Resumo: Foi realizado na presente pesquisa um estudo acerca da Reserva do Possível, abordando-se a sua origem na Corte Constitucional Alemã e o seu translado para a doutrina brasileira. A partir de então, fizemos uma análise, através da qual demonstramos a inaplicabilidade do referido instituto no Estado Democrático de Direito Brasileiro, com respaldo nos princípios da Aplicabilidade Imediata das Normas Definidoras de Direitos Fundamentais e o Mínimo Existencial, além, obviamente, das disparidades sociais constatadas entre Brasil e Alemanha. Ressaltando-se por fim, a necessidade de intervenção do Judiciário no combate às omissões do poder público que, invoca, absurdamente, a Reserva do Possível para se eximir das mais básicas e necessárias prestações de serviços à coletividade.
Palavras-chave: Reserva do Possível, Estado Democrático de Direito Brasileiro, Aplicabilidade Imediata das Normas Definidoras de Direitos Fundamentais, Efetividade dos Direitos Fundamentais, Mínimo Existencial.
Abstract: This work’s purpose is to discuss issues about the Reserve of the Possible, approaching its origin in the German Constitutional Court and its transference for Brazilian doctrine. We made an analysis to demonstrate that this institute isn’t applicable in the Democratic State of Brazilian Right, based on principles of the Immediate Applicability of the Defining Norms of Basic Rights and the Existential Minimum, considering the social differences between Brazil and Germany. Finally, we write about the necessity of the Judiciary intervention to combat the Government omissions witch invokes the Reserve of the Possible to exempt from charge of give basic and necessary services to the collective.
Keywords: Reserve of the Possible, Democratic State of Brazilian Right, Immediate applicability of the Defining Norms of Basic Rights, Effectiveness of the Basic Rights, Minimum Existential.
Sumário: 1 INTRODUÇÃO 2 ORIGEM E SIGNIFICADO DA RESERVA DO POSSÍVEL 3 TRANSLADO PARA A DOUTRINA BRASILEIRA 4 A EFETIVIDADE DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS 4.1 A Efetividade dos Direitos Fundamentais de Defesa 4.2 A Efetividade dos Direitos Fundamentais Sociais 5 APLICABILIDADE DAS NORMAS CONSTITUCIONAIS 20 5.1 Significado e Alcance do art. 5o, § 1º, da Constituição Federal 5.2 A Aplicabilidade Imediata dos Direitos Fundamentais e o Mínimo Existencial 6 O PADRÃO MÍNIMO SOCIAL PARA UMA EXISTÊNCIA DIGNA 7 A INTERVENÇÃO DO JUDICIÁRIO NO COMBATE ÀS OMISSÕES DO PODER PÚBLICO GERADAS PELA ABSURDA INVOCAÇÃO DA RESERVA DO POSSÍVEL 8 CONCLUSÃO 9 REFERÊNCIAS
1 INTRODUÇÃO
“É tempo de responsabilidade. Mas, principalmente, é tempo de responsabilizar-se cada um por todos, para que o direito não positive ilusões, antes, concretize humanidades” (Cármen Lúcia, 2004, p. 10).
Constitui objetivo geral da presente pesquisa demonstrar a inaplicabilidade da Reserva do Possível no Estado Democrático de Direito Brasileiro, tendo em vista ser esse um instituto transladado pelos juristas brasileiros da Alemanha, país cujas estruturas sociais, econômicas e culturais são totalmente distintas da brasileira.
Justifica-se pela necessidade de esclarecimento de questionamentos surgidos na esfera da hermenêutica constitucional, de forma a rechaçar a utilização desse imprudente instituto no Brasil. Nessa perspectiva, o presente trabalho desenvolveu-se fundamentalmente em pesquisa bibliográfica, quanto aos significados de Reserva do Possível, Aplicabilidade das Normas Constitucionais e Padrão Mínimo Social para uma Existência Digna.
Impende ressaltar, ainda como justificativa, a necessidade de concretização de políticas públicas que assegurem ao homem existência digna e parte da premissa de que a dignidade da pessoa humana, além de ser princípio fundamental da democracia, constitui-se verdadeiro princípio jurídico axiomático (Rocha, 2004).
2 ORIGEM E SIGNIFICADO DA RESERVA DO POSSÍVEL
A doutrina da reserva do possível surgiu na Corte Constitucional alemã em acórdão paradigmático, através do qual ficou decidido que os direitos sociais de natureza prestacional que envolvessem custos efetivos do Estado ficariam sujeitos à reserva da lei e à disponibilidade de recursos (TORRES, 2003).
O julgamento versou sobre o direito de acesso ao ensino público superior, por não existirem vagas suficientes, com fundamento na garantia da lei federal alemã de liberdade de escolha da profissão. O Tribunal Constitucional alemão julgou improcedente o pedido e acabou por firmar jurisprudência no sentido de que a prestação reclamada deve equivaler ao que, razoavelmente, pode o indivíduo exigir da sociedade, de maneira que, mesmo o Estado dispondo dos recursos, não se poderia falar em uma obrigação de prestar algo que não se mantenha nos limites do razoável (BVERFGE apud SARLET, 1998). Destarte, não deve o Estado, prestar assistência social a alguém que não faça jus ao benefício, por dispor, ele próprio, de recursos suficientes para seu sustento (SARLET, 1998). De acordo com a referida decisão e boa parte da doutrina alemã, o “razoável” depende da ponderação por parte do legislador (WIEGAND apud SARLET, 1998).
A jurisprudência constitucional alemã entende que a construção de direitos subjetivos à prestação material de serviços públicos pelo Estado está condicionada à disponibilidade destes recursos e, a decisão sobre a disponibilidade dos mesmos, estaria localizada no campo discricionário das decisões governamentais e dos parlamentos, através da composição dos orçamentos públicos (KRELL, 2002).
Consoante o Tribunal Constitucional Federal da Alemanha, os direitos a prestações positivas estão sujeitos à reserva do possível no sentido daquilo que o indivíduo, de maneira racional pode esperar da sociedade (KRELL, 2002). Assim, essa teoria impossibilita exigências acima de um certo limite básico social e, de acordo com ela, a Corte decidiu que o Estado não seria obrigado a criar a quantidade suficiente de vagas nas universidades públicas para atender a todos os candidatos. (BVERFGE apud KRELL, 2002).
Canotilho (1991) expõe que as efetivações dos direitos sociais, econômicos e culturais, dependem dos recursos econômicos, dentro de uma “reserva do possível” e, sua realização está condicionada pelo volume de recursos suscetíveis para esse efeito.
Holmes e Sunstein citados por Bigolin (2004), em termos contundentes afirmam que os Direitos costumam ser descritos como invioláveis, peremptórios e decisivos. Para eles isso é mero floreio retórico, pois nada que custe dinheiro pode ser absoluto.
3 TRANSLADO PARA A DOUTRINA E JURISPRUDÊNCIA BRASILEIRA
No Brasil, vários juristas já se manifestaram sobre a reserva do possível. Sarlet (1999) menciona que a limitação dos recursos públicos é considerada limite fático à efetivação dos direitos sociais prestacionais.
O Min. Celso de Mello expôs seu pensamento acerca do tema na Ação de Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental no 45, onde atuou como relator, expondo que:
“A realização dos direitos econômicos, sociais e culturais – além de caracterizar-se pela gradualidade de seu processo de concretização – depende, em grande medida, de um inescapável vínculo financeiro subordinado às possibilidades orçamentárias do Estado, de tal modo que, comprovada, objetivamente, a incapacidade econômico-financeira da pessoa estatal, desta não se poderá razoavelmente exigir, considerada a limitação material referida, a imediata efetivação do comando fundado no texto da Carta Política”. (BRASÍLIA, STF. APDF nº 45-MC/DF, Rel. Min. Celso de Mello, 2004)
Cunha Júnior (2006) apresenta visão bem crítica sobre o assunto, com a qual comungo, ao relatar que doutrina brasileira vem adotando comodamente essa criação do direito estrangeiro, aceitando-a indiscriminadamente como obstáculo à efetividade dos direitos sociais. Menciona que a doutrina estrangeira tem dado grandes contribuições ao direito brasileiro, proporcionando indiscutivelmente consideráveis avanços na literatura jurídica nacional, todavia deixa claro que, é discutível e de duvidosa pertinência o translado de teorias jurídicas desenvolvidas em países de bases cultural, econômica, social e históricas próprias, para outros países cujos modelos jurídicos estão sujeitos a condicionamentos socioeconômicos e políticos completamente diferentes. Os institutos jurídicos-constitucionais devem ser compreendidos a partir da história e das condições socioeconômicas do país em que se desenvolveram, sendo impossível “transportar-se um instituto jurídico de uma sociedade para outra, sem se levar em conta os condicionamentos a que estão sujeitos todos os modelos jurídicos” (DANTAS, 1996, p. 66). A primeira condição para o estudo dos fenômenos jurídicos no âmbito do direito comparado é o conhecimento do direito estrangeiro à vista do meio social e político em que ele se aplica, o que exige uma compreensão primária da história política e social daquele país. Há casos em que os mesmos textos legais e procedimentos jurídicos produzem efeitos jurídicos distintos, quando utilizados em domínio político-sociais diferentes como o alemão e o brasileiro, é completamente sem sentido aplicar, descuidadamente e sem critérios, uma vez que a adoção de soluções estrangeiras nem sempre se compatibiliza com a realidade jurídica e material do Estado brasileiro (CUNHA JÚNIOR, 2006).
As normas dos catálogos monumentais de Direitos Fundamentais na Carta de 1988 ainda não lograram causar os efeitos desejados na realidade do país, sobretudo na área dos direitos sociais (KRELL, 2002).
“A doutrina jurídica brasileira, no passado, sempre foi aberta a discutir modelos e propostas provindas do exterior. Nesse contexto, a doutrina constitucional alemã e a jurisprudência da Corte Constitucional exercem papel de destaque. No entanto, as teorias desenvolvidas na Alemanha sobre a interpretação dos direitos sociais não podem ser facilmente transferidas para a realidade brasileira, sem as devidas adaptações” (KRELL, 2002, p. 107).
Cunha Júnior (2006) relata que a reserva do possível desenvolveu-se na Alemanha, num contexto jurídico e social distintos da realidade brasileira. Nestas diferentes ordens jurídicas variam as formas de lutas, conquistas e realização e satisfação dos direitos, variam também os próprios paradigmas jurídicos aos quais se sujeitam. Desta forma, enquanto a Alemanha está contextualizada entre os países centrais, onde já existe um padrão ótimo de bem-estar social, o Brasil é ainda, considerado um país periférico, onde milhares de pessoas passam fome e não têm as mínimas condições de existência digna nas áreas da saúde, educação, trabalho e moradia, assistência e previdências sociais, de tal modo que a efetividade dos direitos sociais ainda depende da luta pelo direito, entendida como processo de transformações econômicas e socais, na medida em que estas forem necessárias para a concretização desses direitos.
“Num Estado em que o povo carece de um padrão mínimo de prestações para sobreviver, onde pululam cada vez mais cidadãos socialmente excluídos e onde quase meio milhão de crianças são expostas ao trabalho escravo, enquanto seus pais sequer encontram trabalho e permanecem escravos de um mesmo sistema que não lhes garante a mínima dignidade, os direitos sociais não podem ficar reféns de condicionamentos do tipo reserva do possível” (CUNHA JÚNIOR, 2006, p. 287)
Conforme se pode apreender, as maiores dificuldades na efetividade dos direitos fundamentais manifestam-se entre os direitos sociais, que têm por objeto uma conduta positiva por parte do Estado. Como se já não fosse o bastante todas as barreiras à efetivação destes direitos, a reserva do possível cria mais um empecilho para que se isso ocorra, não obstante, isso não pode ser um entrave à efetividade ou aplicabilidade direta e imediata dos direitos fundamentais sociais, conforme demonstraremos mais adiante.
Devemos, antes, esclarecer, por que tal dificuldade de efetividade dos direitos fundamentais paira sobre os direitos sociais, notadamente os de natureza prestacional.
4 A EFETIVIDADE DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS
Segundo Barroso a efetividade consiste na realização do Direito, no desempenho concreto de sua função social. “Ela representa a materialização, no mundo dos fatos, dos preceitos legais e simboliza a aproximação, tão íntima quanto possível, entre o dever ser normativo e o dever da realidade social” (BARROSO, 2001, p. 83).
Aduz Silva (2004) que apesar da íntima conexão entre ambos os conceitos, deve-se distinguir eficácia social da norma (efetividade), que significa a sua real obediência e aplicação no plano dos fatos e; eficácia jurídica, que, segundo sustenta:
“designa a qualidade de produzir, em maior ou menor grau, efeitos jurídicos, ao regular, desde logo, as situações, relações e comportamento nela indicados; nesse sentido a eficácia diz respeito à aplicabilidade, exigibilidade ou executoriedade da norma, como possibilidade de sua aplicação jurídica. Possibilidade e não efetividade” (SILVA, 2004, p. 66)
Para Sarlet (1998) a eficácia jurídica é a possibilidade (no sentido de aptidão) de a norma vigente (juridicamente existente) ser aplicada aos casos concretos e de – na medida de sua aplicabilidade – gerar efeitos jurídicos, ao passo que a eficácia social (ou efetividade) pode ser considerada como englobando tanto a decisão pela efetiva aplicação da norma (juridicamente eficaz), quanto o resultado concreto decorrente – ou não – desta aplicação.
4.1 A Efetividade dos Direitos Fundamentais de Defesa
Durante a evolução histórica formaram-se “dimensões” de direitos que não se sobrepõe um ao outro, todavia sim, convivem entre si.
Os primeiros direitos reconhecidos foram criados para proteção dos indivíduos contra a tirania e opressão do monarca. Assumem particular relevo no rol desses, os direitos à vida, à liberdade, à propriedade e à igualdade perante a lei. São, posteriormente, complementados pelas assim denominadas liberdades de expressão coletiva (liberdades de expressão, de imprensa, manifestação, reunião, associação etc.) e pelos direitos a participação política, tais como o direito de voto e a capacidade eleitoral passiva, revelando, de tal sorte, íntima correlação entre os direitos fundamentais e a democracia (SARLET, 1998).
Esses direitos voltados à proteção da liberdade foram classificados inicialmente como direitos negativos, na qualidade de limites constitucionais ao poder do Estado. Seriam sempre eficazes, já que não dependeriam de regulamentação. Desde que fosse admitida a regulação das liberdades, o gozo das mesmas decorreria da própria constituição, não do trabalho do legislador inferior (BIGOLIN, 2004). São também chamados direitos de defesa, uma vez têm o intuito de proteger o indivíduo de qualquer abuso por parte estatal. Criam, assim, liberdades positivas e negativas, sendo que, aquelas são posições subjetivas que outorgam ao sujeito o poder de exercer positivamente os próprios direitos; essas exigem omissões dos poderes estatais particulares de modo a evitar agressões lesivas por parte destes.
Sarlet (1998) ensina que os direitos de defesa são identificados por sua natureza preponderantemente negativa, cujo objeto são abstenções do Estado, no sentido de proteger o indivíduo contra ingerências de sua autonomia pessoal. Percebe-se então, que tais direitos fundamentais, por traduzirem, essencialmente, a exigibilidade de uma abstenção por parte dos órgãos estatais, não manifestam maiores dificuldades quanto à sua efetividade (CUNHA JÚNIOR, 2006). Alguns exemplos dos direitos fundamentais de defesa encontrados em nossa Constituição são: o direito de liberdade de expressão, o direto à inviolabilidade da casa, o direito de liberdade de locomoção e de não ser preso arbitrariamente, o direito de propriedade, o direito de não ser tributado para fins de confisco, entre outros.
Há que se ressaltar, todavia, que alguns direitos de defesa podem reclamar uma conduta positiva por parte do Estado, conforme ocorre com determinados direitos fundamentais de cunho procedimental, alguns direitos políticos e direitos que dependem de concretização legislativa (SARLET, 1998).
Após firmadas algumas liberdades básicas, a opressão do homem pelo próprio homem não se dava mais diretamente pelo aparato estatal, entretanto são caracterizados por exigirem uma conduta positiva do Estado (ou particulares destinatários da norma), consistente numa prestação de natureza fática.
4.2 A Efetividade dos Direitos Fundamentais Sociais
O impacto gerado pela industrialização, além dos graves problemas sociais e econômicos que a acompanharam, as doutrinas socialistas e a constatação de que a consagração formal de liberdade e igualdade não gerava a garantia do seu efetivo gozo acabaram, já no decorrer do séc XIX, gerando amplos movimentos reivindicatórios e o reconhecimento progressivo de direitos atribuindo ao Estado comportamento ativo na realização da justiça social através da efetivação dos direitos econômicos, sociais e culturais, os chamados direitos de segunda dimensão (SARLET, 1998).
Enquanto limitar o poder estatal é a principal função dos direitos de defesa, os direitos de segunda dimensão, especialmente os direitos sociais (como direitos a prestações) reclamam uma crescente posição ativa do Estado na esfera econômica e social (LAFER apud BIGOLIN, 2004). Distintamente dos direitos de defesa, através dos quais se cuida de preservar e proteger determinada posição (conservação de uma situação existente), os direitos sociais de natureza positiva (prestacional) pressupõem seja criada ou colocada à disposição a prestação que constitui seu objeto, já que visam a realização da igualdade material.
O prof. José Luiz Quadros de Magalhães (2002) menciona que os direitos sociais são aqueles que exigem uma prestação positiva do Estado, que deve agir para oferecer trabalho, educação, saúde, habitação etc. Os direitos de defesa, por sua vez, são direitos “contra” o Estado, uma vez que proíbem uma atuação estatal que atente contra liberdades individuais. Para o referido autor, um outro dado do qual podemos utilizar para melhor diferenciarmos esses dois grupos de direitos fundamentais é que:
“Enquanto os direitos individuais pertencem a cada indivíduo isoladamente, ou seja, são direitos relativos a condutas individuais que só cabe ao próprio indivíduo decidir e cujo limite será o direito do outro, os direitos sociais se dirigem ao indivíduo como integrante da coletividade, inserido na sociedade com um papel atuante como ser social. Os direitos sociais só podem ser oferecidos coletivamente” (Magalhães, 2002, p. 84).
Os direitos sociais foram reconhecidos inicialmente como, via de regra, voltados não a uma abstenção do Estado, mas a uma ação que lhes dá a característica de positivos, no sentido do agir do Estado dentro do campo material. Bobbio (1992), nesse sentido, leciona que:
“É supérfluo acrescentar que o reconhecimento dos direitos sociais suscita, além do problema da proliferação dos direitos do homem, problemas bem mais difíceis de resolver no que concerne àquela prática de que falei no início: é que a proteção destes últimos requer uma intervenção ativa do estado, que não é requerida pela proteção dos direitos de liberdade, produzindo aquela organização dos serviços públicos de onde nasceu até mesmo uma nova forma de Estado, o Estado Social. Enquanto os direitos de liberdade nascem contra o superpoder do Estado – e, portanto, com o objetivo de limitar o poder -, os direitos sociais exigem, para sua realização prática, ou seja, para a passagem da declaração puramente verbal à sua proteção efetiva, precisamente o contrário, isto é, a ampliação dos poderes do Estado.
(…) na Constituição italiana, as normas que se referem a direitos sociais foram chamadas puramente de programáticas. Será que já nos perguntamos alguma vez que gênero de normas são essas que não ordenam, proíbem e permitem num futuro indefinido e sem prazo de carência claramente delimitado? E, sobretudo, já nos perguntamos alguma vez que gênero de direitos são esses que tais normas definem? Um direito cujo reconhecimento e cuja efetiva proteção são adiados sine die, além de confiados à vontade de sujeitos cuja obrigação de executar o ‘programa’ é apenas uma obrigação moral ou, no máximo, política, pode ainda ser chamado corretamente de ‘direito’?” (Bobbio, 1992).
Consoante Bonavides (2000) em virtude de sua própria natureza de direitos que exigiam do Estado determinadas prestações materiais nem sempre resgatáveis por exigüidade, carência ou limitação essencial de meios e recursos, os direitos fundamentais de segunda geração passaram primeiro por um ciclo de baixa normatividade ou tiveram eficácia duvidosa. De juridicidade questionada nesta fase, foram eles remetidos à chamada esfera programática, uma vez que não continham para sua concretização as garantias habitualmente ministradas pelos instrumentos processuais de proteção aos direitos da liberdade. A seguir passaram por uma crise de observância e execução, cujo fim parece estar perto, desde que recentes Constituições, inclusive a do Brasil, formularam o preceito da aplicabilidade imediata dos direitos fundamentais.
Ressalte-se que os direitos sociais não englobam apenas direitos de cunho positivo, como o direito à saúde, ao trabalho, à assistência social, dentre outros, mas também as liberdades sociais, como a liberdade de sindicalização, o direito de greve e também o reconhecimento de direitos fundamentais aos trabalhadores, tais como o direito a férias, o repouso semanal remunerado, a garantia de um salário mínimo, a limitação da jornada de trabalho, dentre outros. Logo, os direitos sociais prestacionais também apresentam uma dimensão negativa, visto que a prestação que constitui seu objeto não pode ser imposta ao titular em potencial do direito, assim como os próprios direitos de defesa podem, conforme já ressaltado, reclamar uma conduta positiva por parte do Estado (SARLET, 1998).
Em função do supramencionado, Amaral citado por Bigolin (2004), demonstra que é insuficiente dividirem-se os direitos fundamentais em direitos positivos e negativos, considerando tais distinções ineficazes para evidenciar a problemática dos direitos sociais prestacionais, propondo uma ótica nova para enfocar as posições jurídicas que decorrem dos direitos fundamentais: a sua decomposição em pretensões. No desenvolvimento dessa tese, depois de evidenciar que mesmo os direitos negativos também possuem pretensões positivas, culmina por defender que os direitos humanos e fundamentais seriam direitos que não correspondem a deveres correlatos. Como esses direitos valem para todos os que estão em condições de recebê-los, mas os recursos para o atendimento das demandas são finitos, surge um conflito específico: o conflito por pretensões positivas, no qual será necessário decidir sobre o emprego de recursos escassos através de escolhas disjuntivas (o atendimento de uns e o não-atendimento de outros). Esse conflito não é, em geral, tratado pela doutrina e mesmo o critério de ponderação revelar-se-ia insuficiente.
Conforme exposto, os direitos de defesa, compostos principalmente pelos direitos de liberdade, igualdade, direitos-garantias institucionais, direitos políticos e posições jurídicas fundamentais que, em geral, pedem uma atitude de abstenção dos poderes estatais e dos particulares (como destinatários dos direitos), não têm, geralmente, sua efetividade questionada. Entretanto, o mesmo não se pode afirmar dos direitos sociais, pelo menos no que tange a sua dimensão prestacional.
Vinculada a esta característica dos direitos fundamentais sociais a prestações está o problema acerca da efetiva disponibilidade do seu objeto, isto é, se o destinatário da norma se encontra em condições de dispor da prestação reclamada, encontrando-se na dependência da existência de meios para cumprir com sua obrigação. Já há tempo se averbou que o Estado dispõe apenas de limitada capacidade de dispor sobre o objeto das prestações reconhecidas pelas normas definidoras de direitos fundamentais sociais, de tal sorte que a limitação de recursos constitui, segundo alguns, em limite fático à efetivação destes direitos. Distinta da possibilidade efetiva de recursos, ou seja, da possibilidade material de disposição, já que o Estado (assim como destinatário em geral) também deve ter capacidade jurídica, em outras palavras, o poder de dispor, sem o qual de nada lhe adiantam os recursos existentes. Encontramo-nos, portanto, diante de duas facetas diversas, porém intimamente entrelaçadas, que caracterizam os direitos sociais prestacionais. Em virtude desses aspectos sustenta-se a colocação dos direitos sociais a prestações sob a reserva do possível, que compreendida em sentido amplo, abrange tanto a possibilidade, quanto o poder de disposição por parte do destinatário da norma (SARLET, 1998).
Diante de todas as dificuldades de efetivação dos direitos fundamentais, principalmente os direitos sociais que exigem do Estado uma prestação, passamos agora a expor os fatores pelos quais pensamos não prevalecer o entendimento daqueles que defendem a reserva do possível. Os motivos que nos levaram a refutar a aplicabilidade dessa doutrina em nosso país abrangerão os princípios da Aplicabilidade Imediata das Normais Constitucionais e a Teoria do Mínimo Existencial, além, obviamente de tudo o que já fora exposto sobre diferenças entre Brasil e Alemanha. Ora, não podemos deixar que se estabeleça mais um obstáculo à eficácia dos direitos fundamentais. Os problemas de “caixa” não podem ser guinados a obstáculos a efetivação dos direitos fundamentais sociais, pois imaginar que a realização desses direitos depende de caixas cheios significa reduzir a sua eficácia a zero (KRELL, 2002).
“A toda evidência, não podemos permitir, que os direitos fundamentais transformem-se, pela omissão do poder público, em simples aspirações, ideais ou esperanças eternamente insatisfeitas ou, ainda, mera retórica política ou pura proclamação demagógica. Impõe-se, por isso, um novo arranjo jurídico acerca da teoria dos direitos fundamentais, em que se reconheça um direito fundamental à efetivação da Constituição, que prime pela força normativa. Impõe-se, por isso, um novo arranjo jurídico acerca da teoria dos direitos fundamentais, em que se reconheça um direito fundamental à efetivação da Constituição, que prime pela força normativa e plena efetividade dos direitos fundamentais, inclusive sociais. Discursos jurídicos que mais se preocupam com os limites impostos à efetividade dos direitos fundamentais do que com eles próprios, como os habitualmente proferidos, revelam-se estéreis ante a uma dogmática constitucional emancipatória e renovadora, que tem proporcionado uma radical mudança paradigmática que envolve a idéia de que os direitos fundamentais não precisam de regulamentação para serem desfrutados e incidirem, pois simplesmente se concretizam” (CUNHA JÚNIOR, 2006, p. 274).
5 APLICABILIDADE DAS NORMAS CONSTITUCIONAIS
José Afonso da Silva manifestando-se sobre a aplicabilidade das normas constitucionais expõe que:
“eficácia e aplicabilidade são fenômenos conexos, aspectos talvez de mesmo fenômeno, encarados por prismas diferentes: aquela como potencialidade; esta como realizabilidade, praticidade. Se a norma não dispõe de todos os requisitos para sua aplicação aos casos concretos, falta-lhe eficácia, não dispõe de aplicabilidade. Esta se revela, assim, como a possibilidade e aplicação. Para que haja esta possibilidade, a norma há que ser capaz de produzir efeitos jurídicos” (SILVA, 2004, p. 60)
As noções de aplicabilidade e eficácia jurídica podem ser consideradas as duas faces da moeda, na medida em que uma norma somente será eficaz (no sentido jurídico) por ser aplicável e na medida de sua aplicabilidade. Assim, o termo eficácia jurídica, abrange a noção de aplicabilidade que lhe é inerente e dele não pode ser dissociada. (SARLET, 1998)
Ruy Barbosa (1934) em concepção clássica, baseada em doutrina norte-americana, firmou posição no sentido de que as normas auto-aplicáveis (ou auto-executáveis) estariam aptas a gerar seus efeitos independentemente de qualquer atuação do legislador, já que o seu conteúdo se encontra devidamente determinado. Já as normas não auto-aplicáveis (ou não auto-executáveis) requerem uma ação do legislador para tornar efetivos os seus preceitos.
Celso Bastos, Maria Helena Diniz, dentre outros renomados juristas reformularam esta clássica concepção, todavia José Afonso da Silva foi quem mais se destacou com a sua “teoria tricotômica da eficácia”. Para ele, as normas constitucionais são divididas em três grupos; normas de eficácia plena, normas de eficácia contida e normas de eficácia limitada. As normas de eficácia plena são aquelas que, por serem dotadas de aplicabilidade direta, imediata e integral, não dependem da atuação do legislador ordinário para que alcancem sua plena operatividade, já que, desde a entrada em vigor da Constituição, produzem, ou têm possibilidade de produzir, todos os efeitos essenciais, relativamente aos interesses, comportamentos e situações, que o legislador constituinte, direta ou indiretamente, quis regular.
As normas de eficácia contida são dotadas de aplicabilidade direta, imediata, mas possivelmente não integral, são aquelas em que o legislador constituinte regulou suficientemente os interesses relativos a determinada matéria, mas deixou margem à atuação restritiva por parte da competência discricionária do poder público, nos termos que a lei estabelecer, ou nos termos de conceitos gerais nela enunciados (SILVA, 2004).
Já as normas de eficácia limitada caracterizam-se pela sua aplicabilidade indireta e reduzida, não tendo recebido do legislador constituinte a normatividade suficiente para serem imediatamente aplicáveis e gerarem seus principais efeitos, reclamando, portanto, a intervenção legislativa. Englobam tanto as normas declaratórias de princípios programáticos, quanto as normas declaratória de princípios institutivos e organizatórios, que definem as estruturas e as funções de determinados órgãos e instituições, cuja formação definitiva, contudo, se encontra na dependência do legislador ordinário (SILVA, 2004).
Silva (2004) comenta que o Título II da Constituição contém a declaração dos direitos e garantias fundamentais, incluindo aí os direitos individuais, coletivos, sociais, de nacionalidade e políticos. Menciona que o art. 5o, § 1o, estatui que “as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata”, abrangendo também, as normas que revelam os direitos sociais. Todavia, o referido autor, diz que isso não resolve todas as questões, porque a Constituição mesma faz depender de legislação ulterior a aplicabilidade de algumas normas definidoras de direitos sociais e coletivos e continua ainda:
“Por regra, as normas que consubstanciam os direitos fundamentais democráticos e individuais são de eficácia contida e aplicabilidade imediata, enquanto as que definem os direitos sociais tendem a sê-lo também na Constituição vigente, mas algumas, especialmente as que mencionam uma lei integradora, são de eficácia limitada e aplicabilidade indireta. Então, em face dessas normas, que valor tem o disposto no §1o do art. 5o, que declara todas de aplicação imediata? Significa que elas são aplicáveis até onde possam, até onde instituições ofereçam condições para o seu atendimento” (SILVA, 2004, p. 165).
Em que pese a concepção supra, estamos convictos da total aplicabilidade direta, imediata dos diretos fundamentais e sociais, independente de legislação ulterior, afinal é isso o que quer significar o §1o do art. 5o da Constituição Federal. Ora, na hodierna dogmática constitucional, com o reconhecimento de um direito fundamental à efetivação a Constituição, assiste-se a um deslocamento da doutrina dos direitos fundamentais dentro da reserva da lei para a doutrina da reserva da lei dentro dos direitos fundamentais, de tal modo que não se pode negar o caráter jurídico e, conseqüentemente, a exigibilidade e acionabilidade dos direitos fundamentais sociais, que são autênticos direitos subjetivos. Todos os direitos sociais geram imediatamente posições jurídicas favoráveis aos indivíduos, exigíveis desde logo, não obstante possam apresentar teores de efetividade distintos (CUNHA JÚNIOR, 2006).
5.1 Signifcado e Alcance do art. 5o, § 1º, da Constituição Federal
Consoante o artigo 5o §1o da Constituição Federal de 1.988, “normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata. ”
Entretanto não há consenso doutrinário acerca do alcance deste principio no sentido desta possuir, ou não, força suficiente para tornar todos os direitos fundamentais em normas imediatamente aplicáveis e dotadas de plena eficácia, ainda que se trate de preceitos que não receberam do Constituinte normatividade suficiente para tanto, reclamando uma intervenção do legislador.
Na doutrina vigem três posições relativas a este tema. A primeira entende que o art. 5º, § 1º, da CF não pode atentar contra a natureza das coisas, assim os direitos fundamentais só têm aplicação imediata se as normas que o definem são completas na sua hipótese e no seu dispositivo. Dessa forma, os direitos fundamentais só têm aplicação imediata se as normas que o definem são completas na sua hipótese e no seu dispositivo, caso contrário, seriam normas com fórmula desprovida de conteúdo, na medida que não tem o efeito de emprestar às normas carentes de concretização sua imediata aplicação e plena eficácia.
Bastos, 1989, situando-se numa esfera já intermediária, sustenta que os direitos fundamentais são, em princípio (na medida do possível), diretamente aplicáveis, regra que, no entanto, comporta duas exceções: a primeira quando a Constituição expressamente remete a concretização do direito fundamental ao legislador, estabelecendo, por exemplo, que este apenas será exercido na forma prevista em lei; a segunda quando a norma de direito fundamental não contiver os elementos mínimos indispensáveis que lhe possam assegurar a aplicabilidade, no sentido de que não possui a normatividade suficiente à geração de seus efeitos principais sem que seja necessária a assunção, pelo Judiciário, da posição reservada ao legislador.
A corrente situada no outro extremo, segundo a qual me posiciono, defende a imediata e direta aplicação das normas definidoras de direitos fundamentais, ainda que de caráter programático, no sentido de que os direitos subjetivos nelas consagrados podem ser imediatamente desfrutados, independente de concretização legislativa. Consideram as concepções da primeira corrente simplistas e pessimistas, não estando alinhadas aos melhores posicionamentos da doutrina nacional e estrangeira acerca do tema. Ademais, é principio conhecido de hermenêutica aquele que prestigia uma interpretação que extraia do texto interpretado a sua máxima utilidade e efetividade. Desmerecer a utilidade e o grau normativo contido no § 1º do art. 5º é ir, aí sim, contra a natureza jurídica das coisas. Logo, é inadmissível, uma interpretação que negue qualquer eficácia do dispositivo em comento, recusando ao mesmo o regime jurídico reforçado que o constituinte a ele reservou (CUNHA JÚNIOR, 2006). Eros Roberto Grau, Flávia Piovesan, Luís Roberto Barroso e Álvaro Ricardo de Souza Cruz são alguns dos juristas brasileiros que defendem a imediata aplicabilidade dos direitos fundamentais independente de intermediação legislativa.
Grau (1988) afirma ser a Constituição, toda ela, norma jurídica e, como ela tem aplicação direta, vincula o Judiciário, Executivo e Legislativo. Nestas condições, as normas programáticas, sobretudo as atributivas de direitos sociais e econômicos, devem ser entendidas como diretamente aplicáveis e imediatamente vinculantes dos três poderes. Nesta concepção, pontua existir um caráter reacionário nas normas programáticas, pois:
“nelas se erige não apenas um obstáculo à funcionalidade do direito, mas, sobretudo, ao poder de reivindicação das forças sociais. O que teria a sociedade civil a reivindicar já está contemplando na constituição. Não se dando conta, no entanto, da inocuidade da contemplação destes direitos sem garantias, a sociedade civil acomoda-se, alentada e entorpecida de que esses mesmos direitos um dia venham a ser realizados” (GRAU, 1988, p. 42-43).
Nesta polêmica, especialmente sobre a efetividade das normas que consagram direitos fundamentais, Luís Roberto Barroso relata que:
“Modernamente, já não cabe negar o caráter jurídico e, pois, a exigibilidade e a acionabilidade dos direitos fundamentais, na sua múltipla tipologia. É puramente ideológica e não científica a resistência que ainda hoje se opõe à efetivação, por via coercitiva, dos chamados direitos sociais. Também os direitos políticos e individuais, enfrentaram, como de assinalou, a reação conservadora, até sua final consolidação. A afirmação dos direitos fundamentais como um todo, na sua exeqüibilidade plena, vem sendo positivada nas Cartas Políticas mais recentes, como se vê do art. 2o da Constituição Portuguesa e do Preâmbulo da Constituição brasileira, que proclama ser o país um Estado democrático, destinado a assegurar o exercício do diretos sociais e individuais” (BARROSO, 2001, p. 106).
Cruz (2000) ao defender a garantia da efetividade do texto constitucional, critica a teoria italiana, disseminada no Brasil por José Afonso da Silva, da eficácia limitada/contida de algumas normas constitucionais.
Para Cunha Júnior (2006), sustentar que o princípio da aplicabilidade imediata dos direitos fundamentais condiciona-se às possibilidades de positivação da norma que os define, é o mesmo que conferir à cláusula em exame apenas uma eficácia mínima, que é atributo de todas as normas constitucionais, inclusive as programáticas, independente de expressa previsão. Lembra o autor, oportunamente, que, a Assembléia Nacional Constituinte, quando apresentada a proposta de emenda que culminou com a redação do art. 5o, § 1º, da Constituição Federal, e durante a votação em plenário, sustentou o Deputado Ulysses Guimarães, presidente da Assembléia, ao explicar o sentido da referida emenda, que ela, verdadeiramente, “(…) objetiva expungir qualquer dúvida sobre o texto. Não é necessário lei complementar para que sua aplicabilidade seja garantida. É isso que querem os autores da proposta”. Tal manifestação foi ratificada pelo Deputado Gastone Righi, um dos idealizadores da proposição, que asseverou: “Aliás, nem se justificaria que os direitos e garantias desta Constituição tivessem aplicação apenas quando a lei complementar os regulasse” (Diário da Assembléia Nacional Constituinte, 1987 p. 7314).
Expõe ainda o referido jurista, de forma brilhante, utilizando-se da Hermenêutica Constitucional que, era nítida a intenção do Constituinte em evitar que os direitos fundamentais ficassem ao obséquio do legislador infraconstitucional. Neste particular, recorda a doutrina de Häberle, a respeito da interpretação aberta e pluralista da Constituição, com base na qual afirma que aqueles debates parlamentares acima sumariados, a respeito da emenda que projetou a redação final do art. 5o, § 1º, da Constituição de 1998, constituíram verdadeira interpretação constitucional. Considera também o método histórico de interpretação do art. 5o, § 1º, da Constituição Federal, devendo o jurista perquerir no sistema normativo, até a exaustão, todas as potencialidades dos comandos normativo-constitucionais, notadamente o ora sob investigação, firmando posição em favor da direta e imediata aplicação de todas as normas definidoras de direitos fundamentais, independentes de qualquer interpositio legislatoris, que considera até desnecessária. Relata que finalidade da norma-princípio do art. 5o, § 1º, da Constituição Federal é propiciar a imediata aplicação de todos os direitos fundamentais, sem necessidade de qualquer intermediação concretizadora, assegurando, em última instância, a plena justiciabilidade destes direitos, no sentido de sua imediata exigibilidade em juízo, quando omitida qualquer providência voltada a sua efetivação. Em reforço a estes argumentos, aponta, também com base em Häberle, como realidade social conforma substancialmente a interpretação da Constituição, a realidade consistente no desejo de todos pelo gozo imediato dos direitos fundamentais impõe que a interpretação do art. 5o, § 1º seja na aplicabilidade direta desses direitos. Diante desses apontamentos, percebemos a importância da hermenêutica na construção do sentido normativo. Sobre a hermenêutica, o prof. Àlvaro Cruz (2000) expõe que:
“é a ciência que estuda as diferentes maneira de interpretar um texto, ou seja, de avaliar e valorar signos verbais e escritos. Interpretar não é apenas compreender ou extrair significações. Ao contrário, interpretar significa, antes de mais nada, uma ato construtivo. Eis o grande desafio dos operadores do direito nacional, especialmente quando de debruçam sobre o texto constitucional” (Cruz, 2000, p.21).
Para o referido autor, o único instrumento legítimo do operador do direito na sustentação do Estado Democrático de Direito é a interpretação. O intérprete deve ter coragem suficiente para impor a vontade constituinte aos casos concretos e, simultaneamente, saber que essa mesma vontade não lhe confere livre-arbítrio.
Em comentários ao art. 18º/1º da Constituição Portuguesa, que serviu de referência para a adoção do art. 5º, § 1º da nossa Constituição, Canotilho e Vital Moreira (1993) defendem que os preceitos que versam sobre os direitos, liberdades e garantias são, para além de normas preceptivas, normas de eficácia imediata sendo diretamente aplicáveis, no sentido de que essas normas aplicam-se mesmo na ausência de lei. Afirmam que a aplicação direta não significa apenas que os direitos fundamentais se aplicam independentemente da intermediação legislativa, significando também que eles valem diretamente contra a lei, quando esta estabelece restrições em desconformidade com a Constituição. Ressalte-se que em Portugal, os direitos fundamentais são apenas liberdades e garantias.
Eduardo García de Enterría, renomado doutrinador espanhol, citado por Cunha Júnior (2006), menciona que o art. 53, nº I da Constituição Espanhola, adota cláusula de aplicabilidade imediata das normas definidoras dos direitos fundamentais tendo o mesmo significado do art. 1o, nº 3, da Lei Fundamental de Bonn em que se inspirou – acrescentou um plus às normas definidoras de direitos fundamentais, que consiste justamente no fato de que tais direitos têm o caráter de direito diretamente aplicável, sem necessidade do intermédio do legislador.
Cunha Júnior (2006), cita também o jurista alemão F. MÜLLER, para quem o princípio da aplicabilidade imediata dos direitos fundamentais revela que esses direitos estão especialmente reforçados nos seus âmbitos normativos, de modo que, em “virtude de sua aplicabilidade imediata eles carecem de critérios materiais de aferição que podem ser tomados plausíveis a partir do seu próprio teor normativo, sem viver à mercê das leis ordinárias” (F. MÜLLER apud CUNHA JÚNIOR, 2006, p. 252)
5.2 A Aplicabilidade Imediata dos Direitos Fundamentais e o Mínimo Existencial
Concordamos com o postulado de Cunha Júnior (2006), para quem a plena eficácia e aplicabilidade imediata dos direitos fundamentais deve ser desde logo reconhecida como decorrência direta da suprema dignidade da pessoa, até porque todos os direitos fundamentais, qualquer que seja a sua natureza, são direitos diretamente aplicáveis, vinculam todos os poderes, especialmente o Legislativo, e essa vinculação de submete ao controle judicial. O referido autor, citando Alexy, sustenta que os direitos subjetivos a prestações deverão ser sempre reconhecidos, quando urgentes e imprescindíveis à garantia material das liberdades fundamentais, e quando os outros princípios contrapostos sofrerem reduzida e proporcional restrição. Essas exigências estarão, nitidamente satisfeitas no âmbito dos direitos sociais que correspondem a um padrão mínimo essencial para uma existência digna, ou seja, os direitos sociais mínimos, de que são exemplos o direito à saúde e educação. Por esse raciocínio ele conclui do pensamento de Alexy que, os direitos subjetivos a prestações só podem ser reconhecidos se, ponderados os valores em conflito e dentro de uma restrição proporcional dos bens jurídicos em colisão, restar induvidosa a necessidade de se assegurar uma condição mínima existencial em decorrência da dignidade da pessoa humana. Cunha Júnior (2006) propõe o pleno reconhecimento dos direitos sociais como direitos originários a prestações (direitos que geram posições jurídicas subjetivas que podem ser diretamente deduzidas das normas constitucionais definidoras de direitos fundamentais sociais), ante sua condição indispensável à efetiva garantia do mínimo existencial, razão porque sustenta a efetividade e imediata aplicação dos direitos fundamentais sociais. Para ele, os obstáculos que usualmente se erguem contra essa imediata aplicabilidade é que não podem prosperar ante a inquestionável vontade do constituinte de ver os direitos fundamentais que consagra diretamente usufruído por seus titulares, independentemente da vontade do legislador ordinário. Esclarece, porém, que o “mínimo existencial” ou “padrão mínimo social, como objeto de imediata e irrecusável garantia dos direitos sociais, compreende um completo, eficiente e qualificado atendimento básico das necessidades vitais do indivíduo, como saúde, educação, alimentação, moradia, assistência, variando seu conteúdo, evidentemente, de país para país.
A Corte Constitucional Alemã extraiu o direito a um “mínimo de existência” do princípio da dignidade da pessoa humana e do direito à vida e à integridade física, mediante interpretação sistemática junto ao princípio do Estado Social, determinado assim, um aumento expressivo do valor da “ajuda social”, valor mínimo que o estado está obrigado a pagar a cidadãos carentes. Nessa linha, sua jurisprudência aceita a existência de um verdadeiro Direito Fundamental a um “mínimo vital” (KRELL, 2002, p. 59).
Neste sentido o autor português, Ferreira da Cunha afirma que:
”Não haverá direito à vida sem direito à vida digna. Donde, se é lícito daí deduzir direitos de defesa contra o arbítrio e mesmo direitos político (porque, sem eles, não haveria dignidade), a fortiori, ou, ao menos a pari se poderá reclamar a exigência de meios materiais de sobrevivência mínimos: uma certa propriedade (o que não é novo, é idéia do liberalismo velho, mas agora adaptada, universalizada) e alguns direitos sociais, assistenciais” (CUNHA, 1998, p. 60).
A teoria do mínimo existencial, que tem a função de atribuir ao indivíduo um direito subjetivo contra o Poder Público em casos de diminuição da prestação dos serviços sociais básicos que garantem a sua existência digna, até hoje foi pouco discutida na doutrina constitucional brasileira e ainda não foi adotada com as sua conseqüências na jurisprudência do país (ROCHA, 2004). Não obstante, numa das poucas obras sobre o tema, Sarlet (1998) demonstra que o princípio da dignidade da pessoa humana da Carta brasileira deve ser utilizado para garantir as condições existenciais mínimas da população para uma vida saudável, sugerindo como diretriz mínima os parâmetros estabelecidos pela Organização Mundial da Saúde.
O estabelecimento no Brasil de um sistema público de saúde que garante padrões mínimos de qualidade (prazos de atendimento, equipamentos de tecnologia moderna, remuneração adequada dos agentes, fornecimento de remédios a baixo custo) não devia pertencer ao mundo das utopias ou sonhos. Por isso, não procede a titulação de ideologismo para a atitude dos defensores de uma interpretação progressiva desse direito social expressamente consagrado no texto constitucional (KRELL, 2002).
Ivo Dantas (2000) argumenta que, de um lado, é válida a tentativa de fecundar, dentro da doutrina brasileira, o princípio fundamental da dignidade da pessoa humana, expresso no artigo 1o, III, da Carta de 1988, uma vez que a jurisprudência e a doutrina ainda não criaram linhas firmes de interpretação desses princípios. Todavia não se questiona o fato de o princípio da dignidade da pessoa humana ser a base de todos os direitos sociais, de forma que, independente da previsão expressa, desses direitos a prestações, deve-se lhes pleno reconhecimento, pelo menos os mais importantes à garantia do mínimo vital. Todavia, de qualquer forma, padrão mínimo social para sobrevivência incluirá sempre um atendimento básico e vestimentas, à educação de primeiro grau e a garantia de uma moradia; o conteúdo concreto desse mínimo, no entanto, variará de país para país (LEDUR, 1998). A idéia do mínimo social se manifesta também nos diversos projetos de leis municipais a uma “renda mínima necessária à inserção a sociedade” (FRISCHEISEN, 2000, p. 68)
Ricardo Torres reconhece que “os Direitos Fundamentais e o Mínimo Existencial, nos países em desenvolvimento, têm uma extensão maior do que nas nações ricas, pela necessidade de proteção estatal aos bens essenciais à sobrevivência das populações miseráveis” e que “as pretensões dos pobres à assistência social requerem a interpretação extensiva” (TORRES, 1999, p. 282). O referido autor quer ligar o conceito do “mínimo social” ao status positivus libertatis (Jellinek), entendendo-o como conditio sine qua non às condições iniciais da liberdade. Alega que sem o mínimo necessário à existência, cessaria a possibilidade da própria sobrevivência. Esse mínimo garantido nas condições materiais de existência estaria baseado no próprio conceito de dignidade humana. Afirma que a retórica do mínimo existencial não minimiza os direitos sociais, mas os fortalece na sua dimensão essencial como expressão de uma cidadania reivindicatória (TORRES, 1999).
De acordo com Silva (2006) os direitos sociais são, inegavelmente, direitos fundamentais, uma vez que se destinam a prover o homem de meios de subsistência, garantindo-lhe o mínimo existencial, e também por que demonstram o grau de democracia no Estado, sendo que, a Constituição de 1988 tomou partido e os incluiu, expressamente, entre os direitos fundamentais do Título II de seu texto.
Para Cunha Júnior (2002) os direitos fundamentais sociais são posições jurídicas que permitem ao indivíduo a exigir do Estado uma postura ativa através de prestações de natureza jurídica ou material, consideradas necessárias para implementar condições fáticas que permitam o efetivo exercício das liberdades fundamentais e que possibilitam realizar a igualização de situações sociais desiguais, proporcionando melhores condições de vida aos desprovidos de recursos materiais. Todos os direitos que exprimem uma posição jurídica dirigida a um comportamento ativo por parte do Estado e, conseqüentemente, não se enquadram na categoria dos direitos de defesa, são direitos fundamentais a prestações que têm por objeto um atuar permanente do Estado, consistente numa prestação positiva de natureza material ou fática em benefício do indivíduo, para garantir-lhe o mínimo existencial, proporcionando-lhe, em conseqüência, os recursos materiais indispensáveis para uma existência digna, como providência reflexa típica do modelo de Estado de Bem-Estar Social, responsável pelo desenvolvimento dos postulados de justiça social. Destinam-se a amparar o indivíduo nas suas necessidades materiais mais urgentes, com o objetivo resguardar-lhe um mínimo de segurança social, relativamente à saúde, à educação, à assistência social, ao trabalho, ao salário mínimo, à previdência, etc., como exigência da própria dignidade da pessoa humana. São direitos que têm por propósito garantir um mínimo necessário a uma existência digna.
Considerando-se o caso brasileiro mais de perto, torna-se evidente a inaplicabilidade da reserva do possível. Paradoxalmente, o Brasil é um país que se encontra entre os países com a maior economia do mundo, muito embora, dados do IBGE mostrem que, 1998, aproximados 14% (21 milhões) da população brasileira são famílias com renda inferior a linha de indigência e 33% (50 milhões) à linha da pobreza. A maioria desse grupo, que representa hoje mais de 70 milhões de pessoas, não dispõe de um atendimento de mínima qualidade nos serviços públicos de saúde, educação, assistência social e vive, enfim, em condições indignas e subumanas, sem alimentação, sem moradia, sem higiene e, o que é pior, sem a mínima perspectiva de melhoria (KRELL, 2002). Transladar para o direito brasileiro essa a limitação da reserva do possível criada pelo direito alemão, cuja realidade socioeconômica e política difere totalmente da realidade brasileira é negar esperança àquelas pessoas que depositaram todas as suas expectativas e entregaram todos os seus sonhos à fiel guarda do Estado Social do Bem-Estar. Obstáculos como esses, transplantados de ordens jurídicas de paradigmas diversos, só vêm reforçar a contradição entre a pretensão normativa dos direitos sociais e o fracasso do Estado brasileiro como provedor dos serviços públicos essenciais à efetivação desses direitos, garantidores de padrões mínimos de existência para a maioria da população. Assim, as discussões que se travam nos chamados países centrais sobre os limites do Estado Social e redução de suas prestações não podem ser transportadas para a realidade brasileira, onde o Estado Providência ainda não foi efetivamente implantado. (KRELL, 2002)
Impende salientar que os integrantes do sistema jurídico alemão não desenvolveram seus posicionamentos para com os direitos sociais em Estado de permanente crise social e milhões de cidadãos socialmente excluídos. Na Alemanha – como nos outros países centrais – não há um grande contingente de pessoas que não acham uma vaga nos hospitais mal equipados da rede pública; não há necessidade de organizar a produção e distribuição da alimentação básica a milhões de indivíduos para evitar sua subnutrição ou morte; não há alto número de crianças e jovens fora da escola; não há pessoas que não conseguem sobreviver fisicamente com o montante pecuniário de “assistência social” que recebem, etc. Certamente, quase todos os doutrinadores do Direito Constitucional alemão, se fossem inseridos na mesma situação sócio-econômica de exclusão social com a falta das condições mínimas de uma existência digna para boa parte do povo, passariam a exigir com veemência a interferência do Poder Judiciário, visto que este é obrigado a agir onde os outros poderes não cumprem as exigências básicas da constituição (direito à vida, dignidade humana, Estado Social) (KRELL, 2002).
7 A INTERVENÇÃO DO JUDICIÁRIO NO COMBATE ÀS OMISSÕES DO PODER PÚBLICO GERADAS PELA ABSURDA INVOCAÇÃO DA RESERVA DO POSSÍVEL
A “(in)aplicabilidade” da Reserva do Possível pelos órgãos do Judiciário no Brasil é ainda muito controvertida. A título exemplificativo, citaremos decisões mencionadas por Gustavo Amaral (2001) No livro Direito, Escassez e Escolha: em busca e critérios jurídicos para lidar com a escassez de recursos e as decisões trágicas.
Na primeira, o Tribunal de Justiça de Santa Catarina, julga o Agravo de Instrumento nº 97.000511-3. O Rel. Des. Sérgio Paladino entendeu que o direito à saúde, garantido na Constituição, seria suficiente para ordenar ao Estado, liminarmente e sem mesmo sua oitiva, o custeio de tratamento nos Estados Unidos, beneficiando um menor, vítima de distrofia muscular progressiva de Duchenne, ao custo de US$ 163.000,00, muito embora não houvesse comprovação da eficácia do tratamento para a doença, cuja origem é genética. Nesse julgamento foi asseverado que: Ao julgador não é lícito, com efeito, negar tutela a esses direitos naturais de primeiríssima grandeza sob o argumento de proteger o Erário, sendo afastados os argumentos de violação aos artigos 100 e 167, I, II e VI, da Constituição Federal. O Supremo Tribunal Federal, em decisão de seu presidente Min. Celso de Mello negou pedido de suspensão dos efeitos da liminar por grave lesão à ordem e à economia pública, solicitada pelo Estado de Santa Catarina.
Na outra decisão, Gustavo Amaral narra decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo, em exame de idêntico pedido em favor de menores portadores da mesma doença, lançada sob os seguintes argumentos:
“Não se há de permitir que um poder se imiscua em outro, invadindo esfera de sua atuação específica sob o pretexto da inafastabilidade do controle jurisdicional e o argumento do prevalecimento do bem maior da vida. O respectivo exercício não mostra amplitude bastante para sujeitar ao Judiciário exame das programações, planejamentos e atividades próprias do Executivo, substituindo-o na política de escolha de prioridades na área de saúde, atribuindo-lhe encargos sem o conhecimento da existência de recursos para tanto suficientes. Em suma: juridicamente impossível impor-se sob pena de lesão ao princípio constitucional da independência e harmonia dos poderes obrigação de fazer, subordinada a critérios tipicamente administrativos, de oportunidade e conveniência, tal como já se decidiu (…)” (AMARAL, 2001, p. 98).
Como podemos perceber, tais decisões contêm concepções jurídicas totalmente distintas. Obviamente, nos posicionamos a favor da primeira, provida pelo Tribunal de Justiça de Santa Catarina que, considerou a inaplicabilidade da reserva do possível diante daquele caso concreto. Sustentamos a tese de que, em caso de descumprimento, por omissão, de algum direito fundamental ou de lacuna legislativa impeditiva de sua fruição, o Judiciário tem o poder-dever de controlar tais omissões do poder público, desde logo e em processo de qualquer natureza, conferindo aos indivíduos imediato desfrute aos direitos fundamentais, independente de qualquer providência de natureza legislativa ou administrativa (CUNHA JÚNIOR, 2006).
Neste sentido manifesta-se Eros Grau ao expor que:
“o juiz não é, tão-somente, (…), a boca que pronuncia as palavras da lei. Está, ele também, tal qual a autoridade administrativa – e, bem assim, o membro do Poder Legislativo -, vinculado pelo exercício de uma função, isto é, de um poder-dever. Neste exercício, que é desenvolvido em clima de interdependência e não de independência de Poderes, a ele incumbe, sempre que isso se ponha como indispensável à efetividade do direito, integrar o ordenamento jurídico, até o ponto, se necessário de inová-lo primariamente. O processo de aplicação do direito mediante a tomada de decisões judiciais, todo ele – aliás – é um processo de perene recriação e mesmo de renovação (atualização) do direito. Por isso que, se tanto se tornar imprescindível para que um direito com aplicação imediata constitucionalmente assegurada possa ser exeqüível, deverá o Poder Judiciário, caso por caso, nas decisões que tomar, não apenas reproduzir, mas produzir o direito – evidentemente retido pelos princípios jurídicos”. (GRAU, 1993, p.78-79)
Para Piovesan cabem aos órgãos judiciais:
“a) interpretar os preceitos constitucionais consagradores de direitos fundamentais, na sua aplicação em casos concretos, de acordo com o princípio da efetividade ótima e b) densificar os preceitos constitucionais consagradores de direitos fundamentais de forma a possibilitar a sua aplicação imediata, nos casos de ausência de leis concretizadoras” (PIOVESAN, 2003, p. 90-91).
Barroso, sobre esse tema, sustenta que:
“parece bem a sua inclusão no Texto, diante de uma prática que reiteradamente nega tal evidência . Por certo, a competência para aplicá-las, se descumpridas por seus destinatários, há de ser do Poder Judiciário. E mais: a ausência de lei integradora, quando não inviabilize integralmente a aplicação do preceito constitucional, não é empecilho à sua concretização pelo juiz, mesmo à luz do dispositivo vigente, consoante se extrai do art. 4o da Lei de Introdução ao Código Civil (…)” (BARROSO, 2001, p. 142-143).
Cunha Júnior (2006) deixa claro que de acordo com o sistema jurídico brasileiro, qualquer órgão do Poder Judiciário está autorizado a remover lacunas indesejadas, colmatando-as e suprindo-as com base na analogia, nos costumes, nos princípios gerais de direito, e por meio de uma interpretação criativa e concretizante, não existindo, nesse caso, qualquer afronta ao princípio da separação dos poderes. Prossegue o autor relatando que não mais se questiona sobre a capacidade do Poder Judiciário, por meio de uma interpretação construtiva, de “criar” o Direito, de modo que os juízes e os tribunais são considerados autênticos law-makers, isto, pelo menos no âmbito de uma dogmática constitucional transformadora, que pugna pela renovação da clássica teoria da separação dos Poderes. Menciona que devido à vinculação de todos os órgãos públicos (eficácia vertical) e dos particulares (eficácia horizontal) aos direitos fundamentais; ao princípio de aplicação imediata das normas definidoras desses direitos e; devido também à inafastabilidade do controle judicial, qualquer órgão do Judiciário encontra-se, diante do caso concreto, investido do dever-poder de aplicar imediatamente as normas de direitos fundamentais, garantindo o pleno gozo das posições subjetivas neles consagradas, independentemente da natureza e a função desses direitos, sem sujeição à qualquer concretização legislativa. Assevera que a falta de concretização não pode obstar a aplicação imediata das normas de direitos fundamentais pelos juízes e tribunais já que, o Judiciário, amparado no que dispõe o art. 5o, §1o, combinado com esse mesmo art. 5o, XXXV, da Constituição Federal, está investido no dever de garantir a plena eficácia dos direitos fundamentais e também está autorizado a remover eventual lacuna decorrente da falta de concretização, podendo se valer, para tanto, dos meios fornecidos pelo próprio sistema jurídico positivado, que contempla normas do art. 4o da LICC, segundo a qual “Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com analogia, os costumes e os princípios gerais do direito”.
Para Mello (2004) o Poder Judiciário não deve, em princípio, intervir em esfera reservada a outro Poder para substituí-lo em juízos de conveniência e oportunidade, querendo controlar as opções legislativas de organização e prestação, a não ser, excepcionalmente, quando haja uma violação evidente e arbitrária, pelo legislador, da incumbência constitucional.
O prof. Álvaro Cruz (2000) expõe que encontramo-nos num quadro de ausência de políticas públicas de cunho social e de total subserviência do Legislativo perante o “rei” e isso torna o judiciário o último bastião dos ideais democráticos. Assim, para ele, a via judiciária se tornou o único caminho possível para a efetivação dos direitos fundamentais insculpidos na Constituição:
“O dogma, segundo o qual todas as nossas mazelas podem ser sanadas por decreto ou por modificação legislativa, não mais prevalece. O eixo central das expectativas sociais deslocou-se no Estado Democrático de Direito para o Poder Judiciário. Deve-se reconhecer a importância dessa capacidade de extração dos textos normativos do sentido de Justiça a cada caso concreto” (Cruz, 2000, p. 19).
Cruz (2000) relata ainda que o Judiciário não pode pretender substituir o Executivo na escolha das opções políticas de seu governo nem tampouco estabelecer o conjunto normativo que regerá a sociedade. De outro lado, deverá ser o Judiciário intransigente no acertamento das condutas estatais face aos ditames do Poder Constituinte:
“Trabalhar “sobre o fio dessa navalha” exige coragem, discernimento e qualificação técnica. O tempero do prato deverá ser a sensibilidade do magistrado na aplicação das leis ao caso concreto” (Cruz, 2000, p. 22).
Os refratários da aplicabilidade imediata dos direitos sociais alegam a necessidade da interpositio legislatoris para a conformação do conteúdo e do alcance das prestações que constituem objeto desses direitos fundamentais. Böckenförde, citado por Cunha Júnior (2006), é um dos que sustenta que as prestações sociais reclamadas pelos direitos fundamentais são tão genéricas que esses direitos não podem fundamentar diretamente pretensões exigíveis judicialmente, não se apresentando como direito imediatamente desfrutável pelo cidadão, quando ainda estão no nível da Constituição, antes, pois, de sua conformação legislativa. São, tão somente, direitos sociais derivados à prestação. O próprio Cunha Júnior rechaça essa tese, para ele a Constituição não reconhece direitos fundamentais sem conteúdo sendo que, sempre haverá um mínimo essencial a possibilitar a perfeita e imediata fruição desses direitos conferidos. Conclui expondo que, o Judiciário deve e pode complementar a norma, compondo construtivamente o conteúdo material dos direitos fundamentais por ocasião de sua aplicação no caso concreto, sem que se cogite de qualquer ofensa ao princípio da separação dos poderes, uma vez que os direitos são dotados de força normativa autônoma contra ou na ausência do legislador, e é tarefa constitucional do Judiciário fazê-los aplicar. O titular dos direitos fundamentais encontra-se imediatamente investido no poder jurídico de exigir prontamente, pela via judicial, a prestação correspondente ao seu objeto, sempre que o obrigado deixar de satisfazê-la, até porque direito é direito e não ângulo subjetivo, ele designa uma específica posição jurídica.
De acordo com Barroso, “não pode o judiciário negar-lhe tutela, quando requerida, sob o fundamento de ser um direito não exigível. Juridicamente, isso não existe” e complementa expondo que, “assim, é puramente ideológica, e não cientifica, a oposição que ainda hoje se faz à efetivação, por via judicial, dos direitos sociais” (Barroso, 2001, p. 113-114).
Cunha Júnior (2006) não desconsidera que o Direito não tem capacidade de gerar recursos materiais para sua efetivação e também não nega que apenas se pode buscar algo onde este algo existe.
“Não é este o caso, pois aquele “algo” existe e sempre existirá, só que não se encontra – este sim, é o caso – devidamente distribuído!Cuida-se, aqui, de se permitir ao Poder Judiciário, na atividade de controle das omissões do poder público, determinar uma redistribuição dos recursos públicos existentes, retirando-os de outras áreas (fomento econômico a empresas concessionárias ou permissionárias mal administradas; mordomias no tratamento de certas autoridades políticas, como jatinhos, palácios residenciais, festas pomposas, seguranças desnecessários, carros de luxo blindados, comitivas desnecessárias em viagens internacionais, pagamento de diárias excessivas, manutenção de mordomia a Ex-Presidentes da República; gastos em publicidade etc) para destina-los ao atendimento das necessidades vitais do homem, dotando-o das condições mínimas de existência” (Cunha Júnior, 2006, p. 287).
Não obstante coadunarmos com a opinião supracitada de que a falta de recursos para a implementação dos direitos fundamentais está relacionada à má distribuição e destinação do erário, discordamos do autor quando diz que sempre existirá recurso. Poderíamos sim, solucionar a grande maioria dos casos redistribuindo recursos existentes para áreas destinadas a atender necessidades vitais do homem. Todavia há casos em que a falta de recursos é patente e, nem mesmo uma transferência financeira os solucionaria. Mesmo nesses casos não há que se falar em Reserva do Possível, há simplesmente ausência de recursos e, nem por isso o Estado deixa de ser devedor das prestações. O que queremos demonstrar é que, o discurso da Reserva do Possível é perigoso! Não podemos permitir que tal instituto se instale no Brasil, seja em forma de doutrina, princípio, lei, jurisprudências etc, porque seria mais um motivo para o Estado se eximir de suas obrigações e tornar pior a nossa situação. Ademais, conforme já fora exposto, tal instituto é totalmente incompatível com o Estado Democrático de Direito Brasileiro.
Gustavo Amaral citado por Bigolin (2004) não descarta a escassez de recursos ou de meios para satisfazer direitos, mesmo fundamentais. Surgindo esta, o Direito precisa estar aparelhado para dar respostas. Certamente, na quase totalidade dos países, não se conseguiu colocar a todos dentro de um padrão aceitável de vida, o que comprova não ser a escassez, quanto ao mínimo existencial, uma excepcionalidade, uma hipótese limite e irreal que não deva ser considerada seriamente. Por isso, para Amaral, é necessário que os Juízes e Tribunais, quando forem decidir sobre a eficácia e efetividade das pretensões em casos específicos, fundamentem suas decisões admitindo o modo como os custos afetam a intensidade e consistência dos direitos, examinando abertamente a competição por recursos escassos que não são capazes de satisfazer a todas as necessidades sociais, implicando em escolhas disjuntivas de natureza financeira. Normalmente, essa questão é tangenciada, pois apenas o caso concreto é analisado. Se a escassez é um condicionamento importante, ela não pode ser superdimensionada, tornando-se o único balizamento na concretização dos direitos sociais, sendo necessário acrescentar ingredientes éticos e políticos para que o instrumental jurídico possa, não apenas ser legitimado, mas permitir que a evolução das condições econômicas e sociais possa beneficiar o maior número de pessoas. O judiciário está aparelhado para decidir casos concretos, lides específicas que lhe são postas, tratando da microjustiça, da justiça do caso concreto e esta deve ser sempre aquela que possa ser assegurada a todos que estão ou possam vir a estar em situação similar, sob pena de quebrar-se a isonomia. Conclui que ao Poder Judiciário cabe apenas o controle do discurso e das condutas adotadas por aqueles que ocupam a função executiva ou legislativa, não cabendo ao magistrado fazer a mediação fato-norma, seja pela subsunção ou pela concreção.
Consoante Sarlet (1989), o entendimento de que a Reserva do Possível obsta a competência do Poder Judiciário para decidir sobre a distribuição dos recursos públicos orçamentários, não se aplica ao direito brasileiro, ante a vigente Constituição de 1988, para ele, de feito, cabem ao Legislativo e Executivo, a princípio, a deliberação da destinação dos recursos orçamentários, todavia expõe que essa competência não é absoluta, pois se encontra adstrita às normas constitucionais, notadamente àquelas definidoras de direitos fundamentais sociais que exigem prioridade na distribuição desses recursos, considerados indispensáveis para a realização das prestações materiais que constituem o objeto desses direitos. A liberdade de conformação do legislador nos assuntos orçamentários, “encontra seu limite no momento em que o padrão mínimo para assegurar as condições materiais a uma existência digna não for respeitado, isto é, quando o legislador se mantiver aquém desta fronteira” (SARLET, 1998, p. 299).
“A inércia ou o comportamento abusivo do Estado com a intenção de neutralizar ou minimizar a eficácia dos direitos sociais e econômicos de forma a abalar as condições mínimas de existência digna, autoriza a intervenção do Judiciário para que seja viabilizado a todos o acesso aos bens cuja fruição lhes haja sido injustamente recusada pelo Estado” (BRASÍLIA, STF. APDF nº 45-MC/DF, Rel. Min. Celso de Mello, 2004).
Krell (2002) relata que dita liberdade de conformação do legislador encontra nítidos limites e está vinculada à observância do padrão mínimo para assegurar as condições materiais indispensáveis a uma existência digna. Portanto, não atendido esse padrão mínimo, seja pela omissão total ou parcial do legislador, o Poder Judiciário está legitimado a interferir num controle autêntico dessa omissão inconstitucional afim de garantir o mínimo existencial, uma vez que ele “é obrigado a agir onde os outros Poderes não cumprem as exigências básicas da constituição (direito à vida, dignidade humana, Estado Social)”, não satisfazendo os direitos fundamentais sociais (KRELL, 2002, p. 109). Dessa forma, as decisões sobre prioridades na aplicação e distribuição de recursos públicos deixam de ser questões de discricionariedade política, para serem uma questão de observância de direitos fundamentais, de modo que a competência para tomá-las passaria do Legislativo para o Judiciário (HAGE, 1999, p. 56-57).
8 CONCLUSÃO
O direito comparado tem trazido grandes contribuições ao brasileiro, todavia, antes de aplicarmos quaisquer doutrinas e jurisprudências estrangeiras em nosso país, devemos verificar se tais aplicam-se aqui, utilizando-nos de um exame desta pelos princípios e regras que norteiam o Estado Democrático de Direito Brasileiro. Foi justamente isso o que fizemos na presente pesquisa, ao refutar a aplicabilidade da reserva do possível no Brasil, pelos princípios da aplicabilidade imediata das normas definidoras de direitos fundamentais e do mínimo existencial, caso contrário, verificada qualquer forma de utilização deste principio será inconstitucional. E, infelizmente, isto é algo que se tem constatado inúmeras vezes em nosso país. Autoridades públicas omitem-se nas mais básicas e necessárias prestações de serviço à coletividade alegando falta de recurso. Daí a necessidade de intervenção do judiciário para suprir tais omissões. Ressalte-se mais uma vez o perigo do discurso da Reserva do Possível que, caso se instale definitivamente em nosso país, será mais um motivo para o Estado se eximir de suas obrigações.
O fato é que, conforme exposto neste trabalho, nem mesmo o judiciário tem um posicionamento uniforme sobre o tema, o que leva a decisões díspares, muitas delas acertadas, é verdade.
Muitos operadores jurídicos parecem não estar devidamente preparados para aplicar os Direitos Fundamentais duma maneira correta e ainda não se encontra “à altura” do texto constitucional complexo. O sistema brasileiro do controle difuso da constitucionalidade de normas e atos públicos leva à necessidade premente de especialização e aquisição de conhecimentos aprofundados nas áreas da Filosofia, da Sociologia e das Ciências Políticas por parte dos juízes de todos os níveis. (Krell, 2002,p. 107).
Nunca é demais repetir os dizeres de nossa grande mestra, Cármen Lúcia, ‘é tempo de responsabilidade. Mas, principalmente, é tempo de responsabilizar-se cada um por todos, para que o direito não positive ilusões, antes, concretize humanidades” (Rocha, 2004, p. 10).
Nota:
O presente artigo foi produzido sob a orientação do prof. Dr. Fernando José Armando Ribeiro.
Informações Sobre o Autor
Diogo Lima Trugilho
Advogado. Especialista em Processo Civil