Resumo: O presente artigo parte dos pressupostos da Lei da Reforma Psiquiátrica (Lei 10.216), abordando as heterogeneidades enunciativas para designar a polifonia discursiva, distinguindo-se a heterogeneidade constitutiva da constituinte (mostrada). Possui como objetivo geral compreender os traços das heterogeneidades enunciativas presentes na Lei 10.216/2001, a chamada Lei da Reforma Psiquiátrica. O estudo tece considerações sobre a loucura, considerando-se que ela só existe em cada homem, porque é o homem que a constitui no apego que ele demonstra por si mesmo e através das ilusões com que se alimenta. Em seguida, delineia a enunciação e o discurso da Lei 10.216 para alcançar a compreensão dos traços das heterogeneidades enunciativas no discurso da supracitada lei.
Palavras-chave: Heterogeneidades Enunciativas. Lei 10.216. Loucura.
Sumário: 1. Introdução, 2. Considerações sobre a loucura, 3. A enunciação e o discurso da Lei 10.216, 4. Heterogeneidade (s) enunciativa (s) e a lei da reforma psiquiátrica, 5. Breve análise do corpus, 6. Considerações finais. Referências.
1 INTRODUÇÃO
A loucura pode ser entendida como a forma principal e primeira do movimento com o qual a verdade do homem passa para o lado do objeto e se torna acessível a uma percepção científica. O homem só se torna natureza para si mesmo na medida em que é capaz de loucura. Como passagem espontânea para a objetividade, a loucura é momento constitutivo no devir-objeto do homem.
Utiliza-se o termo heterogeneidade(s) enunciativa(s) para designar a polifonia discursiva, distinguindo-se a heterogeneidade constitutiva da constituinte (mostrada). A constitutiva designaria as vozes implícitas no discurso, aquelas que se originam na história, na cultura e que podem ser identificadas pelo estudo das condições de produção discursiva. A constituinte seriam as vozes explícitas que se “mostram” na superfície textual.
A presente pesquisa possui como objetivo geral compreender os traços da(s) heterogeneidade(s) enunciativa(s) presentes na Lei 10.216/2001, a chamada Lei da Reforma Psiquiátrica. E como objetivos específicos: tecer considerações sobre a loucura; delinear a Lei 10.216 enquanto produtora de enunciação e discurso; e delimitar traços característicos da heterogeneidade(s) enunciativa(s) da referida lei, analisando-os.
O trabalho iniciou-se com estudos bibliográficos sobre o discurso e a loucura, na perspectiva foucoultiana. A partir deste ponto, partiu-se para estudos relativos a(s) heterogeneidade(s) enunciativa(s), utilizando-se, para tal, as categorias centrais de argumentação propostas por Jacqueline Authier-Revuz. Para o aprofundamento no tema, fez-se necessário, em especial, as contribuições de Inesita Araújo.
Neste contexto, utilizou-se a Lei 10.216 que dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental. Com tal lei, verificou-se a(s) heterogeidade(s) enunciativa(s) que estavam presentes na mesma. Assim, usou-se do método de postulação do interdiscurso para dar conta dessa(s) heterogeneidade(s).
No decorrer da execução da presente pesquisa, existiram algumas dificuldades. Primeiro houve um processo de conhecimento do corpus, procurando ter algo de concreto. Depois houve o desconhecimento. Nesta etapa operou-se entravamentos, pois se tornou necessário a desconfiança do objeto. Assim, foi-se delineando um meio termo entre o tocável e o intocável. Fez o recorte de que o próprio domínio não pode ser considerado como definitivo, nem como válido de forma absoluta. Tratou-se de uma primeira aproximação que permitiu o aparecimento de relações que correram o risco de suprimir os limites da tentativa de esboçamento teórico. Dessa forma, procurou-se, por fim, (re)conhecer o corpus, tendo-se em mente a premissa de que mais do que revelar uma realidade, o discurso constrói uma realidade, conforme a multiplicidade de sentidos que os objetos assumem.
Em um primeiro momento, o estudo tece considerações sobre a loucura, considerando-se que ela só existe em cada homem, porque é o homem que a constitui no apego que ele demonstra por si mesmo e através das ilusões com que se alimenta. Em seguida delineia a enunciação e o discurso da Lei 10.216 para alcançar a compreensão dos traços da(s) Heterogeneidade(s) Enunciativa(s) no discurso da supracitada lei. Por fim, são feitas considerações finais que procuram dar um feixo aos aspectos que foram abordados.
2 CONSIDERAÇÕES SOBRE A LOUCURA
Sabe-se que até a segunda metade do século XV o tema da morte imperava de modo absoluto. O fim dos tempos e dos homens assumia o retrato das guerrilhas e das pestes. Assim, o que dominava a existência humana eram este fim e a ordem linear da qual ninguém escaparia.
A substituição do tema da morte pelo da loucura não marcou uma ruptura, mas uma virada no interior desta mesma inquietude. Tratou-se do vazio da existência. Este vazio não é mais reconhecido como termo exterior e final. É sentido do interior, como forma contínua e constante da existência humana.
Entende-se que a linguagem é a estrutura da loucura. “Ela é sua forma constituinte, é nela que repousam os ciclos nos quais ela enuncia sua natureza” (FOUCAULT, 2007, p.237). O fato de a essência da loucura poder ser definida na estrutura simples de um discurso não a remete a uma natureza puramente psicológica, mas lhe confere ascendência em relação à totalidade da alma e do corpo. Este discurso age silenciosamente como linguagem que o próprio indivíduo formula a si mesmo na verdade que lhe é própria e articulação visível nos movimentos em relação aos outros. Dessa forma,
“Uma vez que só pode falar a linguagem da alienação, a psicologia, portanto só é possível na crítica do homem ou na crítica de si mesma. Ela está sempre, por natureza, na encruzilhada dos caminhos: aprofundar a negatividade do homem ao ponto extremo· onde amor e morte pertencem um ao outro indissoluvelmente, bem como o dia e a noite, a repetição atemporal das coisas e a pressa das estações que se sucedem – e acabar por filosofar a marteladas. Ou então exercer-se através das retomadas incessantes, dos ajustamentos do sujeito e do objeto, do interior e do exterior, do vivido e do conhecimento” (FOUCOULT, 2007, p. 522).
Ressalte-se que é possível objetar que em todas as épocas houve uma dupla apreensão da loucura. Uma moral sobre um fundo do razoável. Outra objetiva e médica sobre um fundo de racionalidade.
A loucura dos homens consistia em sentir que o termo da morte se aproximava. Passou a consistir na sabedoria de denunciar a loucura por toda parte, em ensinar aos homens que eles não são mais que mortos. Ensinar que se o fim está próximo será na medida em que a loucura universalizada formará uma só e mesma entidade com a própria morte. Assim, “a loucura só existe em cada homem, porque é o homem que a constitui no apego que ele demonstra por si mesmo e através das ilusões com que se alimenta” (FOUCAULT, 2007, p.24).
As descobertas extremas sobre o psiquismo humano permitem considerar que a experiência da loucura que se estende do século XVI até hoje deve sua figura particular a maneira que o transtorno mental se instaurou no indivíduo enquanto ser que busca uma normalidade. Assim, a análise da loucura como doença mental deve ser (re)interpretada numa dimensão vertical. Tal dimensão verifica-se com base no ser humano considerado louco. E oculta de uma maneira mais completa e também mais perigosa a experiência trágica que uma possível tentativa de retidão não consegue reproduzir face as peculiares do indivíduo acometido de transtorno mental.
Desde a Segunda Guerra que a assistência psiquiátrica vem sofrendo profundas mudanças nos países ocidentais, em especial na Itália. A princípio, houve a tentativa de se transformar internamente o asilo e o hospital psiquiátrico. Buscava-se humanizá-lo, torná-los terapêuticos e mais eficazes na recuperação da população internada. A partir da década de 70, consolida-se um projeto assistencial que atualmente revela no Brasil o seu caráter desafiador: a proposta de desinstitucionalização que se centra em uma mudança completa do paradigma de saber em saúde mental.
Então, do ponto de vista assistencial, constata-se que o hospital psiquiátrico tradicional é definitivamente antiterapêutico e que a estratégia de conversão do sistema de cuidado deve partir da substituição radical do hospital por um amplo rol de “serviços abertos e comunitários, capazes de assistir o usuário desde a crise aguda e as demandas de cuidado psicológico até as necessidades mais amplas de cuidado social” (VASCONCELOS, 2008, p.39).
3 A ENUNCIAÇÃO E O DISCURSO DA LEI 10.216
Entende-se enunciação como o ato de utilização de signos lingüísticos verbais e não-verbais num dado contexto comunicativo. A utilização do discurso está envolta da enunciação e supõe, numa situação de comunicação, locutor(es) e interlocutor(es). Entender os sentidos de um texto (em sentido lato) é perceber que nele está intrínseco a enunciação e o discurso que os compõem e que tais sentidos são dotados de ideologia.
O ideológico é uma relação entre o que existe no textual e no extratextual. Tal relação surge sob a forma de hipóteses, ligando certos aspectos dos textos às condições de produção dos mesmos. O ideológico está por toda parte e pode ser considerado como uma dimensão que diz respeito à relação do investimento de sentido com os mecanismos de base do funcionamento social enquanto condições de produção do sentido.
Desse modo, manifesta-se em diversos níveis da comunicação social e investe-se em diversas matérias significantes, como o comportamento, a linguagem e a imagem. Assim,
“O ideológico não é, portanto, algo da ordem “superestrutural”: é uma dimensão que atravessa toda a sociedade. O que não significa que todo sentido produzido numa sociedade seja Ideológico: afirmar que o ideológico está por toda parte não é o mesmo que dizer que tudo é ideológico. Numa sociedade e no que diz respeito ao sentido, produzem-se muitas outras coisas além do ideológico” (VERÓN, 2004, p. 56).
Sabe-se que uma superfície textual é composta por marcas. Estas podem ser interpretadas como traços de operações discursivas subjacentes. Remete-se às condições de produção do discurso, definindo o marco de leituras possíveis e o marco dos efeitos de sentido desse discurso. Assim, as operações não são per si visíveis na superfície textual. Elas devem ser postuladas a partir das marcas na superfície. Então, descrevem-se operações quando se faz análise dos discursos.
Nesta perspectiva, um discurso não tem unidade própria. Os discursos são concebidos como sendo o lugar de manifestação de uma multiplicidade de sistema de condições, uma rede de interferências. Então, mais do que revelar uma realidade, o discurso constrói uma realidade.
A descrição do discurso se opõe à história do pensamento. Não se concebe (re)constituir um sistema de pensamento a partir de um conjunto definido de discursos. Mas esse conjunto é tratado de tal maneira que se tenta encontrar, além dos próprios enunciados, “a intenção do sujeito falante, sua atividade consciente, o que ele quis dizer, ou ainda o jogo inconsciente que emergiu involuntariamente do que disse ou da quase imperceptível fratura de suas palavras manifestas” (FOUCAULT, 2004, p. 30).
Trata-se de (re)constituir um outro discurso, de procurar pela palavra muda e inesgotável que estabelece o texto invisível que percorre o interstício das linhas escritas e, às vezes, (des)arruma as idéias. Por isso, pode-se considerar que a análise do pensamento possivelmente torna-se alegórica em relação ao discurso que utiliza. Alegoria entendida no sentido de várias metáforas consecutivas, exprimindo por alusão idéia diferente da que se enuncia.
Neste sentido, a enunciação é sintaticamente definida como o colocar em funcionamento a língua por um ato de utilização. Supõe a conversão individual da língua em discurso. Na enunciação considera-se, sucessivamente, o próprio ato, as situações em que o discurso se realiza e os instrumentos de sua realização. “Depois da enunciação, a língua é efetuada em uma instância de discurso, que emana de um locutor, forma sonora que atinge um ouvinte e que suscita uma outra enunciação de retorno” (BENVENISTE, 1991, p.83-84).
A Lei 10.216 de 2001 dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental. Os seus enunciados mostram-se diferentes em sua forma, dispersos. Mas formam um conjunto quando de modo amplo se referem a uma mesma temática: a loucura. Assim, parece que os enunciados referem-se a essa temática que se perfila, de diferentes maneiras, na experiência individual ou social, e que se pode designar por transtorno mental.
A partir desta temática, tem-se a multiplicidade dos objetos: proteção das pessoas portadoras de transtorno mental, seus direitos e modelo assistencial em saúde mental. Assim, verifica-se que a unidade de um discurso é feita pelo espaço onde diversos objetos se perfilam e continuamente se transformam, e não pela permanência e singularidade de uma temática.
Neste sentido, a unidade dos discursos sobre a loucura não estaria fundada na existência da temática loucura, ou na constituição de um único horizonte de objetividade. Assim,
“A unidade dos discursos sobre a loucura seria o jogo das regras que definem as transformações desses diferentes objetos, sua não-identidade através do tempo, a ruptura que neles se produz, a descontinuidade interna que suspende sua permanência. De modo paradoxal, definir um conjunto de enunciados no que ele tem de individual consistiria em descrever a dispersão desses objetos, apreender todos os interstícios que os separam, medir as distâncias que reinam entre eles – em outras palavras, formular sua lei de repartição” (FOUCOULT, 2004, p. 37).
A partir da multiplicidade dos objetos da temática loucura na Lei 10.216 é possível admitir a unidade de um discurso é feita pelo espaço onde diversos objetos se perfilam e continuamente se transformam, e não pela permanência e singularidade de um objeto. Logo se sabe que cada um destes objetos possui seus discursos. Por sua vez, esses discursos constituem e elaboram a temática loucura, transformando-a inteiramente no sentido discursivo da referida Lei.
4 HETEROGENEIDADE (S) ENUNCIATIVA (S) E A LEI DA REFORMA PSIQUIÁTRICA
Jacqueline Authier-Revuz (1990) propõe o que chama de heterogeneidade constitutiva do sujeito e de seu discurso. Apóia-se, de um lado, nos trabalhos que tomam o discurso como produto de interdiscursos ou, em outras palavras, na problemática do dialogismo bakhtiniano. Por outro lado, apóia-se na abordagem do sujeito e de sua relação com a linguagem permitida por Freud e sua releitura efetuada por Lacan.
O dialogismo do círculo de Bakhtin não tem como preocupação central o diálogo face a face. Constitui uma teoria da dialogização interna do discurso através de uma reflexão multiforme e semiótica. Inevitavelmente as palavras são as palavras dos outros. Nesta perspectiva, atravessam-se as análises do plurilinguismo e dos jogos de fronteiras constitutivas dos falares sociais, das formas lingüísticas e discursivas do hidrismo e da bivocalidade que permite a representação no discurso da presença do outro, uma situação polifônica.
O sujeito visto como produtor do discurso que utiliza crê ser a fonte deste seu discurso. Ele nada mais é do que o suporte e o efeito do discurso que utiliza. Assim, tal análise postula um funcionamento regulado do exterior, do interdiscurso e busca dar conta da produção do discurso, maquinaria estrutural ignorada pelo sujeito. Desse modo,
“O fragmento designado como um outro é integrado à cadeia discursiva sem rupturas sintática: de estatuto complexo, o elemento mencionado é inscrito na continuidade sintática do discurso ao mesmo tempo quem, pelas marcas, que neste caso não são redundantes, é remetido ao exterior do discurso” (AUTHIER-REVUZ, 1990, p. 29-30).
As distinções operadas pelas formas marcadas de heterogeneidade revelam uma relação entre um (uns) e outro(s), inscrita no comparável, no comensurável, na pluralidade. Assim, a dupla designação de um fragmento outro e da alteridade a que remete constitui uma situação de afirmação que faz o enunciador do discurso utilizar do dialogismo sem necessariamente se dar conta de tal utilização.
A heterogeneidade constitutiva do discurso e heterogeneidade mostrada representam no discurso duas ordens de realidade diferentes. Uma é a dos processos reais de constituição de um discurso. Outra é a dos processos não menos reais, de representação, num discurso, de sua constituição.
A Semiologia propõe que o discurso é composto por diversas vozes, cuja consciência e controle escapam em parte ao locutor e que se manifestam em cada ato enunciativo. Tal idéia é contra o entendimento de que a pessoa que fala é totalmente responsável pelas representações do seu discurso. Ressalte-se que a essa característica discursiva Bakthin denominou polifonia, em que “cada fala, cada enunciação, é palco de expressão de uma multiplicidade de vozes, algumas arregimentadas intencionalmente pelo locutor e outras das quais ele não se dá conta” (ARAÚJO, 2000, p.124).
5 BREVE ANÁLISE DO CORPUS
Entende-se corpus como o conjunto de material recolhido e bem delimitado no tempo e no espaço apto a servir para a descrição lingüística. O presente estudo possui como corpus o texto escrito da Lei 10.216 de 06 de abril de 2001, chamada Lei da Reforma Psiquiátrica, que possui treze artigos e, se comparada a outras leis, possui uma brevidade legislativa. Tal legislação foi publicada no Diário Oficial da União e sancionada pelo até então Presidente da República Fernando Henrique Cardoso, entrando em vigor na data da sua publicação.
Sabe-se que os textos não surgem isoladamente num dado universo discursivo. E as marcas ou pistas do processo de geração de sentidos que o analista interpreta numa superfície textual “são dependentes do contexto. Isto quer dizer que uma mesma marca encontrada pelo analista em suas superfícies textuais produzidas em contextos diferentes, pode ter interpretações diferentes” (PINTO, 1999, p. 56).
Preliminarmente, quanto à brevidade legislativa, pode-se inferir que tal disposição em poucos artigos possivelmente denotam o fato de que não existe grande interesse quanto ao tema. Tal fato se afirma pelos diversos estudos que mostram o fato de que a Reforma Psiquiátrica encontra sérios limites na sua efetividade. Assim, a lei divulga direitos, proteção e modelo assistencial, mas não explana de modo preciso o que acontece com quem os descumprem e com como podem ser conseguidos meios para garantir a sua efetividade.
Logo no início da referida lei tem-se:
“LEI No 10.216, DE 6 DE ABRIL DE 2001.
Dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental”
Verifica-se a presença da heterogeneidade constituinte (mostrada) ao ser explícito os objetos da lei, que são: a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e o modelo assistencial em saúde mental. A heterogeneidade constitutiva se evidencia quando não há de modo explícito a temática da lei, que é a loucura e as idéias que existem acompanhando cada situação constituinte dos objetos desta lei. Veja-se mais detalhadamente a constitutiva:
“Art. 4o (caput) A internação, em qualquer de suas modalidades, só será indicada quando os recursos extra-hospitalares se mostrarem insuficientes.”
No enunciado deste artigo 4º designam-se vozes implícitas no discurso. Essas vozes se originam na história, na cultura e podem ser identificadas pelo estudo das condições de produção discursiva. Assim, pela leitura fica exposto a possibilidade de internação quando os recursos extra-hospitalares se mostrarem insuficientes. Subentendidamente, tem-se que se admite as falhas do Estado brasileiro, e a possibilidade pragmática da não distribuição dos recursos de modo que garantam as condições básicas do ser-humano acometido da loucura, possivelmente por pertencer a um setor não muito atuante na sociedade-civil.
Observe-se o seguinte artigo:
“Art. 11. Pesquisas científicas para fins diagnósticos ou terapêuticos não poderão ser realizadas sem o consentimento expresso do paciente, ou de seu representante legal, e sem a devida comunicação aos conselhos profissionais competentes e ao Conselho Nacional de Saúde.”
Neste artigo 11, ficam delimitados os conceitos de sujeitos do discurso, proposto por Inesita Araújo (2000). Assim, o sujeito da enunciação é a imagem daquele que se apresenta como emissor, como o responsável pelo discurso, sendo tanto o Congresso Nacional como o Presidente da República, pela decreto e sanção, respectivamente. O sujeito do enunciado é a imagem daquele a quem se fala, que corresponde ao receptor idealizado. Como o texto possui como característica a impessoalidade, “este sujeito passa a ser aquele de quem se fala, embora continue sendo a segunda pessoa do discurso” (ARAÚJO, 2000, p.127). E os enunciadores se compõem pelas demais vozes arregimentadas pelo emissor, legitimando sua própria imagem. Assim, utilizam-se de modo bem notório os conselhos profissionais competentes e ao Conselho Nacional de Saúde.
Desse modo, pela breve análise feita observa-se que a representação da enunciação é igualmente constitutiva. Assim, mesmo em um texto aparentemente neutro, como os das leis, verifica-se que além do eu que se coloca como sujeito de seu discurso, introduz-se aqueles que falam em sua fala. As formas marcadas da heterogeneidade reforçam e confirmam esse eu “por uma especificação de identidade, dando corpo ao discurso – pela forma, pelo contorno, pelas bordas, pelos limites que elas traçam – e dando forma ao sujeito enunciador – pela posição e atividade metalingüística que encenam” (AUTHIER-REVUZ, 1990, p. 33).
Então, a atenção às formas concretas da representação da enunciação pode contribuir no âmbito do discurso para manter a distinção entre o eu pleno e os sujeitos que ele atropela. E também para denunciar a idéia do domínio pleno como ilusões do sujeito, recolocando tal distinção no nível dos mecanismos produtores dessas ilusões que são, entre outras, as formas da heterogeneidade mostradas.
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente estudo partiu da concepção de que o homem só se torna natureza para si mesmo na medida em que é capaz de loucura, concepção esta baseada na perspectiva foucaltiana. Em seguida, utilizou-se da categoria sobre heterogeneidade enunciativa e designou-se a polifonia discursiva.
Avalia-se que a pesquisa logrou êxito, pois adequou os seus resultados aos objetivos para que fora proposta. Assim, ao final conseguiu-se compreender os traços da (s) heterogeneidade (s) enunciativa (s) na Lei 10.216/2001, a chamada Lei da Reforma Psiquiátrica. Para tal, utilizou-se de considerações sobre a loucura; de delineamento da Lei 10.216 enquanto produtora de enunciação e discurso; e delimitou-se os traços característicos da heterogeneidade(s) enunciativa(s) da referida lei a partir de sua descrição lingüística.
Em síntese, o presente trabalho tece suas considerações finais conforme os tópicos que ora se seguem. Frise-se a sugestão para futuras pesquisas sobre as marcas de heterogeneidade(s) enunciativa(s) abordado outros gêneros discursivos que envolvam os textos de lei.
I. Distingue-se a heterogeneidade constitutiva e a constituinte (mostrada);
II. A linguagem pode ser entendida como a estrutura da loucura. Ela é sua forma constituinte, é nela que repousam os ciclos nos quais ela enuncia sua natureza;
III. Desde a Segunda Guerra a assistência psiquiátrica vem sofrendo profundas mudanças nos países ocidentais;
IV. Do ponto de vista assistencial, contata-se que o hospital psiquiátrico tradicional é definitivamente antiterapêutico;
V. Enunciação é o ato de utilização de signos lingüísticos verbais e não-verbais num dado contexto comunicativo;
VI. O ideológico é uma relação entre o que existe no textual e no extratextual. Tal relação surge sob a forma de hipóteses, ligando certos aspectos dos textos às condições de produção dos mesmos;
VII. Os discursos são concebidos como sendo o lugar de manifestação de uma multiplicidade de sistema de condições, uma rede de interferências;
VIII. A descrição do discurso se opõe à história do pensamento. Não se concebe (re)constituir um sistema de pensamento a partir de um conjunto definido de discursos;
IX. A enunciação é sintaticamente definida como o colocar em funcionamento a língua por um ato de utilização. Supõe a conversão individual da língua em discurso;
X. A Lei 10.216 de 2001 dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental. Os seus enunciados mostram-se diferentes em sua forma, dispersos. Mas formam um conjunto quando de modo amplo se referem a uma mesma temática: a loucura;
XI. Na Lei 10.216, a unidade dos discursos sobre a loucura não estaria fundada na existência da temática loucura, ou na constituição de um único horizonte de objetividade;
XII. O dialogismo do círculo de Bakhtin não tem como preocupação central o diálogo face a face. Constitui uma teoria da dialogização interna do discurso através de uma reflexão multiforme e semiótica;
XIII. As distinções operadas pelas formas marcadas de heterogeneidade revelam uma relação entre um (uns) e outro(s), inscrita no comparável, no comensurável, na pluralidade;
XIV. Pode-se inferir pelas análises que tal lei possivelmente denota o fato de que não existe grande interesse quanto ao tema loucura;
XV. Na análise da supracitada lei, as formas m arcadas da heterogeneidade reforçam e confirmam esse eu por uma especificação de identidade, dando corpo ao discurso – pela forma, pelo contorno, pelas bordas, pelos limites que elas traçam – e dando forma ao sujeito enunciador – pela posição e atividade metalingüística que encenam.
Informações Sobre os Autores
Manoel Valente Figueiredo Neto
Mestre em Políticas Públicas –UFPI. Especialista em Gestão Pública. Especialista em Direito Civil. Professor de Direito. Bacharel em Direito e Licenciado em Letras.
Lúcia Cristina dos Santos Rosa
Doutora em Serviço Social –UFRJ e Doutora em Sociologia –UFPE – Coordenadora do Mestrado em Políticas Públicas da UFPI