerado um liberal no sentido moderno da palavra porque lhe faltou uma concepção liberal de Estado[70]. Pode-se, portanto e de acordo com Bobbio, falar de um liberalismo religioso e não político[71], ou ainda, no dizer de Gioele Solari de um absolutismo liberal no entendimento de um Estado que é absoluto em suas ações, mas dirigidas estas em favor do interesse dos súditos[72].
Segundo Jerónimo Betegón a filosofia da pena de Thomasius registra a interessante oscilação entre despotismo ilustrado e liberalismo[73]. No livro Fundamentos, de 1705, essa postura fica bem clara ao impor-se, a já comentada distinção entre Direito e moral, entre o iustum e o honestum, como esboço de uma teoria do delito, ou seja, na determinação das características da ação punível quando deixa claro qual deve ser o objeto da tutela penal[74]. Exatamente no fundamento da tutela do delito penal, com a diferenciação entre pecado e delito, seja com a separação entre os assuntos relevantes ao Estado e à religião ou na exaltação da gravidade das violações do Direito do súdito confundidos com questões de foro íntimo, Thomasius constrói os argumentos dos que o consideraram como o precursor do individualismo liberal no âmbito do Direito penal[75]. Então, da mesma forma, Thomasius é citado por muitos autores como, praticamente uma unanimidade[76], o precursor da humanização do Direito penal e do Direito processual penal, uma vez que de forma coerente em tudo que escreveu, além de se posicionar contra a tortura também lutou contra os processos de heresia, magia e feitiçaria.
5.2.1. A supressão da tortura do procedimento penal.
É importante ter a exata idéia, como sinaliza Tarello, que o problema do uso da violência no procedimento penal não foi suscitado e nem recebe respostas globais e articuladas até a segunda metade do século XVIII, e que talvez a única exceção de Thomasius, o pensamento precedente se tornou escassamente crítico com as instituições penais do antigo regime ou, ao menos, sua crítica careceu de uma orientação geral[77]. Thomasius foi um dos primeiros teóricos que exigiu a abolição da tortura[78]. Seus passos seriam seguidos, entre outros por autores importantes como Montesquieu, Voltaire e Beccaria. No dizer de Ernest Bloch, “(…) nem sequer as almas mais nobres de seu tempo se opuseram a ela. E apenas se há outro terreno no qual o engenho humano tenha se tão ativo e fértil como na invenção de métodos que causem as dores mais insuportáveis”[79].
O motivo deste surgimento relativamente tardio da crítica aos procedimentos penais é difícil de determinar. Tarello sugere que foi a ruptura do consenso sobre os valores jurídicos que representou a secularização e a conseguinte excisão entre a idéia de pecado e a de delito; mas ainda que sem dúvida dita ruptura teve uma influência tangível, tampouco explicaria por que o humanismo penal nasce com notável posterioridade ao fenômeno da secularização[80]. Como diz Luis Prieto Sanchís “(…) é significativo que uma das primeiras críticas abertas e decisivas ao Direito penal do antigo regime saísse da pluma de Thomasius, um autor muito mais próximo à Ilustração madura que ao iusnaturalismo racionalista precedente”[81].
Thomasius iniciou uma autentica cruzada pela supressão da tortura que – como foi visto – constituía um procedimento habitual de obtenção de provas em relação aos indivíduos que se negavam a confessar. Em De tortura ex foris Chistianorum proscribenda (Sobre a eliminação da tortura do Tribunal dos cristãos) dizia que “(…) por la tortura se impone al desdichado acusado, todavía no convicto, una pena que excede en crueldad a aquella con la que sería castigado de ser comprobada su culpa (…) Horrible perversión en el ejercicio del poder punitivo“[82].
Sem dúvida a doutrina da separação entre Direito e Moral produziu efeitos benéficos tanto no plano teórico como no plano prático, mas neste último âmbito fica muito mais evidente e notória a influência de Thomasius. Quando se afirma que o Direito é coativo o que se defende é exatamente o contrário, no sentido de que não se pode regular – e muito menos castigar – as condutas que afetam exclusivamente a consciência individual relativos aos planos do honesto e do decoroso. Desta forma, então, na obra de Thomasius não estamos simplesmente na presença de uma pura distinção conceitual senão que, a partir da distinção entre o delito e pecado (Direito e a Moral), desde sua cátedra de Halle o autor propõe, como foi visto, um amplo catálogo de propostas tendentes a reformar o Direito vigente. Neste aspecto, segundo Segura Ortega, a importância das idéias de Thomasius é facilmente constatável[83]. Exatamente com ele, começa o chamado humanitarismo penal que submete a uma profunda revisão o conteúdo do Direito penal da monarquia absoluta. É a luta pela humanização do Direito e do procedimento penal.
Neste sentido pode-se dizer que Thomasius criticou tudo aquilo que, em princípio, resultava anacrônico para uma mentalidade ilustrada como a sua. O principal argumento de sua critica com relação ao procedimento da tortura tem a ver com a profunda injustiça de tal meio processual e sua evidente iniqüidade. Ao uso da tortura se opõe o próprio direito natural que nos concede o recurso aos meios necessários à defesa da própria vida. Desde uma perspectiva política, Thomasius incide na estreita relação que cabe apreciar entre a prática institucionalizada do tormento e das tiranias[84].
Thomasius na obra De tortura ex foris christianorum proscribenda, defende a exclusão da tortura dos procedimentos penais, por ser uma pena desproporcionada e estar contra a justiça em geral, assim como também estar contra o sentido cristão da justiça e da proporcionalidade. Thomasius aconselha, em sua obra de 1705, ao príncipe a considerar sua abolição desde a perspectiva estritamente política, uma vez, que teologicamente e segundo o Direito natural a prática da tortura é insustentável[85].
Principalmente a partir da famosa obra escrito pelo jurista italiano Cesare Beccaria, Dei delitti e delle pene (Dos Delitos e Das Penas), publicada em Livorno em 1764, os iluministas retomam os argumentos de Thomasius e conseguem introduzir a proibição da tortura na legislação então vigente, começando pela legislação penal da Suécia e pela da Prússia, então governada pelo Rei Frederico II[86].
5.2.2. Os argumentos contra os processos de heresia, magia e feitiçaria.
A secularização do Direito natural e a defesa de uma Moral laica estão dirigidas tanto diante ao Estado como à Igreja. Os indivíduos são livres quanto ao seu foro interno e o exercício dessa liberdade não deve ser cerceada por nenhuma autoridade civil ou eclesiástica. Thomasius sabe exatamente do que fala, pois ele mesmo sofreu a intolerância em suas próprias carnes. O que exige é que os indivíduos se liberem dos preconceitos – fundamentalmente religiosos – e sejam capazes de dirigir suas vidas com autonomia e independência; neste sentido afirma: “el origen de la miseria procede de que los prejuicios llevan al entendimiento humano a equivocarse en el conocimiento de lo bueno y lo malo”[87].
Todas estas idéias implicam em uma nova visão do fenômeno da moral, da liberdade e, sobretudo, da dignidade humana. Por tudo isso a diferenciação entre Direito e Moral “(…) expressava não somente o sentimento de si do indivíduo burguês diante do Estado-policia que o rodeava, senão que dava à dignidade humana – elemento constitutivo de uma pessoa e de uma humanidade não somente e simplesmente burguesas – um lugar que, até então, não havia tido em absoluto na sociedade”[88].
Partindo desses supostos, Thomasius também lutou pela supressão dos processos de heresia, feitiçaria e magia. Sua luta nesse sentido é acima de tudo contra a superstição. Esta posição é totalmente coerente com sua doutrina de defesa da liberdade de pensamento e proteção da consciência dos indivíduos. Para Thomasius a heresia constitui em último caso um erro do intelecto, mas o respeito à consciência dos indivíduos deve ser absoluto de modo que todos também têm “direto a equivocar-se” sem que tais “erros” sejam suscetíveis de serem castigados penalmente[89]. Ademais, a heresia não é mais que o resultado do exercício da liberdade de pensamento e por essa razão, fundamental para nosso autor alemão, não pode configurar-se como um delito. Por tanto, o que faz Thomasius é negar ao Estado e a igreja o direito de castigar aos hereges. Fundamental a advertência da importância dessa afirmação em um ambiente no qual tanto a autoridade política como religiosa consideravam normal a intervenção nos assuntos da consciência[90]. O Direito penal deve cumprir outras funções e sua finalidade suprema há de ser a reprimir e castigar as condutas que afetem à comunidade e que possam alterar de algum modo à paz; no resto das ações o Estado não deve intervir[91]. Por esse motivo lamentava Thomasius de que “en la doctrina penal no están separadas las penas divinas de las humanas sino que se consideraban en común”[92]. Por conseguinte, os juristas têm que se ocupar somente das penas humanas porque as chamadas penas divinas pretendem a expiação do pecado enquanto que tal finalidade não existe – ou pelo menos, não deve existir – nas penas humanas[93].
Sua argumentação é a semente do princípio da liberdade religiosa em tanto que também é evidentemente um pressuposto fundamental para o necessário desenvolvimento de todos os demais direitos de liberdade. Nega-se o caráter de delito a este tipo de manifestação por quanto não pertence à categoria do iustum; motivo pelo qual a heresia cabe identificá-la melhor como um erro do intelecto, um erro provavelmente desonesto, mas a legislação não pode referir-se ao intelecto. Por ultimo, a propósito dos processos de feitiçaria e magia, Thomasius ataca a superstição que radica em considerar a possibilidade de um pacto com o diabo e que tal conjectura possa dar origem a existência de um tipo delitivo desta índole.
Observar-se que Thomasius distingue claramente as idéias de pecado e delito e, por tanto, o Direito fica reduzido a uma dimensão estritamente humana. Em definitiva, se tivéssemos que definir a atitude de Thomasius com um só vocábulo teríamos que usar a palavra tolerância: a tolerância dignifica ao ser humano, o faz livre e o liberta dos preconceitos.
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A luta pela humanização do Direito penal e processual, iniciada por Thomasius, será um dos pilares essenciais na construção do ideal dos direitos fundamentais. Felizmente sua idéia de humanização do procedimento penal será retomada e completada por autores como Montesquieu, Beccaria, Voltaire, entre outros, e assim chegará à inclusão da mesma em textos fundamentais que serão a base e o inicio da positivação dos direitos do homem[94].
A separação do Direito da Moral e a humanização do Direito penal e processual penal estão na base dos modernos direitos humanos e das demais liberdades, serão a semente que germinará as modernas liberdades que seguirá seu caminho até os atuais direitos fundamentais positivados nas constituições dos Estados ocidentais e na Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948.
6. Considerações finais.
A essencial contribuição de Christian Thomasius ao processo de formação do ideal dos direitos fundamentais, ainda que este seja um autor não muito conhecido em nosso meio acadêmico, é de fácil constatação exatamente quando estudamos as origens das mudanças que vão desembocar em um novo direito natural, o racionalista, e no Iluminismo, movimentos nos quais o nome de Thomasius está inscrito como um de seus iniciadores e um dos seus principais autores. A separação das questões de Direito (delitos) das questões de Moral (pecados), e a luta pela humanização do direito penal e seu procedimento, exatamente para apartar as questões de moral privada do Direito, são os dois vieses mais importantes da contribuição do autor alemão do final do século XVII e inicio do século das luzes.
Informações Sobre o Autor
Marcos Leite Garcia
Doutor em Direito; Curso realizado na Universidade Complutense de Madrid – Espanha. Professor do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Ciência Jurídica – Cursos de Mestrado e Doutorado – e da graduação em Direito da Universidade do Vale do Itajaí (UNIVALI)