Resumo: Quem contrai matrimônio ou constitui união estável acaba, por opção ou imposição legal, inserido no regramento jurídico do regime de bens. Dos quatro modelos de regime disciplinados no Código Civil, dois deles encontram disposições em comum no que concerne aos bens incomunicáveis, quais são o da comunhão universal e da comunhão parcial de bens. Os instrumentos de profissão são considerados incomunicáveis por possuírem caráter de subsistência de seu titular, porém, a doutrina tem-se levantado a favor de uma relativização na interpretação do artigo, objetivando impedir o enriquecimento sem causa. Assim, o objeto deste artigo científico é a (in)comunicabilidade dos instrumentos de profissão no regime de bens. Seu objetivo é verificar, com base no Código Civil e doutrina os caracteres da (in)comunicabilidade dos instrumentos de profissão na meação. Quanto à metodologia empregada, utilizou-se o método indutivo, operacionalizado pelas técnicas da pesquisa bibliográfica e do referente.
Palavras-chave: Regime de Bens; Bens Incomunicáveis; Instrumentos de Profissão.
Sumário: 1. Introdução; 2. A variabilidade do regime de bens; 3. A incomunicabilidade dos instrumentos de profissão; 4. A possibilidade da comunicabilidade dos instrumentos de profissão na meação frente ao enriquecimento sem causa; Considerações finais; Referências bibliográficas.
1. INTRODUÇÃO
O regime de bens no Direito de Família rege-se pelo princípio da variabilidade dos regimes, de modo que o legislador civilistas possibilitou aos nubentes ou conviventes em união estável a escolha de quatro modelos, não excluindo a faculdade de estabelecerem entre si um conjunto de regras para reger as questões atinentes ao patrimônio.
Desse modo, cada regime de bens encontra regramento próprio, determinando o Código Civil como ocorrerá a comunicação dos bens anteriores e posteriores ao surgimento da entidade familiar, quais bens estarão excluídos da meação e como procederá a partilha.
Questiona-se a incomunicabilidade dos instrumentos de profissão quando constatado que sua aquisição deu-se por contribuição onerosa de ambos, ou por aquele que não é o titular, frente a vedação do enriquecimento sem causa.
Assim, para a elaboração do presente artigo, em um primeiro momento, partiu-se da análise dos regimes de bens disciplinados no Código Civil.
Em seguida, estudou-se a incomunicabilidade dos instrumentos de profissão elencado no inciso V do art. 1.659 do Código Civil.
Por fim, abordou-se a possibilidade da comunicação diante da ocorrência do enriquecimento sem causa de um dos cônjuge ou convivente em relação ao outro.
Foi utilizado o método indutivo, operacionalizado, principalmente, pelas técnicas da pesquisa bibliográfica e do referente.
2. A VARIABILIDADE DO REGIME DE BENS
Com a ocorrência do matrimônio ou a caracterização da união estável, incute-se o casal ao regramento jurídico do regime de bens, incindindo o direito patrimonial no microuniverso jurídico do Direito de Família.
O regime de bens, em sua objetiva definição, é o conjunto de normas a ser aplicada às relações e interesses econômicos resultantes da formação da família matrimonial ou pela união estável, envolvendo as questões inerentes à propriedade, fruição, administração de bens e disponibilidade de bens de ambos, desde da formação da entidade familiar até a sua dissolução. Assim, trata-se do estatuto patrimonial do casal.1
Segundo o art. 1.639 do Código Civil, com o casamento, tem início o regime de bens, começando a vigorar na data do ato nupcial.2 Ampliando-se a interpretação deste artigo para contemplar a união estável e observando-se o que dispõe a Lei n. 9.278/96, em seu art. 5°, sobre o contrato de convivência, evidencia-se a incidência do regime patrimonial nessas relações no momento em que constata-se os requisitos legais para sua configuração – durabilidade, publicidade e continuidade – permitindo com isso o seu reconhecimento.
Caracterizando o princípio da variedade do regime de bens, o Código Civil possibilita ao casal quatro modelos a serem escolhidos, não excluindo a possibilidade de criarem para si um regime próprio, por meio de pacto antinupcial ou contrato de convivência. Os regimes de bens a serem escolhidos são: comunhão parcial; comunhão universal; separação; e participação final nos aquestos.3
O regime da comunhão parcial de bens foi eleito pelo legislador como o modelo legal para reger o patrimônio daqueles que não optaram pelos demais tipos. Neste regime, basicamente, excluem-se da comunhão os bens que o casal possuía antes de formar a entidade familiar, comunicando-se os bens adquiridos posteriormente a título oneroso.4
Cabe ressaltar que a jurisprudência firmou entendimento de que não há necessidade do cônjuge ou convivente que não laborava, apresentar prova de contribuição para a aquisição de patrimônio comum, tendo em vista que o enlaçamento de vidas e a colaboração, quase sempre da mulher que abdica de sua carreira profissional para cuidar da casa e dos filhos, é essencial para a mantença da estrutura familiar e possibilita, logicamente, a dedicação do varão a sua carreira.
No que pese aos bens que excluem-se do regime da comunhão parcial, o art. 1.659 do CC elenca os bens que cada cônjuge/convivente possuir ao casar/formar união estável, e os que lhe sobrevierem, na constância do casamento/união estável, por doação ou sucessão, e os sub-rogados em seu lugar; os bens adquiridos com valores exclusivamente pertencentes a um dos cônjuges/conviventes em sub-rogação dos bens particulares; as obrigações anteriores ao casamento/união estável; as obrigações provenientes de atos ilícitos, salvo reversão em proveito do casal; os bens de uso pessoal, os livros e instrumentos de profissão; os proventos do trabalho pessoal de cada cônjuge/convivente; e as pensões, meios-soldos, montepios e outras rendas semelhantes.
O regime da comunhão universal de bens é aquele no qual todos os bens, presentes e futuros, individuais e comuns, antes ou depois do matrimônio/união estável, e as dívidas passivas comuns tornam-se apenas uma só massa.5 É o regime em que instaura-se a mancomunhão, passando a propriedade para a mão comum.
Apesar disso, o legislador civilista estabeleceu exceções a comunicação de bens, excluindo-se dos efeitos do regime os bens doados ou herdados com a cláusula de incomunicabilidade e os sub-rogados em seu lugar; gravados de fideicomisso e o direito do herdeiro fideicomissário, antes de realizada a condição suspensiva; as dívidas anteriores ao casamento/união estável, salvo se provierem de despesas com seus aprestos, ou reverterem em proveito comum; as doações antenupciais feitas por um dos cônjuges/conviventes ao outro com a cláusula de incomunicabilidade; os bens de uso pessoal, os livros e instrumentos de profissão; os proventos do trabalho pessoal de cada cônjuge/convivente; e as pensões, meios-soldos, montepios e outras rendas semelhantes.6
No regime de separação de bens, o cônjuges e os conviventes conservam o domínio, a administração e a disponibilidade de seus bens presentes e futuros, bem como arcaram com a responsabilidade pelas dívidas anteriores e posteriores a formação da entidade familiar.7
Vigorando a separação do acervo, a jurisprudência passou a admitir a divisão do patrimônio constituído durante o matrimônio e a união estável, visando evitar o enriquecimento sem causa, desde que quem não possua o patrimônio em seu nome comprove sua contribuição onerosa para a aquisição.8
Por fim, como o último regime de bens disciplinado no Código Civil, está a participação final nos aquestos, sistema encontrado, dentre outros países, na Alemanha, França, Espanha, Portugal e Argentina.
Trata-se de um regime híbrido, pois prevê a separação de bens enquanto perdurar o casamento ou união estável, preservando cada cônjuge ou convivente seu patrimônio pessoal, com a livre administração de seus bens, necessitando apenas da autorização do outro para vender bens imóveis. Pode porém, estabelecer, em pacto antinupcial ou contrato de convivência, cláusula que dispense a necessidade desta anuência.9
Terminada a relação, fica estabelecido a cada um o direito à metade dos bens adquiridos a título oneroso pelo casal durante o tempo em que configuraram entidade familiar, estabelecendo o Código a forma como se dará a operação contábil para o cálculo participação de um sobre os aquestos do outro, regulamentando como ocorrerá a liquidação do acervo. Ressalta-se que a participação será sobre o patrimônio adquirido pelo outro de forma contábil, e não por meio da constituição de um condomínio.10
Ficam excluído dos aquestos, nos termos do art. 1.674, os bens anteriores ao casamento/união estável e os que em seu lugar se sub-rogaram; os que sobrevieram a cada cônjuge/convivente por sucessão ou liberalidade; as dívidas relativas a esses bens.
O regime de bens é uma das consequências jurídicas do matrimônio e da união estável, se o casal não o escolhe, a lei trata de determinar um para vigorar durante a relação. Boa doutrina, fazendo analogia, já comparou o enlace familiar a um verdadeiro contrato de adesão, ficando a vontade do casal subordinada à lei, que estabelece um normatização com o fim de regulamentar a vida à dois.12
Dos efeitos do regime de bens ninguém pode fugir, então que escolha o casal o que melhor lhe convir, lembrando que o entrelaçamento de vidas não reflete-se apenas na comunhão de afetos.
3. A INCOMUNICABILIDADE DOS INSTRUMENTOS DE PROFISSÃO
Quanto aos bens incomunicáveis, tanto o regime de comunhão parcial como o de comunhão universal excluem da meação os instrumentos profissionais – inciso V do art. 1.659 do Código Civil – sob alegação de que tratam-se de objetos de cunho nitidamente pessoal. A lei exclui tais objetos visando proteger seu respectivos proprietários, pois entende que deles dependerá sua sobrevivência.13
Assim, segundo Arnaldo Rizzardo, os princípios da comunhão não tem o condão de despersonalizar o ser humano, afastando-se qualquer efeito que venha a descaracterizar suas individualidades.14
O Superior Tribunal de Justiça já manifestou entendimento pela prevalência da incomunicabilidade, desde que evidenciado que os objetos continuem sendo utilizados para esse fim, in verbis:
“CASAMENTO. BENS. REGIME. INCOMUNICABILIDADE. A incomunicabilidade dos livros e instrumentos de profissão justifica-se pela manifesta conveniência de não privar o profissional dos meios de que carece para seu exercício, o que ocorreria com a separação e conseqüente divisão do patrimônio, não existisse a ressalva legal. Supõe o efetivo exercício profissional, deixando de justificar-se quando esse deixou de existir. Em caso de abandono da profissão ou de morte, não subsiste razão para a incomunicabilidade” (REsp 82142 SP 1995/0065492-0; Rel. EDUARDO RIBEIRO; Jug. 01/12/1997).
Arnaldo Rizzardo salienta que os instrumentos de profissão serão considerados incomunicáveis quando deles dependa o exercício da atividade própria do indivíduo e não integrem um fundo de comércio ou patrimônio de uma instituição industrial ou financeira comum. Segundo o Jurista, inclui-se nesta categoria todos os objetos relacionados a atividade, como aparelhos profissionais e instrumentos de manifestação artística, tais quais máquina de escrever e computação, pincéis, telas de desenho e pintura, materiais de gesso e pedras para escultura, gaitas, pianos, flautas, materiais de pesquisa etc.15
Destarte, qualquer bem destinado ao exercício da atividade profissional do cônjuge ou convivente é afastado da meação, assumindo natureza de imprescindível para que possa sobreviver com seus próprios esforços.
4. A POSSIBILIDADE DA COMUNICABILIDADE DOS INSTRUMENTOS DE PROFISSÃO NA MEAÇÃO FRENTE AO ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA
Doutrina atual de Direito de Família tem questionado o alcance da incomunicabilidade disposta no inciso V do 1.659 do Código Civil, sob o fundamento de que, em alguns casos, sua interpretação literal favorece o locupletamento de um dos amantes.
Seria o caso do outro cônjuge ou convivente adquirir os instrumentos profissionais em comum esforço com seu proprietário, ou presenteá-lo com estes objetos. Não é comum que um dos sujeitos da relação, objetivando auxiliar seu amor, forneça condições para que ele possa exercer sua profissão, por meio da compra de determinada aparelhagem até estruturar escritório ou consultório para o outro.
Os bens ou quantia com essa finalidade, segundo dispõe o citado artigo, estariam excluídos da meação, configurando patrimônio incomunicável de seu titular. Arnaldo Rizzardo, em análise ao inciso, já manifestou-se pela afastamento da incomunicabilidade, quando constatado que sua aquisição ocorreu a título oneroso com dinheiro comum.16
Defensora de uma nova interpretação legal sobre o tema, Maria Berenice Dias disserta que:
“[…] Descabido atribuir exclusivamente a um dos cônjuges bens adquiridos durante o casamento, pelo simples fato de se destinarem ao seu ofício profissional […] Cabe trazer como exemplo consultórios dentários, tratores, caminhões e até sofisticadas aparelhagens de som, cujo os valores sabidamente são muito elevados. Sem qualquer fundamento, pressupõe a lei que foram adquiridos por quem os utiliza. Porém, o que se vê diuturnamente é exatamente o contrário: o esforço do par na aquisição dos meios para um deles desempenhar seu mister.”17
Não se pode simplesmente atribuir o bem a quem o utiliza, sem uma maior investigação sobre sua origem. Como bem ressalta Maria Berenice Dias, por mais que o legislador queira ter protegido o exercício profissional de um dos cônjuges ou convivente, existem outras medidas que melhor atenderiam a esse fim, evitando o enriquecimento sem causa, como tornar indisponível tais bens até que ocorra a compensação justa.18
O preceito da incomunicabilidade não pode sobrepor a presunção de que os bens foram amealhados durante a vida em comum, fruto do esforço mútuo do casal. Nitidamente, há o prejuízo de um em relação ao outro, que, quase sempre, faz sacrifícios pessoais para proporcionar a auto realização de seu amado.19
Desse modo, questionamentos tem surgido sobre as injustiças cometidas na divisão de bens, defendendo boa doutrina que a compensação pelos instrumentos profissionais adquiridos em comum esforço ou pelo outro que não é titular, é medida salutar, que impede o enriquecimento sem causa.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Apesar do Direito de Família ser o ramo jurídico com maior influência do afeto, não está afastada a incidência de regras patrimoniais, de modo que, quem contrai matrimônio ou forma família pela união estável, terá seus bens regido por um dos regimes de bens.
Diante da incomunicabilidade dos instrumentos de profissão no regime de comunhão universal e da comunhão parcial de bens, quando evidenciado que o outro que não é o titular do patrimônio, contribuiu onerosamente para a sua aquisição, a medida mas equânime de Justiça é que ocorra a devida compensação.
Assim, é possível proceder uma divisão patrimonial de forma igualitária, individualizada a realidade patrimonial de cada casal, combatendo o enriquecimento sem causa de um em relação ao outro.
Informações Sobre o Autor
Raphael Fernando Pinheiro
Bacharel em Direito na Universidade do Vale do Itajaí (UNIVALI). Pós-graduando em Direito Constitucional