A (in) constitucionalidade dos poderes instrutórios do juízo penal frente ao estado democrático de direito

Resumo: Em recente alteração ao Código de Processo Penal, o legislador ordinário conferiu ao Juízo poderes instrutórios, ou seja, atribuiu lhe a função de gestor da prova, podendo inclusive determinar a realização de provas, em caso de dúvida. Como se pode ver, o Juízo, na duvida, deixa de aplicar a determinação constitucional (presunção de inocência) e pode determinar novas provas para aclaramento de suas convicções. Contudo é necessário uma  análise acurada destes poderes e ver sua aderência ao Estado Democrático de Direito.

Palavras-chaves: Processo Penal. Poderes do Juízo. Estado Democrático.

Abstract: In a recent amendment to the Criminal Procedure Code, the legislature gave the ordinary powers Judgment investigation is archived, ie, assigned him the task of managing the race, and may even determine the realization of evidence in cases of doubt. As you can see, the judgment in doubt, fails to apply the constitutional provision (presumption of innocence) and can determine further evidence for clearing his convictions. However you need an accurate analysis of these powers and see its adherence to the democratic rule of law.

Keywords: Criminal Procedure. Powers of judgment. Democratic State.

Sumário: 1. Introdução; 2. Estado democrático de direito e função jurisdicional; 3. Reflexão sobre os poderes do judiciário; 4 sistemas processuais penais; 5. Poderes instrutórios frente a constitucionalidade democrática 6. Considerações finais. Referências.

1 INTRODUÇÃO

A construção do Estado Democrático de Direito exige dos operadores de direito a revisitação de institutos jurídicos com vista a sua conformação à ordem constitucional. Nessa esteira, o direito processual democrático, como local de discursividade, exige a conformação de seus institutos com esse novo sistema.

Contudo, a sociedade ainda se orienta como se o Poder Jurisdicional fosse o centro de gravitação da ordem jurídica, e como se o processo fosse mero instrumento desse. Com essa orientação surge a divinização do Poder Judiciário[1], como ideologia[2], como se ele fosse capaz de apurar o certo e o errado, indicar o justo e o injusto.

Com as noções acima, criam-se mitos como a dicotomia do público e do privado e acena-se para a sobrepujança de um sobre o outro. Por conseguinte, emprestam ao Judiciário a missão de realização de justiça e o colocam acima dos princípios expressos da Constituição Federal.

Com base em fundamentos ainda distantes da efetivação do Estado Democrático de Direito, não obstante a consagração do sistema acusatório pela Constituição Federal, operou-se há alguns anos uma nominada reforma do código do processo penal que, segundo o legislador, tem a intenção de modernizar o processo penal.

No entanto, na referida mudança, conferiram ao Juízo Penal os poderes instrutórios que se afastam, a prima facie, do ordenamento constitucional. Trata-se da confirmação dos poderes instrutórios do Juízo Penal, conforme redação do art. 156 do CPP.

O referido dispositivo legal autoriza o Juízo Penal a determinar diligências ou produzir provas em duas hipóteses: primeira, de maneira antecipada, antes mesmo de iniciada a ação penal, se reputá-las urgentes e relevantes; e a segunda, com a intenção de sanar dúvidas sobre ponto relevante. No entanto, há de se fazer um enfrentamento dos referidos poderes como forma de entendê-los compatíveis ou não com o Estado Democrático de Direito, que consagra o princípio da imparcialidade, do devido processo constitucional e da presunção da inocência, este como prolongamento do principio da dignidade da pessoa humana, ou seja, como direito fundamental[3].

Esse, portanto, é o tema que será enfrentado no presente artigo, com a finalidade de se perquirir sobre a (in) constitucionalidade dos poderes instrutórios do Juízo Penal.

2 ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO

Como leciona Brêtas de Carvalho Dias (2012, p. 49) a noção de Estado de Direito surge a partir da metade do sec. XIX quando se inicia a rejeição de Estado como criação divina, concepção que fora substituída pela noção de comunidade. Nessa linha, assistiu-se a certa limitação do poder do Estado frente às noções de liberdade e segurança individual em um Estado organizado e regulamentado segundo princípios racionais.

O Estado, como Estado de Direito, passa a se submeter à ordem jurídica, ou seja, aos limites impostos pela lei que rege seu ordenamento (princípio da legalidade). Com a organização do Estado de Direito surge a divisão das funções estatais, quais sejam, as funções legislativa (regulamentar), a judiciária (jurisdicional) e a executiva (administrativa).

Segundo Brêtas de Carvalho Dias (2012, p.51), o Estado de Direito possui como premissas básicas: o império da lei, a separação das funções, a legalidade da administração pública e o enunciado dos direitos e liberdades fundamentais dos indivíduos.

Após a definição do que seria o Estado de Direito, cumpre esclarecer o que seria democrático neste Estado, que, segundo Leal (2012, p.45) significa não-dogmático. A instituição democracia redunda na possibilidade de conferir a todos, em um ambiente procedimentalizado de discursividade, a possibilidade de manifestação. O devido processo constitucional, como legitimador da Democracia, confere ao povo a possibilidade do contraditório-vida, ampla defesa-liberdade e isonomia-igualdade, conforme lição de Rosemiro Pereira Leal.

A democracia, que se encontra regulamentada no art. 1º da Constituição Federal, seria mais do que um simples regime de poder do Estado, sendo reconhecido como o fundamento do Estado de Direito, já que o direito nele criado tem como fundamento o exercício discursivo de seu povo.

Bem resume o Estado Democrático de Direito o professor Rosemiro Pereira Leal:

“Diga-se o mesmo da atividade construtora da lei que, no Estado de Direito Democrático (se algum dia alcançado e aqui a expressão “Estado de Direito Democrático” significa Estado de Direito não Dogmático), há de passar, à sua legitimidade, pela principiologia do Processo Constitucional procedimentalizado, em que maiorias e minorias estejam em isonomia discursiva para o exercício do contraditório e ampla defesa de suas ideias”

Com a conotação de Estado Democrático não se pode mais conceber o Judiciário como órgão da função jurisdicional que diz o direito. Hodiernamente, face ao Estado Democrático de Direito, o direito é legitimado pela lei, que o diz e o rege baseada no devido processo constitucional. Outrossim,  é inaceitável a caracterização de lei vazia, carente de interpretação e complementação.

Em uma acepção democrática, a função jurisdicional surge como o monopólio da jurisdição pelo Estado (LEAL, 2012, 264). Nas contemporâneas lições de Brêtas de Carvalho Dias pode ser conceituado como “atividade-dever do Estado, prestada pelos órgãos competentes indicados no texto da Constituição, somente exercida sob petição da parte interessada (direito de ação) e mediante garantia do devido processo constitucional.” (2012, p. 32)

Contudo, há ainda quem a repute como função do Estado de dizer o direito. Escolas atuais de processo, como a instrumentalista, ainda reconhecem o poder Judiciário como ente dotado da capacidade de sublimação do justo e injusto:

“e a realidade da vida chega ao juiz, no drama de cada processo, é muito mais complexa e intrincada, solicitando dele uma sensibilidade muito grande para a identificação dos fatos e enquadramento em categorias jurídicas, para a descoberta da própria verdade quanto às alegações de fato feitas pelos litigantes e, sobretudo, para a determinação do preciso e atual significado das palavras contidas na lei. Examinar as proas, intuir o correto enquadramento jurídico e interpretar de modo correto os textos legais à luz dos grandes princípios e das exigências do tempo – eis a grande tarefa do juiz, ao sentenciar. Entram aí convicções sociopolíticas do juiz, que hão de refletir as aspirações da própria sociedade;” (DINAMARCO, 2009, p. 231)

Auri Lopes Junior, citando o professor Alexandre Morais da Rosa, bem sintetiza o endeusamento atual do judiciário por algumas correntes e conduz à necessidade do próximo tópico, qual seja, a reflexão sobre o poder do judiciário. Assim diz o autor:

“Não raro, os juízes assumem o papel de cavaleiros da prometida plenitude”, na expressão do autor, ou completude lógica, noutra dimensão, e a partir dessas crenças congregam em si o poder de dizer o que é bom para os demais mortais – neuróticos por excelência -, surgindo daí um objeto de amor capaz de fazer amar oao chefe censurador, tido como necessário para a manutenção do laço social. Portanto, o amor mantém a crença pela palavra do poder, as quais serão objeto de amor.” (LOPES JUNIOR, 2010, p. 123)

Montesquieu, em suas lições iniciais, já se preocupava com o domínio de uma das funções estatais sobre as outras, conforme citação de Brêtas de Carvalho Dias:

“tampouco existe liberdade se o poder de julgar não for separado do poder legislativo e do executivo. Se estivesse unido ao poder legislativo, o poder sobre a vida e a liberdade dos cidadãos seria arbitrário, pois o juiz seria legislador. Se estivesse unido ao poder executivo, o juiz poderia ter a força de um opressor” (2012, p. 16)

Nessa linha é que se insere o presente trabalho, pois a atribuição ao juízo do poder de acusador e gestor da prova, com a possibilidade de determinar a realização de provas de ofício, pode fazer com que ele tenha um poder acima do que lhe é conferido pela constituição e o transforma em entidade que pode determinar o que é a justiça.

Contudo, há que se refletir, como orienta Aury Lopes Junior, sobre o poder atribuído ao Juiz e sua legitimação, ou seja, como a comunidade democrática recebe semelhante imposição.

3 REFLEXÕES SOBRE O “PODER”DO JUDICIÁRIO

É necessário, para um correto entendimento do tema proposto, que se entenda como se fundamenta a legitimação atualmente conferida ao Judiciário, no qual se vê um “juiz todo-poderoso (pensador – legislador – intérprete – aplicador)” (LEAL, 2012, P. 47).

Tal reflexão se torna pertinente, pois o processo, na atualidade, ainda longe de ser democrático, atribui um caráter nostálgico ao Juiz, razão pela qual se justificam algumas ilegalidades cometidas em face da Constituição Federal.

A Cientista Política alemã Ingeborg Maus, em texto publicado na revista Estudos em Avaliação Educacional, traçou uma análise de tal reflexão à luz da psicanálise. No referido estudo, a autora situa o Judiciário como superego da sociedade (MAUS, 1999, p.183), pois, com o passar do tempo, a sociedade situou o Judiciário como uma figura paternal como o criador de seu superego[4]. Seria o Judiciário a figura do pai de “uma sociedade órfã” (MAUS, 1999, p. 183).

Isso se dá da seguinte forma: passa a se reconhecer o Judiciário como a figura de um pai de uma sociedade carecedora de justiça, garantindo sua crescente interferência nas demais funções estatais e o tornando supremo controlador dos destinos jurídicos. Resta depositado no Juiz a confiança de que ele poderá identificar o que é justo e injusto – moral e imoral.

A noção do juiz justo vem garantida por um modelo que inclui a moral no direito. A moral imuniza a atividade jurisprudencial perante a crítica que poderia estar sujeita, conforme esclarece MAUS (1999, 186), e não passa pelo crivo da teorização. Ela é imprecisa e dificulta a análise de seus fundamentos, logo se valendo da autoridade como meio de sua legitimação.

Nesse caso, o Juiz passa a deter os poderes de julgar e interpretar a lei conforme o seu íntimo convencimento. Sua convicção perante o caso e as provas passa a ser absoluta, o que o permite, em caso de dúvidas, tomar a iniciativa de provas, e, em caso de injustiça, mudar a lei.

Vale ressaltar a advertência da autora Maus quanto ao risco do juiz como “receptáculo puro” (MAUS, 1999, 186), que faz com que “os espaços de liberdade anteriores dos indivíduos se transformam então em produtos de decisão fixados caso a caso.” (MAUS, 1999, p. 190)

No contexto do Estado Democrático de Direito, em que o destinatário deve se reconhecer como criador e destinatário da lei, é inaceitável a situação de um juízo soberano que, em regra, está a serviço da sociedade civil. Nessa ordem, o povo se vê como adotado e o potus como a se adotar (LEAL, 2005, p. 1).

Daí a necessidade de se implantar a comunidade jurídica[5] e revisitar os institutos com a necessidade de se perquirir se seus fundamentos estão inseridos no contexto de um Estado Democrático de Direitos.

A ausência dessa leitura pode acarretar a anulação da crítica e a consequente aceitação de que o Judiciário pode identificar no caso concreto o justo, e em razão disto tornar suas decisões e impressões imunes à discussão. Essa situação, sem dúvidas, dificulta a construção do anunciado Estado Democrático de Direitos e transforma a sociedade em conformada.

Tal reflexão ajuda na compreensão e despe o leitor de alguns preconceitos para que se possa analisar o tema proposto sem algumas amarras próprias do ambiente não acadêmico.

4 SISTEMAS PROCESSUAIS PENAIS

O tema do presente trabalho está intimamente ligado à gestão da prova no processo penal e, como tal, desafia a análise dos sistemas processuais penais que orientam através de princípios a gestão da prova.  Em tal contexto, inscrevem-se como existentes os sistemas processuais penais acusatório e inquisitório, havendo os que dizem existir o misto.

O sistema penal inquisitório, ainda predominante no Código de Processo Penal, é aquele que impõe a função de acusar e julgar na figura de um único agente. O julgador, além de julgar, teria a responsabilidade de acusar, podendo influir em todas as fases, sejam processuais ou pré-processuais.

O professor Jacinto Nelson Miranda Coutinho assim o descreve:

“com efeito, pode-se dizer que que o sistema inquisitório, regido pelo princípio inquisitivo, tem como principal característica a extrema concentração de poder nas mãos do órgão julgador, o qual detém a gestão da prova. Aqui, o acusado é mero objeto de investigação e tido como o detentor da verdade de um crime, da qual deverá dar contas ao julgador.” (COUTINHO, 1998, P. 166).

Ary Lopes Junior faz a advertência de que “o sistema inquisitório predomina historicamente em países de maior repressão, caracterizados pelo autoritarismo ou totalitarismo, em que se fortalece a hegemonia estatal em detrimento dos direitos individuais” (LOPES JUNIOR, 2010, p. 58)

É de se notar que os poderes instrutórios do juízo penal inscritos no código de processo penal são a confirmação da adoção do sistema inquisitorial, uma vez que eles permitem ao juízo solicitar a produção de provas e diligências em caso urgência ou dúvida relevante, substituindo o órgão acusador.

Noutra ponta, o sistema processual acusatório consagra a segregação total da função de julgar e acusar do órgão julgador. O juízo seria passivo em relação à acusação, e, por conseguinte, à produção da prova. Caberia ao juízo a condução e a garantia do devido processo constitucional.

Como anuncia o prof. Aury Lopes, a principal crítica que se fez ao sistema acusatório é em relação à “inércia do juiz (imposição de imparcialidade) […] esse sempre foi o fundamento histórico que conduziu à atribuição de poderes instrutórios ao juiz e revelou-se (através de inquisição) um gravíssimo erro.” (LOPES JÚNIOR, 2010, p. 60)

O Direito contemporâneo torna obrigatória a observação do sistema acusatório, pois, como adverte Aury Lopes, ele “assegura a imparcialidade e a tranquilidade psicológica do juiz que irá sentenciar, garantindo o trato digno e respeitoso com o acusado, que deixa de ser um mero objeto para assumir a sua posição de autêntica parte passiva do processo penal.”(LOPES JUNIOR, 2010, p. 61)

Feitos tais delineamentos, deve-se falar sobre o sistema atual previsto no Código de Processo Penal.

Segundo alguns teóricos, o sistema adotado seria misto, ou seja, aquele em que haveria preponderância do sistema processual inquisitório na fase pré-processual (inquérito policial) e preponderância do sistema acusatório na fase processual.

Contudo, o que se vê é o predomínio do sistema inquisitório em ambas as fases, uma vez que, na primeira, o juízo atua como juízo de instrução do inquérito, e, na segunda, haveria os poderes instrutórios do juízo que lhe permitiriam influir na gestão e produção da prova, confundindo-se com o órgão acusador.

O mais grave é que a situação ocorre ao arrepio da Constituição Federal, que prevê taxativamente princípios da imparcialidade (art. 95 CF), presunção de inocência (art. 5º, LVII CF) e devido processo legal (art.5º, LIV CF).

Com efeito, deve-se adotar, em uma interpretação constitucional, o sistema acusatório, do qual ressai a necessidade de revisão do Código de Processo Penal, com a segregação total das funções de acusação e julgamento.

5 OS PODERES INSTRUTÓRIOS DO JUÍZO PENAL EM FACE DA CONSTITUIÇÃO

Os poderes instrutórios do juízo penal encontram-se regulamentados no art. 156 do CPP,  facultando ao juízo:

I – ordenar, mesmo antes de iniciada a ação penal, a produção antecipada de provas consideradas urgentes e relevantes, observando a necessidade, adequação e proporcionalidade da medida;

II – determinar, no curso da instrução, ou antes de proferir sentença, a realização de diligências para dirimir dúvida sobre ponto relevante.” (art. 156 do CPP)

Consagra-se nesse dispositivo legal a possibilidade do juízo fazer a gestão da prova. O juízo pode determinar a produção da prova quando reputar necessário, em um estado de pré-julgamento (necessidade, adequação e proporcionalidade) e dúvida (dirimir dúvida sobre ponto relevante).

Há quem julgue tal comportamento adequado e pertinente. Charles Emil Machado Martins[6], invocando as lições de Barbosa Moreira, assim se manifesta:

“Entretanto, José Carlos Barbosa Moreira, ao abordar a alegação de que a iniciativa probatória do juiz compromete sua imparcialidade, pois beneficiaria o acusador, obtempera que o magistrado não é dotado de poderes sobrenaturais de previdência, portanto não pode prever o resultado da prova que será produzida nem a quem ela beneficiará, no exato momento em determina a sua produção. Mas a não produção da prova também beneficia um dos litigantes. Diante das duas hipóteses, o mestre sustenta que é preferível que o juiz seja parcial atuando do que se omitindo, porque ao menos estaria tentando aproximar-se da verdade real.”

A atividade de buscar a prova em face da dúvida ou quando o órgão de acusação não o faz invariavelmente prejudica o acusado, posto que a Constituição Federal já impõe que, em caso de dúvida ou ausência de elementos de provas, deve se decidir pela absolvição do acusado.

Haver uma situação, antes da ação penal, na qual o juízo poderá determinar a produção de uma prova em beneficio do acusado é demasiadamente remota. Basta pensar que antes da ação penal não há contraditório, de forma que o juízo tem contato somente com elementos de acusação. Nesse caso, qualquer prova reputada como importante será em prejuízo do acusado.

Lado outro, em caso de dúvida em ponto relevante, melhor sorte não terá o acusado, posto que a solução constitucional para o problema seria a absolvição e não a produção de prova para dirimir tal dúvida. Dificilmente o juízo poderia agir em benefício do acusado como sustentam aqueles que prestigiam os poderes instrutórios. A existência da dúvida impõe ao juízo a presunção de inocência.

Em conclusão, se o juízo produziu de ofício uma prova é porque intimamente ele formou uma convicção. Pois bem, se essa convicção é em favor do acusado, na dúvida ele teria de conferir a sentença absolutória. Lado outro, se a convicção é em prejuízo do acusado, também deveria proferir a sentença absolutória, pois caberia, no último caso, ao Ministério Publico ou ao querelante a produção da prova da culpa, sob pena de ofensa ao princípio da imparcialidade.

De fato, o que torna incompatível o poder instrutório não é simplesmente a iniciativa da prova, mas sim a gestão da prova e o aparelhamento do juízo com uma das partes. Conforme leciona o Prof. Jacinto Coutinho “abre-se ao juiz a possibilidade de decidir antes e, depois, sair em busca do material probatório suficiente para confirmar a sua versão, isto é, o sistema legitima a possibilidade da crença no imaginário, ao qual toma como verdadeiro”. (1999, p. 178)

Há quem discorde e afirme que em uma concepção moderna o juízo não pode se abster de produzir a prova. Neste sentido posiciona-se Grinover, Cintra e Dinamarco:

No processo penal sempre predominou o sistema da livre investigação de provas. Mesmo quando, no processo civil, se confiava exclusivamente no interesse das partes para o descobrimento da verdade, tal critério não poderia ser seguido nos casos em que o interesse público limitasse ou excluísse a autonomia privada. Isso porque, enquanto no processo civil em princípio o juiz pode satisfazer-se com a verdade formal (ou seja, aquilo que resulta ser verdadeiro em face das provas carreadas aos autos), no processo penal o juiz deve atender à averiguação e ao descobrimento da verdade real (ou verdade material), como fundamento da sentença.

A natureza pública do interesse repressivo exclui limites artificiais que se baseiem em atos ou omissões das partes.” (CINTRA et al, 2012, p. 73-74)

Contudo, os poderes instrutórios importariam em grave ofensa a princípios de índole constitucional, qual sejam o princípio da imparcialidade do juízo, o princípio da inocência e o devido processo constitucional.

O princípio da inocência, de índole constitucional, determina que somente com o trânsito em julgado da sentença condenatória haveria de se falar nas consequências punitivas do delito. Mais do que isso, o princípio consagra a regra de que a presunção é pela inocência e não pela culpa. Ele possui duas facetas: a primeira refere-se à consequência punitiva, em que o acusado somente suportaria os ônus de sua conduta delitiva após a condenação; a segunda refere-se ao ônus probatório, que determina que a produção da prova da existência do fato e de sua autoria caberia exclusivamente à acusação. Deste princípio deriva ainda o favor rei, ou seja, o princípio in dubio pro reo. Este princípio consagra que na dúvida ou ausência de elementos capazes de provar a culpa, deve o juízo absolver o acusado. É um princípio basilar no qual se funda todo o Processo Penal e que não permite mitigações.

Daí pensar que o art. 156 do CPP de fato é inconstitucional. O art. 156 do CPP consagra a possibilidade da iniciativa probatória do juízo em caso de urgência ou na dúvida. Contudo, na urgência cabe tão somente ao órgão ministerial ou ao querelante a prova, e na dúvida, não há o que se falar produção de provas, a determinação é a absolvição.

Se os incisos do art. 156 do CPP desrespeitam esse princípio de índole constitucional não há outra conclusão que senão a constatação de sua patente inconstitucionalidade.

Por outro lado, há ainda o princípio da imparcialidade do juízo. O referido princípio impõe que o juízo deve se manter distante e inerte perante as partes. Não é permitido ao juízo se aparelhar a uma das partes e auxiliá-las na produção da prova capaz de fundamentar seu pleito. Ao juízo cabe somente a tutela das garantias do devido processo constitucional, tais como, contraditório, ampla defesa isonomia, direito ao advogado, entre outras.

No momento em que o juízo determina a produção de provas de ofício, invariavelmente, estará beneficiando uma das partes, e no caso dos incisos do art. 156 CPP será acusação. Isto porque, como dito acima, antes da ação penal, o juízo apenas tem contato com a acusação, e, no caso da dúvida, há de se aplicar o princípio da inocência.

Como visto, os incisos do art. 156 do CPP importarão na constatação do sistema inquisitorial de processo penal, onde o juízo se confunde nas funções de acusador e julgador, e padecem de inconstitucionalidade por afronta ao princípio da imparcialidade (decorrente do devido processo legal) e do princípio da inocência (favor rei).

Vale ressaltar que a máxima de que o interesse público deve prevalecer sobre o privado de forma que a verdade real deveria vir à tona como forma de fundamentar a realização de provas de ofício já não encontra sustento nas lições de processo constitucional. Como esclarece o Prof. Aury Lopes há muito está superado o reducionismo público – privado. Ademais, como o mesmo autor pontua, os interesses do réu superam a esfera do privado, uma vez que se encontra inserido nas garantias fundamentais. Na vertente das lições do mesmo autor, o Estado Democrático impõe a proteção do individuo, posto que sua individualidade não poderá ser sacrificada em benefício da sociedade ou do Estado. (LOPES JUNIOR, 2010, p.11)

Não se pode perder de vista que o objeto primordial do processo penal é tutela da liberdade processual do acusado e com esta constatação importa em se reconhecer em favor do acusado um sistema rígido de garantias que não pode ser vilipendiado em nome da urgência ou dúvida.

Ademais, conforme lições do Prof. Jacinto Coutinho, o juízo é titularizado por um homem e que certamente poderá ser influenciável de forma consciente ou inconsciente. Exigir desse que se invista da função de acusador, produza a prova, colha a prova e posteriormente julgue sem nenhum tipo de parcialidade seria verdadeiramente uma inocência. (COUTINHO, 2008)

Como orienta o Prof. Aury Lopes “o que necessita ser legitimado e justificado é poder de punir, é a intervenção estatal e não a liberdade individual.” (2010, p. 12) Nas reformas processuais penais o que deveria ser buscado é um sistema garantista e não a criação e legitimação do sistema inquisitorial, de todo incompatível com o Estado Democrático.

E o que causa certo espanto é que o fortalecimento da função do judiciário, como se fosse o órgão destinado a definir o justo e o injusto, o moral e o imoral, o verdadeiro e o falso encontram seus fundamentos no atraso democrático da sociedade contemporânea. A lição de que o processo se presta como um instrumento da jurisdição fortalece a impossibilidade de questionamentos da forma estanque de um Estado Social.

Essas constatações permitem concluir que os poderes instrutórios do juízo previstos nos incisos do art. 156 do CPP são inconstitucionais. Mais, são incompatíveis e prestam um desserviço a construção do Estado Democrático de Direitos.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com os estudos do presente artigo pode-se perceber a concepção de Estado Democrático de Direito, ainda em construção, tem como um de seus pressupostos a função jurisdicional que passa a ter o caráter de garantidora do devido processo constitucional e não mais o de dizer o direito.

Pode ser visto que parte dos teóricos do direito ainda concebem o Poder Judiciário como aquele que diz o direito capaz de diferenciar e fixar o que é o justo e o injusto. Daí ressai a conclusão de que o Judiciário vem se transmutando na figura do pai na formação da moral na sociedade. Seria dizer que o Poder Judiciário tem sob seu domínio o controle da justiça e moral, com contornos que não se permite uma perquirição de seus fundamentos.

Pode se ver que embora a Constituição Democrática consagre o sistema processual penal acusatório, o Código de Processo Penal ainda permanece com a preponderância do sistema inquisitivo, onde há a confusão do julgador com o acusador.

Foi visto ainda que os poderes instrutórios do juízo, entendidos como o poder de gestão da prova, é a confirmação maior de adoção do sistema inquisitorial. E ainda mais, que estes poderes instrutórios ofendem os princípios do devido processo legal, da imparcialidade do juízo e da presunção de inocência, todos de índole constitucional.

Em conclusão tem-se que os poderes instrutórios do juízo penal confirmam a prevalência do sistema processual penal inquisitivo, no qual a figura do acusador e julgador se misturam, isso permitiu a conclusão de que os poderes instrutórios do juízo são inconstitucionais se observado os preceitos constitucionais citados e se mostram incompatíveis com Estado Democrático de Direitos.

 

Referências
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Notas:
[1] Em parte que trata do juiz e do processo, Candido Rangel Dinamarco menciona que “aparece o juiz como autentico canal de comunicação entre a sociedade e o mundo jurídico, cabendo-lhe a positivação do poder mediante decisões endereçadas a caso concretos.” (2009, p. 232)

[2] Slavoj Zizek define a ideologia como “doutrina, conjunto de ideias, crenças, conceitos e assim por diante, destinada a nos convencer de sua veracidade, mas, na verdade, servindo a algum inconfesso interesse particular do poder”. (2010, p. 15)

[3] Também é oportuno que se esclareça a expressão direitos fundamentais, que, na pós-modernidade, não pode designar o que é eternamente intrínseco ao ser humano como integrante de um Estado-Nação e que se explicitasse pelo reconhecimento recíproco entre os homens como atributos inatos e individuais de liberdade, igualdade e dignidade, porque os fundamentos desses cognominados direitos humanos hão de ser, na teoria da democracia, postos pela decidibilidade de cunho discursivo como forma processual ilustrada de institucionalização jurídica da vontade soberana da comunidade, que, por se prover pela teoria do processo de direito democrático, cumpre estabelecer os princípios a serem observados atinentes à isonomia, ampla defesa e contraditório, como fundamentos (autoprivação de liberdade) de demarcação do exercício da vontade criadora de direitos. (LEAL, 2002, p. 31)

[4] […]o superego carrega uma parcela de pulsão de morte vinda do objeto que se vai se instalar no ego, intensificando a rigidez da consciência moral e a consequente produção de culpa. Vejamos como Freud (1923/1969hl) elaborou esta questão ‘o supergo surge, como sabemos, de uma identificação com o pai tomado como modelo’. […]” (HOMRICH, 2008, p. 204)

[5] Segundo Rosemiro Pereira Leal “Habermas não distingue legitimidade e legitimação e trabalha ESTADO como cinturão (crença na unidade) de uma “sociedade” pressuposta (fundada em não-contradições) que se deseja preservar, sendo-lhe estranha uma sociedade a ser construída pela comunidade jurídica constitucionalizada que, ao se denominar POVO, é o conjunto de legitimados ao processo como sustenta na teoria neoinstitucionalista: o modo de proteger a almejada “sociedade” em face do risco da mitificação é criando e recriando-a a partir da comunidade jurídica co-insitucionalizada.(2010, p. 60)

[6] Disponível em URL: http://www.mp.rs.gov.br/areas/criminal/arquivos/charlesemi.pdf. Acesso em 10/03/2013.


Informações Sobre o Autor

Clenderson Rodrigues da Cruz

Advogado. Bacharel em Direito pela Universidade de Itaúna. Pós-Graduado lato sensu em Direito Processual pelo IEC da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (IEC PUC Minas). Mestre em Direito Processual no Programa de Mestrado da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Doutorando em Direito Processual PUC Minas. Professor.


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