A judicialização do concurso público

Resumo: Este trabalho tem como objetivo a análise da judicialização do concurso público como fenômeno que atualmente provoca, cada vez mais, o poder judiciário. Provocação esta no sentido de se pronunciar, cumprindo a atividade fim desse Poder, e concomitantemente indo além, no aspecto de fixar regras para o certame, diante da ausência da atividade legiferante. A pesquisa traz também uma definição do que é o termo “concurso público”, assim como sua contextualização. O estudo ainda identifica a evolução do instituto na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça bem como no Supremo Tribunal Federal.

Palavras-chave: Concurso Público. Judicialização. Proporcionalidade e Razoabilidade.

Abstract: The objective of this work is the analysis of the judicialization of the public tender as a phenomenon that currently provokes, increasingly, the judiciary. Provocation is in the sense of pronouncing, fulfilling the activity end of this Power, and concomitantly going beyond, in the aspect of setting rules for the contest, before the absence of legifi- cant activity. The research also provides a definition of what is the term "public tender", as well as its contextualization. The study also identifies the evolution of the institute in the jurisprudence of the Superior Court of Justice as well as in the Federal Supreme Court.

Keywords: Public Tender. Judiciary. Proportionality and Reasonability.

Sumário: Introdução. 1. Contexto histórico do fenômeno da judicialização 2. Instituto do concurso público 3. Aprovação em concurso público e o direito à nomeação. Conclusão. Referências.

INTRODUÇÃO

Com a democratização do acesso ao Poder Judiciário, inaugurado pela Constituição Federal de 1988, na denominada fase do Estado Democrático de Direito, temos o “Estado transformador”, isto é, um Estado que a um só tempo tem momentos de atuação direta e momentos de abstenção. E é nesse contexto que vivemos no mundo hodierno. A realidade da “hipertrofia” do Poder Judiciário, difundida como “ativismo judicial”, vem sendo fortalecida através do controle das políticas públicas pelo Judiciário.

Importante observamos que nosso poder é uno, segundo a Carta da República de 1988 em seu art. 1º, parágrafo único, sendo o legitimado, titular desse poder, o povo. Mas para que haja a funcionalidade desse poder, em decorrência do Estado Democrático de Direito, necessário se faz revelar as funções desse poder. E assim então, temos as funções legislativa, executiva e judiciária, preceituadas como Poderes segundo o art. 2º da Carta da República. 

Vale observar que a cada fase de evolução do Estado, uma “função” se revela mais que a outra. Há um dado momento histórico que essas funções se sobressaem de forma mais evidente. Insta salientar que, essa relevância, ou a forma de sobressair de cada uma dessas funções é um tanto quanto “perigosa”. Afinal, há o risco de incorrer em omissões constitucionais dessas funções, e conseqüentemente gerar o efeito da desvalorização funcional da Constituição.

Isto é, com base na hodierna fase, fase de “hipertrofia” do Poder Judiciário, deve haver certo cuidado nessas “atuações cruzadas”. Isto porque o Poder Legislativo “não exerce com afinco”, na maioria das vezes, sua precípua função legiferante em razão do excesso de medidas provisórias que o Poder Executivo encaminha, e assim fica sobrecarregada a pauta, e os outros projetos de lei de sua atribuição permanecem inertes.

Por outro lado, o Poder Judiciário provocado por ações de argüição de descumprimento de preceito fundamental, mandados de injunção, diante das omissões legislativas, concede efeito concreto as suas decisões, atuando como “legislador positivo”. Com isso, tem-se o “efeito cascata”, gerando conseqüências político-funcionais, e principalmente orçamentárias para o Poder Público, como passaremos a analisar no presente caso o instituto do concurso público.

1 CONTEXTO HISTÓRICO DO FENÔMENO DA JUDICIALIZAÇÃO

Adotando como ponto de partida o Constitucionalismo Clássico, em que se iniciou a ideia de submissão à lei, “Rule of Law”, surgiu o “Estado de Direito”, ou seja, nascia a substituição do governo dos homens pelo governo das leis. Tem-se que a partir da Revolução Francesa, no ano de 1787, aos poucos, o Estado de Direito se institucionalizava.

Assim infere-se que o Estado de Direito passa a ser definidor de leis e ao mesmo tempo deve aplicar e respeitar, através dessas normas jurídicas, os limites de sua atividade. No decorrer do contínuo processo histórico, alguns filósofos notaram a necessidade de desconcentrar de uma só autoridade essas atividades estatais, quais sejam, a elaboração, aplicação e garantia dos limites da sua atividade.

Dentre esses filósofos cita-se Montesquieu que “inaugura” a ideia de separação dos poderes, sendo na verdade a divisão de funções do Estado, pertencentes a autoridades distintas e independentes entre si.

Vale frisar, que a separação de poderes não pode ser alterada pelo legislador, através de lei, pois, do contrário, bastar-lhe-ia exercer sua atividade (legislar) para anular o poder do administrador e do juiz. Nessa esteira, os indivíduos não teriam direitos oponíveis ao próprio Estado se este pudesse suprimi-los através de lei. Em suma, deve haver uma norma superior à lei, e, por via de consequência, superior ao Estado que a produz, definindo a estrutura do Estado e garantindo direitos individuais. A essa norma chamamos Constituição. [1]

Dentro desse contexto tem-se um Estado chamado de “Estado mínimo”, ou seja, um Estado que se limita a ordem e segurança públicas. Destacando as principais conquistas desse momento, a supremacia da Constituição; a separação dos poderes; a superioridade da lei e a os direitos de primeira geração, denominado por Georg Jellineck, como direitos de defesa.

Superada essa fase de Estado de Direito, que aos poucos se revelou insuficiente para atender aos anseios da sociedade, o Estado passa a incorporar instrumentos democráticos, transformando-se em um prestador de serviços, visando a redução das desigualdades sócias, econômicas e culturais. Momento esse que ocorre a “hipertrofia” do Poder Executivo, no século XX, pois o Estado além de garantidor passa a ser também prestador.

E por fim, chega-se ao Estado Democrático de Direito, criado e regulado pela Constituição Federal de 1988. Estado em que os agentes públicos fundamentais são eleitos e renovados periodicamente pelo povo e respondem pelo cumprimento de seus deveres; o poder político é exercido, em parte diretamente pelo povo, em parte por órgãos estatais independentes e harmônicos, que controlam uns aos outros; a lei produzida pelo Legislativo é necessariamente observada pelos demais Poderes; os cidadãos, sendo titulares de direitos, inclusive políticos, podem opô-los ao próprio Estado. [2]

Importante salientar que, nesse momento, já no século XXI configura-se a ideia de hipertrofia do Poder Judiciário, ou seja, o Estado além de garantidor, prestador, passa a ser transformador, denota-se daqui o crescente ativismo judicial. “Transfere-se” para o Poder Judiciário a concretização de determinados direitos quando os outros Poderes da República se mostram inertes, claro que, observando ao princípio da separação dos Poderes, afinal há independência entre eles, mas deve prevalecer a harmonia sob pena de inconstitucionais excessos.

E é nesse contexto que surge a crescente demanda no Poder Judiciário, principalmente no Supremo Tribunal Federal e Superior Tribunal de Justiça, com relação ao instituto do concurso público. Em razão da ausência de norma jurídica regulamentando o concurso público, os “concurseiros” se vêem a mercê dos órgãos e instituições realizadoras das provas, restando como alternativa levar os respectivos editais e lei da carreira ao Poder Judiciário quando inobservados determinados parâmetros.

 

Com a Carta da República de 1988, um capítulo foi destinado a Administração Pública, dispondo sobre a forma de acesso aos cargos públicos, formas de provimento, bem como o modo de racionalização da máquina administrativa, sendo este uma concretização do princípio da eficiência, instituído expressamente no texto constitucional com a Reforma administrativa em 1998.

A Carta da República, em seu art. 37 dispõe que:

“Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)

II – a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos, de acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego, na forma prevista em lei, ressalvadas as nomeações para cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração.”

Ainda na Carta da República temos o art. 5º, inciso XXV, que assim dispõe:

“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

XXXV – a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito;”

Conclui então, que a omissão do Poder Legislativo em concretizar a Constituição Federal, ocasiona a hipertrofia do Poder Judiciário que não apenas dirimem os conflitos dos “prováveis servidores públicos” com a Administração Pública, mas “trilha” o modo de agir da Administração quando o assunto é o concurso público.

2 INSTITUTO DO CONCURSO PÚBLICO

Pode-se definir o instituto do concurso público sendo um processo administrativo por meio do qual a Administração Pública, em consonância com os princípios da isonomia, moralidade e eficiência, seleciona candidatos aos cargos e empregos públicos, observando em sua realização a natureza e a complexidade do cargo ou emprego.

Desse modo, hoje, no Brasil, os cargos, empregos e funções públicas são acessíveis aos brasileiros, natos ou naturalizados, os portugueses equiparados que preencham os requisitos estabelecidos em lei, e aos estrangeiros, conforme autorização legal. Importante mencionar que no art. 12, § 3º, da Constituição Federal há uma lista de cargos que só podem ser preenchidos por brasileiros natos por motivos de segurança nacional.

Nessa linha de pensamento, ensina a ilustre ministra do Supremo Tribunal Federal, Carmen Lúcia Antunes Rocha, que, in verbis:

 “A acessibilidade dos cidadãos aos cargos públicos implica na abertura de caminhos sociais que conduzem ao Estado, numa mão dupla pela qual trafega o poder democrático, daí ser o princípio da acessibilidade uma manifestação do princípio da democracia, porque o seu acolhimento no sistema demonstra aquela opção, tornando-a eficaz quanto ás competências públicas[3].

O concurso público representa uma conquista do Estado Democrático de Direito, uma vez que democratizou o acesso aos cargos públicos, a todos os brasileiros que preenchidos os requisitos prévios são aprovados em razão de seu mérito. Rompendo com a “arcaica República de favoritismos”, perseguições pessoais, bem como o nepotismo[4]. E ainda densifica os princípios constitucionais que regem a Administração Pública.

Vale embasar o raciocínio acima conforme preceitua Ingo Wolfgang Sarlet[5], que sustenta que o concurso público é um direito fundamental. O concurso público representa a materialização da igualdade, a densificação do princípio da impessoalidade, que conseqüentemente às vezes será relativizado, admitida as devidas ponderações.

No Brasil, hoje é vedada a prova somente de títulos por prejudicar a disputa igualitária. Dessa forma a prova de titulação não pode ser o único parâmetro de seleção de candidatos a cargo ou emprego público, deve servir apenas como mecanismo de classificação dos candidatos no concurso.

Apesar da previsão constitucional do concurso público para a admissão de pessoal, há ainda mecanismo que visam burlar esse instituto, ou seja, contratações de pessoal que não pauta na legalidade, e principalmente impessoalidade e moralidade. Por esse motivo, além de outros posteriormente mencionados, é que a jurisprudência vem realizando essencial papel de aplicação dessa exigência, como segue os entendimentos abaixo:

I. Súmula n.º 685 do STF – É inconstitucional toda modalidade de provimento que propicie ao servidor investir-se, sem previa aprovação em concurso público destinado ao seu provimento, em cargo que não integra a carreira na qual anteriormente não investido.

I. Impossibilidade de transformação de cargos ou a transferência de servidores celetistas não submetidos a concurso público para servidores estatutários, o que pressupõe a ocupação de cargos efetivos[6].

II. A proibição para a criação de novas carreiras com inúmeros cargos para serem preenchidos com antigos servidores de carreiras diversas, independentemente de serem eles celetistas ou estatutários. Nova carreira exige novo concurso público;

III. Ser vedado o aproveitamento de servidores de um ente político em cargos ou empregos de outros entes públicos. A exigência de concurso público se refere à investidura em cargo ou emprego público de carreira de cada pessoa jurídica de direito público, não autorizando o provimento inicial de cargo ou emprego de entidade política diversa (ADI n.º 402, STF)

IV. Proibido o aproveitamento de servidores de cargos extintos em outros cargos e que não haja plena identidade substancial entre eles, compatibilidade funcional e remuneratória e equivalência dos requisitos exigidos em concurso (EResp 361107/PR)

3 APROVAÇÃO EM CONCURSO PÚBLICO E O DIREITO A NOMEAÇÃO

Seguindo o conceito de concurso público como um processo administrativo, denota-se a presença de princípios ao seu redor, e principalmente quando caracterizada situações demandantes surge para os participantes o direito ao contraditório. Nessa esteira fez com que o Supremo Tribunal Federal se manifestasse sobre a abertura de concursos com números de vagas previstas em edital, e eventual ausência de nomeações dos aprovados dentro no respectivo número de vagas.

Sabe-se que a publicação do edital pela Administração Pública representa a exteriorização de sua real necessidade em prover cargos, ou seja, o interesse daquela em preencher vagas em seu quadro para cumprir com o dever de prestação do serviço público. E nesse sentido é que, espera da Administração a mínima observância da boa-fé tanto no aspecto objetivo, comportamento, quanto no aspecto subjetivo, conhecimento, que ao publicar um edital com número de vagas, cumpra com seu ato, pois envolve o participante do certame que deposita sua boa-fé na Administração.

Durante muitos anos o Supremo Tribunal Federal entendia que o candidato aprovado em concurso público era detentor de mera expectativa de direito á nomeação. Tendo inclusive editado súmula nesse sentido. E assim, o participante se via a mercê da Administração, e principalmente pelo fato do Poder Judiciário não “coagir” a Administração agir de forma proba, sem contradições, e cumprir com o edital publicado.

Fato esse que ocasionou o desvirtuamento do instituto do concurso público, pois tornou uma verdadeira praxe abrir concursos públicos, diga-se de passagem muitas vezes com valores de inscrições exorbitantes, para que ao final do certame não procedesse às respectivas nomeações. Tudo isso motivado pelo entendimento de que esse fato inseria-se no poder discricionário da Administração, ou seja, conforme a conveniência e oportunidade realizavam-se as nomeações, sendo estas mera liberalidade, inexistindo vinculação da Administração.

Mas a jurisprudência avançou, rompendo com esse antigo entendimento de discricionariedade da Administração, e o Supremo Tribunal Federal reconheceu a força normativa do concurso público, que vincula diretamente a Administração. Formou um importante precedente na ocasião do julgamento do recurso extraordinário, RE 598.099, em 10.08.2011. Ocasião esta, decidiu o direito á nomeação daquele aprovado em concurso público dentro do número de vagas, no prazo de validade do certame, pautado nos princípios da boa-fé, segurança jurídica e proteção à confiança.

Salientou o STF que essa é a regra, mas pode vir a excepcioná-la nos casos de fatos supervenientes, imprevisibilidade que ocasione difícil cumprimento das metas orçamentárias, desde que motivados pela Administração. Lembrando que esses fatos não poderão ser livremente arguidos pela administração, já que esta tem o primordial dever de planejamento.

CONCLUSÃO

É notória a necessidade de atuação do poder legislativo, cumprindo sua atividade fim, qual seja, legislar sobre a matéria, para que haja uma pacificação e segurança jurídica na aplicação do instituto do concurso público. Necessidade esta, demonstrada ao longo do trabalho que merece ser concretizada haja vista ser a principal forma de contratação de pessoal pela Administração Pública.

Conclui-se então, que a omissão do Poder Legislativo em concretizar a Constituição Federal, ocasiona a hipertrofia do Poder Judiciário que não apenas dirimem os conflitos dos “prováveis servidores públicos” com a Administração Pública, mas “trilha” o modo de agir da Administração quando o assunto é o concurso público.

Logo, o presente trabalho teve o intuito de demonstrar a necessidade de atuação dos poderes executivo e legislativo para concretizar, em forma de lei, o procedimento de realização do concurso público bem como seu desdobramento. E assim, cumprir o mandamento da administração pública gerencial, a eficiência, que gera maior credibilidade e respeito em torno do instituto do concurso público.

Tudo isso por ser um instituto que funciona e que é merecedor de respeito, pois estimula a competitividade, a seleção de um corpo técnico cada vez mais profissionalizado. Basta que haja, um efetivo cumprimento das funções do Poder estatal, e não apenas o controle por um único Poder.

 

Referências
SUDFELD, Carlos Ari. Fundamentos de Direito Público. São Paulo: Ed. Malheiros, 4ª. Ed., 3ª tiragem, 2002, p.53-54.
ROCHA, Carmen Lúcia Antunes. Princípios constitucionais dos servidores públicos. Saraiva: São Paulo, 1999, p.144.
MELLO, Celso Antonio Bandeira. Curso de Direito Admiinistrativo. 20ª.ed. Malheiros, 2007.
SARLET. Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 7ª ed, Livraria do Advogado: Porto Alegre, cap. 4.
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 21ª. ed. Lumen Juiris, 2009.
Referência de internet
BRASIL, Constituição da República Federativa (5 de outubro de 1988). Presidência da República. Acesso em 10 de fevereiro de 2013, disponível em Presidência da república: http://www4.planalto.gov.br/legislacao
FEDERAL, Supremo Tribunal (04 de maio de 2004). Pesquisa de jurisprudência no STF. Acesso em 12 de fevereiro de 2013, disponível em Supremo Tribunal Federal:http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia

Informações Sobre o Autor

Lorena Araújo de Oliveira

Procuradora Federal da Advocacia Geral da União em Brasília/DF, Bacharel em Direito pela Pontifícia Univer-sidade Católica de Goiás (PUC/GO) e Especialista em Direito Público e Advocacia Pública pela Universidade Cândido Mendes


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