Resumo: A Lei 8.069, o Estatuto da Criança e Adolescente, lei de vanguarda por contemplar a doutrina da proteção integral, completa 21 anos e ainda não é efetivamente cumprida. Aos adolescentes que cometem atos infracionais, a medida socioeducativa de internação, prevista para os casos mais graves, quando não é possível a aplicação de outra, que deveria ser excepcional e ter breve duração, institucionaliza-se, como via repressora contra a criminalização juvenil que não encontra outra frente de combate, já que o Estado permanece falho na proteção e garantia dos direitos fundamentais das crianças e adolescentes. Diante do contexto social brasileiro, há de se refletir e questionar em que condições está a execução das medidas socioeducativas e torna-se urgente a reflexão sobre outras maneiras de responsabilização do adolescente infrator e de outras formas de promoção de políticas publicas que visem à garantia dos direitos fundamentais assegurados constitucionalmente às crianças e adolescentes. Este trabalho foi orientado pela Profª MsC. Luanna Tomaz.
Palavras – chave: Direito da criança e do adolescente, ECA, direitos humanos, medidas socioeducativas, internação.
Abstract: The Law 8.069, Status of Children and Adolescents, is considered a vanguard law because of contemplating the doctrinal of complete protection, complete 21 years and is still not effectively enforced. To the adolescents who commit infracional acts, the partner-educative measure of internment, foreseen for the most serious cases, when it is not possible to apply another, which should be exceptional and have a short duration, was institutionalized as the way repressive against juvenile criminality, while the state remains flawed in protecting and guaranteeing the fundamental rights of children and adolescents. Given the social context of Brazil, it’s important to question under what conditions is the implementation of partner-educative measures and it is urgent to reflect on alternative means of adolescent’s imputation and alternative means of transgressing tennager’s imputationon ain other forms of promotion of public policies aimed at guaranteeing the constitutionally guaranteed fundamental rights of children and adolescents.
Keywords: Rights of children and adolescents, ECA, Human rights, partner-educative measures, internment.
Sumário: 1. Introdução 2. Medidas Socioeducativas: a Internação 3. A internação: medida excepcional? 4. Considerações Finais 5. Referências.
1. Introdução
No quadro real de marginalidade econômica e social em que se encontra a grande maioria da população brasileira, crianças e adolescentes padecem tanto com a omissão da família, quanto do Estado no que tange ao asseguramento dos seus direitos fundamentais, justamente numa época em que são frágeis e vulneráveis, momento de seu desenvolvimento físico e mental.
Dentro desse contexto, foi promulgado em 1990 a Lei 8.069, o Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA – que absorveu os ditames da doutrina da proteção integral, pela qual se reconhece as crianças como sujeitos de direitos, carecedoras de proteção e cuidados especiais, por entender sua condição de pessoa em desenvolvimento; e contempla o princípio da prioridade absoluta, traduzido como preferência na formulação e na execução de políticas públicas, bem como na destinação privilegiada de recursos. O ECA é a regulamentação do art. 227 da Constituição Federal, o qual determina ser dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, os seus direitos fundamentais, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
Entretanto, os avanços insculpidos na lei têm sido pouco materializados na prática, uma vez que a realidade nos mostra que a infância e adolescência, no Brasil, ainda são marcadas por problemas sociais, como baixo rendimento escolar, desestrutura familiar, criminalidade, trabalho infantil, etc., os quais representam uma verdadeira violação de direitos, além de desrespeito à dignidade humana.
2. Medidas Socioeducativas: a Internação
Entre os muitos capítulos do Estatuto, aquele dedicado ao adolescente autor de ato infracional, certamente é um dos mais polêmicos e complexos. Apesar de ter incorporado a doutrina da proteção integral, ainda se mantém, na prática, uma cultura da revogada e perversa lógica punitiva da filosofia menorista. A justiça menorista sempre pautou-se pela vigilância das crianças e adolescentes, ditos “menores”, nome direcionado seletivamente aos mais pobres, a despeito de haver ou não omissão das famílias em sua educação e cuidado.
Desta forma, no que diz respeito aos adolescentes “em conflito com a lei”, o ECA traz um conjunto de princípios norteadores, objetivando a ressocialização e a aplicação de medidas socioeducativas, como forma de não deixar impune o ato praticado, e, simultaneamente, entende-lo diferentemente do ato cometido por um adulto. O ato infracional pode ser definido como qualquer conduta descrita como crime ou contravenção penal cometida por um adolescente. Importante não olvidar que no caso de ato infracional cometido por criança, entendida por definição legal até a idade dos 12 anos, a medida aplicada será protetiva, inclusive com a possibilidade de aplicação de medidas específicas aos pais ou responsáveis. As medidas socioeducativas previstas pelo ECA são: advertência, reparação de dano, prestação de serviços a comunidade, liberdade assistida, internação e semiliberdade.
A medida socioeducativa de internação, objeto de nosso estudo, por expressa definição legal contida no Estatuto da Criança e do Adolescente, é medida de privação de liberdade, aplicável pela autoridade judiciária em decisão fundamentada e sujeita aos princípios de brevidade, excepcionalidade e respeito à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento. A internação somente deverá ser aplicada em casos extremos, quando, comprovadamente, não houver possibilidade de aplicação de outra medida socioeducativa menos gravosa, devendo sua execução se estender pelo menor tempo possível e com o limite máximo de duração de três anos. Há a obrigatoriedade de reavaliação da necessidade de sua manutenção, no máximo, a cada seis meses.
Considere-se ainda que, salvo por decisão judicial fundamentada, fica permitida a realização de atividades externas; que a internação deverá ser cumprida em entidade exclusiva para adolescentes, onde serão obrigatórias atividades de cunho pedagógico e obedecendo a rigorosa separação, com base em critérios de idade, compleição física e gravidade da infração, além de todos os direitos assegurados pelo Estatuto. Diferentemente das penas, as quais possuem um caráter retributivo/punitivo, as medidas socioeducativas têm um caráter eminentemente pedagógico, com a preocupação de educar o adolescente infrator, buscando evitar a reincidência.
3. A internação: medida excepcional?
De acordo com relatório de Silva e Gueresi, existem no Brasil cerca de 10 mil adolescentes internos em instituições de privação de liberdade. Isso significa que para cada 10 mil adolescentes brasileiros, existem cerca de três adolescentes privados de liberdade. São adolescentes do sexo masculino (90%); com idade entre 16 e 18 anos (76%); da raça negra (mais de 60%); que não freqüentavam a escola (51%); que não trabalhavam (49%); e viviam com a família (81%) quando praticaram o delito. Não concluíram o Ensino Fundamental (quase 90%); eram usuários de drogas (85,6%); e consumiam, majoritariamente, maconha (67,1%), cocaína/crack (31,3%), e álcool (32,4%). Os principais delitos praticados por esses adolescentes foram: roubo (29,5%); homicídio (18,6%); furto (14,8%); e tráfico de drogas (8,7%)[1].
Como signatário de diversos tratados internacionais de proteção aos direitos humanos, após mais de vinte anos da reabertura democrática, o Brasil vive um período de franca democratização e busca de eficiência na atuação das instituições públicas. Com isso, se pode elencar que as principais normas internacionais que garantem ao adolescente tratamento de respeito à sua dignidade no cumprimento das medidas socioeducativas são: a Declaração Universal dos Direitos do Homem, a Convenção sobre os Direitos da Criança e o Pacto de San Jose da Costa Rica. Todos já no ordenamento jurídico pátrio, estes documentos apontam, segundo Ana Hamoy, na direção “de fazer com que os adolescentes possam ser atendidos de forma digna e encontrar na medida socioeducativa o atendimento adequado que possibilite que sua inclusão na comunidade, na sociedade, seja feita de forma a não mais praticar atos contrários à lei”[2].
Porém, a despeito do que a lei prevê, de acordo com relatório da Secretária Especial dos Direitos Humanos (SEDH), da Presidência da República, entre os anos de 1996 e 2006, o número de adolescentes infratores que cumpriam medida privativa de liberdade em todo o país cresceu 363%[3], alcançando o número de 15.426 internos. Entre 2006 e 2009, segundo Levantamento da Secretaria Nacional de Promoção dos Direitos da Criança e do Adolescente, houve uma significativa diminuição desse índice, sendo que em 2009 o quantitativo nacional de adolescentes em cumprimento desta medida socioeducativa era de 11.901 adolescentes. Ainda é muito.
O levantamento alerta que a internação nem sempre tem sido usada como medida excepcional e por breve duração e que:
“A cultura de inclinação ao encarceramento juvenil se revela posicionamento recorrente na jurisprudência brasileira, fundamentada numa suposta periculosidade atribuída aos antecedentes dos adolescentes, à falta de respaldo familiar, ao desajuste social, ao uso/abuso de drogas, no que se reconhece na medida de internação uma forma de segregação e uma estratégia de ressocialização, ou ainda, a coloca em meio ao discurso do “benefício” ou da “correção” atribuído como justificativa à aplicação de medida de internação: ‘isolar para tratar’”[4].
Ao analisar essa pesquisa, torna-se evidente a tendência de maior aprisionamento dos adolescentes que cometeram atos infracionais na última década. A SEDH, em outra pesquisa, realizada em 2002, também já afirmou que este fenômeno tem um forte recorte social[5]. A grande maioria dos internos não completaram o Ensino Fundamental, embora tenham idade compatível com o Ensino Médio, e 80% viviam com renda familiar inferior a dois salários mínimos.
O problema é que a intervenção estatal da internação produz todos os efeitos perversos da prisão do direito penal, quer sejam: rotulação, estigmatização, distância social e maior criminalidade, muitas vezes geradora de reincidência – sob a lógica, de acordo com Pereira e Trentin, de que “quanto maior a reação repressiva estatal aos delitos praticados, maior a probabilidade de que o sujeito se torne novamente transgressor, numa reprodução reiterada do mesmo projeto fracassado”[6].
Isso porque a internação é falha. É de conhecimento comum que a execução de medidas de privação de liberdade dessocializam o ser humano e de acordo com Zaffaroni, quando impostas a adolescentes, configurando institucionalização, tem os efeitos das instituições totais, agravados sobremaneira porque a deterioração institucional costuma produzir efeitos mais permanentes em um indivíduo jovem do que num adulto e, uma vez empreendida, pode provocar estragos irreversíveis, pois não opera no efeito repressivo que atua no adulto, mas sim de forma diretamente impeditiva de aprendizagem da sociabilidade, por ser justamente na fase de sua formação. Portanto, não se pode olvidar que há fortes razões para a excepcionalidade da medida.
Dessa forma, nota-se que há muito no que avançar em matéria de aplicação e execução da medida de internação. Em muitos casos, quando possível, poderia ser substituída pela medida de semiliberdade, que é pouco aplicada porque não existem entidades suficientes, e as entidades existentes não tem vagas ou são distantes da família, do trabalho e da escola. Belém, capital do Estado do Pará, por exemplo, possui seis unidades de internação, e só uma de semiliberdade. No regime de semiliberdade, o adolescente irá realizar atividades externas e permanecerá recolhido na entidade apenas durante determinados períodos, de acordo com o previsto no programa em execução. Também há a obrigatoriedade de reavaliação da necessidade de sua manutenção, no máximo, a cada seis meses.
Assim, torna-se evidente que não só a internação resolve os problemas dos jovens infratores, é urgente e necessário que se pense em políticas publicas que visem a retirada de jovens de situações de risco e a promoção de seus direitos básicos. Não se pode olvidar do papel da educação, fundamental para que os jovens infratores retornem ao convívio social com a aptidão para transformar sua realidade social, assim como deveria constituir a principal frente de combate à criminalização juvenil. É chegado o momento de fazer valer a convivência dentro de um Estado Democrático de Direito, no qual crianças e adolescentes tem prioridade absoluta e proteção integral com a garantia de seus direitos, pois somente desta forma o adolescente socialmente excluído poderá se (re) integrar ao convívio em sociedade, tendo o direito de recomeçar e vivenciar sua juventude com dignidade e respeito.
4. Considerações Finais
Após mais de 20 anos da promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente e da Constituição Federal, constata-se que vivemos em um quadro real no qual a medida socioeducativa de internação, prevista como medida excepcional, institucionaliza-se diante da falha do Estado com relação às crianças e adolescentes que, em maioria gritante, não tiveram seus direitos garantidos desde o ventre, e que, hoje, sofrem as condições do não atendimento de suas necessidades na infância, base de formação do ser humano.
Da análise dos dados citados conclui-se a existência de violações graves e faz-se necessário um desafio reflexivo pouco convidativo, que é o de como fazer com que os adolescentes, aos quais se atribua a autoria de ato infracional, compreendam sua própria responsabilização, diante de violações institucionais estatais recorrentes.
Como garantias diante do desequilíbrio verificado quando o “direito da força” quer prevalecer sobre a “força do direito”, é evidente a repercussão da dimensão supraconstitucional dos direitos humanos, com a especial proteção às crianças e adolescentes, e seu sistema de proteção global e, mais que isso, a presença do sistema normativo internacional de direitos humanos, o qual ao defender parâmetros mínimos para a garantia da dignidade da pessoa humana, obriga a todos os entes federados promover o seu cumprimento.
Dessa forma, para a garantia de direitos fundamentais e de consolidação do estado democrático de direito, numa perspectiva de promoção da cidadania dos indivíduos e da universalização dos direitos, é indispensável que os princípios norteadores do Estatuto da Criança e do Adolescente sejam efetivamente aplicados e que o Estado ofereça as condições básicas para a execução das medidas socioeducativas a fim de que a responsabilização do adolescente se dê de forma eficaz e eficiente.
Informações Sobre o Autor
Flávia do Amaral Vieira
Estudante de Direito.