Resumo: O presente trabalho pretende abordar o desenvolvimento teórico do discurso prático geral a partir da perspectiva do neoconstitucionalismo, fenômeno não muito recente do Estado constitucional contemporâneo. Enfrentando os marcos históricos e conceituais do neoconstitucionalismo e da Teoria do Discurso de Robert Alexy.
Sumário: 1. Introdução: Marcos histórico e conceitual do constitucionalismo. 2. Neoconstitucionalismo: marcos histórico e conceitual. 3. Desenvolvimentos teóricos do neoconstitucionalismo: a teoria do discurso de Robert Alexy. 4. Conclusão
1. INTRODUÇÃO: MARCOS HISTÓRICO E CONCEITUAL DO CONSTITUCIONALISMO
O presente trabalho pretende abordar o desenvolvimento teórico do discurso prático geral a partir da perspectiva do neoconstitucionalismo, fenômeno não muito recente do Estado constitucional contemporâneo. Com o intuito de enfrentar o referido aporte teórico há que se estabelecer, inicialmente, os marcos históricos e conceituais do neoconstitucionalismo.
A concepção do neoconstitucionalismo pretende expressar que um movimento, o constitucionalismo, ressurgiu como novo. Antes de entender o “novo” constitucionalismo, primeiro há que se abordar o “velho”. O último retratou um período impulsionado pelas revoluções burguesas do século XVIII, que impunha um conceito ideal de Constituição, identificado com postulados político-liberais, apresentando basicamente como elementos materiais caracterizadores os seguintes: a) sistema de garantias de liberdade; b) princípio de divisão dos poderes; c) constituição escrita. [1]
Com base neste conceito ideal, núcleo essencial do Estado de Direito liberal, estabeleceu-se o conceito negativo de Constituição, também denominada ratio essendi[2] da Constituição, plasmada na Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, votada a 2 de outubro de 1789 pela Constituinte da França Revolucionária, que proclamou não ter Constituição a sociedade na qual não esteja assegurada a garantia dos direitos nem estabelecida a separação dos poderes[3], in verbis: Toute societé, dans laquele la garantie dês droits n´ést pas assurée ni la separation dês pouvoirs détérminée, n’a point de constitution.
Ressalte-se, assim, que as primeiras Constituições que adotaram este conceito material, encarnando a noção de constitucionalismo, foram a francesa, de 1789 e a americana, em 1791, quando aprovou as dez emendas (Bill of rights) que consagravam direitos e liberdades fundamentais.[4]
Assim, este movimento constitucional, representante de uma técnica específica de limitação do poder do Estado com fins garantísticos, legitimou o aparecimento da chamada constituição moderna, que encarnou, assim, duas idéias básicas: 1) fundação e legitimação do poder político e; 2) constitucionalização das liberdades.[5]
Esta concepção de Constituição, ainda tipicamente liberal, sofreu transformações nos mais diversos países e ao longo destes dois séculos, em especial, após a II Guerra Mundial. Este foi marco histórico, pode-se dizer que trouxe uma mudança radical no modo de pensar e ver a Constituição, em especial, com a descrença no positivismo, enquanto teoria do direito, que pretendia apartar o ordenamento jurídico de valores[6] e da moral.
No entanto, não haveria mais um conceito único para delimitar ou definir o que seria uma Constituição, eis que a pluralidade de idéias e concepções convivendo em uma mesma sociedade e a diversidade entre os países gerou diferentes tipos e formatos de Cartas fundamentais. Nada obstante, as diferentes leis fundamentais, aprovadas na Europa, nos países da América Latina e também na África do Sul, passaram a se aproximar de modo a formar uma complexa tessitura constitucional, inseridas num novo fenômeno e, ao mesmo tempo teoria constitucional: o neoconstitucionalismo[7].
2. NEOCONSTITUCIONALISMO: MARCOS HISTÓRICO E CONCEITUAL
O neoconstitucionalismo retrata um fenômeno constitucional contemporâneo que apresenta características marcantes, em especial, decorrentes do surgimento destas novas leis fundamentais, e de fato, a principal novidade do neoconstitucionalismo é de fato ver o Estado Democrático de Direito em funcionamento[8].
Há autores como Albert Calsamiglia[9], talvez porque influenciado pela doutrina positivista de Herbert Hart[10] que é aberta e permeável ao momento presente, que ao invés de utilizar a expressão neoconstitucionalismo, preferem chamá-lo de postpositivismo. Dessa forma, diferentemente do que ocorre com o neoconstitucionalismo, não há, digamos assim, uma ruptura com o passado, mas, ao contrário uma certa continuidade com o momento teórico anterior positivista.
No Brasil, diferentemente do caso europeu, e do posicionamento do autor italiano Calsamiglia, tivemos maior influência da doutrina de Hans Kelsen[11]. A teoria se caracteriza por ser muito mais avessa a mudanças, uma teoria “pura” do direito, e que serviu de base ideológica para a pseudo-legitimação de tantos anos de ditadura militar no Brasil. Talvez por este motivo, aqui, seja mais adequado fazer uso da expressão neoconstitucionalismo, em detrimento do postpositivismo[12], em um claro afastamento necessário aos tempos de repressão.
Nem por este motivo, ao se optar pelo neoconstitucionalismo, se quer trazer o novo como uma ruptura total com o velho. Realmente, a explicação tecida acima calha unicamente à caracterização de um mesmo fenômeno teórico, apesar de existirem opiniões em contrário (mormente quando se trata dos diferentes graus de ruptura com o positivismo), denominado por duas formas diferentes: postpostivismo e neoconstitucionalismo.
No giro neoconstitucionalista, sob o enfoque da realidade brasileira, fica mais acentuada a oposição ao positivismo do passado sem, no entanto, uma quebra latente. A novidade veio reaproximar a ciência da moral e demonstrar que a pretensa cisão de fato nunca existiu. Nas palavras de Mauro Barberis[13] a principal característica que diferencia a nova postura frente ao juspositivismo e ao jusnaturalismo, é “[…] a idéia de que o Direito não se distingue necessária ou conceitualmente da moral.”, tal conexão se situa no nível dos princípios fundamentais ou constitucionais.
Miguel Carbonell[14] destaca três diferentes níveis de análise a considerar quando se fala no fenômeno teórico do neoconstitucionalismo: textos constitucionais, práticas jurisprudenciais e desenvolvimentos teóricos.
O novo como teoria pretende explicar um conjunto de textos constitucionais que surgiram depois da segunda guerra mundial, como destacado, em especial, a partir dos anos setenta. Tais leis fundamentais não se preocupavam apenas em estabelecer competências dos poderes públicos, mas também em incorporar normas substantivas que condicionavam a atuação do Estado por meio da ordenação de fins e objetivos.[15] Com a superação de regimes totalitários que marcaram a primeira metade do século passado, diversos países decidiram introduzir elementos relacionados a valores e a opções políticas fundamentais, com a esperança de que tais elementos formassem um consenso imune à ação das maiorias e dos governos.[16]
A segunda abordagem do tema está relacionada às práticas jurisprudenciais, conseqüência, em parte, da entrada em vigor de um modelo substantivo de textos constitucionais. Os juízes constitucionais passaram a enfrentar textos com linguagem aberta e plurissignificativa, exigindo maior criatividade e novos parâmetros interpretativos, como por exemplo, a ponderação, a proporcionalidade, a razoabilidade, entre outros.
No Brasil, como em outros países, é tema recorrente a constatação da ascensão institucional do Poder Judiciário, em especial, por conta de um grande elenco de direitos e garantias fundamentais e seu caráter aberto e objeto de desacordo moral, somado à crise de legitimidade do Poder Legislativo e à ocupação pelos juízes de espaços vazios dos outros Poderes. O cidadão passou a ver no terceiro poder a última trincheira das liberdades. O Supremo Tribunal Federal retrata muito bem este movimento, em especial, nos últimos anos, ao tratar de temas de interesse público e objeto de desacordo, bem como pelo fato de utilizar novas técnicas interpretativas para dar cabo das omissões legislativas e administrativas.[17]
Outra perspectiva do novo movimento constitucional são os desenvolvimentos teóricos, os quais partem de textos constitucionais substantivos e da prática constitucional, mas que não se finalizam na explicação de fenômenos jurídicos, contribuindo, ainda, para criar o próprio fenômeno. Neste sentido, é necessário relembrar que a ciência jurídica não tem função meramente contemplativa do objeto de estudo, senão também pode contribuir de forma decisiva em sua criação.[18]
Entram em cena novas técnicas interpretativas, que vão muito mais além da mera subsunção perpetrada pela lógica positivista, próprias dos princípios constitucionais, da ponderação, e da racionalidade discursiva; entram novos nortes valorativos impregnados de moralidade, como a dignidade da pessoa humana[19], a razoabilidade[20], a proporcionalidade; e entra a concretização dos direitos fundamentais[21], a efetivação das promessas não cumpridas, mormente nos países de modernidade tardia, como é o caso brasileiro[22].
Entretanto, um ponto não mudou com o surgimento do neoconstitucionalismo, a conquista da centralidade da Constituição como norma fundamental[23]. Sem dúvida, esta foi uma evolução do constitucionalismo frente ao positivismo privatista do código napoleônico, levado a efeito até a bem pouco tempo pela sua conveniente adequação aos anos da ditadura militar brasileira. Aliás, uma das características do pensamento da pós-modernidade é exatamente este, a construção do novo sem a ruptura absoluta com o velho, ou seja, a criação de uma harmonia formada através da conexão do passado com o presente[24].
Neste giro inovador comprometido com o passado, convivem num mesmo sistema constitucional, regras (aplicáveis na forma do tudo ou nada de Ronald Dworkin[25]) e princípios (mandamentos de otimização de Robert Alexy[26]), ambos a desafiar a ponderação[27]. A complexidade atual exige do trabalho hermenêutico uma tarefa difícil, a concretização de valores constitucionais de modo a aplicar os conteúdos normativos abstratos aos casos concretos de forma justificável e razoável, transparecidos no diálogo motivado.[28]
Assim, a Constituição com sua feição eminentemente principiológica desafia a tarefa hermenêutica na superação do formalismo tradicionalista e adentra na necessidade do desenvolvimento de um Direito equilibrado nada fácil de manter.
Um dos aportes teóricos inseridos no contexto do neoconstitucionalismo, motivado pelos textos constitucionais e pela prática jurisprudencial, é a teoria do discurso, representada por Robert Alexy, a qual representa a base para a discriminação das regras específicas do discurso jurídico.
3. DESENVOLVIMENTOS TEÓRICOS NO NEOCONSTITUCIONALISMO: A TEORIA DO DISCURSO DE ROBERT ALEXY.
Embora alguns critiquem a utilidade de se estudar a teria do discurso de Robert Alexy em países de modernidade tardia, como o Brasil, ainda assim é através de teorias desta magnitude que se alcançam desenvolvimentos fundados acerca das questões jurídicas em pauta, ou seja, através do aprofundamento teórico do discurso se chega a questão concreta de fundamentação das decisões.
O Estado Democrático de Direito necessita de uma gama de novos instrumentos aptos a dar azo a este novo Estado participativo da “sociedade aberta de intérpretes da constituição”[29], a fim de formar consensos possíveis mais acertados acerca dos rumos que as sociedades determinem a si.
Neste giro, o autor tedesco[30] aduz que não só do parlamento emana o poder representativo e argumentativo do povo, mas também do tribunal constitucional. Segundo ele:
“O parlamento representa o cidadão politicamente, o tribunal constitucional, argumentativamente. Com isso, deve ser dito que a representação do povo pelo tribunal constitucional tem um caráter mais idealístico do que aquela pelo parlamento. O cotidiano da exploração parlamentar contém o perigo que maiorias imponham-se desconsideradamente, emoções determinem o ocorrer, dinheiro e relações de poder dominem e simplesmente sejam cometidos erros graves. Um tribunal constitucional que se dirige contra tal não se dirige contra um povo, mas, em nome do povo, contra seus representantes políticos. Ele não só faz valer negativamente que o processo político, segundo critérios jurídico-humanos e jurídico-fundamentais, fracassou, mas requer também positivamente que os cidadãos iriam aprovar os argumentos do tribunal se eles aceitassem um discurso jurídico-constitucional racional. A representação argumentativa dá bom resultado quando o tribunal constitucional é aceito como instância de reflexão do processo político.”
Deixando de lado os sujeitos, devemos voltar à a análise do procedimento em si. Quanto a este último, verifica-se a rotineira utilização do procedimentalismo e do substancialismo como modelos estanques e não comunicáveis. Entretanto, preferimos a posição adotada por outros doutrinadores, inclusive os pátrios como Streck, que criticam a dualidade metafísica existente na racionalidade discursiva contemporânea[31]. Seguindo esta linha crítica, não pretendemos tomar o modelo procedimental de Alexy como a única via a ser seguida, ao contrário, a pretensão é de basear-se também nela sem a exclusão de qualquer outra[32]. Mas, antes de examinar a teoria do discurso, ainda que de maneira breve e sem pretensão exaustiva, cabe verificar a importância da teoria para o desenvolvimento do diálogo jurídico. Para tanto, estabeleceremos a seguinte comparação.
Henry Ford[33], no início do século XX, fundador da Ford, popularizou o automóvel e revolucionou a indústria como um todo. Transformou o mundo através de uma nova forma de produzir carros e se tornou uma das pessoas mais ricas e célebres “dos tempos modernos”. É certo que fomentou o consumo massificado de produtos, popularizando-os na sociedade, compartimentalizou a produção, e bitolou o trabalhador em uma única etapa da linha de montagem. No entanto, alterou o rumo da sociedade de consumo pós-moderna.
O que realmente importa, presentemente, é que Ford criou um novo procedimento, a linha de montagem, abrindo caminho para a produção em massa, fazendo mesma coisa que seus concorrentes, carros; só que de uma forma diferente, o que era totalmente inovador.
A perspectiva em estudo da racionalidade discursiva como modelo procedimental é a mesma da registrada acima: atentar para a forma como se produz o conhecimento jurídico. No entanto, antes de adentrar na teoria do discurso, três premissas epistemológicas precisam ser vistas: a filosofia, no que pertine aos estudos de lógica; os modelos de conhecimento adotados por Kant em seu “Crítica da Razão Pura”; e por fim, a distinção analítica empreendida por Klaus Günther entre discursos de justificação ou fundamentação e o discurso de aplicação ou adequação.
Como todo conhecimento pressupõe uma ordenação intencional da inteligência capaz de dotar o investigador de terrenos firmes sobre os quais deve seguir seu caminho, a primeira premissa epistemológica a ser abordada trata da lógica. Como é sabido por todos, a lógica aristotélica é tradicionalmente repartida em dois métodos: um indutivo e outro dedutivo. Na lição de Miguel Reale[34]:
“O método indutivo, se caracteriza por ser um processo de raciocínio que se desenvolve a partir de fatos particulares, até atingir uma conclusão de ordem geral, mediante a qual se possa explicar o que há de constante ou comum nos fatos observados e em outros da mesma natureza. […] Ao contrário do processo indutivo, temos o dedutivo, que se caracteriza por ser uma forma de raciocínio que, independentemente de provas experimentais, se desenvolve, digamos assim, de uma verdade sabida ou admitida a uma nova verdade, apenas graças às regras que presidem à inferência das proposições, ou, por outras palavras, tão somente em virtude das leis que regem o pensamento em sua “conseqüencialidade” essencial.”
O renomado e saudoso mestre ainda explica a subdivisão do método dedutivo em duas espécies a silogística e a amplificadora:
“Deve-se lembrar também que há duas espécies de dedução, a silogística e a amplificadora. A primeira, a do silogismo, se distingue porque, postas duas proposições, chamadas premissa maior e premissa menor, delas resulta necessariamente uma conclusão, a qual, se esclarece ou particulariza um ponto, nada acresce substancialmente ao já sabido. Na dedução amplificadora, que muitos erroneamente atribuem somente às Matemáticas, do cotejo lógico de duas ou mais proposições podemos elevar-nos a uma verdade nova, que não se reduz, ponto por ponto, às proposições antecedentes.”
O que importa reter neste momento é a percepção do dualismo empreendido por Aristóteles ao criar duas formas de conhecimento dimensionais: uma baseada em fatos reais (específico), outra em verdades sabidas (geral).
Visto isso, passamos a segunda premissa, os modelos de conhecimento adotados por Immanuel Kant[35] em seu “Crítica da Razão Pura”. De modo muito breve, de acordo com Kant, há duas formas de conhecimento, o modelo empírico ou a posteriori, e o modelo puro ou a priori. O primeiro reduz-se aos dados fornecidos pelas experiências sensíveis, e.g. a porta está aberta. Neste modelo, o filósofo entende que o conhecimento não pode ser desvinculado da impressão dos sentidos. Já o segundo, o modelo do conhecimento puro ou a priori, não depende de nenhuma experiência sensível, distigüindo-se do empírico pela universalidade e necessidade (qualquer linha – universalidade, qualquer condição – necessidade), e.g. a linha reta é a distância mais curta entre dois pontos. Kant ensina, ainda, que o conhecimento empírico não produz juízos necessários e essenciais. Dessa forma, o autor tedesco aposta todas as suas fichas no conhecimento puro ou a priori. Interessante notar que Kant, assim como Aristóteles, parte de duas dimensões para buscar o conhecimento, uma especial e outra geral, conhecimento empírico e conhecimento puro.
A terceira premissa epistemológica cuida da distinção analítica empreendida por Klaus Günther[36] entre discursos de justificação ou fundamentação e o discurso de aplicação ou adequação. De acordo com o autor tedesco, no discurso de justificação (things being equal) ou fundamentação, a validade da norma é aferida com apoio em uma versão fraca ou débil do critério de universalização, a partir do qual é estabelecido um sentido recíproco e universal de imparcialidade na justificação dos enunciados normativos – ficção – aplicação prima facie. No caso do discurso de aplicação (all things considered) ou adequação, não se mantém a ficção anteriormente mencionada, eis que o âmbito de análise se dá diante do caso concreto. A aplicação de enunciado normativo é tematizada sob a consideração de todas as circunstâncias envolvidas. Cabe esclarecer que a análise de todas as características fáticas relevantes pode inclusive excepcionar a norma tida como prima facie, e conduz ao fenômeno da colisão entre as normas.
Assim, para Alexandre Garrido da Silva[37]:
“Em um estágio pós-convencional da moralidade, a razão prática divide-se em discursos de justificação situacionalmente independentes e discursos de aplicação responsáveis pelo exame de todos os elementos empíricos relevantes em uma dada situação, sendo que estes complementam o sentido de imparcialidade ou equidade pretendido pelos primeiros. Há assim um vínculo indissociável entre o discurso de justificação ou legitimação e o discurso de adequação ou aplicação das normas.”
Klaus Günther não parece desbordar de Aristóteles e Kant. Sua análise, com variações, também parte de uma dupla dimensionalidade, a geral e a específica, apostando, como os outros, na real existência de uma distinção entre as duas formas de conhecimento.
Mesmo assim, parece bem lúcida a percepção de Alexandre Garrido quando afirma a existência das duas formas de conhecimento, entretanto, aposta numa relação de complementaridade entre ambas. Neste ponto, Kant parece ter falhado ao ter deixado o conhecimento empírico de lado, quando, de fato todo o conhecimento, seja em qual dimensão estiver, é passível de aprofundamento e desenvolvimento da compreensão.
Empreendidas as premissas que por si só valem como posturas filosóficas historicamente situadas e expostas de forma coerente com sua cronologia datada, e após a assertiva do caráter indissociável dos discursos, seria mesmo, um equivoco, portanto, considerar o isolamento gnosiológico da teoria do discurso de Alexy, apenas compreendida como meramente procedimental[38].
A teoria do discurso prático racional geral, na qual Alexy discrimina as regras do discurso, serve com pedra angular para sua teoria da argumentação jurídica.
Vivendo em sociedades democráticas, a transparência dos discursos não tolera ilegitimidades. A lógica discursiva democrática deve ser racional e motivada para ser compreendida e aceita como decisão.
Nessa esteira de raciocínio, cabe analisar Alexy. Abordando sua primeira teoria – discurso prático – o autor tedesco formula dois teoremas[39]. O primeiro estabelece que a versão “pode ser” tem maior amplitude que a verdade, ou seja, a verdade é provisória e construída através de um procedimento. Neste contexto a ela (a versão “pode ser”) será o ponto de partida ao segundo teorema. “Se a defende uma teoria procedimental da versão pode ser, segundo a qual o procedimento P é para ser aplicado, então a responderá à pergunta sobre se a norma N é adequada da seguinte forma: D (definição) como: a norma N é adequada se e somente se puder ser o resultado de um procedimento P.[40]”
A partir das duas formulações de base o autor elenca três maneiras diferentes de construir o procedimento “P”. Essas diferenças se referem: primeiro aos indivíduos que participam dele, segundo aos requisitos que se impõe ao procedimento, e terceiro, à peculiaridade do processo de decisão.
Quanto à maneira de se construir um procedimento que diz respeito aos indivíduos, o doutrinador da teoria do discurso a caracteriza pela participação de um número ilimitado de indivíduos, realmente existentes, que tomam parte em um procedimento.
No que se refere aos requisitos coloca, ainda, que podem ser formulados de várias maneiras diferentes, sendo que as diferenças mais significativas provêm da força dos requisitos exigidos até a formulação de regras que determinam como proceder, isto no que se refere ao segundo aspecto, ou seja, aos requisitos que se impõe ao procedimento.
Finalmente quanto a última maneira, no que se refere à peculiaridade do processo de decisão, o caráter do procedimento depende do número de indivíduos e dos tipos de requisitos exigidos. É aquela maneira que diante de indivíduos e requisitos constrói e define o procedimento. Assim, fica claro que, na teoria do discurso, está prevista, com base no procedimento, a possibilidade de uma mudança nas convicções e nos interesses empíricos e normativos dos indivíduos participantes.
Segundo Alexy “os requisitos exigidos pela teoria do discurso, já que esta não apresenta prescrições concernentes aos indivíduos, podem ser inteiramente formuladas através de regras[41].” Na obra Teoria da Argumentação Jurídica, o doutrinador expõe um sistema de regras do discurso com 28 regras. Essas regras compreendem: aquelas que prescrevem e.g. a não contradição; as que expressam a idéia de universalidade; e as que valem para a argumentação. No entanto, não foram poucas as vozes contra um “conceito confuso de racionalidade” expresso por um espectro variado de regras.
Em resposta o doutrinador tedesco diz que a racionalidade prática é um assunto complexo que só pode ser analisada através de um modelo complexo. Afirma, ainda, que o modelo de regras se ajusta à teoria do discurso, pois ambos são complexos, e vai mais além, seguro de que o conceito de regras tem conteúdo moral; aduz que as regras de conteúdo moral podem ser fundamentadas; e que o conteúdo moral não compromete a aplicabilidade do sistema.
Outro ponto de sua teoria que foi alvo de críticas é aquele que cuida da aplicabilidade das regras. Segundo os críticos o sistema de regras, tal como formulado, não ofereceria um procedimento que permitiria chegar a um número finito de operações. Três razões são elencadas: (1) não há pontos de partida (dependem das convicções e interesses dos participantes existentes em cada tempo); (2) regras do discurso são diferentes dos passos da argumentação; (3) A regra do discurso não garante sempre uma decisão definitiva.
Para enfraquecer a objeção da teoria do discurso fundada na sua inaplicabilidade, Alexy distingue os discursos reais dos ideais, esclarecendo desde logo que somente um discurso ideal em todos os aspectos interessa ao seu modelo. Isto porque ele é definido como discurso que procura responder a uma questão prática, que ocorre sob condições de tempo ilimitado, com participação ilimitada, com completa ausência de constrangimento no processo de produção, com perfeita clareza lingüístico-conceitual, com capacidade de informação empírica completa, total capacidade e disponibilidade para troca de papéis, e total liberdade de preconceitos.
Por outro lado, o conceito de um discurso ideal em todos os aspectos traz quatro problemas indicados pelo autor: os problemas da construção, consenso, critério e adequação.
O problema da construção demonstra que o discurso ideal não é sempre um discurso perfeito. Isto porque, na teoria do discurso os participantes são reais e existentes, enquanto que para o discurso ideal os participantes são construídos, imortais, ideais. O prolongamento da participação por tempo ilimitado, e num ambiente de total aprendizado, os participantes reais tornam-se participantes ideais. Entretanto, para Alexy não há contradição entre eles. O discurso torna-se perfeito através de uma continuação mentalmente construída baseada em processos de aprendizagem iniciados com indivíduos reais.
O segundo problema, o problema do consenso aparece com o seguinte questionamento: Um discurso ideal leva a um consenso em toda questão prática? O doutrinador tedesco responde afirmando que somente se baseada da premissa empírica (avalorativa, infinita, com perfeita clareza lingüística, sem pré-conceitos) de que o preenchimento das condições do discurso ideal faria desaparecer todas as diferenças de opinião em questões práticas. Isso não ocorre porque não existe procedimento para prognosticar a conduta de pessoas reais sob condições não reais. No discurso ideal potencialmente infinito não pode ser excluída a possibilidade de efetivação do consenso (tempo). No discurso ideal potencialmente infinito jamais se pode afirmar que um discurso já obtido é final ou definitivo (novos argumentos), pois com argumentos infinitos, o novo argumento pode modificar o consenso.
O terceiro problema do discurso ideal é o problema do critério, que diz respeito à questão de se e até que ponto o discurso ideal pode ser aplicando como critério de adequação, nos termos da definição “D”. Se o discurso ideal for usado como critério, seu resultado pode ser uma norma “N”. Os problemas relativos ao critério são: quanto da aplicação do discurso ideal como critério de adequação; quanto ao caráter ideal dos requisitos exigidos pelo discurso ideal; quanto a estrutura interna do discurso ideal. No que se refere ao primeiro, quanto da aplicação do discurso ideal como critério de adequação, apesar do procedimento resultar da necessária cooperação entre várias pessoas, ele tem desenvolvimento de fato na mente de um só. O que causa incerteza, porém não o torna impróprio.
O segundo sub-problema do problema do critério extrai-se do caráter ideal dos requisitos exigidos pelo discurso ideal. Preenchimento aproximado dos requisitos do procedimento causa incerteza, mas, ressalta o professor de Kiel, a incerteza não implica em impropriedade.
O terceiro sub-problema do problema do critério resulta da estrutura interna do discurso ideal. Dessa forma, mesmo um consenso formado no discurso ideal é incerto como final ou definitivo, mesmo num discurso ideal pode não existir consenso. Entretanto, ainda garante alguma segurança para ser aceito como critério. A incerteza não leva a impropriedade nem a total insegurança, o que de fato existem são graus de insegurança.
Deixando o problema do critério e entrando no problema da adequação do discurso ideal, agora três são os sub-problemas que devem ser estudados: do conceito de adequação, da objetividade, e da contradição.
O sub-problema do conceito de adequação parte de uma concepção semântica de adequação prática. A proposição “X é devido” é adequada exatamente se e somente X for devido.
O sub-problema da objetividade advém do fato de que o procedimento discursivo é subjetivo e objetivo ao mesmo tempo. Na teoria do discurso a condução do procedimento discursivo torna-se decisiva não o consenso, assim, o dissenso pode ser adequado se atravessou o procedimento discursivo. Na mesma teoria, os participantes têm discernimento para distinguir entre os bons e maus fundamentos, afinal um dos objetivos do procedimento do discurso é desenvolver a capacidade de discernimento. Não há bons fundamentos em si mesmos, o que é efetivamente bom somente vai ser revelado no processo de investigação discursiva. Portanto, o discurso é subjetivo na medida em que é condicionado pelas características peculiares dos participantes, e é objetivo na medida em que pôde resistir à investigação discursiva efetivada com base em uma suficiente capacidade de discernimento dos participantes. O Discernimento faz a conexão entre a adequação e o procedimento.
O último sub-problema da adequação do discurso ideal a ser tratado é o da contradição. Este leva a um desdobramento do conceito de contradição em absoluto e relativo. O conceito de adequação é relativo quando não existe uma única resposta adequada para cada questão prática, nem por isso o é totalmente, por outro lado, ele é absoluto enquanto idéia regulativa procedimental e exige procura contínua da única resposta. Esse conceito procedimental relativo de adequação tem um papel central nos discursos reais.
Nos discursos reais, dentro das modalidades discursivas, a definição de adequação ao fim do procedimento tanto é o que é discursivamente necessário, quanto o que é discursivamente possível.
Assim, deixa de ser problemática a contradição quando o resultado discursivo pode ser uma norma possível não necessária mas, mesmo assim, adequada. Percebe-se que o autor tedesco[42] faz uso, por conseguinte, de um conceito de adequação relativo. Este conceito relativo enseja quatro aspectos da relativização: relatividade das regras do discurso, do grau de cumprimento, dos participantes, e do tempo. Deixando de lado o primeiro e passando diretamente ao segundo aspecto da relativização do conceito de adequação quanto ao grau de cumprimento, Alexy explicita que algumas regras do discurso podem ou não ser cumpridas, outras regras do discurso ideal, por uma questão de grau, podem ser mais ou menos cumpridas.
Neste giro ensina que a possibilidade de cumprimento apenas aproximado leva à incerteza do discurso enquanto critério. No entanto, incerteza não implica em inutilidade. No que pertine ao segundo aspecto, a relatividade dos participantes, ele também provoca incerteza, mas esta não pode ser evitada. Os discursos práticos exigem um procedimento não monológico, exigem um ponto de partida existente na convicção normativa do participante. Neste sentido, o procedimento discursivo é um processo de investigação das convicções que são candidatas à uma modificação baseada em argumentação racional.
A teoria do discurso de Alexy procura determinar o processo de argumentação através da estruturação racional e da prescrição de determinados conteúdos abertos de partida dos teóricos ou participantes. Quanto ao último aspecto da relatividade do tempo, em caso de resultado de dissensos (casos discursivamente possíveis) a idéia regulativa de adequação exige o caráter não definitivo do resultado. Em caso de resultados de consenso (casos discursivamente necessários) o caráter necessariamente provisório resulta da necessária imperfeição de todo discurso real.
O professor de Kiel conclui, diante das relatividades expostas, que dever-se-ia abandonar o conceito de adequação eis que bifurcado em procedimental absoluta (idéia regulativa) e, em procedimental relativa (alto grau de incerteza). Entretanto, ele não o abandona porque o motivo da utilização da adequação é que a investigação discursiva, ainda que não leve à certeza, leva pelo menos a sair do campo da mera opinião e da crença subjetiva, sendo ainda apropriado o uso do conceito de adequação relativa, em questões práticas.
Entretanto, Manuel Atienza[43] comentando os limites do discurso prático geral, ressalta que: “As regras do discurso não garantem que se possa alcançar um acordo para cada questão prática […], nem tampouco que, caso se alcançasse esse acordo, todo o mundo estaria disposto a segui-lo […]”.
Apesar da possibilidade de inexistência de acordo ou de seu cumprimento, de fato a Teoria discursiva incrementa em muito a motivação dialógica essencial no ambiente democrático aplicável em qualquer esfera de Poder.
4. CONCLUSÃO.
A compreensão do Direito se libertou dos dogmas absolutos do tempo do positivismo avesso à moral. A esse fenômeno teórico conciliador se convencionou chamar de neoconstitucionalismo, expressão mais adequada à realidade cultural brasileira de repulsa ao militarismo cujo ideal era pretensamente positivista kelseniano. Neste novo contexto muito mais aberto, a Constituição aflora não somente como texto garantístico da liberdade, mas como norma programática e principiológica transformadora da realidade.
A nova abordagem teorética conferida à matéria constitucional tornou muito complexa a tarefa do profissional do Direito. O que antes era aparentemente simples com a mera subsunção do fato a norma, transformou-se na difícil ponderação de regras e princípios. A este fato, deve ser acrescido o incremento cada vez maior da justificação do discurso racional, que se pretende implementado em todos os momentos do desenrolar do Estado Democrático de Direito e por todos os seus participantes. Dentro desta realidade pós-moderna, o estudo do procedimento empreendido no discurso prático geral por Robert Alexy assume especial importância. Mesmo que fazendo uso de um ideal universal de um procedimento, a simples aplicação, ainda que aproximada, de alguns de seus postulados já é um grande avanço em nível discursivo analítico justificante do caso concreto. Sabedor de que a certeza não pode ser alcançada, senão aproximadamente, tendo a possibilidade maior relevância que a verdade, Alexy propõe seu teorema: “Uma norma N é adequada se e somente se puder ser o resultado do procedimento P”.
Dessa forma, através da aplicação também da teoria prática do discurso geral, mesmo como modelo de conhecimento contrafático, universalizante e procedimental, é possível avançar racionalmente em direção a uma sociedade mais justa e igualitária.
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