A (im) possibilidade de mitigação dos princípios do contraditório e da ampla defesa do Direito Processual Penal

Resumo: Os princípios do contraditório e da ampla defesa são motivos de constantes debates no cenário jurídico brasileiro, mormente quando relacionados ao processo penal. A pesquisa, essencialmente bibliográfica, objetivou demonstrar se os referidos princípios estão sujeitos a eventuais mitigações. O estudo é iniciado da análise do princípio constitucional do devido processo legal, do qual decorrem os postulados analisados, e, em seguida, passa à tratativa doutrinária e jurisprudencial dos objetos do estudo. Do levantamento feito, constata-se que é possível a aplicação dos postulados analisados, embora não seja por completo afastada, ocorra de forma diferida, concluindo-se, desta forma, por não haver, para a maior parte dos juristas, ofensa a qualquer direito ou garantia fundamental individual na situação analisada, desde que o contraditório e a ampla defesa, em situações específicas, respeitadas as disposições legais e a reserva de jurisdição, sejam exercidos de forma diferida ou postergada.

Palavras-chave: Direito Constitucional, Teoria Geral do Processo, Direito Processual Penal, Direitos e Garantias Fundamentais, Princípios Constitucionais, Devido Processo Legal, Contraditório, Ampla Defesa.

Abstract: The principles of contradiction and ample defense are reasons for constant debates in the Brazilian legal scene, especially when related to criminal proceedings. The research, essentially bibliographical, aimed to demonstrate if said principles are subject to possible mitigations. The study is initiated from the analysis of the constitutional principle of due process (or due process of law), from which the postulates analyzed are derived, and then goes on to the doctrinal and jurisprudential treatment of the objects of the study. From the survey carried out, it can be seen that it is possible to apply the postulates analyzed, although not completely removed, to occur in a deferred manner, concluding that, for most jurists, there is no offense to individual rights or fundamental guarantees in the analyzed situation, since that the adversarial and the ample defense principles, in specific situations, respected the legal provisions and the reservation of jurisdiction, are exercised of deferred or delayed form.

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Sumário: 1. Introdução. 2. Breves considerações sobre o Princípio do Devido Processo Legal. 2.1. Devido Processo Legal Formal e Devido Processo Legal Substancial. 3. Princípios Corolários do Devido Processo Legal. 4. Os Princípios do Contraditório e da Ampla Defesa e sua Mitigação no Processo Penal. 5. Conclusão.

1. Introdução

Muito se questiona acerca dos limites dos poderes do Estado na persecução penal. Até onde os direitos e garantias fundamentais do indivíduo podem ser afastados na busca pela punição do réu?

Os princípios do contraditório e da ampla defesa, postulados decorrentes do devido processo legal, configuram garantias constitucionalmente previstas para proteção à liberdade do cidadão e guardam especial relevância no processo penal pátrio.

Visa o presente artigo analisar de forma breve e objetiva os mencionados princípios, bem como demonstrar que é possível certa mitigação dos referidos postulados, ainda que no processo penal condenatório, sem que sejam desrespeitados os direitos e garantias constitucionais do investigado, acusado ou condenado.

2. Breves considerações sobre o Princípio do Devido Processo Legal

Inicialmente, antes adentrar na análise do princípio do contraditório, é essencial uma análise detalhada da origem e conceituação do princípio constitucional do devido processo legal. Isso porque, trata-se de verdadeiro princípio-base, norteador do nosso ordenamento jurídico, especialmente no âmbito processual, e do qual necessariamente decorre o princípio do contraditório, objeto deste estudo.

Consoante dispõem as lições de Dirley da Cunha Júnior, o direito à garantia do devido processo legal foi previsto de forma inédita na Constituição Federal de 1988, mais precisamente em seu art. 5º, LIV, “como garantia expressa das liberdades públicas, segundo o qual ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”. (2015, p. 588).

Entretanto, conforme considerações feitas por Vicente Paulo e Marcelo Alexandrino, a origem história desse princípio se deu na Inglaterra:

“(…) esse princípio tem sua origem na Magna Carta inglesa, de 1215, na qual apresentava redação que costuma ser assim traduzida: ‘nenhum homem livre será detido ou sujeito à prisão, ou privado dos seus bens, ou colocado fora da lei, ou exilado, ou de qualquer modo molestado, e nós não procederemos nem mandaremos proceder contra ele senão mediante um julgamento regular pelos seus pares ou de harmonia com a lei do país.” (2011, p. 181).

Didier Jr. aponta a origem do postulado a época ainda mais remota:

“O texto/fórmula/enunciado devido processo legal (due processo of Law) existe há séculos (nestes termos, em inglês, desde 1354 d.C., a partir de Eduardo III, rei da Inglaterra). A noção de devido processo legal como cláusula de proteção contra a tirania é ainda mais antiga: remonta ao Édito de Conrado II (Decreto Feudal Alemão de 1037 d.C.), em que pela primeira vez se registra pro escrito a ideia de que até mesmo o Imperador está submetido às “leis do Império””. (2010, p. 42).

Em que pese exista certa divergência na doutrina quanto à origem do princípio em tela, a maior parte dos estudiosos atribui a sua origem à Magna Carta de João Sem Terra, de 1215.

Independentemente do berço do postulado, o que de fato se mostra relevante é que consiste em verdadeiro supraprincípio, que serve de guia para todos os demais princípios relacionados a um processo dotado de valores democráticos.

Tamanha é a importância do devido processo legal que, segundo as lições de Daniel Amorim Assumpção Neves “bastaria ao legislador constituinte, no tocante aos princípios processuais, se limitar a prever o devido processo legal, que na prática os valores essenciais à sociedade e ao ideal do justo dariam elementos suficientes para o juiz no caso concreto perceber outros princípios derivados do devido processo legal”. (NEVES, 2016, p. 113).

Sobre o tema, Daniel Amorim Assumpção Neves afirma, ainda, já estar pacificado o entendimento de que o devido processo legal é uma espécie de supraprincípio, ou seja, um princípio-base norteador de todos os demais imprescindíveis ao processo, razão pela qual possui conceito indeterminado e aberto a ser concretizado pelos seus subprincípios de acordo com o caso concreto. (2016, p. 113).

Trata-se referido princípio constitucional de uma cláusula geral, tendência do ordenamento jurídico contemporâneo que se caracteriza por ser “uma espécie de texto normativo, cujo antecedente (hipótese fática) é composto por termos vagos e o consequente (efeito jurídico) é indeterminado”. (DIDIER JR., 2012, p. 33).

Remetendo-nos à origem da expressão “devido processo legal”, Didier Jr. leciona que referido termo corresponde à tradução para a língua portuguesa do enunciado da língua inglesa “due processo of law”. O autor complementa esclarecendo que o sentido atribuído à palavra “law”, é Direito, e não lei (que seria traduzida para o inglês como “statute law”), concluindo que a observação é importante, pois “o processo há de estar em conformidade com o Direito como um todo, e não apenas em consonância com a lei. ‘Legal’, então, é adjetivo que remete a ‘Direito’, e não à Lei”. (2010, p. 41).

O princípio constitucional do devido processo legal garante aos brasileiros o direito fundamental a um processo devido, o que significa um processo que transcorra de forma justa e equitativa, evitando o exercício abusivo do poder (DIDIER JR., 2012, p. 41), além de permitir a “ampla participação das partes e a efetiva proteção de seus direitos”. (NEVES, 2012, p. 64).

Considerando-se que as normas jurídicas são produzidas por meio de um processo próprio, conclui-se que todas as espécies normativas apresentam uma forma específica de devido processo legal. Neste tocante, interessa ao presente estudo o devido processo jurisdicional, que originará normas individualizadas jurisdicionais, concretizando, por meio da sobredita cláusula geral do processo devido, o poder criativo da atividade jurisdicional. (DIDIER JR., 2012, p. 41).

2.1. Devido Processo Legal Formal e Devido Processo Legal Substancial

A doutrina estuda o devido processo legal em duas acepções. A primeira delas refere-se ao que se chama de devido processo legal formal ou procedimental, oriundo do inglês “procedural due process of law”, que consiste na exigência de que seja aberto processo regular para que se possa restringir determinado direito individual. (CUNHA JÚNIOR, 2015, p. 588).

Trata-se, segundo Daniel Amorim Assumpção Neves, da “definição tradicional do princípio, dirigido ao processo em si, obrigando o juiz no caso concreto a observar os princípios processuais na condução do instrumento estatal oferecido aos jurisdicionados para a tutela de seus direitos materiais”. (2016, p. 114). É esta definição propriamente dita que se originou da conceituação trazida pela Magna Carta Inglesa. (CUNHA JÚNIOR, 2015, p. 588).

Didier Jr. observa que esta dimensão formal do processo devido é composta por (sub) princípios corolários, quais sejam as garantias processuais do direito ao contraditório, ao juiz natural, a um processo com duração razoável, dentre outros. (2010, p. 45).

Por outro lado, Cunha Júnior ensina que a segunda acepção do devido processo legal, originado da doutrina e da jurisprudência dos Estados Unidos da América, denomina-se devido processo legal material, substantivo ou substancial (substantive due process of law), consistindo na imposição à justiça de que observe a razoabilidade nas decisões restritivas a direitos. (2015, p. 588). O autor ainda complementa:

Vale dizer, parte do pressuposto de que não basta a garantia da regular instauração formal do processo para assegurar direitos e liberdades fundamentais, pois vê como indispensável que as decisões a serem tomadas nesse processo primem pelo sentimento de justiça, de equilíbrio, de adequação, de necessidade e proporcionalidade em face do fim que se deseja proteger. (2011, p. 721).

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Segundo Neves, a faceta substancial do devido processo legal se refere ao aspecto da interpretação das normas jurídicas, “evitando-se a atividade legislativa abusiva e irrazoável e ditando uma interpretação razoável quando da aplicação concreta das normas jurídicas”. Para o autor, este aspecto funciona como verdadeiro método de controle das arbitrariedades do Poder Público. (NEVES, 2016, p. 114).

Cabe esclarecer, entretanto, que estas acepções, formal e substancial, do devido processo legal não devem ser analisadas de forma contraposta, mas de maneira conjunta, visando à efetiva atuação do princípio no ordenamento jurídico.

3. Princípios Corolários do Devido Processo Legal

Importante salientar que a noção do que seria um processo “devido” varia de acordo com o contexto histórico em que o ordenamento está inserido. Na realidade atual, o que nos cabe ressaltar é que, no decorrer desta evolução histórica, foram várias as “concretizações do devido processo legal que se incorporaram ao rol das garantias mínimas que estruturam o devido processo”. (DIDIER JR., 2012, p.43).

Dentre essas concretizações, conforme já mencionado, estão os princípios do contraditório e da ampla defesa (art. 5º, LV, CF), o do juiz natural (art. 5º, XXXVII, CF), o acesso à justiça (art. 5º, XXXV, CF), a proibição de provas ilícitas (art. 5º, LVI), etc.

Para Neves, além de prever o devido processo legal, o legislador pátrio optou por positivar “diversos outros princípios que dele naturalmente decorrem, tais como o contraditório, a motivação das decisões, a publicidade, a isonomia etc”, o que merece reconhecimento, especialmente em decorrência da dificuldade de se definir precisamente o conceito e a amplitude do superprincípio aqui analisado. (NEVES 2016, p. 114).

Cumpre-nos observar com especial atenção os princípios do contraditório e da ampla defesa que, segundo Cunha Júnior, “completam e dão sentido e conteúdo à garantia do devido processo legal, pois seria demasiado desatino garantir a regular instauração formal do processo e não se assegurar o contraditório e a ampla defesa àquele que poderá ter a sua liberdade ou seu bem cerceado”. (2015, p. 589).

4. Os Princípios do Contraditório e da Ampla Defesa e sua Mitigação no Processo Penal

O art. 5º, LV, da CF/88, positiva expressamente os princípios do contraditório e da ampla defesa, dispondo que “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”.

Segundo Didier Jr., “o princípio do contraditório é reflexo do princípio democrático na estruturação do processo”, o que significa dizer que este princípio “deve ser visto como exigência para o exercício democrático de um poder”. (2012, p. 52).

Dirley da Cunha Júnior conceitua o contraditório, em suas palavras, “de forma singela”, como sendo a “garantia que assegura à pessoa sobre a qual pesa uma acusação o direito de ser ouvida antes de qualquer decisão a respeito”. (2015, p.589).

Neves vai além, aduzindo que “tradicionalmente, considera-se ser o princípio do contraditório formado por dois elementos: informação e possibilidade de reação. Sua importância é tamanha que a doutrina entende tratar-se de elemento componente do próprio conceito de processo (…). Nessa perspectiva, as partes devem ser devidamente comunicadas de todos os atos processuais, abrindo-se a elas a oportunidade de reação como forma de garantir a sua participação na defesa de seus interesses em juízo”. (NEVES, 2016, p. 115).

Nas lições de Didier Jr., o contraditório pode ser subdividido em duas garantias. A primeira delas é a participação e a segunda é a possibilidade de influência na decisão, que corresponderiam, respectivamente, ao aspecto formal e substancial do princípio. Nesse sentido o autor comenta:

“A garantia da participação é a dimensão formal do princípio do contraditório. Trata-se da garantia de ser ouvido, de participar do processo, de ser comunicado, de poder falar no processo. Esse é o conteúdo mínimo do princípio do contraditório e concretiza a visão tradicional a respeito do tema. De acordo com esse pensamento, o órgão jurisdicional efetiva a garantia do contraditório simplesmente ao dar ensejo à ouvida da parte. Há, porém, ainda, a dimensão substancial do princípio do contraditório. Trata-se do “poder de influência”. Não adianta permitir que a parte simplesmente participe do processo. Apenas isso não é o suficiente para que se efetive o princípio do contraditório. É necessário que se permita que ela seja ouvida, é claro, mas em condições de poder influenciar a decisão do magistrado”. (2010, p. 52).

Ainda no que diz respeito ao contraditório, Neves faz importante colocação com relação à alegação de alguns juristas de que referido postulado seria um direito absoluto. Conforme entendimento do autor, uma vez que o contraditório tem como objetivo principal “a proteção das partes durante a demanda judicial”, não há sentido que acarrete nulidade dos atos ou do processo inteiro nos casos em que não gerou prejuízo à parte protegida caso fosse devidamente observado. (2012, p. 67).

Ora, entende o STJ que o contraditório é constantemente renovado durante o processo, razão pela qual a não cientificação da parte em momento adequado, que configuraria, em tese, vício violador do postulado, pode acabar por não acarretar nulidade no caso de ser oportunizada a sua manifestação posteriormente sobre o assunto e desde que não haja prejuízo ao litigante. (NEVES, 2016, p. 116).

Contudo, vale dizer que as observações feitas por Neves e Didier Jr. acerca do princípio do contraditório merecem complementações no âmbito do processo penal, uma vez que, embora os autores sejam renomados doutrinadores com indubitável conhecimento acerca o referido princípio, ambos são processualistas civis e, por isso, analisam o postulado sobre a ótica desta disciplina.

Ademais, deve-se reconhecer que a relativização do contraditório no processo penal deve se dar com especial cuidado, uma vez que envolve possível restrição ao direito à liberdade de locomoção do indivíduo.

Fazendo esta complementação necessária em relação ao contraditório no Processo Penal, Nestor Távora apud Renato Brasileiro de Lima, esclarece:

“De modo diverso ao que ocorre no âmbito processual civil, no processo penal não é suficiente assegurar ao acusado apenas o direito à informação e á reação em um plano formal. “Estando em discussão a liberdade de locomoção, ainda que o acusado não tenha interesse em oferecer reação à pretensão acusatória, o próprio ordenamento jurídico impõe a obrigatoriedade de assistência técnica de um defensor”. Nesse sentido o Código de Processo Penal assegura o contraditório em sua acepção material, como ocorre no art. 261, que estabelece a necessidade de defensor que exerça “manifestação fundamentada” e o art. 497, V, que atribui ao juiz presidente do Tribunal do júri o dever de atribuir novo defensor, caso considere o acusado “indefeso”.” (2012, p. 59).

Para Renato Brasileiro de Lima, direito à informação e contraditório andam sempre juntos, pois não há como se falar em um “processo penal eficaz e justo sem que a parte diversa seja cientificada da existência da demanda ou dos argumentos da parte contrária”, razão pela qual tamanha é a “importância dos meios de comunicação dos atos processuais: citação, intimação e notificação”. (LIMA, 2016, p. 49).

Ressalta o autor que o direito à efetiva participação no processo também deriva do princípio do contraditório, consistente na possibilidade de a parte oferecer reação, manifestação ou contrariedade à pretensão da parte contrária. (2016, p. 49).

Em um processo-crime, não é suficiente garantir ao acusado o direito à informação e à reação sob um aspecto formal, como ocorre no processo civil, pois em se tratando da liberdade de locomoção, mesmo que o acusado não demonstre interesse em reagir à pretensão acusatória, o próprio Direito pátrio impõe a obrigatoriedade de defesa técnica, consoante será visto adiante quando da análise do princípio da ampla defesa. (2016, p. 49).

Sobre a mitigação do contraditório no processo penal, a doutrina pontua duas situações que merecem ser mencionadas. Uma é a possibilidade de o contraditório, que em regra é prévio, em certos casos, passar a ser diferido ou postergado, ou seja, ocorrer em momento posterior, tal como ocorre nas medidas cautelares reais. A outra observação é em relação ao fato de o contraditório não ser medida impositiva na fase do inquérito policial, em razão de seu caráter administrativo informativo. (TÁVORA, 2012, p. 59).

No que diz respeito a esta questão, Vicente Paulo e Marcelo Alexandrino comentam que por essa razão “é nula a sentença penal condenatória proferida com base exclusivamente em fatos narrados no inquérito policial” de forma que deverão as provas obtidas durante a investigação, ser “discutidas em juízo, para que então possam ser exercidas as garantias do contraditório e da ampla defesa, antes de ser proferida a sentença”. (2011, p. 186).

Ainda sobre o postulado, Neves assevera que a estrutura comum, básica, do contraditório possui a seguinte ordem: pedido, informação da parte contrária, reação possível e decisão. Isso indica que o contraditório diferido (postergado) “é excepcional, devendo ser utilizado com extrema parcimônia, até porque a prolação de decisão sem a oitiva do réu capaz de invadir a esfera de influência do sujeito que não foi ouvido é sempre uma violência. Entretanto, entende o autor que, presente urgência que a medida requerer, o contraditório diferido cumpre com as determinações do art. 5º, LV, da CF. (NEVES, 2016, p. 122).

Verifica-se, portanto, que diante do caráter excepcional da postergação do contraditório, esta somente será possível em caso urgência ou perigo de ineficácia da medida, sendo necessária, ainda, enorme probabilidade de o direito existir.

Especialmente nas hipóteses de provas cautelares e não repetíveis é que o contraditório diferido ganha espaço. Em breve síntese, as provas cautelares são aquelas em que há um risco de desaparecimento do objeto da prova em razão do decurso do tempo, e podem ser produzidas tanto na fase investigatória quanto na fase judicial (embora exijam autorização judicial); ao passo que as provas não repetíveis são aquelas que uma vez produzidas, não poderão ser novamente coletadas em razão do desaparecimento da fonte probatória (contudo, não dependem de autorização judicial). Importa é que, em ambos os casos, sob pena de prejudicar a realização da prova, seja em razão da urgência, seja pelo perigo de desaparecimento da prova, o contraditório será exercido em momento posterior.

A ressalva acima é evidenciada pela redação do próprio CPP, em seu art. 155, caput:

“Art. 155.  O juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial, não podendo fundamentar sua decisão exclusivamente nos elementos informativos colhidos na investigação, ressalvadas as provas cautelares, não repetíveis e antecipadas.”

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Renato Brasileiro de Lima faz pertinente leitura do princípio do contraditório em relação à prova, distinguindo-o em “para” e “sobre” ela:

“O contraditório para a prova (ou contraditório real) demanda que as partes atuem na própria formação do elemento de prova, sendo indispensável que sua produção se dê na presença do órgão julgador e das partes. (…) O contraditório sobre a prova”, também conhecido como contraditório diferido ou postergado, traduz-se no reconhecimento da atuação do contraditório após a formação da prova. Em outras palavras, a observância do contraditório é feita posteriormente, dando-se oportunidade ao acusado e a seu defensor de, no curso do processo, contestar a providência cautelar, ou d combater a prova pericial feita no curso do inquérito”.  (2016, p. 51).

Noutro giro, no que diz respeito à ampla defesa, Cunha Júnior traz definição objetiva, afirmando que esta confere à “pessoa contra quem se imputa uma acusação a possibilidade de se defender e provar o contrário”. (2011, p. 722).

Para Vicente Paulo e Marcelo Alexandrino, ampla defesa é “o direito que é dado ao indivíduo de trazer ao processo, administrativo ou judicial, todos os elementos de prova licitamente obtidos para provar a verdade, ou até mesmo de omitir-se ou calar-se, se assim entender, para evitar sua autoincriminação”. (2011, p. 185).

Para Didier Jr., que faz a subdivisão do contraditório em formal e substancial, o contraditório e a ampla defesa passaram a ser um só, de forma que, em razão do “desenvolvimento da dimensão substancial do princípio do contraditório, pode-se dizer que eles se fundiram, formando uma amálgama de um único direito fundamental. A ampla defesa corresponde ao aspecto substancial do princípio do contraditório”. (2010, p. 56).

No âmbito processual penal, são essenciais as observações feitas por Nestor Távora, citando Denilson Feitoza, acerca da ampla defesa, como se vê:

“A defesa pode ser subdividida em defesa técnica (efetuada por profissional habilitado) e autodefesa (realizada pelo próprio imputado). A primeira é sempre obrigatória. A segunda está no âmbito de conveniência do réu, que pode optar por permanecer inerte, invocando inclusive o silencia. A autodefesa comporta também subdivisão, representada pelo direito de audiência, “oportunidade de influir na defesa por intermédio do interrogatório”, e no direito de presença, “consistente na possibilidade de o réu tomar posição, a todo momento, sobre o material produzido, sendo-lhe garantida a imediação com defensor, o juiz e as provas””. (2012, p. 60).

É de se esclarecer que, no que diz respeito à defesa técnica, o STF já consagrou por meio da Súmula nº. 523 que, no “processo penal, a falta de defesa constitui nulidade absoluta, mas a sua deficiência só o anulará se houver prova de prejuízo para o réu”; e da Súmula nº. 708 que, “é nulo o julgamento da apelação se, após a manifestação nos autos da renúncia do único defensor, o réu não foi previamente intimado para constituir outro”. (TÁVORA, 2012, p. 60).

O próprio Código de Processo Penal prevê, em seu art. 261, que nenhum acusado, ainda que ausente ou foragido, será processado ou julgado sem defensor.

Ademais, o ordenamento não se contenta com qualquer atuação do defensor, devendo ela ser efetiva a fim de que o acusado, ainda que assistido, continue indefeso. É isso que justifica as disposições do parágrafo único do art. 261 do CPP, acrescentado pela Lei nº 10.792/03 e que dispõe que a defesa técnica, quando realizada por defensor público ou dativo, será sempre exercida através de manifestação fundamentada.

Também visa garantir defesa efetiva o contido no art. 499, V, CPP, que prevê como uma das atribuições do juiz-presidente do júri a possibilidade de nomeação de defensor ao acusado quando considerá-lo indefeso (LIMA, 2016. p. 49).

Cabe pontuar brevemente que, no processo penal, a ampla defesa, conforme já tratado, abrange tanto a defesa técnica (irrenunciável), quanto a autodefesa. Além disso, são desdobramentos do referido princípio o direito de escolha do defensor, o direito de audiência, o direito de presença e a capacidade postulatória autônoma do acusado.

São diversas as situações de mitigação dos princípios do contraditório e da ampla defesa no processo penal, conforme entendimento dos Tribunais Superiores. Contudo, essa “mitigação”, costuma ser concretizada não com o afastamento dos princípios, mas com a mera postergação, de forma que deixarão de ser prévios e passarão a diferidos.

A primeira observação que merece destaque, conforme já mencionado, consiste no fato de não incidir sobre a fase do inquérito policial o princípio do contraditório, mormente em razão de se tratar de procedimento administrativo inquisitivo, de forma que o contraditório e ampla defesa serão diferidos, realizados quando da confirmação das provas no curso do processo penal.

É o que entende o STF:

"O inquérito não possui contraditório, mas as medidas invasivas deferidas judicialmente devem se submeter a esse princípio, e a sua subtração acarreta nulidade. Obviamente não é possível falar-se em contraditório absoluto quando se trata de medidas invasivas e redutoras da privacidade. Ao investigado não é dado conhecer previamente – sequer de forma concomitante – os fundamentos da medida que lhe restringe a privacidade. Intimar o investigado da decisão de quebra de sigilo telefônico tornaria inócua a decisão. Contudo, isso não significa a ineficácia do princípio do contraditório. Com efeito, cessada a medida, e reunidas as provas colhidas por esse meio, o investigado deve ter acesso ao que foi produzido, nos termos da Súmula Vinculante nº 14. Os fundamentos da decisão que deferiu a escuta telefônica, além das decisões posteriores que mantiveram o monitoramento devem estar acessíveis à parte investigada no momento de análise da denúncia e não podem ser subtraídas da Corte, que se vê tolhida na sua função de apreciar a existência de justa causa da ação penal. Trata-se de um contraditório diferido, que permite ao cidadão exercer um controle sobre as invasões de privacidade operadas pelo Estado." (Inq 2266, Relator Ministro Gilmar Mendes, Tribunal Pleno, julgamento em 26.5.2011, DJe de 13.3.2012).

Merece atenção a realização de interceptação telefônica como meio de obtenção de prova. Isso porque, para garantia da eficácia da medida, não é viável a notificação prévia do interceptado, de forma que o contraditório, neste caso, será diferido. É o que leciona Renato Brasileiro de Lima:

“Em relação ao princípio do contraditório, deve se compreender que este será diferido. E isso em face da própria natureza da interceptação telefônica como medida cautelar inaudita altera parte. O contraditório e a ampla defesa não são assegurados quando da execução da medida, sob pena de se frustrar qualquer tentativa de colheita de elementos probatórios. Serão observados sim, a posteriori, tão logo concluída a diligência”. (LIMA, 2015, p. 147).

É pelo motivo exposto acima que, consoante já aduzido, merece atenção o teor da Súmula Vinculante nº 14.

Grande é a importância de destacar que o próprio CPP, no art. 282, §3º, garante que em casos tais o contraditório será diferido, e não simplesmente rechaçado, atendendo, portanto, aos ditames constitucionais.

“Art. 282.  As medidas cautelares previstas neste Título deverão ser aplicadas observando-se a:

I – necessidade para aplicação da lei penal, para a investigação ou a instrução criminal e, nos casos expressamente previstos, para evitar a prática de infrações penais; (Incluído pela Lei nº 12.403, de 2011).

II – adequação da medida à gravidade do crime, circunstâncias do fato e condições pessoais do indiciado ou acusado. (…)

§ 3o  Ressalvados os casos de urgência ou de perigo de ineficácia da medida, o juiz, ao receber o pedido de medida cautelar, determinará a intimação da parte contrária, acompanhada de cópia do requerimento e das peças necessárias, permanecendo os autos em juízo.” (grifo nosso).

Ora, não faria o menor sentido avisar o investigado de que seria interceptado, de que seria realizada uma busca domiciliar em busca de elementos de informação, bem como comunicá-lo de que seria preso preventivamente em razão de haver provas de que pretende fugir. Nessa linha são as considerações de Renato Brasileiro de Lima:

“É o que acontece, por exemplo, com uma interceptação telefônica judicialmente autorizada no curso das investigações. Nessa hipótese, não faz sentido algum querer intimar previamente o investigado para acompanhar os atos investigatórios. Enquanto a interceptação estiver em curso não há falar, portanto, em contraditório real. Porém, uma vez finda a diligência, e juntado aos autos o laudo de degravação e o resumo das operações realizadas (Lei nº 9296/96, art. 6º), deles se dará vista à defesa, a fim de que tenha ciência das informações obtidas através do referido procedimento investigatório, preservando-se, assim, o contraditório e a ampla defesa. Nesse caso, não há falar em violação à garantia da bilateralidade da audiência, porquanto o exercício do contraditório será apenas diferido para momento ulterior à decisão judicial”. (2016, p. 51). (grifo nosso).

Ressalta-se que não apenas no curso da persecução penal condenatória haverá mitigação dos princípios do contraditório e da ampla defesa, pois também será possível a sua realização inclusive durante a execução da pena, consoante jurisprudência do STF:

“A Lei n.° 11.671/2008 prevê que, havendo extrema necessidade, o juiz federal poderá autorizar a imediata transferência do preso e após o preso estar incluído no sistema penitenciário federal, ouvir as partes interessadas e decidir pela manutenção ou revogação da medida adotada. Desse modo, em caso de situações emergenciais, o contraditório será diferido. Em 2013, o STF decidiu que a transferência de preso para presídio federal de segurança máxima sem a sua prévia oitiva, desde que fundamentada em fatos caracterizadores de situação emergencial, não configura ofensa aos princípios do devido processo legal, da ampla defesa, da individualização da pena e da dignidade da pessoa humana.” (1ª Turma. HC 115539/RO, Rel. Min. Luiz Fux, julgado em 3/9/2013 -Info 718).

Diferentemente do que ocorre no processo civil, a não observância adequada dos princípios do contraditório e da ampla defesa guarda relação mais intensa com a eventual ocorrência de nulidade, pois a proteção constitucional ao direito de liberdade de locomoção exige tratamento mais rígido, de forma que o prejuízo acaba por ser, muitas vezes, presumido.

Isso porque, uma das causas que leva à declaração de nulidade absoluta é a violação de normas constantes da Constituição Federal ou de Tratados Internacionais sobre Direitos Humanos (ex. Pacto de São José da Costa Rica), ainda que essa nulidade não esteja expressamente prevista no art. 564 do CPP. (LIMA, 2016, p. 1556).

Noutro giro, será relativa a nulidade que ferir norma infraconstitucional que tutela interesse preponderante das partes, caso em que será necessária a comprovação do prejuízo e deverá haver arguição em momento adequado, sob pena de preclusão e convalidação. (2016, p. 1556).

O art. 563 do CPP positiva o princípio do prejuízo, asseverando que nenhum ato será nulo se da nulidade não resultar nenhum prejuízo para as partes (pas de nullité sans grief).

Ocorre que os casos de violação ilícita e gritante aos princípios do contraditório e da ampla defesa num contexto que não exista espaço para convalidação, a previsão destes postulados na CF/88 e nos Tratados Internacionais de Direitos Humanos dos quais o Brasil é signatário como meios de proteção à liberdade de locomoção do indivíduo não leva a outra conclusão senão a de que o prejuízo existe, levando, assim, à declaração da nulidade absoluta pela não observância dos postulados. É o que ocorreria, por exemplo, na hipótese de condenação de um acusado que sequer foi citado.

5. Conclusão

Conclui-se que os princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa, corolários necessários do supraprincípio do devido processo legal, são garantias constitucionais características de um Estado democrático, pois visam a proteger as liberdades individuais do cidadão.

Restou demonstrado que, apesar da grande importância destes postulados, situações excepcionais admitirão a sua mitigação, especialmente quanto ao momento em que serão de fato exercidos, inclusive no processo penal. Contudo, devem estar presentes certos requisitos, como urgência e perigo de ineficácia da medida.

Frisa-se: ainda que haja a relativização dos princípios analisados, extrai-se do ordenamento jurídico brasileiro que o contraditório e ampla defesa não serão totalmente afastados no caso em concreto, mas apenas diferidos para momento oportuno, garantindo ao indivíduo a informação, possibilidade de reação e oportunidade de influenciar na decisão a respeito de sua liberdade.

E mais, havendo flagrante violação inconstitucional dos postulados estudados que gere direto prejuízo ao acusado, por estar em evidência sua liberdade de locomoção, a consequência deve ser o reconhecimento de nulidade absoluta.

 

Referências
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. in Vade Mecum. 7. ed. rev., ampl. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016. RT Códigos.
BRASIL. Código de Processo Penal Brasileiro: Decreto-Lei nº 3.659, de 3 de outubro de 1941. in Vade Mecum. 7. ed. rev., ampl. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016. RT Códigos.
CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Curso de Direito Constitucional. 5ª Edição, Salvador: JusPODIVM, 2011.
CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Curso de Direito Constitucional. 9ª Edição, Salvador: JusPODIVM, 2015.
DIDIER JR., Fredie. Curso de Direito Processual Civil: Teoria Geral do Processo e Processo de Conhecimento. Vol. 1. 12ª. ed. rev., ampl. e atual. Salvador: JusPODIVM, 2010.
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NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de Direito Processual Civil: Volume Único. 8ª. ed. Salvador: JusPodivm, 2016.
TÁVORA, Nestor, ALENCAR, Rosmar Rodrigues. Curso de Direito Processual Penal. 7ª. ed. rev. ampl. e atual. Salvador: JusPODIVM, 2012.

Informações Sobre o Autor

Natalie del Carmen Rodrigues de Carvalho Maranhão

Analista Processual no Tribunal de Justiça do Estado de Rondônia desde março de 2015. Assistente de Promotoria no Ministério Público do Estado de Rondônia de 2010 a 2012. Aprovada para o Cargo de Promotora de Justiça Substituta no Ministério Público do Estado do Amazonas. Formada em Direito pelo ILES/ULBRA de Porto Velho/RO em 2009. Pós-Graduada em Direito Público pela Universidade Anhanguera/MS


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