Decerto o tema em enfoque será objeto de muitas controvérsias por parte de alguns operadores do direito com atuação na Justiça Militar da União. Na verdade, esse é o nosso propósito, posto que, divergências no campo das idéias, são salutares para gerarem novas teses, mormente quando versarem acerca de assunto cuja fertilidade propicia a eclosão de inúmeras reflexões.
A fim de delimitar a abrangência do assunto, focaremos nosso estudo no procedimento adotado para os desertores sem estabilidade.
Quanto ao cerne da questão, consabidamente vozes ecoarão no sentido de sustentar a constitucionalidade do art. 452 do CPPM, com base, principalmente, no art. 5° LXI da Constituição Federal.
Vejamos primeiramente a Lei processual citada e, depois, a Constituição Federal.
“Art. 452, CPPM – O termo de deserção tem o caráter de instrução provisória e destina-se a fornecer os elementos necessários à propositura da ação penal, sujeitando, desde logo, o desertor à prisão.”(o termo é lavrado após o transcurso do prazo para a consumação do delito de deserção – mais de oito dias de ausência desautorizada do militar de sua Organização Militar).
Trata-se de nítida prisão ex vi legis, ou seja, modalidade de custódia decorrente da legislação processual militar sem que haja prévia interferência judicial na sua decretação (mandado de prisão expedido pelo juiz).
Pontue-se que o mesmo critério é considerado em relação à prisão em flagrante. Ressalte-se, entretanto, que, nesta hipótese, há um controle imediato e rígido acerca da legalidade da segregação provisória pelo juiz, o qual procede detida análise das exigências constitucionais e legais (lei infraconstitucional) para autuação do flagrante. Assim, observados os preceitos constitucionais e legais, a prisão é homologada pelo Judiciário, do contrário, é imediatamente relaxada. (art. 5°, LXV).
Todavia, o mesmo não acontece com o Termo de Deserção, o qual, em regra, sofre restrita análise por parte do Juiz e Ministério Público. Em geral circunscreve-se a aspecto referente à correta contagem dos dias para o perfazimento do delito em tela.
Note que a lei (CPPM) não confere ao preso – desertor oportunidade de ser ouvido, bem como assistido por sua família quando de sua prisão. O termo de deserção basta por si só para alicerçar o encarceramento. Ademais, relembre-se que o desertor só é preso quando apresenta-se voluntariamente ou é capturado, situação que, não raro, acontece depois de considerável tempo passado da consumação do crime. Desse modo, por exemplo, o termo de deserção lavrado há dez anos (na oportunidade da consumação do delito) constituí-se em documento hábil e legítimo, pela lei processual, para abalizar a prisão de um desertor que venha a ser capturado ou tenha se apresentado voluntariamente.
Já o artigo 5°, LXI, da Constituição Federal assim dispõe:
“ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei” (grifei)
É inegável que o delito de deserção integra o rol dos chamados crimes propriamente militares (o sujeito ativo só pode ser militar da ativa). Neste aspecto, há perfeita adequação entre o aludido artigo 452 CPPM e o susomencionado artigo da Carta Magna.
No entanto, o ponto nodal da questão não é esse. A interpretação do artigo que autoriza a prisão do desertor (art. 452 CPPM) deve ser sistemática, ou seja, compatível e harmônica com outras normas constitucionais pertinentes. A saber:
“Art. 5° LXII – a prisão de qualquer pessoa e o local onde se encontre serão comunicados imediatamente ao juiz competente e à família do preso ou à pessoa por ele indicada.” (grifei).
“Art. 5° LXIII – o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado.” (grifei)
É evidentemente que o legislador constituinte (art. 5° LXIII) ao estabelecer que o preso tem o direito de permanecer calado, impôs (norma cogente), como ato precedente, o direito subjetivo do preso ser ouvido no ato da prisão (a faculdade de permanecer silente é opção do custodiado).
Eis o problema. As aludidas normas positivadas pelo texto constitucional não são observadas quando da prisão do desertor (ofensa nítida ao princípio da ampla defesa).
Em outra vereda, averbe-se que o legislador da lei infraconstitucional (art. 243, CPPM) facultou ao cidadão e obrigou aos militares a prenderem quem for desertor ou insubmisso, ou seja, encontrado em flagrante delito.
Veja o artigo:
Art. 243, CPPM. “Qualquer pessoa poderá e os militares deverão prender quem for insubmisso ou desertor, ou seja encontrado em flagrante delito.”
Resulta claro que foram colocados no mesmo patamar de relevância e igualdade a prisão do desertor e aquele que se encontra em flagrante delito pelo cometimento de outro crime militar (relembre-se que ambas modalidades de prisão, como já aventado, não decorrem de mandado de prisão emanado pelo Judiciário).
Ora, se ambas as medidas cautelares supra (prisão de desertor e prisão em flagrante) decorrem de lei e sofrem controle de legalidade posteriormente pelo judiciário, qual seria a razão para tantas diferenças existentes entre os respectivos procedimentos legais (Termo de Deserção e APF). Nesse sentido faz-se mister pontuar tais diferenças, estabelecendo-se um cotejo entre as referidas modalidades de custódia provisória, tomando-se como linha de foco a Constituição Federal e o próprio CPPM.
– Na autuação do flagrante delito torna-se imperioso que o flagranteado seja ouvido, caso contrário sua prisão não se sustenta por manifesta ilegalidade. Some-se a isso que, mesmo em sendo ouvido o conduzido, a prisão poderá ser relaxada caso não seja respeitada a ordem das oitivas: primeiro o condutor, segundo testemunha ou ofendido e, por último, o preso. (art.245, CPPM).
– Na deserção o preso (quando capturado ou mesmo apresentando-se voluntariamente) sequer tem o direito de ser ouvido. É encarcerado por um período de, no mínimo, sessenta dias. Após esse prazo, lhe é concedida liberdade provisória (“Art.453 – O desertor que não for julgado dentro de sessenta dias, a contar do dia de sua apresentação voluntária ou captura, será posto em liberdade, salvo se tiver dado causa ao retardamento do processo.”)
No caso de apresentar-se voluntariamente, alguns poucos juízes-auditores, sabiamente, vêm reconhecendo a ausência de um dos requisitos para a preventiva (segurança da aplicação da lei penal) e, de consegüinte, concedem liberdade provisória. Isso na contramão da orientação jurisprudencial do STM (Súmula n° 10: “Não se concede liberdade provisória a preso por deserção antes de decorrido o prazo previsto no art. 453 do CPPM”. (DJ1 Nº 249, de 24.12.96)”)
Digno de nota é o fato de que pela sistemática do Código (CPPM) o desertor só é ouvido durante seu interrogatório em juízo, o que, em regra, acontece não menos de dois meses após seu recolhimento à prisão.
Convém aduzir que, a nosso aviso, aqui reside a manifesta inconstitucionalidade da prisão do desertor, notadamente pelo descumprimento das já registradas normas constitucionais (art. 5°, LXII e LXIII.), as quais preconizam como direito subjetivo do preso o silêncio e assistência da familiar.
E se o fato não se constituir em crime? E se a ausência for justificada?
Com efeito, trago à colação, em apertada síntese, dois seguintes casos fictícios suscetíveis de ocorrerem. Quanto ao segundo (letra b), teve um episódio real similar no Rio de Janeiro.
a) Um militar, ao final de seu expediente, saiu fardado de sua OM e foi seqüestrado pelo tráfico, nas proximidades de sua residência. Ficou cerca de vinte dias em poder dos meliantes. Ao ser liberado, apresentou-se ao seu quartel e ficou preso por força do Termo de Deserção. Só pode explicar o ocorrido depois de 60 (sessenta) dias de encarceramento, por ocasião da audiência de seu interrogatório.
b) Um militar ao encaminhar-se para o seu quartel foi atropelado. Inconsciente foi socorrido por transeuntes, ficando dez dias internado em um hospital público. Quando obteve alta e preparava-se para retornar a sua OM, foi preso nas proximidades de sua casa, onde se encontrava uma escolta militar que já estava a sua espreita. Pelos mesmos motivos do caso “A” só pode ser ouvido em seu interrogatório.
Anote-se que no capítulo referente à prisão em flagrante há expressa previsão de hipótese de relaxamento de prisão pela Polícia Judiciária Militar. Vejamos.
– “Relaxamento de prisão”
“art. 247, §2° – Se, ao contrário da hipótese prevista no art. 246, a autoridade militar ou judiciária verificar a manifesta inexistência de infração penal militar ou a não participação da pessoa conduzida, relaxará a prisão. Em se tratando de infração penal comum, remeterá o preso à autoridade civil competente.”
Assim, caso existisse norma similar no procedimento relativo a prisão do desertor (ato de prisão com sua oitiva) certamente os casos acima retratados (letras a e b) não teriam culminado com a prisão dos seus protagonistas. Fique bem claro, o relaxamento da prisão só deverá ocorrer depois que todas as versões forem devidamente apuradas e comprovadas pela Polícia Judiciária Militar.
Releva acrescentar que nem mesmo no cometimento de transgressão militar o infrator deixa de ser ouvido antes de ser punido. A omissão de tal providência tem redundado em sequenciais anulações de punições aplicadas pela Administração Militar por parte do Judiciário (em razão de ofensa ao princípio da ampla defesa).
Sobre outro prisma, vale gizar que o legislador processual estabeleceu uma modalidade de prisão provisória sui generis no delito de deserção. Isso pelo fato de demarcá-la com prazo certo de 60 (sessenta) dias (citado artigo 453, CPPM). Este dado já fora, com argúcia, observado pelos meus preclaros amigos Dr. Cláudio Amin (Juiz-Auditor da 3ª Auditoria da 1ª CJM) e Prof. Nelson Coldibelli (Emérito Professor de Processo Penal Militar) em seu livro em conjunto, Elementos de Direito Processual Penal Militar, pag. 175 – Lumen Iuris.
De fato, o que justificaria uma prisão processual com data certa para libertação? Como sabemos, modernamente, o paradigma para a manutenção das diversas modalidades de prisões cautelares é a prisão preventiva. Desse modo, presentes os requisitos para preventiva a custódia deve permanecer (flagrante, prisão decorrente de sentença condenatória recorrível, etc.).
Aqui cabe a seguinte interrogação: por que o desertor capturado obtém liberdade provisória após sessenta dias de prisão? Por acaso esse marco temporal é indicativo de que o desertor não se furtará a aplicação da lei penal? A experiência do dia-a-dia nos tem demonstrado o contrário (geralmente após obterem liberdade provisória os desertores, quando são capturados, voltam a reincidir)
Ressalte-se que, dificilmente, pelo rito estabelecido para o procedimento especial do delito de deserção, notadamente em razão da omissão do legislador processual em fixar alguns prazos, tais como: realização de inspeção de saúde do desertor e recebimento da denúncia pelo juiz (pela sistemática do CPPM pode ocorrer em até 15 dias), o processo encerra-se dentro de 60 dias, o que implica, necessariamente, na concessão de liberdade provisória ao desertor.
Nesse contexto, entendo que para legitimar a prisão do desertor algumas providências legislativas urgem como necessárias, dentre as quais sugiro:
1) Oitiva do desertor após a sua captura ou apresentação voluntária (o que pode ser feito paralelamente com a inspeção de saúde).
2) Manutenção da prisão do desertor somente quando presentes os requisitos para a prisão preventiva (esta, em tese, inexiste quando o desertor apresenta-se voluntariamente – respeito ao princípio da dignidade humana).
3) Recebimento da denúncia pelo Juiz em até cinco dias (mesmo prazo para o seu oferecimento pelo MPM).
4) Audiência de qualificação do réu dentro de até sete dias em respeito ao princípio da celeridade do rito especial (obs: A lei processual não estabeleceu prazo para tal ato).
Em conclusão, o direito moderno só contempla, excepcionalmente, a prisão provisória, sem a oitiva prévia do preso, quando a prisão decorre de mandado judicial (temporária ou preventiva). Nessas hipóteses, contudo, o juiz está obrigado a fundamentar seu despacho, bem como observar os requisitos legais imprescindíveis para toda e qualquer prisão cautelar, quais sejam: fumus comissi delicti e periculum libertatis.
Informações Sobre o Autor
Luciano Moreira Gorrilhas
Promotor de Justiça Militar
Professor Universitário – UGF (Universidade Gama Filho)
Pós-graduado em ciência criminais pela Universidade Federal Juiz de Fora