Como compatibilizar o orçamento público com a atual pandemia do Coronavírus e a obrigação constitucional do Poder Público com a saúde em geral?
Artur Barbosa da Silveira – Procurador do Estado de São Paulo. Ex-Advogado da União. Mestrando em Direito pela UNINOVE. Pós-graduado em Direito Médico, Constitucional e Administrativo. Professor de pós-graduação na FIG-UNIMESP de Guarulhos/SP. absilveira@sp.gov.br
Isadora Carvalho Bueno – Procuradora do Estado de São Paulo. Ex-Auditora de Contas de Jundiaí/SP. Pós-graduada em Direito Público. Professora de cursos preparatórios para concursos públicos. icbueno@sp.gov.br
Resumo: O presente artigo analisa a necessária compatibilização do orçamento com a atual conjuntura da pandemia causada pela Covid-19, à luz do dever constitucional dos entes públicos de garantirem a saúde de forma geral para toda a população. Sabe-se que o orçamento é limitado e que a arrecadação tributária dos entes políticos reduziu drasticamente em razão da pandemia do Coronavírus, ao mesmo tempo em que gastos estatais com o tratamento e prevenção da Covid-19 em todo o país só aumenta. Entretanto, outras doenças, também importantes, merecem atenção do estado, que tem o dever constitucional de tutelar a saúde da população como um todo. Sob esse prisma, o Poder Judiciário, ao ser demandado, deve fazer verdadeiro juízo de ponderação entre bens jurídicos fundamentais, contudo, sem interferir na autonomia dos entes estatais de planejar e executar políticas públicas. Para tal desiderato, são necessários esforços colaborativos entre todos os poderes, em um ambiente de verdadeiro diálogo institucional.
Palavras-chave: COVID-19. ORÇAMENTO PÚBLICO. JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE. DIÁLOGOS INSTITUCIONAIS.
Health judicialization in pandemic’s times
How to make the public budget compatible with the current Coronavirus pandemic and the constitutional obligation of the Government with health in general?
Abstract: This article analyzes the necessary compatibility of the budget with the current situation of the pandemic caused by Covid-19, in light of the constitutional duty of public entities to guarantee health in general for the entire population. It is known that the budget is limited and that the tax collection of political entities has reduced drastically due to the Coronavirus pandemic, at the same time that state spending on the treatment and prevention of Covid-19 across the country only increases. However, other diseases, also important, deserve attention from the state, which has a constitutional duty to protect the health of the population as a whole. Under this prism, the Judiciary Power, when demanded, must make a true judgment of weighting between fundamental legal assets, however, without interfering in the autonomy of state entities to plan and execute public policies. For this purpose, collaborative efforts between all powers are needed, in an environment of true institutional dialogue.
Keywords: COVID-19. PUBLIC BUDGET. HEALTH JUDICIALIZATION. INSTITUTIONAL DIALOGUES.
Sumário: Introdução. 1. A relativização da “regra de ouro” do orçamento público em razão da atual pandemia. 2. A imprevisibilidade do evento da Covid-19 e o dever constitucional do estado com a saúde da população. 3. A problemática envolvendo a judicialização da saúde para o tratamento das demais doenças e a hipótese dos diálogos institucionais. Conclusão. Referências bibliográficas.
Introdução
Não há dúvida de que o mundo passa por um momento de excepcionalidade, cujos impactos estão atingindo, de forma nunca antes vista, a economia, os empregos, a saúde, a liberdade de ir e vir e a propriedade, dentre outros direitos fundamentais.
A atual síndrome respiratória aguda grave, conhecida pelos codinomes “Covid-19” ou “novo Coronavírus”, tem se espalhado a passos largos no território mundial, tanto que a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou, em 30 de janeiro de 2020[i], que o surto dessa doença constitui uma Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional – o mais alto nível de alerta da Organização, conforme previsto no Regulamento Sanitário Internacional[ii] e, em 11 de março de 2020, a Covid-19 foi caracterizada pela OMS como uma pandemia de âmbito mundial[iii].
Nesse contexto, para cobrir o enorme dispêndio de recursos públicos do estado com o tratamento e prevenção do Coronavírus, a regra de ouro relativa ao orçamento necessitou ser mitigada pelo Congresso Nacional, além de que a arrecadação tributária nesse período foi extremamente fragilizada, trazendo à tona questionamentos acerca da obrigação constitucional do estado em promover a saúde da população como um todo, abarcando, além da Covid-19, outras doenças não menos importantes, como câncer, problemas cardíacos e até depressão.
Estamos passando por um período de questionamentos envolvendo sobretudo a economia, a política e a saúde, buscando o reequilíbrio das relações humanas e o atendimento do conceito aristotélico de justiça, no sentido de se buscar o meio-termo para ambas as partes, afastando os excessos e identificando entre os extremos aquilo que é o justo, ou seja, uma virtude que vai proporcionar a felicidade em sentido geral, tanto do indivíduo quanto da sociedade que o abriga.
No que tange ao Direito Médico, a judicialização envolvendo a saúde não é recente, e o Poder Judiciário há muito fixou o entendimento acerca da obrigatoriedade do estado em promover a prestação integral da saúde à população. Entretanto, em razão do atual quadro pandêmico, o estado, influenciado em muito pela mídia, tem deixado de lado o atendimento outras doenças não menos importantes, cabendo ao Poder Judiciário, por meio da técnica de ponderação de direitos fundamentais, equacionar tal quadro, sem interferir, contudo, na autonomia dos entes políticos em planejar e executar políticas públicas.
Posto isso, podemos questionar: como compatibilizar o orçamento público, a atual pandemia do Coronavírus e a obrigação constitucional do Poder Público de garantir a saúde integral para toda a população?
Durante séculos, vigorou na humanidade de forma quase absoluta o princípio do pacta sunt servanda (tradução livre em português: os pactos devem ser observados), cuja origem é atribuída pela doutrina de POUND (1965, p. 130/131) ao Direito Canônico medieval.
Com a evolução da ciência do direito, o contrato passou a assumir um aspecto mais humanista, sendo que, de acordo com a doutrina de STOLZE e PAMPLONA FILHO (2011, p. 210), o próprio Código de Hamurabi, em sua Lei número 48, passou a mitigar o princípio do pacta sunt servanda, nos seguintes termos: “se alguém tem um débito a juros, e uma tempestade devasta o campo ou destrói a colheita, ou por falta de água não cresce o trigo no campo, ele não deverá nesse ano dar trigo ao credor, deverá modificar a sua tábua de contrato e não pagar juros por esse ano”.
O direito civil é por muitos considerado o precursor das outras ciências jurídicas, e diversos de seus princípios e conceitos são a elas aplicáveis.
Assim, com o orçamento público, também é válida a utilização da teoria da imprevisão, que tem como uma de suas vertentes a chamada cláusula rebus sic stantibus (em tradução literal para o português: “estando assim as coisas”) que prevê que as obrigações devem ser cumpridas na medida das circunstâncias que a originaram, sendo possível a repactuação no caso de surgimento de um evento imprevisível, tal como o atual quadro pandêmico.
De acordo com o site do Tesouro Nacional[iv], denomina-se Regra de Ouro:
“Os dispositivos legais que vedam que os ingressos financeiros oriundos do endividamento (operações de crédito) sejam superiores às despesas de capital (investimentos, inversões financeiras e amortização da dívida)
(…)
Assim como na meta de resultado primário e no teto dos gastos, a avaliação do cumprimento da regra de ouro ocorre legalmente ao final de cada exercício fechado (janeiro a dezembro de cada ano).”
A regra de ouro, portanto, é um dos princípios básicos do orçamento público, prescrevendo que o estado não pode gastar mais do que arrecada, sob pena de o administrador público responder por crime de responsabilidade, havendo uma avaliação anual do cumprimento daquela regra.
A atual pandemia causou uma queda drástica da arrecadação tributária[v], que pode levar os entes públicos ao colapso financeiro, uma vez que os recursos decorrentes estão relacionados às políticas públicas dos entes tributantes, com destinação à saúde, à educação, à moradia, à segurança, dentre outros.
Assim, diversos entes públicos, em conjunto com a União, passaram a pleitear a flexibilização da regra de ouro, para poder atender principalmente às políticas públicas relacionadas ao novo Coronavírus.
O Supremo Tribunal, no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 6357, atendendo a pedido formulado pela AGU – Advocacia Geral da União, deferiu medida cautelar em 29 de março de 2020[vi], permitindo a flexibilização da regra de ouro e de diversos dispositivos da Lei de Responsabilidade Fiscal e da Lei de Diretrizes Orçamentárias, sob o fundamento de que a atual pandemia da Covid-19 representa uma condição superveniente absolutamente imprevisível, com consequências gravíssimas, que afetará drasticamente a execução orçamentária anteriormente planejada:
“O surgimento da pandemia de COVID-19 representa uma condição superveniente absolutamente imprevisível e de consequências gravíssimas, que, afetará, drasticamente, a execução orçamentária anteriormente planejada, exigindo atuação urgente, duradoura e coordenada de todos as autoridades federais, estaduais e municipais em defesa da vida, da saúde e da própria subsistência econômica de grande parcela da sociedade brasileira, tornando, por óbvio, logica e juridicamente impossível o cumprimento de determinados requisitos legais compatíveis com momentos de normalidade.
O excepcional afastamento da incidência dos artigos 14, 16, 17 e 24 da LRF e 114, caput, in fine, e § 14, da LDO/2020, durante o estado de calamidade pública e para fins exclusivos de combate integral da pandemia de COVID-19, não conflita com a prudência fiscal e o equilíbrio orçamentário intertemporal consagrados pela LRF, pois não serão realizados gastos orçamentários baseados em propostas legislativas indefinidas, caracterizadas pelo oportunismo político, inconsequência, desaviso ou improviso nas Finanças Públicas; mas sim, gastos orçamentários destinados à proteção da vida, saúde e da própria subsistência dos brasileiros afetados por essa gravíssima situação; direitos fundamentais consagrados constitucionalmente e merecedores de efetiva e concreta proteção.”
À luz dos elementos acima, concluímos, em síntese, que, para a aplicação da teoria da imprevisão, o fato imprevisível deve ser posterior à celebração do contrato e essa alteração fática não pode decorrer de fatos imputados às partes, mas de um evento alheio a elas, sendo ainda necessário que esse evento cause um grave desequilíbrio econômico a uma ou a ambas as partes, e, por fim, que a parte não esteja em mora (ou atraso) no momento da alteração da circunstância fática imprevisível.
Da mesma forma, o Congresso Nacional aprovou diversos outros dispositivos legais e constitucionais, autorizando o governo a efetuar gastos acima da sua arrecadação.
A norma-matriz, Lei Federal nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020[vii], dispôs sobre medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do Coronavírus, dentre elas a flexibilização dos critérios de licitação para aquisição de bens, serviços e insumos relativos ao combate à pandemia, sendo que a licitação passou em diversos casos ser dispensada.
O Decreto Legislativo do Senado Federal nº 6, de 20 de março de 2020[viii], reconheceu o estado de calamidade pública em todo o território nacional até 31/12/2020 e possibilitou, em razão do estado de calamidade pública, o descumprimento da lei de responsabilidade fiscal pelos entes federados, dispensando esses entes do atingimento dos resultados fiscais, sem que haja crime de responsabilidade pelos administradores públicos, além de possibilitar os Estados e Municípios que decretarem calamidade pública em seus territórios poderem receber recursos públicos da União.
Podemos citar, ainda, a aprovação do Projeto de Lei do Congresso Nacional nº 8/2020 pela Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal, que autorizou o governo federal a contrair empréstimo de R$ 343,6 bilhões para quitar despesas obrigatórias, flexibilizando a regra de ouro[ix].
Outrossim, para muitos economistas e para a própria equipe econômica do Governo Federal, não haverá condições para o cumprimento da regra de ouro até o ano de 2023, ou seja, pelos próximos 3 (três) anos.[x]
Inclusive, ao elaborar o Projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) do ano de 2021 (PLN 9/2020), as Consultorias de Orçamento da Câmara dos Deputados e do Senado Federal elaboraram uma nota técnica, no sentido de que a pandemia do novo Coronavírus pode comprometer a aplicação da regra de ouro das finanças públicas também no ano de 2021:
“A regra de ouro proíbe o governo de fazer dívidas para pagar despesas correntes, como salários, aposentadorias e custeio da máquina pública. Para realizar operações de crédito acima do limite constitucional, a União depende de autorização do Congresso Nacional. O PLN 9/2020 projeta essa margem de descumprimento para 2021 em R$ 265,1 bilhões. Mas, de acordo com a nota técnica das Consultorias de Orçamento, a estimativa deve sofrer alterações por conta da crise causada pela pandemia de covid-19.
A depender de eventual novo reconhecimento de estado de calamidade pública por parte do Congresso Nacional, poderá a aplicação da regra de ouro ser também dispensada no exercício financeiro de 2021. Considerando essa hipótese, recomenda-se que as disposições do PLDO 2021 sejam aperfeiçoadas de modo que, concretizada a continuidade do estado de calamidade pública, as receitas e despesas constantes da LOA [Lei Orçamentária Anual] que, inicialmente, não seriam acolhidas pela regra de ouro passem a ser, então, consideradas plenamente autorizadas” (…)”.
Entretanto, apesar da flexibilização do orçamento, o estado não pode fazer o que bem entender com a verba pública, estando sujeito à rígida fiscalização do Poder Legislativo, do Tribunais de Contas e do Ministério Público dentre outros, ou seja, os gastos públicos deverão ser feitos com a devida prudência e responsabilidade, de forma a não ensejar um total colapso das contas públicas, devendo eventuais responsáveis serem punidos na forma da lei.
A imprevisibilidade sempre habitou o cotidiano jurídico moderno, especialmente na sociedade pós-industrial, onde as relações resultantes do trabalho e da evolução dos contratos a tornou um dos elementos de maior importância nas relações humanas.
Entretanto, ainda não há uma definição homogênea e universal do seu conceito, em razão da possibilidade de sua utilização em diferentes contextos como, por exemplo, nas ciências exatas, humanas e biológicas, passando pela matemática, pela sociologia, pelo direito, pela economia, pela medicina, dentre outras, bem como do fato de que, em inúmeras sociedades e culturas, indivíduos diferentes podem ter interpretações diversas sobre a mesma situação de risco.
Em outras palavras, essa dificuldade de conceituação da imprevisibilidade parte do fato de que a sua abrangência transborda para domínios científicos e culturais diversos, muitas vezes contraditórios e excludentes entre si.
Em uma acepção básica das ciências humanas, o conceito de imprevisibilidade nos remete a situações de incerteza, ou mesmo a hipóteses relativas a eventos futuros e incertos, com possibilidade de distintos resultados, sem conhecimento prévio pelas partes de qual deles ocorrerá, ganhando extrema importância a distinção entre a certeza e a mera possibilidade.
Considerando a pandemia do novo Coronavírus e levando em conta que o mundo já atravessou diversas outras pandemias e eventos catastróficos, tais como a gripe aviária, a SARS, o surto de H1N1, diversas guerras e depressões econômicas, dentre muitos outros, pode-se realmente falar em evento imprevisível?
Entendemos que sim.
Em um sentido estritamente técnico, todas as pandemias, guerras, depressões econômicas e equivalentes devem ser encaradas como eventos imprevisíveis, que causam impactos avassaladores às relações humanas, desequilibrando as obrigações inicialmente pactuadas entre as partes e inviabilizando, em todo ou em parte, a manutenção do contrato.
Ademais, a pandemia do novo Coronavírus nos mostra um plus ainda mais evidente em relação a tal cenário, uma vez que, segundo grande parte dos profissionais da saúde, da economia, das ciências humanas, sociais, dentre outros, se trata do maior evento catastrófico ocorrido nos últimos séculos, atingindo o mundo em uma amplitude nunca antes vista nessa geração, retirando mais empregos e dilacerando mais vidas humanas do que todos os grandes eventos ocorridos no último século, a exemplo da gripe espanhola e das duas guerras mundiais do século XX[xi].
Ao comentar a situação da França no ambiente entre as duas grandes guerras mundiais, a doutrina de RIPERT (2009, p. 1) explicou a necessidade de intervenção estatal quando eventos imprevisíveis alterarem as circunstâncias sobre as quais as relações jurídicas foram firmadas:
“Por que se admitiu sem dificuldade esta intervenção judicial? É porque aqui o desequilíbrio do contrato é completo. Sinalagmático, tem duas faces; uma obrigação desaparece, a outra fica sem causa. Conserva a sua forma jurídica porque foi legitimamente criada, mas o juiz deve suprimi-la, revendo o contato concluído”.
A aplicação da teoria da imprevisão se compatibiliza com o direito constitucional à saúde, a ser garantido pelo poder público, nos termos do artigo 196 da Carta Magna, in verbis:
“Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”.
Ressalte-se que esse dever compete não somente à União, mas a todos os entes políticos, ou seja, Estados-membros, Distrito Federal e Municípios, nas palavras de CASTRO, LINO e VIEIRA (2008, p. 104), para quem o legislador constitucional “utilizou-se a palavra ESTADO no intuito de englobar tanto os Estados-membros, quanto à União e o Munícipio, vez que ambos têm o dever promover o bem-estar social, garantindo educação, saúde e segurança a todos os cidadãos”.
Tanto que o artigo 23, II, da Carta Magna, prevê que ser competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios cuidar da saúde e assistência pública, da proteção e garantia das pessoas portadoras de deficiência.
Conforme decidiu o Supremo Tribunal Federal na ADI nº 6357, já referida no tópico anterior:
“A Constituição Federal, em diversos dispositivos, prevê princípios informadores e regras de competência no tocante à proteção da vida e da saúde pública, destacando, desde logo, no próprio preâmbulo a necessidade de o Estado Democrático assegurar o bem-estar da sociedade. Logicamente, dentro da ideia de bem-estar, deve ser destacada como uma das principais finalidades do Estado a efetividade de políticas públicas destinadas à saúde.
O direito à vida e à saúde aparecem como consequência imediata da consagração da dignidade da pessoa humana como fundamento da República Federativa do Brasil. Nesse sentido, a Constituição Federal consagrou, nos artigos 196 e 197, a saúde como direito de todos e dever do Estado, garantindo sua universalidade e igualdade no acesso às ações e serviços de saúde.”
Nesse cenário, a aplicação da teoria da imprevisão em razão da atual pandemia se compatibiliza com o dever constitucional do estado no tocante à proteção da vida e da saúde pública, assegurando o bem-estar de toda a sociedade.
Em tempos de pandemia pela Covid-19, surge uma problemática atinente à obrigação de o estado destinar recursos para o bom atendimento de outras doenças não menos importantes, tais como câncer, problemas cardíacos e depressão, sendo essa última chamada pela psiquiatria de “quarta onda”[xii].
Em um primeiro momento, mediante autorização normativa e sob grande pressão da mídia, o estado passou a envidar todos os seus esforços para o atendimento dos pacientes acometidos pela Covid-19, construindo diversos hospitais de campanha[xiii], promovendo a importação de equipamentos de proteção – como máscaras e álcool gel -, além patrocinar publicidade na mídia em geral, dentre outras medidas.
Todavia, passada a fase mais aguda da pandemia e da comoção mundial por ela causada, diversos especialistas da área médica e da saúde começaram a questionar a omissão do estado em relação às demais doenças.
Conforme estudo promovido pela Universidade de Oxford, no Reino Unido, os pesquisadores concluíram que o surto da Covid-19 no mundo causou um efeito chamado de “transbordamento”, aumentando o número de mortes por outras doenças, tais como câncer e doenças cardiovasculares: “O que chamamos de efeito transbordamento é o fato de que a pandemia de covid-19 está tendo um impacto enorme em outras causas de morte. Por exemplo, na redução do financiamento para a pesquisa de tratamentos de malária, na nutrição e na pobreza, especialmente em países menos desenvolvidos”[xiv]
Em 13 de maio de 2020, a Associação Brasileira de Medicina Diagnóstica (Abramed) reuniu especialistas de áreas clínicas e do setor de diagnóstico para o seminário virtual webinar intitulado “A sua saúde pode esperar? Em tempos de pandemia, não podemos deixar de lado a prevenção e o tratamento de outras doenças”, com o objetivo foi reforçar a importância da prevenção e da manutenção de outros tratamentos, mesmo diante da crise de saúde vivida atualmente.
Dentre os diversos questionamentos e problemáticas apresentados naquele seminário, podemos citar os seguintes:
A solução parcial apresentada pelos os médicos-especialistas refere-se principalmente à telemedicina, realidade que vem sendo confirmada durante a crise do novo Coronavírus, podendo inclusive auxiliar nesse controle para que eventos evitáveis recebam o atendimento devido.
Partindo para o campo do direito, os juristas também debruçaram sobre esse problema, suscitando algumas questões, tais como: a) a judicialização de pedidos de fornecimento de leitos em hospitais, sobretudo nas UTIs (unidades de terapia intensiva), em um cenário de extremas desigualdades sociais no Brasil, no qual não há vagas para todos, mesmo para casos que não envolvam a Covid-19; (ii) pleitos judiciais de tratamentos médicos que não possuem eficácia cientificamente comprovada, ainda que também não haja evidência do contrário; e (iii) pedidos para fornecimento de medicamentos de alto consumo ou mesmo que se encontram em falta no mercado, dentre outros.
Acerca de tais questionamentos, o Superior Tribunal de Justiça, nos autos do Recurso Especial Repetitivo nº 1.657.156[xv], fixou alguns parâmetros a serem observados pelos juízes no deferimento de pleitos de fornecimento de medicamentos que estiverem fora da lista do SUS – Sistema Único de Saúde: 1 – Comprovação, por meio de laudo médico fundamentado e circunstanciado expedido por médico que assiste o paciente, da imprescindibilidade ou necessidade do medicamento, assim como da ineficácia, para o tratamento da moléstia, dos fármacos fornecidos pelo SUS; 2 – Incapacidade financeira do paciente de arcar com o custo do medicamento prescrito; e 3 – Existência de registro do medicamento na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).
Entretanto, para a doutrina de DOMINGUES, BALBANI e LUTAIF (2020, p. 1 e ss.), a solução dessas questões é muito complexa e não possui uma fórmula “mágica” ou definitiva, uma vez que:
“A adoção de medidas de restrição de circulação de pessoas e de isolamento social pretende achatar a curva de contágio, atrasar seu pico e dar alguns dias de fôlego ao sistema, ao mesmo tempo em que os gestores públicos buscam providenciar a estrutura necessária para receber os pacientes, por meio da criação de novos leitos, da construção de hospitais de campanha e da aquisição de insumos, que necessitam de tempo para serem providenciados.
A progressiva concessão de tutelas jurisdicionais, ainda que sirva para atender a demandas de pacientes específicos, tem o potencial de trazer grave problema a esses gestores, que se veriam forçados ao cumprimento das ordens judiciais em detrimento da observância de protocolos clínicos — e é natural que uma família pense mais no atendimento de seu ente do que na concretização de uma política pública geral.”
Para a mesma doutrina, essa problemática se agrava porque, por meio da judicialização envolvendo a saúde, na prática, as pessoas visam a tutela judicial tão somente para o atendimento de demandas individualizadas, ou seja, as demandas individuais ameaçam comprometer o orçamento público, em detrimento do coletivo.
Inclusive, nesses casos, há um grande risco de o Poder Judiciário se sobrepor ao Poder Executivo em matéria de políticas públicas de saúde, principalmente se os magistrados não possuírem meios adequados de informação e suporte técnico para decisão. E serão justamente essas questões as mais decisivas para a concessão ou a negativa da tutela judicial individualizada.
Nesses casos, se as ações judiciais são inevitáveis, uma vez que a Constituição Federal de 1988 assegura a todos o acesso à justiça (princípio da inafastabilidade), os tribunais necessitarão de ferramentas técnicas e informações completas para possibilitar aos seus magistrados decidirem com racionalidade e serenidade.
É primordial, portanto, haver uma forte cooperação entre todos os órgãos públicos, privados e diversos profissionais, como médicos, juristas, economistas, cientistas, dentre outros, em uma atuação conjunta para evitar que as decisões judiciais provoquem o colapso do sistema como um todo, considerando-se que a humanidade não está livre de novas pandemias e que as demais doenças continuam e continuarão a afetar a grande parte da população.
Para a doutrina de BAUTEP (2006, p.1), essa cooperação é conhecida pelo termo “diálogo institucional”, que permite um processo decisório mais seguro pelos juízes, uma vez que está pautado em ideias e sugestões compartilhadas com os outros poderes:
“A ideia de diálogos institucionais ou deliberação dialogada enfatiza que o Judiciário não será detentor do monopólio na interpretação constitucional e, portanto, as decisões constitucionais devem ser produzidas por um processo de elaboração compartilhada entre o poder Judiciário e outros atores constitucionais.
As teorias do diálogo oferecem uma forma alternativa de preencher a lacuna de legitimidade democrática, superando a dificuldade contramajoritária do Judiciário. Por esse motivo, essa teoria vem ganhando espaço principalmente no que diz respeito à discussão da legitimidade democrática associada à revisão judicial.”
A seguir, citaremos alguns exemplos de diálogos institucionais que possibilitam aos juízes uma atuação mais segura nessa sensível área que envolve diversas ciências humanas.
O Conselho Nacional de Justiça (CNJ), já no ano de 2010, aprovou a Recomendação nº 31[xvi], que previu um conjunto de instruções para subsidiar sobretudo os juízes a tomarem decisões mais eficientes na solução das demandas envolvendo o direito à saúde. A recomendação orienta os magistrados a se utilizarem de mais fontes de informações para o deferimento de pedidos, bem como a proporcionarem a participação da comunidade médica e científica e dos gestores públicos na busca de solução.
Ainda no ano 2010, o mesmo CNJ aprovou a Resolução nº 107, criando o Fórum Nacional da Saúde, com a atribuição, dentre outras, de elaborar estudos e propor medidas concretas e normativas para o aperfeiçoamento de procedimentos, fornecendo ferramentas para subsidiar os magistrados com informações técnico-científicas e garantir uma decisão justa e baseada em evidências científicas.
No cenário pós pandemia, podemos citar a criação, pela Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (Enfam)[xvii], órgão vinculado ao Superior Tribunal de Justiça (STJ), no mês de março de 2020, de plataforma com vistas ao fornecimento de suporte para magistrados em casos relacionados à pandemia, por meio de estatísticas, relatórios de legislação, artigos, pareceres, notas técnicas, decisões e até cursos pela internet, tudo para auxiliar os magistrados na tomada de decisão mais segura, a partir de uma visão ampla do assunto.
Outro exemplo de cooperação interinstitucional foi a divulgação, pelo CNJ – Conselho Nacional de Justiça[xviii], de estudo realizado pelo Hospital Sírio-Libanês, referência para o tratamento da Covid-19 no Estado de São Paulo, acerca do uso da hidroxicloroquina, para orientar magistrados no julgamento de demandas que pleiteiam o seu fornecimento pelos órgãos públicos. A pesquisa realizada pelo renomado hospital concluiu pela ineficácia dos efeitos clínicos e de segurança daquele medicamento, não recomendando o seu uso.
Por fim, podemos citar a criação, pelo Poder Judiciário, a pedido do Supremo Tribunal Federal[xix], das Câmaras de conciliação, formadas com o desiderato de estimular a autocomposição, garantindo-se efetividade às decisões e a redução do número de demandas.
Conclui-se ser fundamental a existência da cooperação (ou diálogos institucionais) entre os poderes nas questões afetas à saúde, permitindo a abertura de um campo fértil para a tomada de decisões mais seguradas e pautadas na ciência.
CONCLUSÃO
A pandemia causada pelo novo Coronavírus deve ser tratada como evento imprevisível, de tal modo a possibilitar adequações orçamentárias, inclusive a flexibilização da regra de ouro pelos próximos anos, viabilizando ao estado, com prudência e fiscalização dos órgãos competentes, a realização de gastos além do orçamento anteriormente proposto.
A aplicação da teoria da imprevisão em razão da atual pandemia se compatibiliza com a queda da arrecadação tributária dos entes públicos e com o dever constitucional do estado no tocante à proteção da vida e da saúde pública, com vistas ao bem-estar de toda a sociedade.
Há questionamentos de médicos, juristas, economistas, dentre outros profissionais, acerca da obrigação constitucional do estado em promover a saúde da população como um todo, abarcando, além da COVID-19, outras doenças não menos importantes, como câncer, problemas cardíacos e até depressão.
Nesse cenário, surge o problema da judicialização envolvendo a saúde, por meio da qual as pessoas visam a tutela individual dos seus direitos, ameaçando comprometer o estado em detrimento do coletivo, inclusive com risco de interferência do Poder Judiciário em matérias de políticas públicas, a cargo do Poder Executivo.
A hipótese para essa problemática não é imediata, tampouco irrefutável, mas depende necessariamente de diálogos institucionais entre todos os órgãos públicos e privados, além de profissionais, como médicos, juristas, economistas, cientistas, dentre outros, em uma atuação conjunta para evitar que as decisões judiciais provoquem o colapso do sistema como um todo, considerando-se que a humanidade não está livre de novas pandemias e que as demais doenças continuam e continuarão a afetar a grande parte da população.
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SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. MC na ADI 6357, relator o Ministro ALEXANDRE DE MORAES. Disponível em https://www.conjur.com.br/dl/adi-6357-alexandre-lei-responsabilidade.pdf. Julgamento em 29/03/2020. Acesso em 10/09/2020.
TESOURO NACIONAL: Painel da Regra de Ouro. Disponível em https://www.tesourotransparente.gov.br/visualizacao/painel-da-regra-de-ouro. Acesso em 10/09/2020.
[i] ORGANIZAÇÃO PAN-AMERICANA DE SAÚDE (OPAS – BRASIL). Disponível em https://www.paho.org/bra/index.php?option=com_content&view=article&id=6100:oms-declara-emergencia-de-saude-publica-de-importancia-internacional-em-relacao-a-novo-coronavirus&Itemid=812. Acesso em 02.jul.2020.
[ii] REGULAMENTO SANITÁRIO INTERNACIONAL. Disponível em: http://portal.anvisa.gov.br/documents/375992/4011173/Regulamento+Sanit%C3%A1rio+Internacional.pdf/42356bf1-8b68-424f-b043-ffe0da5fb7e5. Acesso em 01.jul.2020.
[iii] MINISTÉRIO DA SAUDE DO BRASIL. Disponível em https://www.unasus.gov.br/noticia/organizacao-mundial-de-saude-declara-pandemia-de-coronavirus. Acesso em 01.jul.2020.
[iv] TESOURO NACIONAL: Painel da Regra de Ouro. Disponível em https://www.tesourotransparente.gov.br/visualizacao/painel-da-regra-de-ouro. Acesso em 10/09/2020.
[v] REVISTA VEJA. Disponível em https://veja.abril.com.br/economia/queda-recorde-na-arrecadacao-de-maio-traz-dura-conta-da-covid-19/. Publicada em 24/06/2020. Acesso em 11/09/2020.
[vi] SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. MC na ADI 6357, relator o Ministro ALEXANDRE DE MORAES. Disponível em https://www.conjur.com.br/dl/adi-6357-alexandre-lei-responsabilidade.pdf. Julgamento em 29/03/2020. Acesso em 10/09/2020.
[vii] BRASIL. Lei nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020. Disponível em https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/lei-n-13.979-de-6-de-fevereiro-de-2020-242078735. Acesso em 10/09/2020.
[viii] SENADO FEDERAL. Decreto Legislativo 6/2020. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/portaria/DLG6-2020.htm. Acesso em 11/09/2020.
[ix] SENADO FEDERAL. Noticias. Disponível em https://www12.senado.leg.br/noticias/senado-agora/2020/05/21/flexibilizacao-da-regra-de-ouro. Acesso em 11/09/2020.
[x] SENADO FEDERAL. Noticias. https://www12.senado.leg.br/noticias/audios/2020/05/governo-nao-tem-condicao-de-cumprir-regra-de-ouro-ate-2023-afirma-mansueto. Acesso em 11/09/2020.
[xi] A propósito, é digna de nota uma importante reportagem da BBC internacional, intitulada “Coronavírus: o que as grandes economias do mundo estão fazendo para evitar falências e a falta de dinheiro”, disponível em https://www.bbc.com/portuguese/internacional-51983863. Acesso em 02/07/2020.
[xii] REVISTA VEJA. Uma onda de doenças mentais vem com a Covid-19. Precisamos agir já! Presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria alerta para a explosão de transtornos mentais que pega carona na pandemia do coronavírus. Disponível em https://saude.abril.com.br/blog/com-a-palavra/uma-onda-de-doencas-mentais-vem-com-a-covid-19-precisamos-agir-ja/. Acesso em 12/09/2020.
[xiii] CNN BRASIL. Notícias. Disponível em https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/2020/05/12/covid-19-hospitais-de-campanha-em-sp-tem-quase-60-dos-leitos-ocupados. Publicação: 12/05/2020. Acesso em 12/09/2020.
[xiv] Disponível em https://www.bbc.com/portuguese/internacional-52593837. Acesso em 19/09/2020.
[xv] Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial Repetitivo n. 1657156, relator o Ministro Benedito Gonçalves, 1ª Seção. Disponível em http://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias-antigas/2018/2018-04-25_12-20_Primeira-Secao-define-requisitos-para-fornecimento-de-remedios-fora-da-lista-do-SUS.aspx. Acesso em 20/09/2020.
[xvi] CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Disponível em https://www.cnj.jus.br/solucoes-construidas-pelo-cnj-buscam-reduzir-judicializacao-da-saude/. Acesso em 19/09/2020.
[xvii] ENFAM – Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados. Disponível em https://www.enfam.jus.br/portal-covid19/. Acesso em 12/09/2020.
[xviii] CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Disponível em https://www.cnj.jus.br/programas-e-acoes/forum-da-saude-3/nat-jus-nacional/. Acesso em 12/09/2020.
[xix] REVISTA CONJUR. Disponível em https://www.conjur.com.br/2020-abr-02/saude-privada-chama-stf-mediar-requisicoesdos-governos. Acesso em 12/09/2020.
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