Há não muito tempo em uma aula que versava sobre a atuação do Direito
enquanto ciência na história das civilizações, foi
levantada por um aluno a questão dos abusos praticados pela inquisição na idade
medieva e inquiria-se que se tal abuso ocorresse
hodiernamente, qual seria a reação da Comunidade Internacional? Ora, a resposta
se nos apresenta rápida no sentido de que com a imensa gama de dispositivos e orgãos supranacionais, restaria certo uma sanção por parte
da Comunidade das Nações para se evitar abusos e violências contra os direitos
humanos.
Contudo, não é próprio da
ciência jurídica a superficialidade e a simplicidade na abordagem fática
e análise valorativa. “Há divergências”, alguns diriam, para expressar uma
realidade internacional, abordada pelo direito comparado, que
apresenta um mundo com múltiplas realidades, diferenciados valores
culturais e estruturas sociais.
Vide, por exemplo
a situação do Sudão, onde embora sendo difícil para um estudioso ocidental
entender, no Estado Islâmico o governo, a religião e a lei são inseparáveis.
Penas públicas como a amputação de membros e o açoite são comuns para o
muçulmano assim como a multa de trânsito para um ocidental. Como fica a
situação da legalidade da lei positiva apregoada pelos “esclarecidos”
ocidentais; e a situação dos direitos humanos? É notória que a falha da Liga
das Nações foi a de não estatuir nenhum órgão supranacional para fazer aplicar
a lei internacional ( Tratados, Convenções, etc…), ou seja, não criar sanções suficientes para fazer
valer o Direito Internacional.
Este é o objeto do presente trabalho:
utilizando-se de uma metodologia narrativa, analisar a limitação do sistema
jurídico internacional ocidental frente à uma das
fontes de direito que é o costume, com suas prescrições e atuações hoje e a consequente problemática que levanta o dualismo da cultura
dos povos e do dever-ser do homem médio ocidental “latu sensu”.
A norma jurídica e o
sistema cultural
Todo o ordenamento jurídico de um Estado
soberano advém de uma situação fática das relações sociais. Sobre este tema
existem os mais diversos estudos, sendo contudo,
bastante razoável aceitar que uma sociedade organizada estipula publicamente as
regras de conduta em vista de uma necessidade de convivência harmoniosa, onde
ocorre a positivação (atitude de colocar por escrito as regras e dar a entender
publicamente à sociedade) do dever ser de cada cidadão constituinte da
sociedade. Este é o processo legislativo frente às Fontes de Direito, colimando
o bem comum.
Nesta altura de nosso raciocínio surge
muito oportunamente a advertência de André-Jean Arnauld
que “ Todo o direito, enquanto sistema de
normas jurídicas impostas, é reflexo de uma visão do mundo, projetada em parte
conscientemente e em parte inconscientemente, pela intermediação do poder, na
vida social e econômica do grupo sob forma de regras atributivas, imperativas
ou proibitivas, destinadas a assegurar a realização desta visão…O Direito é
talvez necessariamente ordenado. Mas ele é essencialmente sistemático. Assim se
pode dizer que toda a ordem jurídica está constituída em sistema. A ordem não
pode estar constituída em
sistema… A ordem não pode estar em oposição com o sistema.
Trata-se de dois níveis de tratamento diferentes.”
Quando, pois, falamos em direito comparado,
temos de ter em vista, além de diferentes campos culturais, diferentes
estruturas jurídicas em função e originados daqueles. Como o caso em
foco proposto no presente artigo, é uma abordagem da aplicação da Lei
religiosa Muçulmana frente à estrutura da ciência jurídica resta
necessário explanar sobre estes diferentes tópicos. É exatamente neste sentido
que o notório filósofo francês Jaques Maritain perguntava-se: “se uma civilização sacral como a muçulmana pode secularizar-se?” ( “Sobre a filosofia da História. Editora Herder. pg. 117).
II. O direito criminal islâmico
Análise histórica
Primeiramente, é oportuno localizar os
estudos nas relações entre Estado Soberano e Islamismo, pois em um Estado islâmico, Islã
(religião) e Qu’ran – em português
mais usual “Al Corão” – (lei religiosa escrita) são
inseparáveis de lei e governo. Por exemplo, em muitos dos mais conservadores
países islâmicos, os líderes religiosos são muitas vezes os mais poderosos
líderes e o Qu’ran tem sido visto como o
equivalente à Constituição nos Estados Unidos nas quais estão inseridas as mais
altas leis com a devida implicação de negar qualquer outra disposição legal em
contrário.
O segundo ponto é a interessante posição
dos Estados frente à lei muçulmana que apresenta mundialmente quatro grupos
distintos:
a) O Estado secular: onde a religião é
separada do processo legislativo e judiciário. Exemplo é a Turquia onde a
separação ocorreu na década de 1920;
b) O Estado que aplica a lei “ocidental” em
todas as áreas mas com poucas exceções. Neste o
cidadão sujeita a sua questão livremente à um Tribunal
islâmico geralmente em questões de direito de família . São
exemplos Malásia, Indonésia, Tunísia, Marrocos,…
c) O terceiro grupo é o que adota a lei
religiosa universalmente mas aplica a lei civil em
áreas específicas que escapam por sua natureza da jurisdição religiosa como é o
caso de regulamento quanto a atividades comerciais ( cabe lembrar que muitos
destes países são comercializadores de petróleo). São exemplos o Paquistão, Kuwait, Emirados Árabes,…
d) O quarto grupo é o dos Estados que aplicam
a lei muçulmana sem discriminação como atualmente o Irã, Arábia Saudita e mais
recentemente o Sudão, Afeganistão e a Somália.
Um assunto que a primeira vista pode parecer desimportante
para uma abordagem de Direito Internacional ganha vulto frente à declarações como as de Hassan
al- Turabi, líder do National
Islamic Force (NIF), mestrado em Direito pela
Universidade de Londres e Doutorado em Direito pela Sorbonne
e exercendo de fato a real presidência do Sudão:
“Islam
is on the march. There is a colapse of socialism and
the bankruptcy of western liberal and socialistic regimes…Watever
the west does, Islam will still overcome it…I feel very confident that Islam
cannot be stopped” ( Ilsa journal of
International and Comparative Law, Fall 1998, Vol. 5, pg. 05)
O Islamismo tem um caráter nitidamente imperialista e expansionista, seja nas suas formidáveis realizações, seja na exaltação
mística dos prazeres sensuais; características estas que tornam-se objetos preementes de estudos de Direito Comparado e relações
internacionais. Sem dúvida, grandes preocupações do Direito Internacional (vide
terrorismo, petróleo, conflitos no leste europeu, etc)
passam pela “vala comum” do entendimento religioso-sociológico
da religião de do profeta Maomé.
A lei criminal islãmica
Parte interessante do presente trabalho é o
estudo das tipificações criminais e penas na lei islâmica. Aqui poderiam ser
escritos verdadeiros tratados mas apresentaremos
o essencial para o entendimento do raciocínio completo, ou seja, a análise
crítica da cultura como fonte direta e material de direito interno.
A Lei criminal islâmica apresenta três grandes grupos de crimes: o “Hudud”, “Quesas” e “Ta’azir” e estes dizem respeito às
seguintes práticas:
a) Crimes Hudud : A punição destes crimes pelo
Estado é mandatória, incluindo os crimes de
fornicação, alcoolismo ou ingestão de bebidas alcoolicas,
apostasia, e algumas formas de banditismo. Fora o crime de fornicação,
todos os outros crimes exigem duas testemunhas para haver uma convicção por
parte dos “Tribunais” muçulmanos.
b) Crimes Quesas: inclui homicídio,
latrocínio, furto ou agressão. As penas vão desde a restituição econômica até a
amputação de membros do sujeito ativo de acordo com o crime.
c) Crimes Ta’zir: a punição pelo Estado é discricionária e abarca
pequenos ilícitos contra a prática religiosa com penas como reprimenda,
reparação, aprisionamento, flagelação ou banimento. Um exemplo típico é o de
uma mulher deixar de cobrir seu cabelo onde a pena varia de quarenta a setenta
chibatadas depois de submetida à “Corte”.
III. Uma visão crítica sobre a
realidade do conflito entre lei religiosa e lei civil no âmbito internacional:
Não poucos autores tem
dispensado páginas à reflexão do conflito entre o processo
legislativo e judiciário estatuído pelo poder civil de um estado soberano e as
leis religiosas ou costumes. Aqui merece menção uma série de estudos que não
são objeto do presente artigo mas que possuem relação
direta com a problemática levantada que é a autodeterminação dos povos, a
influência da cultura histórico-religiosa na formação de um ordenamento
jurídico e a questão recentíssima dos direitos humanos que passa a ter um papel
preponderante principalmente a partir do Estatuto de Roma do Tribunal Penal
Internacional que é uma convenção multilateral, celebrada em junho de 1998, com
o propósito de constituir um tribunal internacional, dotado de personalidade
jurídica própria, com sede em Haia.
A questão que é o cerne do presente estudo
é a seguinte: As estruturas supra-nacionais
de direito com seus tribunais internacionais ou mesmo o fenômeno da “mundialização” pode interferir de alguma forma na
autodeterminação de um povo por razões culturais, mesmo que estas não obedeçam
ao ideal democrático ou às “Cláusulas Pétreas” dos direitos humanos ocidentais?
De um lado temos o pensamento de Hans Kelsen
que apesar de advir da escola Positivista e ser um dos precursores da análise
do Direito Internacional apontava em suas obras:
“No siempre
es el poder más fuerte el que mantiene
detrás de un ordem jurídico,
dicho sea de manera figurada. El poder que halla detrás de um ordem moral o religioso es a menudo mucho
mayor; es decir, los ordenamientos
moral y religioso de la conducta
humana son com frecuencia
más eficaces que el orden jurídico.” ( “Derecho y paz en
las relaciones internacionales”,pg.
95)
O pensamento de Hans kelsen,
edificado nestas linhas na autodeterminação dos povos e na eficácia da norma
jurídica, entra diretamente em conflito com a nova corrente internacionalista.
Não precisamos nem recorrer à doutrina já que parece evidente que a pena de
apedrejamento público até a morte ( prática comum no
Islã) apresenta-se como uma antítese ao art 5º
da Declaração Universal dos Direitos Humanos aprovada pela Assembléia geral da
ONU reunida em Paris em 10 de dezembro de 1948:
“Art. 5º – A
escravidão e o comércio de escravos estão proibidos em todos os aspectos.
Ninguém deve ser mantido em escravidão ou servidão. Ninguém deve ser submetido
a torturas ou a tratamentos ou castigos cruéis, inumanos e degradantes.”
A tensão doutrinário-jurídica não pára
neste patamar do conflito de normas, pois quando trazemos à tona a questão da
soberania nacional, correntes como a do pensador latino César Barros Hurtado, parecem ser pontos pacíficos quando afirmam que “nada
debe haber
superior a los derechos esenciales del individuo porque cuando ellos se desnaturalizan se quiebra el concepto de soberania humana y
desaparece el concepto
de soberanía política que los
hombres contribuyeron a
formar y a enaltecer. De ahí al despotismo o a la guerra sólo un paso”.(“El Hombre ante el Derecho internacional”;
pg.194)
Lembramos, a título de comparação, que quando falamos
do Massacre do Carandirú – ocorrido no Brasil e maior
chacina de presidiários do mundo até hoje – como crime contra os direitos
humanos e recentemente submetido à Corte Inter-americana
de Direitos Humanos, fundada e instaurada na Costa Rica , podemos entender o
pensamento de Hurtado. Primeiro porque somos
um país recente e incluído no ordenamento ocidental e internacional e segundo
porque a sanção atingiria seu objetivo e eficácia
Contudo o mesmo raciocínio não é válido em
relação à Lei islâmica, pois estão inseridas no fato jurídico questões
culturais, de soberania nacional e a questão da eficácia da norma interna seria
alvo de infindáveis divergências.
É justamente nas fontes do Direito que se
apresenta a solução da problemática levantada nestas linhas; seja do ponto de
vista da imcompatibilidade de ordenamentos ( nacional e internacional) seja a diferenciação entre
normas civis e religiosas.
Conclusão
A realidade é que “o objeto do direito,
tanto no seu aspecto de lingagem quanto no de
metalinguagem é a relação humana…O Direito é um
reflexo do pensamento dominante em cada época e em cada lugar.” ( João
Bosco. “Direito Econômico”, pgs.1 e 3 ). Não basta
que a Comunidade das Nações determine segundo seus próprios padrões o que é
direito e eficiente e imponha isto à um Estado
Soberano independentemente de aceitação. Seria 50 anos de história de Direito
Internacional contra quase dois mil anos de lei civil-religiosa no Oriente. O
importante fato a ser levantado é o de que as relações humanas nas nações de
religião islâmica se formaram de uma maneira consuetudinária diversa daquilo
que chamamos de Estado Democrático de Direito com suas Constituições,
ordenamentos jurídicos e inserção no contexto internacional.
Segue-se como evidência lógica que a lei –
mesmo internacional – não esgota o Direito que necessita do socorro de outras
fontes, além da norma legal. Ora, o aprofundamento das fontes formais cabe à
filosofia mas é notório que para que um costume tenha
força de obrigação “deve conter um elemento material, consistente na
repetição da mesma conduta durante certo tempo, e um elemento volitivo, isto é,
que a coletividade o obedeça com a consciência de que é obrigatório.”(
Boris Grimberg; “Direito do Trabalho”, pg.51). Resta
então com esta abordagem do assunto que o conflito existe entre uma norma
positiva válida internacional e um costume elevado ao patamar de disposição
Constitucional.
Aqui nos deparamos finalmente com o maior
obstáculo do Direito internacional moderno: a questão da soberania que
assola o protótipo da Comunidade Européia. O entendimento majoritário, baseado
nas práticas e doutrinas internacionalistas é que a soberania reside na
discricionariedade do órgão nacional legislativo de criar a lei interna em conformidade
com os Tratados de Direito efetuados entre as nações, pois as sanções
internacionais não se aplicam aos indivíduos mas aos
Estados.
Ao cabo do trabalho, fica o questionamento
que foi colocado quando do início da reflexão. Até que ponto a sociedade
internacional pode interferir nos ordenamentos jurídicos penais como a
comentada lei religiosa islâmica. Parece que o que os homens não conseguiram
solucionar na Idade Média não o conseguem hoje também dada a
necessidade de um “consensus”, palavra chave da
Diplomacia e das Relações internacionais.
Para findar a presente exposição, muito
além do objeto do presente trabalho que é da área do Direito Comparado
Internacional, está a influência da cultura e da
história da formação dos povos para o correto entendimento do Direito
Internacional. Seria capaz de afirmar, como várias vezes
escreveu Hans Kelsen que quem desconhece
“direito primitivo e tribal” desconhece o Direito Internacional, pois a
formação deste é oriunda daquele. (cf. op. Cit. Pg. 72).
Além disso, para os que aventam que a
presente discussão está muito além dos nossos interesses críticos; o ilustre
pensador brasileiro Gilberto Freire, um dos cérebros mais privilegiados da
“terra brasilis”, fez referência em sua obra que é
toda fundamentada no entendimento da formação dos povos para o correto
entendimento de suas instituições, seja civis, religiosas, jurídicas que o
próprio Brasil não esteve longe de uma forte influência muçulmana dada a
dominação da península ibérica pelos Turcos e a influência forte desta religião
no norte da África (cf. casa-Grande
Senzala pg. Lxxii, 18ª edição, 1977) o que
chama ainda mais atenção para a presente reflexão.
A aplicabilidade deste método
de entendimento – das diferentes ordens jurídicas – é muito proveitoso para o
correto estudo do Direito Comparado e análise da problemática do conflito de
leis internacionais.Só assim alcançaremos os objetivos
de uma Comunidade mundial fundada sobre os princípios do Direito que é “em
essência, uma ordem para promover a paz”.( Hans kelsen. opus cit. pg. 23).
Bibliografia
Bosco, João. Direito Econômico. Rio de
Janeiro: Forense, 1995;
Ferreira Filho, Manoel Gonçalves. Curso de
Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 1990;
Freire, Gilberto. Casa-Grande &
Senzala. Rio de janeiro: José Olympo
Editora, 1977;
Grinberg
e Wagner D. Giglio. Direito do Trabalho. São Paulo: José Bushatsky, Editor. 1969;
Hurtado, César Barros. “El
Hombre ante el Derecho Internacional”. Buenos Aires: Libreria
“El Ateneo” Editorial;
Ilsa
Journal of International and Comparative Law. Volume 4. Fall 1998. Number 1. Washington,
D.C.;
Kelsen, Hans. “Derecho
y paz en las relaciones internacionales.” Mexico: Fondo de Cultura Econômica. 1996;
Maritain, Jaques. Sobre a
Filosofia da História. São Paulo: Herder Editora.
1962.
Nota
1. Critique de la Raison Juridique,
1981, pg.22.
Advogado em Brasília/DF
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