A inversão do ônus da prova e a inversão do ônus financeiro nas relações de consumo

Resumo: O texto aborda a questão da inversão do ônus financeiro com conseqüente obrigação de custear as provas quando presentes os requisitos para a inversão do ônus da prova em processos que tratem de relações de consumo.


Abstract: The text approaches the question of the inversion of the financial responsibility with consequent obligation to defray the tests when gifts the requirements for the inversion of the responsibility of the test in processes that deal with consumption relations.


Palavras-chaves: consumidor – prova – inversão do ônus 


Questão polêmica que se apresenta em processos cuja matéria envolva relação de consumo e, por conseqüência, acobertados pelo Código de Defesa do Consumidor diz respeito ao pagamento das custas e despesas na hipótese de declarada a inversão do ônus da prova.


Isto porque, no mais das vezes, a controvérsia diz respeito à matéria fática cuja apuração depende de prova pericial para seu descortinamento nos termos do artigo 145 do Código de Processo Civil.[i]


Nesses casos a produção da prova exige o prévio depósito pela parte autora dos honorários periciais e, às vezes, de honorários de assistente técnico encarregado do acompanhamento da perícia para a prova de suas alegações como estabelecem os artigos 19 e 33 do código processual.[ii]


Desta forma e obedecida a regra da distribuição do ônus da prova do artigo 333 do Código de Processo Civil, cumpre à parte sobre a qual recaia o onus probandi das alegações o custeio das despesas necessárias a sua produção.


Ocorre que, uma vez determinada a inversão do ônus da prova pelos critérios estabelecidos no código de defesa do consumidor, resta a questão concernente ao pagamento das custas e despesas decorrentes da prova cujo ônus fora invertido.


À primeira vista parece que a questão resolver-se por si mesma posto que, uma vez invertido o ônus da prova, em conseqüência restaria invertido o ônus financeiro para sua produção.


Não é esse, contudo, o entendimento que vêm sendo externado pelos nossos Tribunais, para quem, a inversão do ônus da prova não importa em automática inversão do ônus financeiro.


Segundo essa posição, as disposições do Código de Defesa do Consumidor, no que compete a inversão do ônus da prova, servem como meio de possibilitar a introdução do princípio de vulnerabilidade do consumidor em um sistema baseado na igualdade entre as partes, constituindo verdadeira exceção à regra contida no artigo 333 do Código de Processo Civil.


Já as disposições dos artigos 19 e 33 do código de processo classificam-se como verdadeiro ônus processual, cujo descumprimento implicará em não ser realizado o ato requerido, podendo advir daí possíveis conseqüências desagradáveis para quem o requereu e não adiantou as despesas.


As normas consumeristas, pois, constituem exceção ao artigo 333 do Código de Processo Civil, que trata do ônus subjetivo da prova, e não das normas dos artigos 19 e seguintes, que tratam do ônus financeiro da produção dos atos processuais.


Desse modo, seguindo esse entendimento, cabe ao consumidor arcar com os ônus financeiros de atos probatórios por ele requeridos, devendo arcar, ainda, se for o autor da demanda, com as despesas prévias de atos ordenados de ofício pelo juiz ou pelo Ministério Público (art. 19, § 2º do CPC) ou com as despesas de perícia requerida por si ou por ambos os litigantes (art. 33 do CPC).


Nesse sentido os acórdãos proferidos pelo Superior Tribunal de Justiça que correspondem a corrente majoritária na jurisprudência:


“PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO REGIMENTAL. AGRAVO DE INSTRUMENTO. ÔNUS DA PROVA. INVERSÃO. CONTEÚDO FÁTICO. SÚMULA 7/STJ. HONORÁRIOS PERICIAIS. PRETENSÃO DE ATRIBUIR-SE O ÔNUS DE PAGAMENTO À PARTE CONTRÁRIA. DESCABIMENTO. I – A inversão do ônus probatório não é automática, cabendo ao magistrado a apreciação dos aspectos de verossimilhança da alegação do consumidor ou de sua hipossuficiência o que, se concedida, não acarreta, de qualquer modo, o encargo financeiro de custear as despesas pela parte adversa, mas, apenas, o faz arcar com as conseqüências jurídicas pertinentes. II – Agravo regimental desprovido.[iii]” “Assistência judiciária gratuita. Inversão do ônus da prova. Perícia. Precedentes da Corte. 1. O benefício da assistência judiciária gratuita e a inversão do ônus da prova não são incompatíveis. 2. A simples inversão do ônus da prova, no sistema do Código de Defesa do Consumidor, não gera a obrigação de custear as despesas com a perícia, embora sofra a parte ré as conseqüências decorrentes de sua não-produção. 3. O deferimento da inversão do ônus da prova e da assistência judiciária, pelo princípio da ponderação, impõe que seja beneficiado o consumidor, com o que não cabe a orientação jurisprudencial sobre o custeio da prova pericial nos termos da Lei nº 1.060/50. 4. Recurso especial conhecido e provido.[iv]


Em sentido contrário ao adotado em jurisprudência anota-se que a questão financeira no fundo é a viga mestra da produção e da inversão do ônus da prova, porquanto, na prática, toda a celeuma em definir-se a quem incumbirá a instrução probatória deságua na definição de qual das partes arcará com o pagamento pela sua produção.


Claramente o pagamento pela produção da prova é a questão que definitivamente interessa aos litigantes no transcurso da instrução probatória, sendo certo que assumir o ônus financeiro revela-se um grande obstáculo ao acesso à justiça, principalmente ao consumidor.


José Roberto Nalini observou:


“Dentre os obstáculos econômicos que se antepõem entre o lesado e o equipamento formulador da Justiça figura a cobrança de custas. Pese embora a gratuidade assegurada para todo aquele que alegar insuficiência de recursos para custear a demanda, na verdade ainda há muita pobreza excluída dos serviços judiciais, diante da inevitabilidade de algum dispêndio: a realização de uma perícia, a obtenção de documentos, compromissos que não serão suportados pelo defensor constituído.”[v]


Desta feita e em razão de todo o conjunto principiológico que rege as relações consumeristas dentre os quais se pode destacar o acesso à justiça, a vulnerabilidade e a facilitação de sua defesa em juízo tem-se que,  acompanhando posição defendida por Rizzatto Nunes, a inversão do ônus da prova deve importar em automática inversão do ônus financeiro:


“Uma vez determinada a inversão, o ônus da produção da prova tem de ser da parte sobre a qual recai o ônus processual. Caso contrário, estar-se-ia dando com uma mão e tirando com a outra.”[vi]


Com esse entendimento encontram-se os acórdãos proferidos pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul:


“AGRAVO DE INSTRUMENTO. INVERSÃO DO ÔNUS PROBATÓRIO. CDC. RELAÇÃO DE CONSUMO. AUTOR HIPOSSUFICIENTE. POSSIBILIDADE. Tratando-se de relação de consumo, sendo o autor hipossuficiente, possível a inversão do ônus probatório, carreando ao réu – fornecedor – a incumbência de antecipar os custos de perícia. Agravo improvido.”[vii]


“ÔNUS DA PROVA. PERÍCIA. INVERSÃO. TRATANDO-SE DE PARTE HIPOSSUFICIENTE, POSSÍVEL QUE A PARTE CONTRáRIA ARQUE COM O PAGAMENTO da antecipação DOS HONORÁRIOS PERICIAIS. APLICABILIDADE DO ART. 6º, INC. viii, do código de defesa do consumidor (LEI 8.078/90). agravo de instrumento improvido.”[viii]


Comentando a posição contrária e ora adotada pelo Superior Tribunal de Justiça, Rizzatto Nunes:


“Se assim não fosse, instaurar-se-ia uma incrível contradição: o ônus da prova seria do réu, e o ônus econômico seria do autor (consumidor). Como esse não tem poder econômico, não poderia produzir a prova. Nesse caso, sobre qual parte recairia o ônus da não-produção da prova”[ix]


Observe-se que para a questão formulada, responde a jurisprudência que as conseqüências pela não produção da prova recaem sobre a parte a quem incumbia o ônus da prova, consagrando posição ambígua já que, ao mesmo tempo em que exonera a parte do pagamento da produção pericial, impõe-lhe as conseqüências da sua não produção.


Significa dizer: não precisa pagar, mas se não pagar sofrerá as conseqüências, o que na prática importa de qualquer forma na imposição de que a parte a quem incumba o ônus da prova arque também com as despesas pela sua produção. È a inversão indireta do ônus financeiro, portanto.


Por fim, saliente-se que, caso seja o consumidor economicamente hipossuficiente e, mantendo o julgador o ônus financeiro da produção da prova a seu desfavor, dispõe o mesmo da possibilidade de requerer a assistência judiciária prevista em nosso ordenamento pela Lei 1.060/50, Lei da Assistência Judiciária.


 


Bibliografia

NALINI, José Roberto. O Juiz e o acesso à Justiça. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1994.

NUNES, Luiz Antonio Rizzatto. Curso de Direito do Consumidor. São Paulo: Saraiva, 2005.

 

Notas:

[i] Art. 145. Quando a prova do fato depender de conhecimento técnico ou científico, o juiz será assistido por perito, segundo o disposto no artigo 421.

[ii] Art. 19. Salvo as disposições concernentes à justiça gratuita, cabe às partes prover as despesas dos atos que realizam ou requerem no processo, antecipando-lhes o pagamento desde o início até sentença final, e bem ainda, na execução, até a plena satisfação do direito declarado pela sentença.

Art. 33. Cada parte pagará a remuneração do assistente técnico que houver indicado; a do perito será paga pela parte que houver requerido o exame, ou pelo autor, quando requerido por ambas as partes ou determinado de ofício pelo juiz.

[iii] STJ. AgRg no Ag 884407/SP. Quarta Turma. Min. Aldir Passarinho Junior. 21.08.2007. DJ 05.11.2007.

[iv] STJ. REsp 639534. Segunda Seção. Min. Carlos Alberto Menezes Direito. 09.11.2005. DJ 13.02.2005.

[v] O Juiz e o acesso à Justiça, p. 33.

[vi] Curso de Direito do Consumidor, p. 744.

[vii] TJRS. Agravo de Instrumento n.70006276836, 19ª Câmara Cível. Des. Rel. Guinther Spode.  DJ. 02.09.2003.

[viii] TJRS. Agravo de Instrumento n.70007558075, 19ª Câmara Cível. Rel. Des. José Francisco Pellegrini . DJ. 16/12/2003.

[ix] Curso de Direito do Consumidor, p. 744.


Informações Sobre o Autor

Luciane Perucci

Advogada. Mestranda em Direitos do Consumidor


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