Resumo: A prisão temporária é uma modalidade de prisão cautelar, devendo se fundar na necessidade, o que exige fumus comissi delicti e periculum libertatis. A análise desses elementos é fundamental para imposição da excepcional medida segregativa, do contrário violar-se-á preceitos constitucionais. A prisão temporária surgiu a partir de uma Medida Provisória editada pelo Executivo, alvo de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade. A mencionada Medida, apesar das similitudes com a prisão para averiguações, tornou-se lei. A discussão sobre a prisão temporária não cessa na origem, também gera dúvida seu cabimento. A redação do artigo 1.°, da Lei n.° 7.960/89 não deixa claro se os incisos são independentes (total ou parcialmente), cumulativos, ou dependentes do preenchimento dos requisitos da preventiva; há doutrinas para sustentar qualquer posição. As interpretações variam entre a admissão de uma prisão ex lege (o que seria inconstitucional) e a subordinação da prisão temporária à uma espécie de preventiva.
Palavras-chave: prisão temporária; prisão cautelar; inconstitucionalidade.
Sumário: 1 Introdução. 2 As cautelares. 3 Gênese da prisão temporária. 4 As interpretações da Lei n.° 7.960/89. 5 Conclusão. Referências bibliográficas.
1 Introdução
O presente artigo visa à discussão da prisão temporária, a qual, como modalidade de prisão cautelar, requer a presença de fumus commissi delicti e periculum libertatis. Inicia-se com uma análise dos requisitos (requisito e fundamento) das cautelares, questionando a existência de uma teoria geral do processo, aplicável ao direito civil e ao penal. Partindo da da doutrina cível efetua-se uma adequação para a concessão das cautelares criminais.
Examina-se a origem da Lei n.° 7.960/89, cuja raiz encontra-se na Medida Provisória n.° 111. A partir disso se questiona a constitucionalidade do instituto. Também se aborda as divergentes interpretações dadas ao artigo 1.°, da lei supramencionada, que estipula as situações nas quais cabe prisão temporária. Por fim, salienta-se a necessidade de uma interpretação constitucional da referida modalidade de prisão, sob pena de aceitação e aplicação de uma prisão ex lege.
2 As cautelares
A prisão temporária, assim como a preventiva e a em flagrante, é uma modalidade de prisão cautelar. Isso significa que não objetiva a punição do indivíduo, atuando apenas preventivamente. Magalhães Noronha afirma que “no regime de liberdades individuais, a custódia antes do julgamento só se pode inspirar numa razão de necessidade, pois priva o cidadão da liberdade, faz pesar sobre ele a presunção do crime e causa a ele e à sua família despesas, perdas e sacrifícios”[1]. Nota-se que este autor funda a suprarreferida medida na necessidade, pois a carga negativa que ela acarreta, somada à relativização do estado de inocência, denota a extrema excepcionalidade dessa modalidade de segregação.
Tradicionalmente os processualistas brasileiros condicionam a aplicação das medidas cautelares à existência de dois elementos: o fumus boni juris e o periculum in mora. Todavia, adota-se a corrente que rechaça a existência de uma teoria geral do processo, aplicável às searas criminal e cível. Como dito por Aury Lopes Júnior, “o equívoco consiste em buscar a aplicação literal da doutrina processual civil ao processo penal, exatamente em um ponto em que devemos respeitar as categorias jurídicas próprias do processo penal, pois não é possível tal analogia”[2]. As peculiaridades do processo penal podem ser vislumbradas a partir da análise principiológica do mesmo, a título exemplificativo menciona-se o princípio do in dúbio pro reo, o qual não possui equivalente na seara cível.
Para abordar os pressupostos básicos para a decretação de uma prisão cautelar, utiliza-se a explicação de Aury Lopes Júnior: “constitui uma impropriedade jurídica (e semântica) afirmar que para a decretação de uma prisão cautelar é necessária a existência de fumus boni iuris. Como se pode afirmar que o delito é a “fumaça de bom direito”? Ora, o delito é a negação do direito, sua antítese!
No processo penal, o requisito para a decretação de uma medida coercitiva não é a probabilidade de existência do direito de acusação alegado, mas sim de um fato aparentemente punível. Logo, o correto é afirmar que o requisito para decretação de uma prisão cautelar é a existência do fumus commissi delicti, enquanto probabilidade da ocorrência de um delito (e não de um direito), ou, mais especificamente, na sistemática do CPP, a prova da existência do crime e indícios suficientes de autoria. (…)
O risco no processo penal decorre da situação de liberdade do sujeito passivo. Basta afastar a conceituação puramente civilista para ver que o periculum in mora no processo penal assume o caráter de perigo ao normal desenvolvimento do processo (perigo de fuga, destruição da prova) em virtude do estado de liberdade do sujeito passivo.
Logo, o fundamento é um periculum libertatis, enquanto perigo que decorre do estado de liberdade do imputado”[3].
Assim, o fumus boni juris e o periculum in mora, ambos do processo civil, não são aplicáveis ao processo penal, haja vista a inexistência de indícios do bom direito e perigo advindo da demora na fase pré-processual ou processual. Como já dito, a prisão cautelar requer a provável existência de um evento delitivo (fumus commissi delicti) e funda-se na periculosidade advinda da liberdade do suposto sujeito ativo do delito (periculum libertatis). Tais elementos devem ser exaustivamente analisados, tendo em vista os princípios da proporcionalidade, da subsidiariedade e da fragmentariedade, além da garantia constitucional do estado de inocência.
Norberto Flach lembra que as prisões processuais devem analisar concretamente o periculum libertatis, sob pena de caracterizarem-se “autênticas antecipações de pena, ou presunções absolutas de periculosidade ou, ainda (o que é mais perverso), instrumentalização da prisão processual como mecanismo de intimidação social (prevenção geral) e/ou coação individual para a confissão do acusado, sendo introduzido determinante elemento inquisitivo em modelo processual que se pretende e se alega preponderantemente acusatório”[4].
Nota-se que a prisão cautelar, seja ela na modalidade que for, é medida excepcional, que deve pautar-se na necessidade e atentar-se aos preceitos constitucionais. Num país onde a situação prisional constitui flagrante violação aos direitos humanos, decretar a prisão em momento processual ou mesmo na fase do inquérito, quando a culpa ainda não está provada, é uma ação, no mínimo, ousada.
3 Gênese da prisão temporária
A prisão temporária possui um tormentoso nascimento: surgiu a partir de uma Medida Provisória editada pelo presidente José Sarney em novembro de 1989. Frente à flagrante inconstitucionalidade, pois Medida Provisória não é o meio legislativo adequado para normatizar a seara processual penal, o Congresso Nacional, em vésperas de Natal, converteu em lei a dita Medida. Como lembra Jayme Walmer de Freitas, “justamente pela origem espúria de não emanar do Poder Legislativo, mas do Executivo, questionou-se a constitucionalidade do instituto, por vício de iniciativa, gerando discussão que alvoroçou o mundo doutrinário. Tanto a OAB quanto alguns juristas inscreveram sua repugnância ao novel diploma, que surgia supostamente viciado. Diziam que lei de cunho processual, instrumento de coerção pessoal e ofensiva ao direito de liberdade, verteu de medida provisória, não de projeto de lei, ferindo de morte o princípio da legalidade, limitador do poder estatal em matéria penal”[5].
Neste ínterim, a conversão da referida Medida Provisória em lei foi uma espécie de convalidação de um ato inconstitucional proveniente do Executivo. Objetivou-se chancelar uma simplista e ineficaz resposta dada à criminalidade. A independência dos poderes foi vilipendiada para encobrir o defeito genético[6] da prisão temporária e incutir no espírito do povo a falsa ideia de segurança.
Importante ressaltar a atitude da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), que de pronto criticou e combateu a Medida Provisória n.° 111/89 e, através de seu Conselho Federal, impetrou Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIn) n.° 162-1/DF antes mesmo da edição da lei. De forma sintética, a OAB argumentava que a Medida Provisória:
a) criou nova modalidade de prisão provisória e novo tipo penal para delito de abuso de autoridade e tais matérias são reservadas à lei ordinária federal;
b) permitiu a incomunicabilidade do preso (frise-se que o texto constitucional é claro em vedar a incomunicabilidade até mesmo em estado de defesa, conforme art. 136, § 3.°, IV, CF);
c) normatizou matéria que não se enquadra como relevante e urgente (requisito para a edição de Medida Provisória, de acordo com o art. 62, caput, CF);
d) em virtude da redação, estabeleceu a obrigatoriedade do juiz decretar a referida modalidade de prisão se a autoridade policial representar ou o Parquet requerer;
e) afrontou a autonomia dos Estados por estabelecer plantões forenses permanentes.
Julgada somente em meados de 1993, a ADIn não foi conhecida em razão da perda do objeto, pois a Medida Provisória n.° 111/89 já não existia mais. Todavia, com conteúdo muito similar, vigia a Lei n.° 7.960/89, criticada por juristas como Fernando da Costa Tourinho Filho: “no governo Costa e Silva e no Governo Geisel (períodos de exceção) houve várias tentativas visando à criação da prisão para averigações, coisa, aliás, que na prática existia e continua existindo. Contudo, aqueles que por ela propugnavam não lograram êxito… Passado o período da ditadura, o governo democrático a instituiu com o nome de ‘prisão temporária’.
Inicialmente foi encaminhada ao Congresso “medida provisória” instituindo essa espécie de prisão cautelar. Nesse diploma permitia-se, inclusive, a decretação da incomunicabilidade. O legislador, entretanto, afastou tal providência extrema (…). De qualquer sorte, mesmo sem a incomunicabilidade, a prisão temporária é medida odiosa e arbitrária, porque decretada sem a real necessidade”[7].
Essa ideia de que a prisão temporária não passa de uma prisão para averiguações, denota a fragilidade do requisito necessidade. Essa modalidade de prisão, que pode durar apenas um breve lapso temporal, possui utilidade questionável. A Lei n.° 7.960/89, assim como sua antecessora, a Medida Provisória n.° 111/89, utiliza-se do Direito Penal de forma simbólica.
4 As interpretações da Lei n.° 7.960/89
Primeiramente convém mencionar a celeuma doutrinária gerada pelo artigo 1.° da Lei n.° 7.960/89. O artigo 1.° inicia com a seguinte redação: “Art. 1.° Caberá prisão temporária:
I – quando imprescindível para as investigações do inquérito policial;
II – quando o indiciado não tiver residência fixa ou não fornecer elementos necessários ao esclarecimento de sua identidade;
III – quando houver fundadas razões, de acordo com qualquer prova admitida na legislação penal, de autoria ou participação do indiciado nos seguintes crimes:”
Segue um rol de delitos que autorizam a prisão temporária, mas aqui não há necessidade de menciona-los. A discussão baseia-se na cumulação ou independência de cada inciso supracitado, ou dito de outra forma, os requisitos para o cabimento da prisão temporária são marcados pela equivocidade. Fernando Capez resume as dúvidas da seguinte forma: “- para Tourinho Filho e Júlio Mirabete, é cabível a prisão temporária em qualquer das três situações previstas em lei (os requisitos são alternativos: ou um, ou outro);
– Antonio Scarance Fernandes defende que a prisão temporária só pode ser decretada se estiverem presentes as três situações (os requisitos são cumulativos);
– segundo Damásio E. de Jesus e Antonio Magalhães Gomes Filho, a prisão temporária só pode ser decretada naqueles crimes apontados pela lei. Nestes crimes, desde que concorra qualquer uma das duas primeiras situações caberá prisão temporária. Assim, se a medida for imprescindível para as investigações ou se o endereço ou identificação do indiciado forem incertos, caberá a prisão cautelar, mas desde que o crime seja um dos indicados na lei;
– a prisão temporária pode ser decretada em qualquer das situações legais, desde que, com ela, concorram os motivos que autorizam a decretação da prisão preventiva (CPP, art. 312). É a posição de Vicente Greco Filho”[8].
Para analisar tais posições chamar-se-á cada uma por um número arábico, observada a ordem de apresentação, ou seja, Tourinho Filho e Júlio Mirabete representados pelo 1, Antonio Scarance Fernandes pelo 2 e assim sucessivamente. Lembra-se inicialmente que existindo dúvida o correto seria a priorização da via que maximaliza a liberdade individual e, consequentemente, restringe o poder estatal. Neste diapasão, dever-se-ia adotar a posição 2.
A interpretação 1, baseada na independência de cada inciso, é a que gera maiores problemas. A imprescindibilidade para as investigações do inquérito é um elemento eminentemente subjetivo, o qual não pode ser aceito sozinho; juntamente com o elemento imprescindível deve haver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria e, existindo tais elementos, poder-se-ia decretar a prisão preventiva por conveniência da instrução criminal. A mesma situação é a do inciso III, pois as fundadas razões de autoria e participação equivalem à prova da existência do crime e indício suficiente da autoria e os delitos elencados no inciso III são, em regra[9], punidos com reclusão, ou seja, admitem a prisão preventiva (art. 313, I, CPP). Já o inciso II mostra-se desproporcional e flagrante violação ao estado de inocência, pois a falta de identificação não pode se mostrar suficiente para a decretação da medida segregativa; mesmo com essa notória desproporção, características semelhantes (vadiagem ou dúvida quanto à identidade) autorizam a preventiva (art. 313, II, CPP).
Ademais, aceitar que cada inciso seja autônomo e não dependa de nenhum outro requisito, como o fumus commissi delicti e o periculum libertatis, seria referendar uma modalidade de prisão ex lege. Essa posição é totalmente incompatível com os preceitos constitucionais que estabelecem que ninguém será privado da liberdade sem o devido processo legal (art. 5.°, LIV, CF) e também não será considerado culpado antes do trânsito em julgado da sentença penal condenatória (art. 5.°, LVII, CF). Além disso, um Estado Democrático de Direito cujo fundamento é a dignidade da pessoa humana não pode tolerar tal modalidade de prisão.
A posição 2 denotaria um tipo de prisão cautelar extremamente criteriosa e, nesse sentido, seria desnecessária pois estaria contida na prisão preventiva. Sendo a prisão temporária uma espécie de preventiva, mostrar-se-ia inócua sua existência, já que bastaria a prisão preventiva.
A posição 3 visa à salvação da Lei n.° 7.960, pois, apesar de contrariar a interpretação literal, busca uma adequação constitucional e independência em relação à prisão preventiva. Afirma-se adequação constitucional pois se cada inciso for autônomo haverá prisão ex lege, como já referido; a obrigatoriedade da existência de fundadas razões de autoria ou participação do indiciado (requisitos do inciso III) garante a confrontação da prisão com o princípio constitucional do estado de inocência.
A interpretação 4 liga a prisão temporária à preventiva. É salutar no sentido de reconhecer que a Lei n.° 7.960 não pode ser aplicada de per si, ou seja, para não afrontar a Constituição requer mais elementos; todavia traz o inconveniente, já abordado, de considerar a prisão temporária uma preventiva especial, com mais exigências. Quem se preocuparia em preencher mais requisitos para obter um mandado de prisão para um prazo de 5 ou 30 dias, se com menos elementos pode-se pleitear uma prisão sem prazo predeterminado?
Em síntese, realizando uma leitura constitucional a prisão temporária assemelha-se muito à preventiva, diferindo apenas no tocante ao prazo. Caso não efetuarmos tal leitura, estar-se-ia admitindo uma prisão ex lege, o que seria inconstitucional. Nesse momento é importante lembrar a lição de Gadamer[10], para quem interpretar (e no Direito interpretar é aplicar) é encontrar uma concordância entre cada parte e o todo; no caso em tela, a Lei n.° 7.960 (parte) deve ser interpretada com vistas a todo sistema jurídico, principalmente os aspectos constitucionais.
5 Conclusão
A prisão para averiguação era uma prática odiosa aplicada durante os regimes não-democráticos sub-repticiamente, pois não havia respaldo legal. Ocorre que logo após a promulgação de uma Constituição democrática o chefe do Poder Executivo institui aquela, através de uma Medida Provisória, com um novo nome juris: prisão temporária. Além da existência de dissonância constitucional no tocante ao conteúdo, havia problemas procedimentais, pois não se poderia criar novas normas penais (principalmente a criação de uma nova modalidade de prisão) através de Medida Provisória; aliás o atual texto da Constituição proíbe a edição de tal meio legislativo em matéria de direito penal e processual penal (art. 62, § 1.°, I, b, CF).
Já se passaram mais de duas décadas desde o nascimento desta nova modalidade de prisão e ela permanece sendo aplicada, apesar de sua origem espúria, fundada em uma onda punitivista que se utiliza do Direito Penal de forma simbólica. Isso lembra a questão da filiação: modernamente não se distingue mais a origem do filho para definir seus direitos, todos possuem direitos iguais, independentemente se havidos na constância do casamento, em uma relação extraconjugal ou em qualquer situação. Ocorre que uma modalidade de prisão não é um filho e, portanto, sua origem é fundamental: não se pode continuar aplicando uma modalidade de segregação cautelar com defeito genético unicamente porque está prevista na legislação. Apesar de irmãs, as prisões em flagrante, preventiva e temporária possuem gêneses totalmente diversas: a primeira é expressamente prevista na Constituição (art. 5.°, LXI, CF); a segunda tem previsão processual, mas se preocupa em angariar elementos que, face ao princípio da proporcionalidade, possam justificar a relativização do estado de inocência; a última parece ser uma incógnita.
A prisão temporária pode ser inútil ou inconstitucional[11], pois ou admite-se sua subordinação à prisão preventiva (nesse sentido há inutilidade, pois bastaria a preventiva), ou aceita-se uma prisão ex lege, cuja análise da real necessidade de imposição é desnecessária. Em suma, aceitar pacificamente a imposição de prisão temporária totalmente desvinculada da preventiva e cujos incisos do artigo 1.°, da Lei n.° 7.960/89, são absolutamente independentes, é referendar uma medida odiosa e inconstitucional; além de admitir que o grande Leviatã, de forma arbitrária, ponha suas garras em mais uma parcela da liberdade do cidadão.
Informações Sobre o Autor
Juliane Scariot
Advogada. Graduada em Direito pela Universidade de Caxias do Sul. Estudante dos programas de pós-graduação da Universidade de Caxias do Sul, em Ética e Filosofia Política, e da Anhanguera, em Ciências Penais.