A Lei Maria da Penha e Seus Reflexos na Legislação Trabalhista

Adriana Silva Gouveia

Resumo: O presente trabalho tem o condão de desenvolver uma análise crítica sobre o Art. 9º, §2º, inciso II, da Lei nº 11.340/2006, mais conhecida como Lei Maria da Penha, que não esclarece a natureza jurídica do afastamento previsto, nem tampouco a competência para o julgamento da medida protetiva, o que prejudica a efetividade do dispositivo. Desta forma, convém primeiramente conhecer o escorço histórico da discriminação contra a mulher, a luta dos movimentos feministas pela igualdade de gênero, bem como suas conquistas. Além disso, importa buscar a origem da Lei Maria da Penha e conhecer os aspectos da violência doméstica e familiar. Ainda, cabe analisar as particularidades do contrato de trabalho, em especial os institutos da suspensão e da interrupção, para compreender qual dos dois tipos jurídicos contrapostos condiz com o afastamento judicial do trabalho garantido à empregada ameaçada no plano doméstico ou familiar. Ademais, diante da omissão do legislador acerca de qual seria a justiça competente para aplicação da medida protetiva assegurada no artigo mencionado, torna-se fundamental o estudo a respeito desse tema de grande relevância social, a fim de impedir a inocuidade da lei.

Palavras-chave: Lei Maria da Penha; Violência doméstica; Aspectos trabalhistas; Manutenção do vínculo empregatício.

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Abstract: This work has the potential to develop a critical analysis of Article 9, paragraph 2, item II, of Law 11.340 / 2006, better known as the Maria da Penha Law, which does not clarify the legal nature of the planned departure, nor the competence to judge the protective measure, which impairs the effectiveness of the device. In this way, it is important to first know the historical background of discrimination against women, the struggle of feminist movements for gender equality, as well as their achievements. In addition, it is important to seek the origin of the Maria da Penha Law and to know the aspects of domestic and family violence. It is also necessary to analyze the particularities of the contract of employment, in particular the institutes of suspension and interruption, in order to understand which of the two types of legal contraposition corresponds to the judicial withdrawal of work guaranteed to the maid threatened at the domestic or family level. Moreover, in view of the omission of the legislator as to which court would be competent to apply the protective measure insured in the aforementioned article, it becomes fundamental to study this highly socially important issue in order to prevent the innocuousness of the law.

Keywords: Maria da Penha Law; Domestic violence; Labor aspects; Maintenance of the employment relationship.

 

Sumário: Introdução. Capítulo I: Escorço histórico da discriminação feminina e a luta pela igualdade. 1.1. Patriarcalismo. 1.2. Trabalho da Mulher. 1.3 Conquistas civis e políticas das mulheres. Capítulo II: Origem da Lei 11.340/2006 – Lei Maria da Penha. 2.1. A Convenção CEDAW e a Convenção de Belém do Pará. 2.2. A Lei Maria da Penha. 2.3. Aspectos da violência doméstica e familiar. Capítulo III: A aplicabilidade da Lei 11.340/2006 no contrato de trabalho da mulher violentada. 3.1. Conceito, características e requisitos do contrato de trabalho. 3.2. Suspensão e interrupção do contrato de trabalho. 3.3. A medida protetiva laboral amparada pela Lei Maria da Penha. Capítulo IV: A efetividade do Art. 9º, §2º, inciso II, da Lei nº 11.340/2006. 4.1. Análise do dispositivo. 4.2. Natureza jurídica do afastamento assegurado à mulher violentada. 4.3. Justiça competente para a aplicação da medida protetiva. Conclusão. Referências.

 

INTRODUÇÃO

O presente trabalho pretende desenvolver uma reflexão crítica acerca da efetividade da Lei nº 11.340/2006 – Lei Maria da Penha, mais precisamente o seu Art. 9º, §2º, inciso II, o qual garante a manutenção do vínculo trabalhista da mulher vítima de violência doméstica e familiar, quando necessário o afastamento do local de trabalho, por até seis meses, para preservar sua integridade física ou psicológica. No entanto, a omissão do legislador no que concerne à natureza jurídica do afastamento assegurado, bem como a competência para o julgamento da medida protetiva dedicada à trabalhadora ofendida, gera uma problemática para a efetiva aplicação do dispositivo.

O estudo se justifica pela importância do tema no cenário social, visto que a violência doméstica e familiar está presente no cotidiano de muitas mulheres. A Lei Maria da Penha foi criada para evitar este crime e punir quem o pratica e, com isso, trouxe grandes alterações ao ordenamento jurídico. Porém, a referida lei precisa ser lapidada para garantir sua efetiva aplicação, uma vez que alguns dispositivos possuem lacunas, como é o caso do Art. 9º, §2º, inciso II. Embora seja assegurado à mulher em situação de violência doméstica e familiar o direito de manter o vínculo empregatício, quando necessário o afastamento do local de trabalho, a lei não esclarece se tal afastamento é hipótese de suspensão ou interrupção do contrato de trabalho, assim como omite sobre a justiça competente para tratar o caso.

A questão é complexa e, por tratar-se de um problema de saúde pública, merece um estudo aprofundado, a fim de obter respaldo argumentativo e buscar a solução mais adequada. Desta maneira, o trabalho está estruturado em quatro capítulos seguidos de uma conclusão.

O primeiro capítulo traz o escorço histórico da discriminação feminina, que resulta de uma construção sociocultural baseada no Patriarcalismo. Além disso, o capítulo demonstra os notáveis avanços conquistados pelas mulheres ao longo dos anos, através dos movimentos feministas.

No segundo capítulo, será feita uma análise das Convenções mais relevantes voltadas à proteção dos direitos da mulher, as quais contribuíram significativamente para o surgimento da Lei Maria da Penha. Ademais, o capítulo irá abordar a origem da lei intitulada em homenagem a uma Cearense chamada Maria da Penha Maia Fernandes, símbolo de resistência, que transformou sua dor em luta e arma de proibição de condutas ilícitas tão graves, atentatórias aos Direitos Fundamentais e Individuais basilares de nosso Diploma Legal. Além disso, o mesmo capítulo trata dos aspectos conceituais e estatísticos da violência doméstica e familiar.

Já o terceiro capítulo, pautado em pesquisa bibliográfica, define o contrato de trabalho e examina as hipóteses de Interrupção e Suspensão, a fim de sugerir a medida pertinente para o caso da Lei Maria da Penha.

Por derradeiro, o quarto e último capítulo aborda o assunto cerne do presente trabalho, o Art. 9º, §2º, inciso II, da Lei 11.340/2006. O capítulo faz uma análise do dispositivo e busca, posteriormente, compreender a natureza jurídica do afastamento assegurado à mulher violentada, bem como a justiça competente para a aplicação da medida protetiva.

 

CAPÍTULO I: ESCORÇO HISTÓRICO DA DISCRIMINAÇÃO FEMININA E A LUTA PELA IGUALDADE

1.1. Patriarcalismo

Para compreender a posição da mulher na sociedade, bem como a origem da discriminação de gênero, convém conhecer a história da figura feminina, buscando a formação de sua identidade. Destaca-se que a palavra “discriminação” tem origem anglo-americana e, sob a óptica etimológica, compreende o caráter infundado de uma distinção.

Na construção da sociedade foram instituídos padrões de comportamento distintamente para homens e mulheres, inferiorizando o sexo feminino na ordem jurídica e social, sendo a mulher subordinada ao poder masculino e cabendo-lhe somente as funções de procriação, manutenção do lar e educação dos filhos. Dá-se a esta situação o nome de patriarcalismo, cujo sentido ideológico é a supremacia do homem nas relações sociais.

O termo patriarcalismo deriva de patriarcado, o qual tem origem na palavra grega pater, atribuída não só à figura da paternidade, mas também para nomear os deuses e homens que tivessem poder sobre uma família.

Então, o patriarcalismo corresponde a um sistema social que atribui aos homens um lugar central num grupo ou numa sociedade, com autoridade e prestígio.

Com raízes na Grécia Antiga, o sistema patriarcal conferiu ao homem, ao longo da história, o poder sobre qualquer indivíduo na organização social de que fazia parte, cabendo-lhe o poder de decisão de forma inquestionável. Assim, o patriarcalismo pressupõe patamares desiguais e hierarquizados nas relações humanas.

O patriarcalismo manteve-se por vários séculos. Eis que a Revolução Francesa questionou tal forma de organização da sociedade, pois o movimento francês defendia ideais de liberdade, igualdade e fraternidade, permitindo aos indivíduos o respeito a singularidade de cada um na rede social. Com efeito, a Revolução Francesa inaugurou um novo ciclo na história da cultura ocidental, marcando o início da chamada História Contemporânea.

Ao longo do tempo, o modelo de família patriarcal foi redefinido, sendo a Carta Magna de 1988 um grande marco para a evolução da sociedade, transformando valores preexistentes.

A Constituição Federal apresenta um artigo muito importante que assegura direitos às mulheres. Trata-se do art. 5º, I, que garante igualdade de direitos e obrigações entre homens e mulheres perante a lei, in verbis:

“Art. 5º – Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: I – homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição; (…)”

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Sobre o preceito constitucional mencionado, José Afonso da Silva[1] explana:

“Significa que existem dois termos concretos de comparação: homens de um lado e mulheres de outro. Onde houver um homem e uma mulher, qualquer tratamento desigual entre eles, a propósito de situações pertinentes a ambos os sexos, constituirá uma infringência constitucional.”

Infelizmente, as declarações enfáticas do princípio da igualdade presentes em textos legais, não bastam para que esse ideal penetre também na realidade, pois embora a discriminação seja banida na teoria, ela persiste em diversos segmentos sociais.

Embora tenha evoluído ao longo dos anos, o sistema patriarcal subsiste de forma velada e mantém as mesmas bases de superioridade e subordinação, persistindo a desigualdade entre os gêneros nos campos civil, político, econômico e social.

A doutrinadora Maria Berenice Dias[2] (2004, p. 43) aduz que:

“Além de proclamar a necessidade do reconhecimento do direito à igualdade, a luta feminista denuncia discriminação e violência doméstica, que se retrata no expressivo número de assassinatos, espancamentos e estupro de mulheres perpetrados por maridos ou companheiros.”

A sociedade, em nome da preservação da moral e dos bons costumes, cultua valores absolutamente deturpados, impondo às mulheres restrições comportamentais preconceituosas e machistas.

Não resta dúvida de que as desigualdades de gênero ainda evidentes na atualidade, resultam de uma construção sociocultural baseada num sistema de sujeição, dominação e poder, inerentes do patriarcalismo.

Ocorre que o movimento de mulheres vem adquirindo uma força cada vez mais significativa, pois estas já não se calam diante da discriminação, gerando um clima propício ao surgimento de conflitos e, consequentemente, violência. Destarte, a violência contra a mulher é uma conduta criminosa, decorrente de um fator cultural.

 

1.2. Trabalho da mulher

Nas sociedades primitivas competia ao homem caçar e pescar, restando às mulheres a tarefa de coletar os frutos, evoluindo, mais tarde, para a agricultura.

Na Antiguidade, a produção da vestimenta cabia à figura feminina, que deveria tosquiar as ovelhas e tecer a lã, trabalhando também na ceifa do trigo e no preparo do pão. Entre os gauleses e germânicos a mulher equiparava-se mais ao homem, chegando a atuar na construção de residências e participar das guerras. Na Idade Média, a cultura da terra continuou sendo responsabilidade da mulher, além dos trabalhos de tapeçaria, ourivesaria e vestuário. Do século X ao XIV, homens e mulheres exerciam funções semelhantes, havendo mulheres escrivãs, médicas e professoras. No Renascimento, as mulheres foram perdendo várias tarefas que lhes pertenciam e limitaram-se ao espaço privado, nos limites da família e do lar.

No entanto, a Revolução Industrial do século XVIII acarretou mudanças no setor produtivo e transformou as relações sociais, inserindo a figura feminina no mercado de trabalho, uma vez que a máquina reduziu o esforço físico.

As mulheres suportavam salários ínfimos, jornadas extensas e ambientes insalubres, com graves riscos de acidentes, o que justifica a preferência do trabalho feminino pelos empregadores. Além disso, a mulher deveria, também, cuidar das tarefas domésticas e dos filhos, sem amparo na fase de gestação ou amamentação.

O Estado, não intervindo nas relações jurídicas de trabalho, transformou-se em um instrumento de opressão contra as “meias-forças dóceis” (mulheres e crianças), ameaçando a estrutura da sociedade e sua estabilidade.

Já no século XIX, no dia 8 de março de 1857, operárias de uma fábrica têxtil de Nova York (EUA) marcharam pela cidade reivindicando melhores condições de trabalho e a equiparação de salários com os homens. O protesto foi contido violentamente pela polícia e ficou marcado como a primeira manifestação organizada de trabalhadoras da história.

A referida data transformou-se no símbolo de luta das mulheres pela igualdade e, em 1975, foi oficialmente reconhecida pela ONU (Organização das Nações Unidas) como o Dia Internacional da Mulher.

No início do século XX, em 19 de março de 1911, um trágico acontecimento foi registrado dentro das instalações da Triangle Shirtwaist Company, na cidade de Nova York, onde mais de cem mulheres morreram carbonizadas em função de um incêndio provocado pelas condições precárias de segurança da fábrica.

O episódio gerou um protesto com a participação de milhares de pessoas e acabou provocando uma série de mudanças na legislação trabalhista do país. A tragédia é lembrada até hoje nas comemorações do Dia Internacional da Mulher. Equivocadamente, a greve de 8 de março de 1857 é frequentemente associada à data do incêndio da Triangle, mas não há correspondência entre os fatos.

No século XX, devido aos conflitos intercontinentais e às duas Grandes Guerras, os homens partiram para os campos de batalha, onde muitos morriam e outros retornavam mutilados e sem condições de sustentar a casa. Com isso, a mulher precisou buscar uma fonte de renda e, então, passou a trabalhar. E, mais uma vez, a inserção da mulher no mercado de trabalho foi marcada pela discriminação, com baixos salários e cargas horárias abusivas.

Eis que surgiram discussões trabalhistas e o Estado deixou de ser abstencionista e passou a ser intervencionista no que concerne às relações de trabalho.

Diante da necessidade de um ordenamento jurídico mais equilibrado, surgiram as primeiras leis trabalhistas, as quais eram voltadas para a proteção da mulher e do menor.

Nesse sentido, Amauri Mascaro Nascimento[3] esclarece:

“Em 19.9.1942, a Inglaterra proibiu o trabalho das mulheres em subterrâneos. Em 1844, foi limitada a sua jornada de trabalho a 10 horas e meia, devendo, aos sábados, terminar antes das 16:30 horas. Na França, em 1848, surgiram leis de proteção ao trabalho feminino. Na Alemanha, o Código Industrial, de 1891, também se ocupou do problema, fixando algumas normas mínimas. Uma das mais expressivas regulamentações é o Tratado de Versailles, que estabelece o princípio da igualdade salarial entre homens e mulheres, inserido em algumas Constituições, dentre as quais a do Brasil e destinada a impedir a exploração salarial da mulher.”

A ação internacional, indiscutivelmente, influenciou no desenvolvimento da legislação trabalhista brasileira, inclusive no capítulo referente ao trabalho da mulher.

Não há dúvida de que a legislação protecionista perseguiu objetivos desejáveis, mas acabou por tornar-se discriminatória, reforçando a divisão sexista de atividades e reduzindo as chances de emprego das mulheres, as impossibilitando de receber remuneração compatível com a dos homens.

No Brasil, cabe relembrar que a Constituição de 1824 determinou que a lei seria igual para todos, mas preteriu a mulher na sucessão ao Império, caso estivesse no mesmo grau do homem. Posteriormente, a Constituição de 1891 assegurou o princípio da igualdade e afastou as regalias de nobreza. Mais adiante, sobreveio o Decreto n. 21.417-A, de 1932, que foi pioneiro no tocante à proteção dos direitos das mulheres no âmbito trabalhista e influenciou as demais legislações. Em seguida, a Constituição de 1934 e a de 1946 proibiram diferença salarial para o mesmo trabalho, por motivo de idade. A Constituição de 1937 manteve o princípio de que todos são iguais perante a lei, mas nada acrescentou. Em agosto de 1940, surgiu o Decreto-Lei n. 2.548, o qual permitia a redução de 10% no salário da mulher em relação ao do homem. No entanto, a Constituição de 1967 aboliu diferença de salário e de critério de admissão por motivo de sexo, cor e estado civil, e, finalmente, a Constituição de 1988 acrescentou a idade nos motivos relatados na anterior.

A Carta Magna de 1988 trouxe significativa modificação no que concerne à situação da mulher trabalhadora, pois embora os textos constitucionais anteriores proibissem a discriminação de gênero, a cultura jurídica prevalecente manteve condutas discriminatórias contra a mulher no mercado de trabalho e na própria relação de emprego.

O art. 10, II, b, do ADCT assegura a garantia de emprego à mulher gestante, desde a confirmação da gravidez até cinco meses após o parto, o que não constava em nível constitucional ou legal, mas somente em normas coletivas de determinadas categorias.

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Com efeito, a Constituição de 1988 dispôs no art. 5º, caput e inciso I, que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza…” e que “homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição”.

A igualdade apontada no texto constitucional promoveu o chamado direito promocional do trabalho da mulher, o qual busca garantir que as mulheres entrem no mercado em pé de igualdade com os homens, não apenas permitindo o acesso, mas principalmente incentivando.

Ainda, para acentuar sua intenção antidiscriminatória, a Lei Maior dispõe no art. 7º sobre os direitos dos trabalhadores urbanos e rurais e, em seus incisos XVIII, XX e XXX, confere proteção ao trabalho da mulher:

“Art. 7º – São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: (…) XVIII – licença à gestante, sem prejuízo do emprego e do salário, com a duração de cento e vinte dias; (…) XX – proteção do mercado de trabalho da mulher, mediante incentivos específicos, nos termos da lei; (…) XXX – proibição de diferença de salários, de exercício de funções e de critério de admissão por motivo de sexo, idade, cor ou estado civil; (…)”

Verifica-se, portanto, que a Carta Maior veda a discriminação contra a mulher na oferta de emprego, ou seja, na admissão, proibindo restrições quanto ao sexo, idade, cor ou estado familiar.

Nesse sentido, Gustavo Filipe Barbosa Garcia[4] explica que:

“Excepcionalmente, caso a natureza da atividade exija, de modo efetivo e razoável, certa especificidade quanto a algum desses fatores, pode ser indicado como condição para a admissão, como ocorreria no caso de contratação para exercer a função de carcerária, em estabelecimento de prisão feminino.”

Além disso, percebe-se também que não se justifica diferença de salário entre o homem e a mulher, uma vez que o combate à discriminação no trabalho humano está inserido no princípio constitucional da isonomia. No entanto, ainda hoje as mulheres recebem salários inferiores, o que demonstra uma discriminação mascarada.

A Lei n. 7.855/89, editada meses após a nova Constituição, procurou adequar a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) de 1943, à ordem antidiscriminatória constitucional, revogando diversos preceitos.

Na CLT, a proteção do trabalho da mulher vem disciplinada nos artigos 372 a 401 do Capítulo III, o qual estabelece que as normas de proteção ao trabalho da mulher devem ficar restritas a promover o referido labor, afastando qualquer desigualdade no plano social dos fatos, através de medidas que fomentem a contratação e melhoria das condições de trabalho, atingindo a igualdade material entre os gêneros.

Em suma, as medidas de proteção ao trabalho da mulher fundamentam-se na sua fragilidade física e em situações inerentes ao sexo feminino. Porém, não raras as vezes, tais medidas são utilizadas como forma de discriminação.

No tocante às práticas discriminatórias contra a mulher no ambiente laboral, Sergio Pinto Martins[5] leciona que:

“O rompimento da relação de trabalho por ato discriminatório, além do direito à reparação por dano moral, faculta ao empregado optar entre: a) a reintegração com ressarcimento integral de todo o período de afastamento, mediante pagamento das remunerações devidas, corrigidas monetariamente e acrescidas de juros legais; b) a percepção, em dobro, da remuneração do período de afastamento, corrigida monetariamente e acrescida de juros legais. A faculdade da rescisão ou readmissão é uma opção da empregada e não do empregador, e será exercida como a primeira o desejar.”

A reforma trabalhista (Lei 13.467 de 13 de julho de 2017), que entrou em vigor em 11 de novembro de 2017, complementada pela medida provisória 808/17 aprovada em 14 de novembro de 2017, trouxe importantes mudanças para o trabalho da mulher, traçando orientações quanto ao exercício de atividades insalubres, durante os períodos de amamentação e lactação e quanto ao momento de concessão do intervalo especial durante o período de amamentação.

Observa-se que o tratamento desigual atribuído às mulheres na seara trabalhista decorre do fato de que sua contratação aumenta os custos para o empregador, os quais estão relacionados com a maternidade e com o cuidado com os filhos.

Na prática, percebe-se que a mesma sociedade que defende a igualdade é a mesma que ainda mantém condutas discriminatórias nas questões de gênero. Portanto, além da legislação, também é preciso transformar e evolucionar o comportamento humano, a fim de afastar definitivamente todas as formas de discriminação e suas alarmantes consequências.

 

1.3. Conquistas civis e políticas das mulheres

Primeiramente, deve-se compreender que o termo política tem origem na palavra grega “politéia”, referindo-se a tudo relacionado a polis (cidade-estado) e à vida em sociedade, com garantia de estabilidade dada pelo Estado.

O conceito de política depende do contexto, podendo-se falar de política pública, monetária, fiscal, educacional, entre outras. No sentido amplo e com enfoque nas lutas e conquistas femininas, a política compreende a participação da população no processo decisório, bem como na decisão de regras e normas.

O feminismo é um movimento social e político, cuja finalidade é a igualdade de gênero em todos os aspectos. Através de movimentos feministas, as mulheres conquistaram gradativamente seu espaço na sociedade.

A história do feminismo é marcada por três momentos relevantes: a manifestação das mulheres pelo direito ao voto, conhecido como sufrágio feminino; a busca por direitos inerentes à vida social, como a igualdade salarial; e, o terceiro momento, considerado uma continuidade do segundo, onde as mulheres visam uma forma de adquirir tais direitos.

Após um levantamento das principais conquistas femininas, no Brasil e no mundo, reporta-se ao ano de 1827, quando surgiu no Brasil a primeira legislação referente à educação para mulheres, a qual permitia que estas pudessem frequentar escolas no ensino elementar, atualmente chamado de ensino fundamental.

Embora tenha sido uma grande conquista, o ingresso das mulheres na vida acadêmica era limitado e restritivo ao ensino elementar. Então, em 1879, as mulheres brasileiras obtiveram o direito de cursar um ensino superior e, em 1887, foi graduada a primeira médica do país, a Dr.ª Rita Lobato Velho Lopes.

Ainda no século XIX, no ano de 1852, foi lançado o Jornal das Senhoras, o qual não poderia publicar nada que fizesse alusão aos direitos das mulheres, sob pena de ser proibido nas casas de família.

O fato demonstra o quanto as mulheres eram limitadas no tocante à liberdade de expressão. Inclusive, algumas jornalistas e escritoras ficaram malvistas e receberam diversas críticas pelos seus trabalhos, pois a sociedade não estava pronta para absorver novas ideias.

Sobre o direito ao voto, a Nova Zelândia foi o primeiro país a permitir o voto feminino, em 1893. Na França, a mulher só conquistou tal direito a partir de 1945, após o fim da Segunda Guerra Mundial.

A campanha pelo voto feminino no Brasil começou na década de 1920, quando algumas mulheres, com mentalidade avançada e cientes da situação em outros países, se mobilizaram e participaram ativamente das campanhas eleitorais, contando com o apoio da imprensa da época e de organizações profissionais, como a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).

Em 1932, durante o governo de Getúlio Vargas, as mulheres conquistaram o direito ao voto e à candidatura em cargos públicos. No ano seguinte, foi eleita a primeira deputada federal do país, a Dr.ª Carlota Pereira de Queirós. Percebe-se, portanto, que a participação das mulheres na política brasileira é muito recente. Ademais, apesar de tamanha conquista, lamentavelmente o número de mulheres que compõe o cenário político brasileiro ainda é ínfimo comparado a outros países, o que pode ser justificado pela quantidade de reeleições e, também, pela discriminação silenciosa que sofrem dentro dos próprios partidos.

Contudo, há diversos exemplos de mulheres que assumiram papéis importantes na política brasileira, com destaque para a Sr.ª Dilma Rousseff, que em outubro de 2010 foi eleita presidente da República. A própria candidatura de Dilma Rousseff foi marcada pelo discurso de ter uma mulher no poder, representando a conquista das mulheres, a fim de atrair eleitoras e romper o costume das próprias mulheres votarem somente em homens.

Outra grande batalha travada pelas mulheres brasileiras, foi abolir dispositivos altamente discriminatórios do Código Civil de 1916, o qual dispunha que a mulher casada seria considerada relativamente incapaz para o exercício da cidadania. Assim, a esposa não tinha o direito de exercer o pátrio poder, abrir conta bancária, fixar o domicílio do casal, estabelecer atividade comercial ou viajar sem autorização expressa do marido.

Diante disso, na década de 1950, uma campanha foi introduzida por organizações feministas, com o apoio da imprensa, a fim de conseguir aprovar no Congresso Nacional o novo Estatuto da Mulher Casada.

Então, em 1962, foi aprovado no Parlamento o Estatuto da Mulher Casada, o qual abolia as restrições anteriormente mencionadas. Refere-se à Lei 4.121, que se baseou na orientação da Organização dos Estados Americanos (OEA), do direito civil moderno, do preâmbulo da carta da ONU, de Declaração Universal dos Direitos do Homem e da Convenção Interamericana sobre a Concessão dos Direitos Civis à Mulher.

O respeitável Nelson Carneiro, representante parlamentar, apresentou vários projetos com o intuito de proteger a mulher, destaca-se: o projeto que concedia à mulher casada, à companheira do homem desquitado, à solteira ou à viúva os direitos de pensão alimentícia; o projeto que assegurava aos “filhos de qualquer condição” o direito a alimentos; projetos com conteúdo de âmbito laboral, como a proibição da dispensa de empregada grávida, pagamento de indenização em dobro para a mulher despedida por motivo de casamento ou gravidez, acréscimo de 30% sobre o valor do salário contratual resultante do trabalho noturno, aposentadoria proporcional para a mulher, após 25 (vinte e cinco) anos de serviço.

Além de tudo, a luta para aprovar no congresso uma lei do divórcio também foi árdua e durou vinte anos. Apenas em 1977 a Lei 6.515 foi aprovada no Congresso Nacional, permitindo que o casamento fosse dissolvido, após prévia separação judicial de 3 (três) anos.

No âmbito esportivo, a participação das mulheres também sofreu atraso, pois somente em 1921 foi realizada a primeira partida de futebol feminino, sendo proibido anos mais tarde, em 1964, demonstrando nitidamente a discriminação entre os gêneros. A decisão foi revogada, mas com um lapso temporal de 17 (dezessete) anos.

Além disso, resta clara a discriminação sofrida pelas mulheres no setor esportivo, uma vez que estas eram proibidas de disputar provas olímpicas, vindo a conquistar esse direito somente em 1928. Aliás, o episódio foi marcado por muitas críticas e, em virtude dessa decisão, o presidente do Comitê Olímpico Internacional, Barão Pierre de Coubertin, pediu demissão do cargo.

Em 1932, a jovem nadadora Maria Lenk, com 17 (dezessete) anos na época, foi a primeira brasileira a competir em Olimpíadas, nos Jogos de Los Angeles.

As décadas de 1970 e 1980 merecem destaque no caminho da utilização da lei para assegurar um avanço da condição feminina no Brasil, pois firmaram uma intensa atividade no sentido de revisão de códigos antigos e leis ultrapassadas.

O ano de 1975 foi promovido pela ONU como o Ano Internacional da Mulher, para lembrar as conquistas sociais, políticas e econômicas das mulheres, independente de divisões nacionais, étnicas, linguísticas, culturais, econômicas ou políticas.

Em 1977, o senador Nelson Carneiro apresentou uma proposta no Congresso Nacional com o objetivo de criar a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI), para examinar a situação da mulher em todos os aspectos. O instrumento serviu para denunciar as diversas formas de discriminação praticadas contra a mulher, resultando em um assombroso quadro da condição inferiorizada da figura feminina no Brasil.

Com a elaboração da Constituição Federal de 1988, que incluiu em seus dispositivos importantes demandas dos movimentos feministas, foi possível a realização e devida concretização de um novo Código Civil. Dessa forma, em 10 de janeiro de 2002, foi sancionada a Lei 10.402, instituindo um marco normativo à sociedade brasileira no que concerne às mulheres.

Diante dos fatos descritos, é possível notar a resistência de muitas mulheres, que se rebelaram contra os estereótipos negativos e reducionistas relativos ao papel feminino na sociedade.

Atualmente, o feminismo segue discutindo questões que afetam as mulheres de uma forma geral. A violência doméstica e familiar é um dos problemas mais preocupantes, pois trata-se de uma questão de saúde pública.

Um grande ícone da luta feminina é a farmacêutica Maria da Penha Maia Fernandes, que foi covardemente agredida pelo então marido e buscou por justiça, dando origem à Lei 11.340 de 07 de agosto de 2006, a qual visa coibir a violência doméstica e familiar.

 

CAPÍTULO II – ORIGEM DA LEI 11.340/2006 – LEI MARIA DA PENHA

2.1. A Convenção CEDAW e a Convenção de Belém do Pará

Diante da situação de hipossuficiência e discriminação sofrida pelas mulheres em vários países do mundo, tornou-se necessária a elaboração de um sistema especial de proteção dos seus direitos.

Assim, surgiram a Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação contra a mulher, e a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, a chamada “Convenção de Belém do Pará”, que representam alguns dos mais relevantes instrumentos voltados à proteção dos direitos da mulher na ordem jurídica internacional.

A Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação contra a mulher, também chamada de CEDAW (Convention on the Elimination of All Forms of Discrimination against Women) ou Convenção da Mulher, consiste no primeiro tratado internacional que dispõe de forma ampla sobre os direitos das mulheres, pois os tratados que o antecederam tratavam especificamente dos direitos da mulher casada, dos direitos civis e políticos e do tráfico de mulheres, entre outros.

A CEDAW foi adotada pela Assembleia Geral da ONU em 18 de dezembro de 1979, por meio da Resolução nº 34/180, e entrou em vigor em 3 de setembro de 1981. Trata-se do resultado de décadas de esforços internacionais para proteger os direitos da mulher no mundo inteiro.

O Estado brasileiro ratificou tal tratado no ano 1984, comprometendo-se, perante a comunidade internacional, na erradicação da discriminação contra as mulheres no seu território. Além disso, o Brasil passou a consagrar o princípio da igualdade entre homens e mulheres na Constituição Federal de 1988 (CF/88).

A Convenção é composta por um preâmbulo e 30 (trinta) artigos, sendo que 16 (dezesseis) deles estabelecem preceitos substantivos sobre a não discriminação da mulher e a igualdade, os quais devem ser garantidos e promovidos pelo Estado. São eles: as obrigações dos Estados-partes; o sistema de cotas; a modificação dos padrões socioculturais discriminatórios; a supressão do tráfico de mulheres e exploração da prostituição de mulheres; a participação política da mulher; a nacionalidade, a educação, o trabalho e a saúde; sobre sua vida econômica e social; sobre a mulher rural; e sobre a capacidade jurídica da mulher em igualdade de condições com o homem, bem como a igualdade no exercício pela mulher de seus direitos legais relativos ao casamento e à família.

Já no art. 1º, a CEDAW define a discriminação da mulher como:

“(…) toda distinção, exclusão ou restrição baseada no sexo e que tenha por objeto ou resultado prejudicar ou anular o reconhecimento, gozo ou exercício pela mulher, independentemente de seu estado civil, com base na igualdade do homem e da mulher, dos direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos político, econômico, social, cultural e civil ou em qualquer outro campo”.

Então, a Convenção em pauta tenciona promover os direitos das mulheres e buscar a efetivação da igualdade de gênero, eliminando, assim, todas as formas de discriminação.

Sobre a CEDAW, as autoras Amini Haddad Campos e Lindinalva Rodrigues Corrêa[6] consideram:

A referida Convenção deve ser tomada como parâmetro mínimo das ações estatais na promoção dos direitos humanos das mulheres e na repressão às suas violações, direcionando toda e qualquer política pública à eliminação da discriminação contra a mulher, através da adoção de medidas legais, políticas e programáticas.”

Logo, cumpre aos Estados-partes o dever de eliminar a discriminação contra a mulher em todas as esferas da vida, promovendo medidas apropriadas para este fim.

Contudo, a garantia do efetivo exercício dos direitos das mulheres depende da participação dos três poderes: do Legislativo, na adequação da legislação nacional aos parâmetros igualitários internacionais; do Executivo, na elaboração de políticas públicas voltadas para os direitos das mulheres; e, por fim, do Judiciário, na proteção dos direitos das mulheres e no uso de convenções internacionais de proteção aos direitos humanos para fundamentar suas decisões.

Apesar dos avanços conquistados, as mulheres ainda sofrem com discriminação e violação de princípios fundamentais, o que denota o desafio do Estado brasileiro na efetiva aplicação dos preceitos da CEDAW, bem como de outros instrumentos de proteção à mulher.

Embora a maior parte da população não tenha conhecimento da CEDAW, é imperioso ressaltar a importância de tal instrumento para a legislação brasileira, uma vez que esta Convenção possibilitou um primeiro passo à devida existência da Lei 11.340/2006, popularmente conhecida como Lei Maria da Penha.

Conforme dito anteriormente, outro instrumento voltado à proteção dos direitos da mulher na ordem jurídica internacional é a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, a chamada “Convenção de Belém do Pará”.

A Convenção de Belém do Pará, adotada na referida cidade brasileira em 9 de junho de 1994, conceitua a violência contra as mulheres como sendo qualquer ato ou conduta baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto na esfera pública como na esfera privada.

Ainda, o art. 2º da Convenção estabelece que a violência contra a mulher inclui a violência física, sexual ou psicológica ocorrida na família, na comunidade ou, ainda, perpetrada pelo Estado e seus agentes, onde quer que ocorra.

Ademais, a mesma Convenção garante à toda mulher o direito ao reconhecimento e desfrute de todos os direitos humanos ilustrados nos instrumentos regionais e internacionais, quais sejam: direito a que se respeite sua vida; direitos a que se respeite sua integridade física, mental e moral; direito à liberdade e à segurança pessoais; direito a não ser submetida a tortura; direito a que se respeite a dignidade inerente à sua pessoa e a que se proteja sua família; direito a igual proteção perante a lei e da lei; direito a recesso simples e rápido perante tribunal competente que a proteja contra atos que violem seus direitos; direito de livre associação; direito à liberdade de professar a própria religião e as próprias crenças, de acordo com a lei; e direito a ter igualdade de acesso às funções públicas de seu pais e a participar nos assuntos públicos, inclusive na tomada de decisões. (Art. 4º)

Percebe-se, portanto, que a violência praticada contra a mulher é capaz de lesar vários bens jurídicos protegidos, sendo a Convenção de Belém do Pará um instrumento que avança na consolidação de uma sociedade justa e solidária, a partir do respeito amplo e irrestrito aos direitos das mulheres.

Com efeito, a Lei Maria da Penha dá cumprimento à Convenção para Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW), da ONU, bem como à Convenção para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (Convenção de Belém do Pará), da OEA.

Cabe ao Estado brasileiro traçar políticas de prevenção, bem como investigar diligentemente qualquer violação, proporcionando recursos para efetivar a finalidade da lei, a qual pretende prevenir, punir e erradicar a secular violência. Exemplo de política pública é o chamado Disque 180, projeto desenvolvido pelo governo federal, que coloca à disposição da mulher uma relação de atendimentos específicos.

 

2.2. A Lei Maria da Penha

No dia 29 de maio de 1983, na cidade de Fortaleza, no Estado do Ceará, a farmacêutica Maria da Penha Maia Fernandes foi atingida por um tiro de espingarda desferido por seu então marido, o economista M. A. H. V., colombiano de origem e naturalizado brasileiro.

Em sua autobiografia, Maria da Penha Maia Fernandes[7] descreve:

“Acordei de repente com um forte estampido dentro do quarto. Abri os olhos. Não vi ninguém. Tentei mexer-me, mas não consegui. Imediatamente fechei os olhos e um só pensamento me ocorreu: “Meu Deus, o Marco me matou com um tiro”. Um gosto estranho de metal se fez sentir, forte, na minha boca, enquanto um borbulhamento nas minhas costas me deixou ainda mais assustada. Isso me fez permanecer com os olhos fechados, fingindo-me de morta, pois temia que Marco me desse o segundo tiro.”

Devido ao tiro, que atingiu a vítima em sua coluna, destruindo a terceira e a quarta vértebras, sofreu lesões que a deixou paraplégica.

O homem negou a autoria do ataque e simulou a ocorrência de um assalto à casa onde moravam e, apesar da desconfiança da vítima em relação ao autor do atentado, o casal manteve o matrimônio. No entanto, passada pouco mais de uma semana, quando já retornara para sua casa, a vítima sofreu outra tentativa de homicídio, agora uma descarga elétrica quando se banhava. Restou evidente ter sido ele o mentor dessa segunda agressão, pois foi observado que, há algum tempo, o marido utilizava o banheiro das filhas para banhar-se.

As provas obtidas no inquérito policial incriminavam M. A. H. V. e foram suficientes para embasar a denúncia sobre o primeiro ataque. Os dados decisivos foram a prova testemunhal, constituída por empregados do casal que ressaltaram o temperamento violento do homem. Ainda, uns dias antes do primeiro atentado o marido tentou convencer a esposa a celebrar um seguro de vida, do qual seria beneficiário. Além disso, a pedido do marido, a vítima assinou, em branco, um recibo de venda de veículo de sua propriedade. Por fim, o encontro da espingarda utilizada na prática do crime no interior da residência do casal.

Então, a denúncia foi ofertada pelo Ministério Público, no dia 28 de setembro de 1984, perante a 1ª Vara Criminal de Fortaleza. O réu foi pronunciado em 31 de outubro de 1986, sendo levado a júri em 4 de maio de 1991, quando foi condenado. A defesa conseguiu anular tal decisão e o réu foi submetido a novo julgamento, no dia 15 de março de 1996, quando fora julgado culpado e condenado a pena de dez anos e seis meses de prisão, mas conseguiu o direito de recorrer desde último julgamento em liberdade.

Após 15 (quinze) anos sem uma decisão final em relação ao crime cometido por seu marido, a própria Maria da Penha, inconformada com a justiça brasileira, apresentou denúncia à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, órgão da Organização dos Estados Americanos (OEA), utilizando-se da exceção do art. 46, inciso II, c, da Convenção Americana, o qual reza que haverá admissibilidade da petição se a jurisdição interna apresentar atraso injustificado. A petição foi então recebida em 20 de agosto de 1998.

Em 16 de abril de 2001, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos publicou um relatório para o Brasil e, entre outras coisas, recomendou a reparação efetiva e pronta da vítima e a adoção de medidas no âmbito nacional, para eliminar a negligência, omissão e tolerância do Estado Brasileiro ante a violência doméstica contra as mulheres.

Somente em setembro de 2002, ou seja, mais de 19 (dezenove) anos da prática do crime, o seu autor foi finalmente preso. No entanto, o condenado conseguiu a progressão de regime e cumpriu a pena em regime aberto, já que à época em que foi cometido o crime, no ano de 1983, ainda não entrara em vigor a Lei 8.930/94, classificando o homicídio qualificado como hediondo.

A partir de um anteprojeto elaborado por organizações não governamentais de defesa da mulher, que posteriormente foi transformado em projeto de lei, votado pelo Congresso Nacional e, finalmente, sancionado pelo então Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, em 07 de agosto de 2006 foi promulgada a Lei 11.340.

A constitucionalidade da lei chegou a ser questionada, pois a princípio parece discriminatória, tratando a mulher como eterno sexo frágil diante do homem, presumidamente imponente.

No entanto, a tese da inconstitucionalidade não foi recepcionada pelos Tribunais, tendo em vista a própria realidade estatística da violência contra a mulher e a necessidade de um sistema especial de proteção.

Assim, a Lei Maria da Penha não fere o princípio da isonomia, pois somente procura diminuir os desníveis de tratamento em razão do sexo, resultantes de uma sociedade historicamente marcada por costumes machistas. Trata-se, portanto, de um estatuto protetivo, que leva em consideração as condições peculiares das mulheres vítimas de violência doméstica e familiar.

A Lei 11.340/2006, tão logo editada, passou a ser conhecida como Lei Maria da Penha, em homenagem a esta mulher que transformou dor em luta. E, com o advento dessa lei, não mais prevalece a velha máxima: “Em briga de marido e mulher não se mete a colher”.

Paulo Marco Ferreira Lima apud Sirvinkas[8] considera que:

“(…). Trouxe, citada lei, um conjunto de regras penais e extrapenais, princípios, objetivos e diretrizes com vistas à prevenção de eventuais violências no seio doméstico e familiar, protegendo-se especialmente a mulher – vítima das mais diversas formas de violência. Trata-se de um programa que deverá ser gradativamente implantado pelos Poderes Públicos constituídos ao longo do tempo sob pena de torna-la ineficaz.”

Lamentavelmente, a violência contra a mulher ainda é recorrente, conforme resta demonstrado no trecho de uma reportagem disponibilizada no sítio eletrônico do telejornal O Globo no dia 07 de agosto de 2018, data em que a Lei Maria da Penha completou 12 (doze) anos:

“O aniversário de 12 anos da lei Maria da Penha chega em meio a uma sequência de sete feminicídios — assassinatos motivados por ódio contra a mulher — que tomaram o noticiário nas últimas semanas. A cada cinco dias, uma brasileira perde a vida em um feminicídio. Os casos dos últimos dias dão nome e sobrenome a estes números, escancarando a urgência da situação no país. São mulheres de diferentes estados, muitas delas mortas pelos seus maridos e namorados. Nos primeiros seis meses de 2018, a Central de Atendimento à Mulher em Situação de Violência recebeu 72.839 denúncias em ligações para o 180. Há relatos de violência sexual, homicídio, cárcere privado e outros, entre janeiro e junho deste ano. (…)”

O aumento das denúncias de violência contra a mulher aponta maior disposição das vítimas de procurar pelos serviços de ajuda, o que propiciou o aumento do número de agressores. No entanto, o número de denúncias também demonstra que as modificações legislativas por si só não são suficientes para sanar o problema da violência, pois as ocorrências permanecem altas.

Por derradeiro, ante a atual situação, torna-se imprescindível a adoção de novas medidas, conforme recomendações dos organismos internacionais, que ofereçam uma resposta global à violência que se exerce sobre as mulheres.

Embora a concreção dos objetivos delineados pelas Convenções e pela Lei Maria da Penha esteja devidamente inserida na realidade social mundial, a situação aterradora enfrentada pelas mulheres vítimas de violência merece maior atenção, a fim de garantir a efetividade dos direitos protegidos.

 

2.3. Aspectos da violência doméstica e familiar

A violência doméstica e familiar é um fenômeno extremamente complexo, enraizado na desigualdade entre os sexos que acompanha a sociedade desde a sua origem.

Apesar do processo evolutivo que transformou a sociedade ao longo do tempo e do movimento feminista que garantiu um avanço significativo às mulheres, ainda persiste de forma velada um sistema patriarcal que discrimina a figura feminina nos campos civil, político, econômico e social.

O afastamento do parâmetro preexistente, o qual determinava que ao homem cabe o espaço público e à mulher, o espaço privado, nos limites da família e do lar, fez surgir o conflito entre os gêneros.

Nesse sentido, Amini Haddad Campos e Lindinalva Rodrigues Corrêa[9] explicam:

“A subordinação da mulher, colocada como ser inferior, segundo a teoria dos dualismos hierarquizados, é a raiz da violência de gênero. Assim, romper com os papéis preestabelecidos ou impostos, não é tarefa fácil, encontrando resistência dos que querem manter o status quo.”

Na sociedade contemporânea, a discriminação contra as mulheres se apresenta implicitamente na linguagem cotidiana, no uso de expressões que diminuem e ridicularizam a imagem feminina, no salário inferior ao do homem, entre outras. Porém, a mais cruel sequela da discriminação contra a mulher é a violência doméstica e familiar, justificada pela ideologia patriarcal que leva o homem a se sentir proprietário do corpo e da vontade da mulher.

A Constituição Federal, em seu artigo 226, § 8º, o qual se encontra no capítulo da família, da criança, do adolescente e do idoso, dispõe que a família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado, o qual assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações.

Então, a família é a base da sociedade e, supõe-se, que o recinto familiar e doméstico é um local seguro. No entanto, é justamente nesse local onde ocorrem diversas formas de violência contra a mulher, como os espancamentos, estupros e assassinatos, perpetrados geralmente por maridos ou companheiros.

Saliente-se, a propósito, que o sujeito ativo da violência doméstica e familiar não necessariamente é homem, pois pode ser qualquer pessoa coligada a uma mulher por vínculo afetivo, familiar ou doméstico. Então, mulher que agride outra mulher com quem tenha relação íntima, também pode ser enquadrada na Lei Maria da Penha.

O art. 5º da Lei 11.340/06 conceitua a violência doméstica e familiar:

“Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial: I – no âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas; II – no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa; III – em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação.”

O conceito de violência sofre constante mutação, visto que várias atitudes e comportamentos passaram a ser considerados como forma de violência.

É imperioso destacar que o Código Penal, no art. 129, caput e parágrafos, prescreve o crime comum de lesão corporal fora do âmbito doméstico, familiar ou íntimo. Neste caso, não se aplicam as disposições especiais da Lei 11.340/2006.

O respeitável Damásio de Jesus[10] (2015, p. 16), explica:

“Ainda que a lei, em princípio, seja feita para atingir todas as relações interpessoais, observam-se muitas dificuldades ao tentar aplica-la na esfera das relações conjugais, familiares e muito íntimas. O crime de lesão corporal leve, por exemplo, tem características e sentidos muito diversos quando se trata da briga entre desconhecidos em um bar ou das relações cotidianas de um casal, mas a lei brasileira considera esse fato na definição e apuração do crime e na determinação da pena. Essa diversidade não significa que um crime seja mais legítimo que o outro, mas sim que assumem significados diversos para os presentes. Dirigir a questão da violência doméstica ao judiciário acabou por tornar aparente que os crimes cometidos por pessoas muito próximas das vítimas têm configuração própria e necessitam de regulação penal e civil específica, além do compromisso do Estado de garantir o acesso e o funcionamento desses mecanismos.”

A Lei n. 10.886, de 17 de junho de 2004, acrescentou o § 9º ao art. 129 do Código Penal, pretendendo coibir a violência doméstica contra a mulher:

“Art. 129 (…) Violência doméstica. § 9º Se a lesão for praticada contra ascendente, descendente, irmão, cônjuge ou companheiro, ou com quem conviva ou tenha convivido, ou, ainda, prevalecendo-se o agente das relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade: Pena – detenção, de 6 (seis) meses a 1 (um) ano.”

Porém, restou frustrado o objetivo da lei de tornar mais grave a resposta penal em face da prática de violência doméstica contra a mulher, pois diante da quantidade da pena, era crime de menor potencial ofensivo, aplicável a Lei dos Juizados Especiais Criminais (Lei n. 9.099), alterada pela Lei n. 10.259/2001.

Diante da inocuidade da modificação legislativa, tornava-se urgente a atualização da Lei n. 10.886/2004. Daí por que o advento da Lei n. 11.340/2006 constituiu avanço significativo ao Brasil em sede de direitos humanos.

Sobre as formas de violência doméstica ou familiar contra a mulher, o art. 7º da Lei Maria da Penha, trouxe:

“Art. 7o  São formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, entre outras: I – a violência física, entendida como qualquer conduta que ofenda sua integridade ou saúde corporal; II – a violência psicológica, entendida como qualquer conduta que lhe cause dano emocional e diminuição da autoestima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação; III – a violência sexual, entendida como qualquer conduta que a constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que a induza a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação; ou que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos; IV – a violência patrimonial, entendida como qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades; V – a violência moral, entendida como qualquer conduta que configure calúnia, difamação ou injúria.”

Dentre tantas ramificações, a violência psicológica causa mais danos nas mulheres do que a violência puramente física, uma vez que as agressões afetam profundamente a vida psíquica da mulher. A vítima, por conta do medo que a paralisa, deixa de ser dona e senhora do seu eu e perde, consequentemente, o domínio de si mesma.

Um dos maiores problemas enfrentados pelas mulheres é a convivência permanente com o agressor, pois a dependência econômica ou os filhos em comum impedem o distanciamento físico do marido ou companheiro.

Além disso, muitas mulheres sequer têm consciência de seus direitos ou, pior do que isso, a descrença na polícia e na justiça as inibe de denunciar a violência da qual são vítimas.

Em 1990, a Organização Mundial de Saúde (OMS) reconheceu o caso de violência doméstica e sexual como tema legítimo de direitos humanos. Também, em 1993 as Nações Unidas realizaram a Conferência Mundial sobre Direitos Humanos, que considerou a violência contra a mulher como obstáculo ao desenvolvimento, à paz e aos ideais de igualdade entre os seres humanos. Reconheceu, ainda, que se trata de uma violação aos direitos humanos, e que se baseia principalmente no fato de a pessoa agredida pertencer ao sexo feminino.

No dia 9 de março de 2015, a então presidente do Brasil, Dilma Rousseff, sancionou a Lei 13.104, conhecida como a Lei do Feminicídio. A referida lei altera o art. 121 do Código Penal, incluindo o feminicídio como uma modalidade de homicídio qualificado, entrando no rol dos crimes hediondos.

A lei define o feminicídio como “o assassinato de uma mulher cometido por razões da condição de sexo feminino” e a pena prevista para o homicídio qualificado é de reclusão de 12 a 30 anos.

Pode ser classificado em três situações: feminicídio íntimo, quando há uma relação de afeto ou de parentesco entre a vítima e o agressor; feminicídio não íntimo, quando não há uma relação de afeto ou de parentesco entre a vítima e o agressor, mas o crime é caracterizado por haver violência ou abuso sexual; feminicídio por conexão: quando uma mulher, na tentativa de intervir, é morta por um homem que desejava assassinar outra mulher.

O feminicídio é uma palavra nova para uma prática antiga, pois todos os dias mulheres morrem de formas trágicas no Brasil. É um crime de ódio e discriminação, que normalmente ocorre após um processo contínuo de violência doméstica e familiar e, portanto, pode ser evitado quando praticado contra vítimas de violência doméstica, as quais possuem amparo na lei.

Devido ao seu caráter devastador, a violência contra as mulheres é um problema de saúde pública e o seu enfrentamento precisa da composição de serviços de naturezas diversas, exigindo grande esforço de trabalho conjunto. No entanto, a união entre os serviços existentes dirigidos ao problema é difícil e pouco reconhecida.

Apesar das inúmeras transformações que a Lei Maria da Penha trouxe para o ordenamento jurídico brasileiro, existem inúmeras barreiras que impedem a sua real aplicação. A falta de mecanismos estatais para o atendimento das vítimas afeta significativamente o desenvolvimento e o real alcance do seu objetivo.

A consequência disso é o aumento da violência pela certeza da impunidade, gerada pela banalização da lei.

 

CAPÍTULO III – A APLICABILIDADE DA LEI 11.340/2006 NO CONTRATO DE TRABALHO DA MULHER VIOLENTADA

3.1. Conceito, características e requisitos do contrato de trabalho

Para uma melhor compreensão sobre a aplicabilidade da Lei Maria da Penha no contrato de trabalho da mulher violentada, se faz necessária uma análise da figura jurídica em exame.

O art. 442 da CLT estabelece que o “contrato individual de trabalho é o acordo, tácito ou expresso, correspondente à relação de emprego”. Cabe advertir que tal conceito é criticado pela doutrina sob o argumento de que o contrato não corresponde à relação de emprego, mas cria esta relação jurídica de subordinação entre o empregador e o empregado. Assim, a relação jurídica estabelecida é entre os sujeitos de direito, e não entre sujeito e objeto.

Nesse diapasão, Mauricio Godinho Delgado apud MARANHÃO[11] explana o seguinte:

O texto da CLT não observa, como se nota, a melhor técnica de construção de definições: em primeiro lugar, não desvela os elementos integrantes do contrato empregatício; em segundo lugar, estabelece uma relação incorreta entre seus termos (é que em vez de o contrato corresponder à relação de emprego, na verdade ele propicia o surgimento daquela relação); finalmente, em terceiro lugar, o referido enunciado legal produz um verdadeiro circuito vicioso de afirmações (contrato/relação de emprego; relação de emprego/contrato).”

O texto celetista resultou de um acordo teórico entre os membros que elaboraram a CLT, na década de 1940, os quais tinham posições diferentes. Portanto, a redação do art. 442 da CLT mostra uma concepção mista, com aspectos contratualistas, quando menciona o acordo tácito ou expresso, e institucionalistas, quando fala em relação de emprego.

Sobre o tema, Amauri Mascaro Nascimento[12] observa que:

“Há duas leis modernas que definem separadamente contrato de trabalho e relação de emprego, para mostrar que a diferença entre ambos está na forma pela qual o vínculo nasce e para equiparar os efeitos do contrato e da relação de emprego. São as leis do México e da Argentina. A lei brasileira não tem essa dupla definição, porém equipara o contrato de trabalho à relação de emprego. (CLT, art. 442).”

Sabe-se que a melhor denominação de uma figura será aquela que reflete o seu efetivo conteúdo. Em razão disso, têm surgido críticas ao conceito de contrato de trabalho, considerando a inexistente correspondência entre a referida denominação e o efetivo conteúdo do pacto laboral a que se refere.

A saudosa Alice Monteiro de Barros[13] propôs o seguinte conceito para o ajuste em questão:

“O contrato de trabalho é o acordo expresso (escrito ou verbal) ou tácito firmado entre uma pessoa física (empregado) e outra pessoa física, jurídica ou entidade (empregador), por meio do qual o primeiro se compromete a executar, pessoalmente, em favor do segundo um serviço de natureza não eventual, mediante salário e subordinação jurídica. Sua nota típica é a subordinação jurídica. É ela que irá distinguir o contrato de trabalho dos contratos que lhe são afins e, evidentemente, o trabalho subordinado do trabalho autônomo.”

No tocante às características, o contrato de trabalho é bilateral, consensual, comutativo, oneroso, de trato sucessivo e de atividade.

Nesse sentido, Gustavo Filipe Barbosa Garcia[14] ensina:

“Contrato bilateral: envolve obrigações de ambas as partes, caracterizando-se por ser sinalagmático, tendo em vista a reciprocidade no conjunto das prestações; Contrato consensual: aperfeiçoa-se com o consenso na manifestação de vontade, expressa ou tácita (art. 443 da CLT), não exigindo a entrega de coisa (como ocorre nos contratos reais), nem qualquer formalidade ou solenidade; Contrato comutativo: no contrato de trabalho, as prestações são equivalentes, o que é conhecido desde o início da avença; Contrato oneroso: o empregado presta serviços e tem o direito de receber, como contraprestação, a remuneração, não se tratando de contrato gratuito; Contrato de trato sucessivo: a relação jurídica apresenta duração, ou seja, continuidade no tempo, não se tratando de contrato instantâneo; Contrato de atividade: o seu objeto imediato é a prestação de serviços pelo empregado.”

Percebe-se que o procedimento de caracterização vai além da definição, pois são apontados elementos não conceitualmente essenciais, mas relevantes à estrutura operacional do fenômeno examinado.

O douto Sergio Pinto Martins[15] elenca os requisitos do contrato de trabalho da seguinte forma:

“Continuidade: O contrato de trabalho é um pacto de trato sucessivo. Exige a continuidade da prestação dos serviços. Se há eventualidade, inexiste contrato de trabalho. (…). Subordinação: O empregado é dirigido pelo empregador, sendo a ele subordinado. O trabalhador autônomo não é empregado justamente por não ser subordinado a ninguém, exercendo com autonomia suas atividades e assumindo os riscos do seu negócio. Onerosidade: Não é gratuito o contrato de trabalho, mas oneroso. O empregado recebe salário pelos serviços prestados ao empregador. (…) Pessoalidade: O contrato de trabalho é intuito personae, ou seja, realizado com certa e determinada pessoa. O empregado não pode fazer-se substituir por outra pessoa, sob pena de o vínculo se formar com a última. Alteridade: O empregado presta serviços por conta alheia (alteridade). É um trabalho sem assunção de qualquer risco pelo trabalhador. Pode o empregado participar dos lucros da empresa, mas não dos prejuízos. É requisito do contrato de trabalho o empregado prestar serviços por conta alheia e não por conta própria.”

Ademais, é necessário mencionar que a formação do contrato de trabalho pressupõe a presença dos seguintes elementos: capacidade das partes, que significa a aptidão para adquirir direitos e contrair obrigações no ordenamento jurídico; licitude do objeto, cuja premissa é a de que a prestação do serviço está em consonância com a lei; e consentimento, que nada mais é do que o acordo de duas ou mais vontades.

 

3.2. Suspensão e interrupção do contrato de trabalho

O princípio da continuidade do contrato de trabalho fundamenta a manutenção do pacto laboral, com o objetivo de dar segurança econômica ao trabalhador e incorporá-lo ao organismo empresarial.

Presume-se que o contrato de trabalho terá validade por prazo indeterminado, resistente à dispensa arbitrária. A exceção à regra são os contratos por prazo determinado, inclusive o de trabalho temporário.

O art. 443, § 2º da CLT, dispõe que:

“Art. 443.  O contrato individual de trabalho poderá ser acordado tácita ou expressamente, verbalmente ou por escrito, por prazo determinado ou indeterminado, ou para prestação de trabalho intermitente. (…) § 2º – O contrato por prazo determinado só será válido em se tratando: a) de serviço cuja natureza ou transitoriedade justifique a predeterminação do prazo; b) de atividades empresariais de caráter transitório; c) de contrato de experiência”

Então, os demais contratos de trabalho que não se enquadram nas modalidades descritas nas alíneas acima, trazem consigo a ideia de continuidade. Atribui-se tal situação ao princípio da continuidade da relação de emprego.

A Súmula 212 do TST adota o princípio ora em exame, ao dizer que:

“DESPEDIMENTO. ÔNUS DA PROVA (mantida) – Res. 121/2003, DJ 19, 20 e 21.11.2003 O ônus de provar o término do contrato de trabalho, quando negados a prestação de serviço e o despedimento, é do empregador, pois o princípio da continuidade da relação de emprego constitui presunção favorável ao empregado.”

A estabilidade limita o poder de despedir do empregador. Porém, não há estabilidade absoluta, visto que a justa causa, o motivo de força maior ou outras causas previstas em lei podem determinar o fim do contrato.

Difere-se a estabilidade da garantia de emprego, pois esta última é o gênero que compreende medidas tendentes ao trabalhador obter o primeiro emprego, a manutenção do vínculo trabalhista e, inclusive, a colocação do trabalhador em novo serviço.

Mas, se há estabilidade, ela não pode ser provisória. Assim, pode-se dizer que garantia de emprego é o nome mais adequado para o que se chama estabilidade provisória, a qual garante o emprego, dentro dos limites temporais, em razão de interesse da categoria ou circunstâncias especiais.

A lei prevê a garantia de emprego, erroneamente chamada de estabilidade provisória, nos seguintes casos: a) Dirigente sindical (art. 543, § 3º, CLT); b) Membros da CIPA (art. 165, CLT); c) Gestante (Art. 10, II, “b”, ADCT); d) Acidentado (art. 118 da Lei 8.213/91); e) Membro das comissões de conciliação prévia (Art. 625-B, § 1º, CLT); f) Representante dos trabalhadores (art. 510-D, § 3º, CLT); g) Doentes de AIDS: embora não haja preceito legal assegurando a garantia de emprego ao doente de AIDS, a Súmula 443 do TST presume discriminatória a despedida de empregado portador do vírus HIV ou de outra doença grave que suscite estigma ou preconceito.

Além dos casos mencionados, a Lei 11.340/2006 também trouxe uma proteção no âmbito trabalhista às mulheres vítimas de violência doméstica e familiar, garantindo-lhes a manutenção do emprego (art. 9º, § 2º, inciso II).

A Constituição Federal de 1988, no art. 7º, I, protege, valoriza e defende a relação de emprego:

“Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: I – relação de emprego protegida contra despedida arbitrária ou sem justa causa, nos termos de lei complementar, que preverá indenização compensatória, dentre outros direitos.”

Além disso, a Lei Maior, nas Disposições Transitórias (art. 10, I), aumentou de 10% para 40% o pagamento calculado sobre o FGTS devido pelo empregador que despedir arbitrariamente ou sem justa causa, e a Lei Complementar n. 110, de 29.6.2001, acrescentou um percentual de 10% com o nome de contribuição social, a ser depositado na conta do empregado.

Verifica-se, portanto, a relevância do princípio da continuidade no texto legal brasileiro, o qual garante a manutenção das relações jurídico-laborais, mesmo que, em razão de certos acontecimentos, ocorra a sustação restrita ou ampliada dos efeitos contratuais durante um lapso temporal. São as hipóteses de suspensão e interrupção do contrato de trabalho, conforme terminologia indicada no Capítulo IV, do Título IV, da Consolidação das Leis do Trabalho.

O art. 471 da CLT preceitua que “ao empregado afastado do emprego, são asseguradas, por ocasião de sua volta, todas as vantagens que, em sua ausência, tenham sido atribuídas à categoria a que pertencia na empresa”.

Então, a CLT traduz a suspensão e a interrupção contratual, ou, mais precisamente, a paralisação transitória da prestação de serviço.

Existe na doutrina trabalhista um debate acentuado acerca da validade científica na distinção entre os dois institutos, argumentando que seus efeitos são apenas didáticos e que melhor seria uma só figura, a suspensão, em vez de duas.

No entanto, para a maioria dos autores, ocorre a suspensão do contrato de trabalho quando a empresa não deve pagar salários, nem contar tempo de serviço do empregado que estiver afastado. Já na interrupção do contrato de trabalho a doutrina majoritária entende que há necessidade do pagamento dos salários no afastamento do trabalhador, além da contagem do tempo de serviço.

Também, há divergência no que diz respeito aos critérios que devem prevalecer nos contratos a prazo determinado.

Nesse aspecto, Amauri Mascaro Nascimento[16] discorre:

“Para uma teoria, a suspensão e a interrupção deslocam o termo final do contrato. Retornando ao emprego, o trabalhador teria o direito de completar o tempo que restava do seu afastamento. Todavia, essa não é a diretriz que está na lei (CLT, art. 472, § 2º), que deixou à esfera do ajuste entre as partes os efeitos dos afastamentos nos contratos a prazo. Se as partes ajustarem, o termo final será deslocado. Não havendo o acordo de vontades, como sempre ocorre, mesmo suspenso o trabalho, terminada a duração do contrato previamente fixada pelas partes, ele estará extinto, apesar da suspensão ou interrupção. Essa orientação não é unânime. Sustenta-se, também, que se o empregado adoece, o termo final do contrato fica automaticamente prorrogado até o fim da licença.”

Portanto, os institutos em pauta não afetam a fluência do prazo do contrato a termo, a menos que as partes convencionem o contrário, haja vista os termos do art. 472, § 2°, da CLT.

Sobre os efeitos da suspensão e interrupção, é importante atentar-se ao fato de que as duas figuras justrabalhistas impossibilitam o empregador de dissolver o contrato de trabalho, durante a cessação temporária da obrigação de trabalhar, mesmo que arque com as reparações devidas, salvo em caso de justa causa cometida pelo empregado e reconhecida pela Justiça do Trabalho ou, ainda, de extinção da empresa.

Apesar de ausente a prestação de serviço, o vínculo entre as partes persiste e, portanto, é possível haver a demissão por justa causa do empregado, o qual mantém as obrigações contratuais em face dos deveres referentes à fidelidade do pacto laboral.

Conforme Sergio Pinto Martins[17], as hipóteses de interrupção são:

“São hipóteses, entre outras, de interrupção do contrato de trabalho as férias do empregado; os dias autorizados pela lei ou norma coletiva como de faltas justificadas, como para casamentos (três dias consecutivos); falecimento de cônjuge, ascendente ou descendente (dois dias consecutivos), em caso de nascimento de filho no decorrer da primeira semana, para fazer o registro do nascimento (um dia), doação de sangue (um dia a cada 12 meses); alistamento eleitoral (até dois dias); nos dias em que o obreiro estiver prestando provas para exame vestibular; pelo tempo que se fizer necessário, quando tiver que comparecer à juízo; pelo tempo que se fizer necessário, quando, na qualidade de representante de entidade sindical, estiver participando de reunião oficial de organismo internacional do qual o Brasil seja membro efetivo; até dois dias para acompanhar consultas médicas e exames complementares durante o período de gravidez de sua esposa ou companheira (para o empregado); por um dia por ano para acompanhar filho de seis anos em consulta médica ou de faltas que foram consideradas justificadas pelo empregador; as faltas do professor por gala ou luto (nove dias); e os 15 primeiros dias de afastamento por acidente de trabalho, ou auxílio-doença; licença-maternidade.”

Segue o ilustre doutrinador[18] sobre as hipóteses de suspensão do contrato de trabalho:

“Ocorrerá a suspensão do contrato de trabalho: em caso de greve e desde que atendidas as condições da Lei n. 7.783/89 (art. 7º); a partir do 16º dia do afastamento em razão de auxílio doença, porém haverá necessidade de se observar certas condições; aposentadoria por invalidez; encargo público, como de o empregado ser eleito vereador, prefeito, deputado, governador etc.”

Diante de hipóteses não previstas ou insuficientemente disciplinadas, poderia a CLT reunir todas as hipóteses de suspensão e interrupção e respectivos efeitos num só dispositivo, a fim de facilitar a aplicação e afastar divergências de interpretação.

Outras hipóteses poderiam ser arroladas, como é o caso do previsto no Art. 9º, §2º, inciso II, da Lei nº 11.340/2006 – Lei Maria da Penha, que garante a manutenção do vínculo trabalhista da mulher vítima de violência doméstica e familiar, quando necessário o afastamento do local de trabalho, por até seis meses, para preservar sua integridade física ou psicológica.

Percebe-se, portanto, a necessidade de uma revisão pelo legislador do sistema legal vigente.

 

3.3. A medida protetiva laboral amparada pela Lei Maria da Penha

O Art. 9º, §2º, inciso II, da Lei nº 11.340/2006 assegura a preservação do vínculo laboral da mulher vítima de violência doméstica e familiar, determinando, quando necessário, o afastamento do local de trabalho por até seis meses, quando tratar-se de empregada celetista, independentemente de o empregador ser pessoa física ou jurídica da esfera privada.

Trata-se, portanto, de uma nova forma legal de garantia de estabilidade provisória no emprego, sendo vedado ao empregador demitir a funcionária violentada no ambiente doméstico ou familiar durante os seis meses.

A hipótese estampada no dispositivo mencionado está diretamente associada aos institutos de suspensão e interrupção do pacto laboral e de garantias de emprego, previstos na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), e na Constituição Federal de 1988.

Porém, a determinação do dispositivo não pode ser feita de ofício, exigindo-se que a mulher requeira a medida formalmente, conforme disposto no art. 12, III, da Lei 11.340/2006:

“Art. 12.  Em todos os casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, feito o registro da ocorrência, deverá a autoridade policial adotar, de imediato, os seguintes procedimentos, sem prejuízo daqueles previstos no Código de Processo Penal: (…) III – remeter, no prazo de 48 (quarenta e oito) horas, expediente apartado ao juiz com o pedido da ofendida, para a concessão de medidas protetivas de urgência.”

Além disso, diversos requisitos precisam ser preenchidos, quais sejam: primeiro, que a empregada esteja em situação de violência doméstica e familiar, comprovada por boletim de ocorrência, inquérito ou processo penal; segundo, que a medida seja necessária para preservar sua integridade física ou psicológica; terceiro, que esta mulher possua vínculo empregatício, isto é, preste serviço de natureza não eventual a empregador, sob a dependência desde e mediante salário; quarto, que da violência doméstica sofrida pela mulher, resulte seu necessário afastamento do local de trabalho; quinto, que tal afastamento não se dê por prazo superior a seis meses.

Nesse sentido, Carlos Eduardo Duarte do Amaral[19] afirma que:

“A manutenção do vínculo trabalhista à mulher em situação de violência doméstica e familiar fica condicionada à necessidade da preservação de sua integridade física e psicológica. Assim, se o suposto agressor, no transcorrer da lide, não estiver investindo contra a vítima, ou estiver cumprindo à risca e com fidelidade todas as medidas protetivas de urgência deferidas, ou mesmo se estiver preso em flagrante ou preventivamente, é indevida a concessão da cautelar de manutenção da relação de emprego, em razão da ausência de iminência de risco à integridade física ou psicológica da ofendida.”

Outrossim, no período de seis meses é computado o tempo efetivo em que a mulher precisou ausentar-se do trabalho, não necessariamente contando a partir da data em que a vítima veio a sofrer a violência doméstica, uma vez que pode ocorrer da empregada ter conseguido trabalhar por alguns dias após ter sido agredida e, posteriormente, seu estado de saúde se agravar, impedindo-a de comparecer ao trabalho.

Em razão de sua importância, a estabilidade provisória assegurada à mulher vítima de violência doméstica deve ser reconhecida e aplicada, pois é fundamental que ela possa contar com seus vencimentos em período tão penoso, quando geralmente o agressor deixa de colaborar com as despesas e ela precisa de recursos para se manter.

 

CAPÍTULO IV – A EFETIVIDADE DO ARTIGO 9, § 2º, II DA LEI 11.340/2006

4.1. Análise do dispositivo

No capítulo II da Lei Maria da Penha, mais precisamente no art. 9, § 2º, II, está disposto o seguinte:

“Art. 9º A assistência à mulher em situação de violência doméstica e familiar será prestada de forma articulada e conforme os princípios e as diretrizes previstos na Lei Orgânica da Assistência Social, no Sistema Único de Saúde, no Sistema Único de Segurança Pública, entre outras normas e políticas públicas de proteção, e emergencialmente quando for o caso. § 2º O juiz assegurará à mulher em situação de violência doméstica e familiar, para preservar sua integridade física e psicológica: (…) II – manutenção do vínculo trabalhista, quando necessário o afastamento do local de trabalho, por até seis meses.”

A inserção deste artigo à legislação demonstra a preocupação do legislador no tocante a conservação da fonte de trabalho da mulher vítima de violência doméstica e familiar, já que devido às agressões ela se vê, muitas vezes, obrigada a deixar o emprego.

Destarte, o trabalho é um direito social garantido constitucionalmente a todas as pessoas e, portanto, a mulher agredida no ambiente doméstico e familiar não deve ter a sua vida profissional prejudicada e tampouco ser penalizada com a perda do emprego.

Ademais, a violência doméstica contra a mulher, além de afetar a sua integridade física e mental, gera graves impactos econômicos para o país, pois diminui significativamente o Produto Interno Bruto – PIB, em virtude dos gastos com o sistema de saúde e atendimento às vítimas, a movimentação do aparelho judicial e policial e, também, a ausência da ofendida no trabalho ou a queda da sua produtividade.

Consta no caput do artigo em pauta os mecanismos de assistência à mulher, os quais tripartem-se em: assistência social (Lei 8.742/93), incluindo a ofendida no cadastro de programas assistenciais do governo federal, estadual e municipal; assistência à saúde (Lei 8.080/90), garantindo o acesso aos benefícios decorrentes do desenvolvimento científico e tecnológico, incluindo os serviços de contracepção de emergência, a profilaxia das Doenças Sexualmente Transmissíveis (DST’s) e da Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (AIDS) e outros procedimentos médicos necessários e cabíveis nos casos de violência sexual; assistência à segurança pública, assegurando à vítima proteção policial, bem como abrigo ou local seguro, quando houver risco de vida e, se necessário, acompanhamento da ofendida para assegurar a retirada de seus pertences do local da ocorrência ou do domicílio.

Resta evidente, portanto, que a violência doméstica e familiar contra a mulher não atinge somente à vítima, mas também gera custos que interferem na economia no país.

Os artigos 4° e 5º da Lei 8.742/93, Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS), a qual é mencionada no caput do dispositivo em estudo, estabelecem os princípios e as diretrizes da assistência social:

“Dos Princípios Art. 4º A assistência social rege-se pelos seguintes princípios: I – supremacia do atendimento às necessidades sociais sobre as exigências de rentabilidade econômica; II – universalização dos direitos sociais, a fim de tornar o destinatário da ação assistencial alcançável pelas demais políticas públicas; III – respeito à dignidade do cidadão, à sua autonomia e ao seu direito a benefícios e serviços de qualidade, bem como à convivência familiar e comunitária, vedando-se qualquer comprovação vexatória de necessidade; IV – igualdade de direitos no acesso ao atendimento, sem discriminação de qualquer natureza, garantindo-se equivalência às populações urbanas e rurais; V – divulgação ampla dos benefícios, serviços, programas e projetos assistenciais, bem como dos recursos oferecidos pelo Poder Público e dos critérios para sua concessão. Das Diretrizes Art. 5º A organização da assistência social tem como base as seguintes diretrizes: I – descentralização político-administrativa para os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, e comando único das ações em cada esfera de governo; II – participação da população, por meio de organizações representativas, na formulação das políticas e no controle das ações em todos os níveis; III – primazia da responsabilidade do Estado na condução da política de assistência social em cada esfera de governo.”

Da mesma forma, a Lei 8.080/90, Lei Orgânica da Saúde, define seus princípios e diretrizes da seguinte forma:

“Dos Princípios e Diretrizes. Art. 7º As ações e serviços públicos de saúde e os serviços privados contratados ou conveniados que integram o Sistema Único de Saúde (SUS), são desenvolvidos de acordo com as diretrizes previstas no art. 198 da Constituição Federal, obedecendo ainda aos seguintes princípios: I – universalidade de acesso aos serviços de saúde em todos os níveis de assistência; II – integralidade de assistência, entendida como conjunto articulado e contínuo das ações e serviços preventivos e curativos, individuais e coletivos, exigidos para cada caso em todos os níveis de complexidade do sistema; III – preservação da autonomia das pessoas na defesa de sua integridade física e moral; IV – igualdade da assistência à saúde, sem preconceitos ou privilégios de qualquer espécie; V – direito à informação, às pessoas assistidas, sobre sua saúde; VI – divulgação de informações quanto ao potencial dos serviços de saúde e a sua utilização pelo usuário; VII – utilização da epidemiologia para o estabelecimento de prioridades, a alocação de recursos e a orientação programática; VIII – participação da comunidade; IX – descentralização político-administrativa, com direção única em cada esfera de governo: a) ênfase na descentralização dos serviços para os municípios; b) regionalização e hierarquização da rede de serviços de saúde; X – integração em nível executivo das ações de saúde, meio ambiente e saneamento básico; XI – conjugação dos recursos financeiros, tecnológicos, materiais e humanos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios na prestação de serviços de assistência à saúde da população; XII – capacidade de resolução dos serviços em todos os níveis de assistência; e XIII – organização dos serviços públicos de modo a evitar duplicidade de meios para fins idênticos. XIV – organização de atendimento público específico e especializado para mulheres e vítimas de violência doméstica em geral, que garanta, entre outros, atendimento, acompanhamento psicológico e cirurgias plásticas reparadoras, em conformidade com a Lei nº 12.845, de 1º de agosto de 2013. (Redação dada pela Lei nº 13.427, de 2017).”(grifo nosso)

A Lei Orgânica avançou no sentido de proteger a mulher e dar garantia de acesso a serviços que outrora não pertenciam ao Sistema Único de Saúde (SUS).

Em síntese, tais princípios e diretrizes manifestam a supremacia do atendimento das necessidades sociais, de saúde e de segurança pública de todas as mulheres vítimas de violência e familiar, protegendo os seus direitos sociais e de acesso a todos os níveis de saúde, de modo que assegure a ela e, também, aos seus filhos, acesso a outras políticas públicas a que fizerem jus, preservando a dignidade das vítimas e reconhecendo seus direitos a benefícios e serviços de qualidade, bem como garantindo sua convivência familiar e social, impedindo qualquer ação discriminatória.

Concernente ao inciso II, não há na legislação nada que diga respeito ao funcionamento do afastamento do local de trabalho por até 6 (seis) meses. A omissão do legislador no tocante à natureza jurídica do afastamento assegurado à ofendida gera uma problemática para a efetiva aplicação do dispositivo.

 

4.2. Natureza jurídica do afastamento assegurado à mulher violentada

Como já foi mencionado, o art. 9, § 2º, II, da Lei n. 11.340/2006 não esclarece a natureza jurídica do garantismo à proteção ao trabalho da mulher em situação de violência doméstica e familiar, ou seja, não disciplina se o afastamento previsto é um caso de suspensão ou interrupção do contrato de trabalho.

A distinção entre os dois institutos, ao qual a um deles a lei em comento se reporta, já foi descrita anteriormente. Mas, em suma, a suspensão difere da interrupção, pois naquela o empregado fica afastado não recebendo salário e nem se conta o seu tempo de serviço, havendo a cessação provisória e total dos efeitos do contrato de trabalho; e nesta, o empregado é remunerado normalmente, embora não preste serviços, contando também seu tempo de serviço, demonstrando a existência de uma cessação provisória e parcial dos efeitos do contrato de trabalho.

Considerando que o caso seja de interrupção do contrato de trabalho, o prejuízo é do empregador, o qual será obrigado a pagar o salário da empregada sem que possa contar com a respectiva contraprestação, isto é, terá que pagar à empregada afastada e, também, àquela que a substituir.

Tal posicionamento resulta da interpretação conjugada do princípio da função social do contrato e preservação da dignidade humana. As vertentes doutrinárias defendem esta hipótese sob o argumento de que a empregada não poderá ser privada de seu sustento enquanto estiver afastada e não há norma previdenciária que garanta a remuneração em caso de afastamento, dado que o art. 18 da Lei n. 8.213/91 não menciona qual benefício previdenciário seria cabível para esta situação. Assim, resta ao empregador o pagamento do salário em favor da vítima, para atender a sua função social.

O respeitável Mauricio Godinho Delgado[20] assim entende:

“Argument-se, em segundo lugar, que o dispositivo da Lei Maria da Penha tem, sim, inquestionável natureza de regra de Seguridade Social, além de sua dimensão trabalhista, estando ambas conectadas, do ponto de vista lógico e jurídico. A circunstância de ser regra dessa natureza não exclui, de maneira alguma, a responsabilidade do empregador, uma vez que toda a sociedade participa, segundo a matriz constitucional, do conjunto integrado de ações que compõem essa fase da vida pública, social e comunitária. (…). Nessa qualidade de regra trabalhista e de regra de seguridade social, o afastamento do trabalho assegurado pelo art. 9º, §2º, II, da Lei n. 11.340/2006 à trabalhadora ameaçada no plano doméstico ou de sua família somente cumpre seus objetivos cardeais caso seja enquadrado como interrupção da prestação de serviços, ao invés de mera suspensão contratual, com a garantia de percepção dos direitos trabalhistas à empregada sob tutela pública e social.”

De outro modo, há quem entenda que aplicar-se-á ao dispositivo em alhures o instituto da suspensão do contrato de trabalho, no qual a empregada não trabalha e tampouco recebe salário, o que provoca grave consequência em sua situação, visto que nesta altura já se encontra privada do auxílio do marido ou companheiro agressor.

Diante do impasse, Rogério Sanches Cunha e Ronaldo Batista Pinto[21], concluem:

“A solução que nos parece mais adequada seria da suspensão do contrato de trabalho, no qual a mulher teria mantido o seu vínculo empregatício, não recebendo, porém, salário do empregador, mas sim do órgão previdenciário. É o que ocorre, por exemplo na licença gestante (art. 392 da CLT) ou na ausência do empregado por doença ou acidente de trabalho a partir do 16º dia (art. 746 da CLT e art. 75, § 3º, do Regulamento de Benefícios da Previdência Social – Dec 3.048/99, de 06.05.1999).”

Nos casos em tela, quem paga pelo período de afastamento da gestante ou o auxílio-doença do empregado é a Previdência social, sem que haja qualquer ônus para o empregador.

Nessa linha, Amini Haddad Campos e Lindinalva Rodrigues Corrêa[22], declaram:

“É difícil imaginar outra razão para o afastamento da vítima do trabalho que não seja a constatação de uma doença física, mental ou problema psicológico, mas surgindo algo que justifique o afastamento da mulher, quem deve custear sua remuneração continua sendo a previdência social, a exemplo do que já ocorre, por exemplo, nos casos de licença-maternidade (CLT, art. 392), não sendo justo se imputar ao empregador tal ônus, nem se imaginar que a intenção do legislador fosse a de meramente garantir o emprego da vítima, sem o respectivo salário, já que isso não atenderia a finalidade de manter a independência financeira da vítima.”

As autoras, portanto, defendem a hipótese de suspensão do contrato de trabalho, pois a vítima continua percebendo os vencimentos, mas custeados pelo Estado e não pelo empregador, uma vez que a ofendida se vincula a esse benefício por uma questão de saúde.

Além de tudo, há quem defenda que o juiz deve analisar o caso concreto e aplicar, por analogia, as disposições referentes à concessão de auxílio-doença previdenciário, de maneira que os primeiros 15 (quinze) dias de afastamento seriam pagos pelo empregador e, após esse período, seria remunerado pela Previdência Social. Este entendimento se justifica pelo fato de que o juiz não poderá deixar de julgar alegando existência de lacuna na lei.

A pesquisa jurisprudencial pertinente ao tema realizada nos sites dos TRT’s restou infrutífera, pois não foi encontrado nenhum julgado sobre o dispositivo em alhures, o que talvez possa ser justificado pelo desconhecimento da mulher ofendida acerca do seu direito de afastamento e garantia de emprego.

 

4.3. Justiça competente para a aplicação da medida protetiva

Além de não mencionar a natureza jurídica do afastamento previsto, o art. 9, § 2º, II, da Lei n. 11.340/2006 também não elucida sobre a justiça competente para a medida protetiva laboral assegurada à mulher vítima de violência doméstica e familiar.

A omissão do legislador deu brecha a várias interpretações, uma vez que parte da doutrina entende ser atribuição dos Juizados Especializados em Violência Doméstica e Familiar e, até que estes sejam instalados, a atuação caberá à Justiça Comum. Por outro lado, outros discordam, acreditando tratar-se de competência da Justiça do Trabalho, já que a situação envolve relação trabalhista.

O art. 14 da Lei n. 11.340/2006 alude que poderão ser criados Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a mulher, atribuindo-lhes competência cível e criminal para julgamento e execução das causas decorrentes de agressões e maus tratos contra a mulher no seu ambiente doméstico e familiar. No entanto, o art. 33 da mesma lei dispõe que enquanto não forem estruturados tais juizados, caberá à vara criminal conhecer e julgar causas dessa natureza.

Alguns doutrinadores consideram que o legislador pecou ao remeter à justiça comum a concessão da medida protetiva laboral assegurada no art. 9, § 2º, II, da Lei Maria da Penha, pois entendem que isso contraria os sistemas de distribuição de competência, adotados pelo ordenamento jurídico brasileiro. Ainda, por tratar-se de uma relação trabalhista, a qual exige a comprovação do vínculo empregatício através da justiça do trabalho, parte da doutrina entende que são absolutamente incompetentes as varas criminais.

Nesse sentido, os autores Rogério Sanches Cunha e Ronaldo Batista Pinto[23] explanam que:

“Com efeito, o que se discute, aqui, é a manutenção de vínculo trabalhista. Trata-se, pois, de matéria que, sem qualquer espécie de dúvida, acha-se na Competência da Justiça do Trabalho. Sobretudo após o advento da EC 45/2004, que deu nova redação ao artigo 114 da Constituição, atribuindo à justiça especializada competência para processar e julgar não somente onde se discute vínculo empregatício, mas também toda e qualquer ação onde se vislumbre uma relação de trabalho, com ou sem vínculo empregatício. (…). Daí o equívoco do legislador em atribuir à Justiça Comum (da Vara da Violência contra a Mulher) a competência para conhecer matéria que, obviamente, tem cunho trabalhista e, por consequência, de competência daquela justiça especial. Por tratar-se de competência firmada no texto maior, não se permite que lei infraconstitucional o afronte, pelo dispositivo em estudo, nesse ponto, pode ser mesmo taxado de inconstitucional.”

O Supremo Tribunal Federal traz em sua jurisprudência, a conveniência em se atribuir à Justiça especializada toda e qualquer causa que envolva relação de emprego:

“Órgãos que se debruçam cotidianamente sobre os fatos atinentes à relação de emprego (muitas vezes quanto à própria experiência dela) e que por isso mesmo detêm melhores condições para apreciar toda a tramados dedicados objetivos e subjetivos que permeiam a relação de emprego. (CComp. 7.204-1/MG, j. 29.06.2005, rel. Min. Ayres Britto)”

E mais:

“É que a revisão do tema me convenceu de que tanto as ações acidentárias, evidentemente oriundas de relação de trabalho, como, sem exceção, todas as demais ações resultantes de relação de trabalho, devam, em nome do mesmo princípio (unidade de convicção), ser atribuídas à Justiça do Trabalho. A especialização e a universalidade desta já recomendariam, quando menos em teoria, tal solução. (CComp 7.204-1/MG, j. 29.06.2005, rel. Min. Cezar Peluso)”

Assim, a doutrina majoritária entende que a solução mais adequada é a de que, após a investigação e constatação da situação de violência doméstica e familiar pelo juiz criminal, a trabalhadora deverá apresentar à justiça do trabalho a decisão proferida na justiça comum, comprovando a situação de risco, a fim de que o magistrado trabalhista conceda o afastamento do trabalho por até seis meses, mantido após esse período o pacto laboral, conforme disciplina o artigo 9º, § 2º, II da Lei Maria da Penha.

Por outro lado, há uma corrente minoritária sustentando que a Lei Maria da Penha autorizou que os Juizados Especializados em Violência Doméstica e Familiar possam investir na esfera trabalhista.

Segundo Maria Berenice Dias[24], a concessão da medida protetiva à vítima poderia ser dada de ofício pelo magistrado dos referidos juizados:

“Reconhecendo o magistrado, de oficio, a requerimento da parte ou do Ministério Público a necessidade de a vítima manter-se afastada do trabalho, comunicada a decisão à empresa empregadora, que tem a obrigação de cumprir a determinação judicial.”

Conforme o posicionamento acima descrito, caberá ao juiz criminal a concessão do benefício, haja vista que se compete à justiça comum investigar e declarar a situação de vulnerabilidade da vítima, também poderá reconhecer a necessidade de distanciamento do local onde a trabalhadora exerce suas atividades.

Contudo, observa-se que não se trata de atribuir competência à justiça comum, cível ou criminal, para obter reconhecimento de vínculo trabalhista ou de algum direito relativo ao contrato de trabalho existente, pois, por óbvio, esta competência é da justiça do trabalho. O magistrado da justiça comum somente poderá dizer se há ou não necessidade de afastamento da ofendida, sem abordar assuntos referentes à seara trabalhista.

A mulher, diante de uma situação de violência doméstica e familiar, deve procurar a tutela jurisdicional adequada na justiça comum, criminal ou cível, uma vez que o afastamento assegurado à vítima, com a devida manutenção do vínculo empregatício, depende de provimento jurisdicional específico neste sentido.

Portanto, a justiça comum é competente para reconhecer o direito de permanência no emprego da vítima de violência doméstica e familiar, pois este é um reconhecimento de direito constitucional individual e social do trabalhador, baseado no princípio da dignidade humana e da proteção à integridade física do obreiro. Sendo assim, não há inconstitucionalidade no art. 9º, § 2º, II, da Lei Maria da Penha.

Outra questão que também merece ser discutida é o desdobramento do vínculo empregatício após expirados os seis meses de afastamento e a mulher retornar ao seu posto.

Por certo, o período de afastamento configura uma espécie de estabilidade provisória, sendo defesa a demissão. Não obstante, o que a lei prevê é a manutenção do emprego após expirado o período de afastamento.

Todavia, há na doutrina quem entenda que o empregador não tem a obrigação de manter o contrato de trabalho da mulher vítima de violência doméstica e familiar quando esta retornar ao trabalho. Mas, o empregador deverá atentar-se às hipóteses previstas no art. 482 da CLT, sob pena de ferir o art. 7º, caput, inciso I, da Carta Magna, que protege a relação de emprego contra despedida arbitrária ou sem justa causa.

Considerando o princípio da continuidade da relação de emprego, caso o empregador queira demitir a empregada, deverá declarar o motivo que o levou a dispensá-la.

Não há dúvida de que o art. 9º, § 2º, II, da Lei Maria da Penha é uma nova espécie de estabilidade provisória, cuja finalidade é a proteção física e mental da mulher ofendida. Assim, sendo a empregada coagida pelo empregador a deixar o seu posto e sendo afastada de fato, deverá resistir a tal arbitrariedade e propor reclamação trabalhista de reintegração ao emprego cumulada com tutela antecipada (art. 659, X, da CLT) e danos morais.

 

CONCLUSÃO

Ao longo do tempo, as mulheres enfrentaram barreiras discriminatórias inerentes ao Patriarcalismo. Através de movimentos feministas, as mulheres conquistaram seu espaço na sociedade, rompendo o estigma de sexo frágil, inferior e submisso. Apesar da evolução alcançada, que reduziu drasticamente a fronteira que existia entre os gêneros, percebe-se no dia a dia os resquícios mascarados do sistema patriarcal, o qual impõe às mulheres tratamentos descabidos, ultrapassados e inaceitáveis.

Ocorre que o empoderamento feminino tão evidente na atualidade fortaleceu, conscientizou e encorajou as mulheres a romperem os valores deturpados cultuados pela sociedade, que ainda impõe restrições comportamentais machistas em nome da moral e dos bons costumes.

A consciência coletiva, expressada por ações que estimulam as mulheres a lutarem pela equidade de gênero, gerou um clima propício ao surgimento de conflitos e, consequentemente, violência. Destarte, a violência contra a mulher é uma conduta criminosa, decorrente de um fator cultural.

Infelizmente, muitas mulheres enfrentam a discriminação no interior do próprio lar, convivendo com companheiros ou maridos violentos e manipuladores, que as submetem a torturas físicas e psicológicas.

Nesse sentido, não há dúvidas de que a Lei nº. 11.340/06, Lei Maria da Penha, trouxe importantes instrumentos para garantir a vida, a moralidade e o patrimônio da mulher que esteja sofrendo violência doméstica e familiar.

A mulher que deu nome à Lei Maria da Penha ficou paraplégica devido ao tiro disparado pelo seu marido. O episódio transformou e limitou a rotina da vítima, a impedindo de exercer tarefas simples do dia a dia e, pior do que isso, causando transtornos psicológicos naturais de quem passou pelo trauma da violência.

Assim como a farmacêutica Maria da Penha Maia Fernandes, muitas mulheres enfrentam a violência doméstica e familiar e, consequentemente, carregam limitações diárias, inclusive no ambiente de trabalho, o que justifica a importância do tema e a necessidade de uma revisão pelo legislador do sistema legal vigente.

Uma das medidas mais sensatas trazidas pela lei mencionada é a prevista no Art. 9º, §2º, inciso II, que dispõe sobre o afastamento da mulher vítima de violência doméstica de seu ambiente laboral, por até 6 (seis) meses, mantendo-se o vínculo empregatício. No entanto, o legislador não esclarece a natureza jurídica do afastamento assegurado, nem tampouco a competência para o julgamento da medida protetiva dedicada à trabalhadora ofendida, o que ameaça a aplicabilidade do dispositivo.

Considerando o risco do Art. 9º, §2º, inciso II, da Lei nº 11.340/2006 tornar-se inexequível, é imprescindível o seu aperfeiçoamento. Para evitar que a mulher seja vítima duas vezes: a primeira ao ser violentada no plano doméstico, e, a segunda, ao ser prejudicada no âmbito trabalhista, a solução mais adequada seria determinar de forma expressa a suspensão do contrato de trabalho, na qual a trabalhadora teria mantido seu vínculo empregatício, percebendo salário do órgão previdenciário, sem nenhum ônus para o empregador.

É sabido que o tratamento desigual atribuído às mulheres na seara trabalhista se dá pelos custos que a contratação gera para o empregador, os quais estão relacionados com a maternidade e com o cuidado com os filhos. Somando isso à possibilidade de o empregador ter que arcar com o ônus decorrente da violência doméstica e familiar sofrida pela empregada, aumenta a preferência por empregados homens e contribui para que o desemprego afete mais o sexo feminino.

Não seria justo imputar ao empregador tal ônus e nem tampouco privar a empregada ameaçada no âmbito doméstico e familiar de seu sustento enquanto estiver afastada do trabalho por uma questão de saúde física e mental.

Não resta dúvida, portanto, que a hipótese mais apropriada é a suspensão do contrato de trabalho, sendo a remuneração da vítima custeada pela previdência social, a exemplo do que ocorre na licença gestante (art. 392 da CLT) ou na ausência do empregado por doença ou acidente de trabalho a partir do 16º dia (art. 75, § 3º, do Regulamento de Benefícios da Previdência Social – Dec 3.048/99, de 06.05.1999).

Ademais, outro ponto importante a ser esclarecido diz respeito a competência para processar e julgar o pedido relacionado a garantia de proteção ao trabalho da vítima de violência doméstica e familiar. A solução mais apropriada seria a competência da justiça comum, comprovada à situação de urgência e vulnerabilidade da vítima.

Se, por acaso, o empregador descumprir a ordem judicial da justiça comum, vindo a dispensar a trabalhadora devido ao seu afastamento, caberá a atuação da justiça do trabalho através da Reclamação Trabalhista ajuizada pela empregada, que deverá requerer a sua reintegração empregatícia.

 

REFERÊNCIAS

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[1] SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 28ª ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 217.

[2]  DIAS, Maria Berenice. Conversando sobre Justiça e os crimes contra as mulheres. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004, p. 43.

[3] NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Iniciação ao Direito do Trabalho. 37ª ed. São Paulo: LTr, 2012, p. 198

[4] GARCIA, Gustavo Filipe Barbosa. CLT Comentada. 2ª ed. rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense. 2017, p. 316.

[5] MARTINS, Sergio Pinto. Manual de Direito do Trabalho. 11ª ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2018, p. 274.

[6] CAMPOS, Amini Haddd, CORRÊA, Lindinalva Rodrigues. Direitos Humanos das Mulheres. 1ª ed. Curitiba: Juruá, 2012, p. 139

[7] FERNANDES, Maria da Penha Maia. Sobrevivi… posso contar. Fortaleza: Armazém da Cultura, 2010, p. 36.

[8] LIMA, Paulo Marco Ferreira. Violência contra a mulher: o homicídio privilegiado e a violência doméstica. São Paulo: Atlas, 2009, p. 62

[9] CAMPOS, Amini Haddad, CORRÊA, Lindinalva Rodrigues. Direitos Humanos das Mulheres. 1ª ed. Curitiba: Juruá, 2012, p. 100.

[10] JESUS, Damásio de. Violência contra a mulher: aspectos criminais da Lei n. 11.340/2006. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 16

[11] DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 16. ed. rev. e ampl.  São Paulo: LTr, 2017, p. 575.

[12] NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Iniciação ao Direito do Trabalho. 37. ed. São Paulo: LTr, 2012, p. 156.

[13] BARROS, Alice Monteiro. Curso de Direito do Trabalho. 11. ed., atual. por Jessé Claudio Franco de Alencar. São Paulo: LTr, 2017, p. 157.

[14] GARCIA, Gustavo Filipe Barbosa. Manual de Direito do Trabalho. 7. ed. rev. atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2015, p. 71.

[15] MARTINS, Sergio Pinto. Manual de Direito do Trabalho. 11ª ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2018, p. 79.

[16] NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Iniciação ao Direito do Trabalho. 37. ed. São Paulo: LTr, 2012, p. 265.

[17] MARTINS, Sergio Pinto. Manual de Direito do Trabalho. 11ª ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2018, p. 161 e 162.

[18] Ibidem, p. 162

[19] AMARAL, Carlos Eduardo Rios. Da Manutenção do Vínculo Trabalhista à Mulher em Situação de Violência Doméstica e Familiar. Disponível em: <http://direitonet.com.br/artigos/exibir/4968>. Acesso em 15 de agosto de 2018.

[20] DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 16. ed. rev. e ampl.  São Paulo: LTr, 2017, p. 1230 e 1231.

[21] CUNHA, Rogério Sanches, PINTO, Ronaldo Batista. Violência doméstica: Lei Maria da Penha comentada artigo por artigo. 6. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015, p. 107.

[22] CAMPOS, Amini Haddad, CORRÊA, Lindinalva Rodrigues. Direitos Humanos das Mulheres. 1ª ed. Curitiba: Juruá, 2012, p. 322.

[23] CUNHA, Rogério Sanches, PINTO, Ronaldo Batista. Violência doméstica: Lei Maria da Penha comentada artigo por artigo. 6. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015, p. 108 e 109

[24] DIAS, Maria Berenice. A Lei Maria da Penha na Justiça: a efetividade da lei 11.340/2006 de combate à violência doméstica e familiar contra a mulher. 3 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p.165

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