Resumo: A reviravolta lingüística é protagonista de um movimento jurídico-doutrinário difusamente denominado neoconstitucinalismo ou neopositivismo que, a despeito da vaga identidade científica da expressão, propugna uma renovação no modo de ser da interpretação jurídica. O avanço adequadamente articulado entre a ontolinguística da teoria hermenêutica e o pragmatismo estrutural da lingüística possibilita uma aplicação jurídica pela qual a leitura imprime densidade normativa a princípios e valores jurídicos, sem resvalar para a unilateralidade própria da axiologia, do realismo ou mesmo do decisionismo normativista. O artigo que segue procura apresentar elementos críticos ao processo de interpretação jurídica considerando o avanço dessas teorias.
Palavras-chave: Hermenêutica Jurídica. Neoconstitucionalismo. Reviravolta lingüística. Justiça.
Sumário: Introdução: a virada lingüística. 1 – A Hermenêutica Jurídica e as teorias unilaterais do direito. 2 – A Hermenêutica Jurídica sob o signo da reviravolta lingüística. 3 – Conclusão
Introdução: a virada linguística
Apesar da pluralidade de estilos e métodos filosóficos, as principais tendências do pensamento contemporâneo – a filosofia analítica, a hermenêutica, a teoria crítica, o pós-estruturalismo, a epistemologia – convergem em duas posturas ou “modos de fazer filosofia”: uma de tradição européia ou continental e outra analítica de matriz anglo-americana.
A perspectiva continental busca estabelecer um diálogo hermenêutico com a tradição, numa reformulação constante que se determina reciprocamente com o passado. Sua fórmula dialética atua, tradicionalmente, de maneira construtiva sob pretensões universais. Essa ótica de tradição humanística releva a constitutividade do sujeito sobre os objetos da experiência.[1]
A perspectiva analítica, ao invés da universalidade, busca a singularidade; os aspectos singulares da realidade mediante o uso metódico do conhecimento. Esse pensamento prioriza o rigor do cientificismo, na pretensão de objetividade e controle dos resultados, além da manipulação técnica dos dados, que são utilizados instrumentalmente. Nesse procedimento, uma entidade pode ser estudada, separando-a em partes, e pode ser constituída ou restituída pela reunião externa dessas partes. Seu discurso recorre, freqüentemente, ao senso comum, ao resultado das ciências naturais e à lógica – que confere “rigor” e clareza aos argumentos – excluindo tudo aquilo que não é demonstrável ou apreensível conceitualmente de maneira imediata, como a metafísica.[2] No campo dessa análise lógica – lógica formal –, as proposições metafísicas são destituídas de sentido. No plano da linguagem, prevalece a concepção instrumentalista, reduzindo-a à função designativa. Esse ideal cientificista confia absolutamente no rigor do método, diante da perspectiva de neutralidade descritiva do sujeito cognoscente, em face da tripartição estática sujeito/método/objeto.
O antagonismo dessas duas tradições, em meio à pluralidade de “filosofias”, veio a ser atenuado pelo interesse comum das escolas e disciplinas filosóficas da atualidade em torno da linguagem.[3] Tal movimento que marcou o século XX ficou conhecido como “reviravolta lingüística”. Após o questionamento da filosofia pelos fundamentos radicais do ser e do conhecer, a linguagem deixou de ser apenas um instrumento de comunicação, passando a ser um elemento constitutivo do conhecimento pela mediação lingüística necessária para o acesso ao mundo.[4]
No âmbito continental, a virada hermenêutica deu-se na transição da epistemologia (Schleiermacher e Dilthey) para a ontologia (Heidegger e Gadamer) – de modo de conhecer passou para o modo de ser –, enquanto na filosofia da linguagem a virada foi interna, de uma feição lógico-abstrata (Wittgenstein) para um viés pragmático (Austin, Frege). A virada hermenêutica (hermeneutic turn) retrata e fundamenta a impossibilidade de reduzir a linguagem à perspectiva científico-moderna. Já a virada da filosofia da linguagem consiste numa revisão da semântica tradicional, em que “a significação não depende mais da ordenação objetiva, mas a palavra tem sentido pela maneira como é usada, isto é, de acordo com a função determinada que exerce num jogo de linguagem”.[5]
A proposta comum é que o real só pode ser acessado por intermédio da linguagem. Logo, a pergunta pelo ser ou pelo que se pode conhecer implica a pergunta pelo que se pode dizer.[6] As questões filosóficas passam a ser discutidas também em torno da análise das estruturas da linguagem, o que implica a assunção de novas categorias. As dicotomias ser/essência, universal/particular, verdade/aparência, etc., dão lugar a novas distinções lingüísticas: significante/significado, sintaxe/semântica, metáfora/metonímia, sintagma/paradigma, etc.[7]
A convergências entre as duas tradições resultou, para a tradição analítica, no abandono da visão exclusivamente lógico-matemática da linguagem e, na tradição continental, a transfiguração da análise ontológica em análise lingüística. Prevalece, contudo, naquela, o predomínio da metodologia – o método lingüístico – e, nesta, a perspectiva ontológica – a linguagem como ser.
A convergência dessas várias perspectivas está no paradigma da crise, ou impraticabilidade de um modelo de saber sistêmico, universal e totalizante, bem como daquele saber que assume como parâmetro as ciências naturais.
1 – A Hermenêutica Jurídica e as teorias unilaterais do direito
A hermenêutica jurídica consolidou-se sobre uma tradição essencial do direito: atribuir-se máxima juridicidade – legitimidade – e mínima arbitrariedade à decisão jurídica, segundo o desígnio de mínimo arbítrio e máxima realidade jurídica.[8] O exercício hermenêutico se dá justamente para que a determinação do sentido da lei não se realize de modo arbitrário. O intérprete traz a estabilidade da força do texto no momento da aplicação, e não de sua subjetividade, que é apenas passageira, contingente. Daí que o normativismo em geral, bem como as teorizações positivista-descritivas posteriores sobre a teoria da linguagem aplicada ao direito, não alcançam a hermenêutica propriamente dita, pois seu estudo exige a análise ontológica da compreensão pressuposto no ato de ler um texto.
No normativismo, a interpretação jurídica tornou-se um “setor” incômodo no direito (e não uma característica própria dele), pois o modelo epistemológico de ciência sobre que se fundam promove o abandono do ser – algo próprio da radicalização kantiana do dualismo ser-dever ser. A teoria do conhecimento não abrange, pois, o processo de compreensão. No fundo, o preconceito das teorizações dela derivadas está no equívoco de procurar-se um mecanismo descritivo-interpretativo que, pela garantia da neutralidade do método, proporcione uma reposta jurídica exata. A impossibilidade de erigir um método entre o sujeito que interpreta e o texto a ser interpretado é tangenciada, relegando-se a interpretação jurídica ao decisionismo; à interpretação como ato de vontade do intérprete, atribuindo-se ao órgão oficial pela interpretação uma decisão com caráter discricionário, devido a uma alegada zona de imprecisão lingüística própria da regra jurídica.[9] Isso porque a análise da linguagem pela filosofia analítica desconhece os usos e os diferentes contextos de apropriação. Ao negar-se a contingência do ato hermenêutico, o sentido da lei é relegado à indeterminação. Comete-se, nesse caso, o equívoco de falar-se em legislador do caso concreto, ou moldura de decisão. [10] Isso significa, basicamente, transmutar a interpretação jurídica em arbítrio individual do intérprete, uma forma evidente de perversão – inversão – do direito. A virada hermenêutica auxilia a reversão dessa concepção do direito, apresentando-o como uma prática interpretativa em que os fatores relegados pelo cientificismo como metajurídicos tornam-se imanentes ao discurso jurídico.
A interpretação jurídica foi, então, tratada por visões unilaterais do direito. De um lado, tem-se o extremismo do formalismo positivista: a norma deve ser cumprida, pois válida – posta por autoridade competente. Essa é a característica do direito como ciência – do direito como direito positivo vigente – que considera exclusivamente o aspecto da legalidade (exterior da norma), avalorativamente considerado: a letra, o corpus da lei. Nisso, o intérprete procura assumir uma atitude neutra diante do direito. Na distinção entre juízo de fato – tomada de conhecimento da realidade apenas com finalidade de informar, constatar – e juízo de valor (tomada de posição frente a realidade, para influir sobre o outro), este último é excluído do campo científico.[11] Na busca por um conhecimento objetivo da realidade, tenta excluir os juízos subjetivos, valorativos, apegando-se à literalidade da lei. O critério formal da validade é tido como suficiente para considerar a norma existente num determinado ordenamento jurídico.
Nesse caso, o jurista comporta-se como um cientista: analisa o fenômeno jurídico analogamente ao da natureza. A interpretação é algo puramente mecanicista: na atividade do jurista prevalece o elemento declarativo sobre o criativo do direito. Objetivamente, a norma jurídica – fonte preeminente do direito – é colocada como objeto, como um dado empírico da natureza. Seu conteúdo é puramente descritivo, e a linguagem atém-se ao sentido imediato. Aquilo que transcenda a imediatidez sêmica do texto é considerado produto da ação discricionária do aplicador, pois seria algo não intencionado, imprevisto pelo legislador, portanto fora dos limites textuais. Subjetivamente, a consciência do intérprete é concebida como uma espécie de folha em branco – um veículo transparente que vivifica a mens legislatoris. A vontade do legislador seria um fato histórico-psicológico, restando à interpretação determinar o sentido que ele quis ligar às palavras.[12] Não há, nesse caso, qualquer menção à questão da pré-compreensão ou à situação do intérprete. O sentido textual cinge-se à relação significante-significado. A referência à realidade – à realização do justo – é desconsiderada, pois a qualificação de bom e mau, justo e injusto (o conteúdo da norma), comporta um juízo de valor que é negado, para cumprir os postulados de cientificidade. A ciência do direito, dele derivado, nega a validade objetiva do valor. A idéia do justo torna-se irrelevante, pois significa, para o positivismo, um princípio incognoscível, inobjetivável e, portanto, sem validade universal.
No outro extremo, tem-se o realismo jurídico. Nele, o direito é considerado uma realidade social na qual as normas são vinculadas à sua eficácia social. “A escola realista do direito pode ser resumida da seguinte maneira: é direito o conjunto de regras que são efetivamente seguidas numa determinada sociedade.”[13] Assim, enquanto o positivismo formalista considera o direito uma realidade normativa – plano do dever-ser –, o realismo considera-o uma realidade fatual – plano do ser. No aspecto das fontes, aquele enfatiza a atividade legislativa e este coloca a proeminência na atividade do juiz: as normas jurídicas são aquelas efetivamente aplicadas pelos juízes no exercício de suas funções. As normas legisladas, mas não aplicadas, não são direito. Direito é essencialmente aquilo que as pessoas, empiricamente consideradas numa comunidade, consideram e reconhecem reciprocamente como norma e modo de viver em comum, o que significa uma ética própria do subjetivismo social. Isso sugere um caráter predominantemente sociológico, eis que se orienta por dados imediatos – socioeconômicos –, e sobre o efeito das instituições jurídicas. Nesse caso, o direito torna-se um instrumento a serviço de finalidades econômico-sociais.[14] Essa concepção jurídica de direito judiciário – do direito como obra exclusiva do juiz-aplicador – foi assumida, principalmente, pelos países anglo-saxônicos, próprios do common law.
Tanto o formalismo jurídico-científico quanto o realismo partilham da (pré) compreensão do direito imediatamente considerado: uma realidade empiricamente constatada, independente de sua processualidade histórica idealmente pressuposta (mediata). Ambos são formais: estabelecem o que é direito, prescindindo de seu conteúdo; da matéria regulada. O conhecimento é algo puramente passivo e contemplativo; a interpretação é meramente declarativa ou reprodutiva de um direito preexistente. O direito é definido como técnica social: um instrumento independente de qualquer propósito ou valor, como próprios do fenômeno jurídico. É apenas um mecanismo de controle social, essencialmente coercitivo, para manutenção do statu quo. Como reflexo, a interpretação não é orientada por um elemento teleológico determinado, pois não há a explicitação e o conhecimento de fins – ideais – a serem realizados pelo sistema; a ordem jurídica é, eminentemente, um instrumento para garantir e preservar a ordem existente.
Tais visões unilaterais da realidade jurídica distorcem o processo hermenêutico de apreensão de sentido, em prejuízo do plano ontológico da compreensão ou do deôntico vigente. De um lado, o direito como ciência puramente normativa – que toma a norma em si isolada de sua interpretação – é apenas uma abstração sem efetividade – uma pura forma universal, uma necessidade sem conteúdo. De outro, o direito como ciência do ser – de relações fáticas mutáveis, isoladas de sua determinação deôntica – é pura contingência; uma matéria sem universalidade, confundindo-se com a política e a sociologia; uma prática social sem condicionamento jurídico-normativo. Nesse abismo abstrato dogmatizado entre ser e dever-ser – no qual o ser é uma realidade fática vazia de norma e o dever-ser, uma norma vazia de realidade fática –, a nova hermenêutica tornou-se uma alternativa privilegiada para superar tais unilateralidades pela via da interpretação como aplicação.
2 – A Hermenêutica jurídica sob o signo da reviravolta lingüística
A filosofia hermenêutica procura abordar o texto pela sua atualização de sentido segundo o momento da aplicação, através de um processo interpretativo decorrente da apropriação perspectivística da totalidade de sentido imanente ao texto. Esse ato se dá pela fusão horizôntica entre a subjetividade do intérprete e a objetividade sistemática do texto, como modo de “rompimento da distância entre o horizonte cultural que foi elaborada a obra e o horizonte cultural em presente, quando da sua interpretação.”[15] O texto aqui, tomado isoladamente do intérprete, é uma abstração sem realidade, como portador de um significado apenas potencial. Como abstração, a norma é uma significação analítica sem evento, sem acontecimento. O sentido normativo é determinado pela dialética entre a significação imanente do discurso inscrito e o evento de sua compreensão, segundo o movimento de apropriação – da dialética destes dois momentos. Na verdade, norma e texto são inseparáveis, fazendo parte de um mesmo evento do sentido, mas este, no caso, transcende a pura imanência do texto.
Apesar de propor o movimento de desregionalização, a incorporação da hermenêutica filosófica no âmbito jurídico – como hermenêutica jurídica – impõe uma especialização em relação às demais hermenêuticas pela necessidade prática de oposição entre o caráter abstrato do sentido imanente da norma jurídica e a exigência de justiça na particularidade do fato empírico oposto no momento do evento da compreensão. O direito impõe, portanto, a consideração de outros elementos tangenciados pela filosofia hermenêutica, particularmente da necessidade de aplicação justa de seu texto. “O justo qualifica, em última instância, uma decisão singular tomada em um clima de conflito e de incerteza.”[16] Assim, além de determinar o significado do texto normativo, há ainda a tarefa complementar de aplicá-lo com eqüidade (epiekeia), considerando o seu valor e aplicabilidade diante do caso concreto.[17] Daí ser necessária a diferenciação, no âmbito jurídico, mesmo que fundidos filosoficamente, entre interpretação, como momento intelectivo do processo de aplicação, e a aplicação propriamente dita, que o supera para incluir o momento volitivo, na questão prática da decisão.
A hermenêutica jurídica dá-se por meio do ato de interpretação do fato e da norma. Como ato, é um processo dinâmico (ação), e não estaticamente considerado. É um acontecimento realizado dialeticamente como a apropriação do texto – ao negar-se sua mera potencialidade de sentido – na norma efetiva do caso concreto. Sua tarefa é esta: tornar real, realizar, efetivar sentido sobre aquilo que é posto a priori apenas como potencialidade. É a negação da generalidade e abstração da norma pela oposição à particularidade empírica do caso concreto, ou seja, a determinação singular de sentido para cada caso a partir da significação imanente da norma. O intérprete-aplicador, aqui, é o elemento mediador entre a tendência generalizadora da significação normativa a priori – pela qual todos são formalmente iguais perante a lei, o que é próprio da abstração de um estado de sistema – e a tendência individualiadora da necessidade de justiça no caso concreto, obedecendo a um processo de adequação valorativa para alcançar-se o justo: a igualdade na lei.[18] Ou seja, além de procurar o sentido da lei, há de se determinar o significado segundo os efeitos práticos decorrente de sua aplicação.
Assim, o intérprete é um elemento ativo da interpretação sob um duplo aspecto. Além de determinar o sentido da norma pela interpretação, é um fator ativo de concretização do preceito abstrato ao caso concreto, pois canaliza valorativamente, dentro da variedade significativa de um estado de sistema, aquele significado que se ajuste como próprio ao caso concreto.[19] A tarefa de interpretar é criativa de atribuição de sentido e não de criação do direito, pois não se trata de uma invenção de sentido pelo intérprete – o que seria a desvinculação à legislação –, mas de “descoberta do direito que existe já em estado latente no sistema positivo”,[20] segundo a revelação adequada do sentido legal (e não o extralegal). Representa, nesse aspecto, uma tarefa contínua de aplicação do texto, tendo em vista a recontextualização-atualização de seu sentido objetivo (a voluntas legis).
O texto, no âmbito jurídico, não é um enunciado lingüístico separado de sua normatividade, mas um elemento do direito positivo em ação que revela, pela sua atualização por meio da interpretação, os valores constitutivos do direito vigente. O texto, segundo o modelo hermenêutico, não é, propriamente, algo separado da norma – como se a norma fosse mero resultado do método usado na interpretação –, mas constitutivo do evento da compreensão, quando se atualiza seu sentido tendo em vista a situacionalidade do intérprete.
O sentido extraído do texto não é, ontologicamente, algo formal, mas determinado axiologicamente como seu modo de ser pelo evento da compreensão. Não se trata, pois, de uma forma de normativismo – no qual a norma precede o valor –, nem uma forma de axiologia – na qual o valor precede a norma.[21] Como a potencialidade semântica é retirada do direito positivo (e não de um ser divino, de uma invenção criativa ou persuasiva do intérprete), esse modelo opõe-se radicalmente ao pensamento tópico ou problemático.
Não há, também, que se falar aqui em hermenêutica da suspeita, pela qual o questionamento comum gravita em torno da própria origem de toda significação, a saber, a consciência – a concepção da consciência, em seu todo, como falsa; como mentira, postura própria de Nietzche, Freud e Marx -, pois o sentido visado pelo texto não é concebido como algo oculto, não revelado. Aquele que nega o sentido objetivo inscrito para procurar um oculto não irá interpretar corretamente pois, na aplicação, estará sempre relativizando a eficácia da norma e negando seu sentido imanente.
Nesse aspecto, a consciência jurídica busca extrair o sentido diante do texto, e não fora ou escondido por ele, pois: (i) objetivamente reconhece a ordem jurídica como uma obra de cultura que significa e sempre tem algo a dizer sobre si mesmo – simbolicamente o direito objetivo é a desocultação objetiva da verdade de si – e (ii) subjetivamente não concebe o significado da norma como alheia de sua própria perspectiva – separação abstrata significante-significado –, pois percebe que o que é objetivamente inscrito, como imanente ao texto, diz respeito apenas a relações sintáticas entre signos (postulado semiótico).
O texto do direito positivo é a inscrição da experiência jurídica, institucionalmente objetivada, mas tomada em si apenas como potencialidade semântica.[22] A tarefa do intérprete é justamente a formação do sistema pela interpretação textual, ou seja, a contínua apropriação e revelação de seu sentido axiológico pela unidade do processo hermenêutico[23] – superação dialética da abstração significante-significado. O elemento axiológico não é, portanto, nesse paradigma, metajurídico, suprapositivo, como algo incorporado externamente ao direito pela religião, economia, moral (tal como em Dworkin) ou costumes…, mas característica imanente ao próprio direito revelado progressivamente mediante a operação hermenêutica de compreensão e revelação das possibilidades semânticas do texto jurídico.
O contexto é constitutivo do texto jurídico. O texto engloba, pois, o entorno lingüístico – como texto puramente verbal –, bem como o contexto metalingüístico – o contexto cultural e a mensagem de outros sistemas inseridos na cultura de seu tempo. Não se concebe um sistema de valores paralelo ao direito positivo, mas que o próprio sistema jurídico consubstancia valores – estes, entretanto, determinados caso a caso. Tomado isoladamente – abstratamente –, o texto encontra-se apenas em estado latente, na imanência de sua significação. Efetivamente – aplicado –, entretanto, o texto – o direito objetivo – tem amplo horizonte de sentido; tem uma estrutura aberta a diversos modos de atualização, segundo a determinação da compreensão desse ser-aí (Dasein) que questiona pelo seu sentido.
3 – Conclusão
O apego ao sentido objetivo do texto[24] não representa um retrocesso ao positivismo legalista, pois o aspecto negativo do formalismo jurídico não diz respeito à sua vinculação ao texto legal, mas ao acanhamento à literalidade imediata e à pretensão de fixar entes auto-significantes – como se o sentido fosse independente do evento de sua compreensão.[25] Aqui, essa característica visa à segurança jurídica, por meio de uma hermenêutica jurídica orientada pelo texto como fonte inesgotável de sentido (princípios, valores…) e em diálogo com as fontes jurídicas supralegais, mas estas colocadas secundariamente como condicionantes pré-compreensivos de sentido. A estrutura do texto se preserva da ação do tempo, mas não a compreensão sobre ele, que modifica ao se alterar a situação do intérprete. É possível, portanto, cumprir a ordem textualmente definida sem ater-se ao legalismo (formalismo).
O aspecto estrutural do texto relaciona-se ao caráter sistemático do direito; além de dar clareza e de facilitar o domínio de uma matéria, significa um critério de racionalidade intrínseca, como exigência de cientificidade na interpretação, pela pressuposição lógica da unidade e coesão de sentido.[26] O aspecto ontológico do texto diz respeito à situacionalidade do intérprete; à sua necessidade de constante atualização de sentido pela reivindicação da compreensão em condições singulares. Assim, a noção de texto tensiona o ideal abstrato imanente de unidade interior e adequação do pensamento sistemático com o seu elemento referencial transcendente contrário: o da tendência individualizadora da justiça no caso concreto.[27] A norma, então, não é algo diferente do texto, como um resultado da interpretação, mas o próprio ato – evento – hermenêutico que lhe dá temporalidade pela revelação e atualização de seu sentido. O preceito deôntico do texto não é isolado em seu sentido, mas diz respeito a uma mediação entre a significação sincrônica dos preceitos jurídicos e a isotopia do contexto de aplicação, ou seja, encontra-se na ação de mediação pela qual a significação virtual (potencial) torna-se concreta (efetiva) pela necessidade de um sentido justo para o contexto de aplicação.
Informações Sobre o Autor
André Quintela Alves Rodrigues
Mestre em Filosofia do Direito (UFMG)