A Lei nº 10.695/03 e seu impacto no direito autoral brasileiro

No dia 2 de agosto de 2003 entrou em vigor a Lei nº 10.695, que altera
dispositivos do Código Penal e do Código de Processo Penal em questões
relativas à tipificação do crime de violação de direito autoral e às medidas
processuais correspondentes. A seguir, examinaremos alguns aspectos da Lei
10.695/03 que entendemos causarem maior impacto no direito autoral brasileiro.

Anteriormente à entrada em vigor da Lei 10.695/03, o artigo 184 do
Código Penal tipificava como crime apenas a violação a direito de autor. Com a
nova redação, foram incluídos na tipificação penal os direitos conexos aos de
autor, os quais, de acordo com o artigo 89 da Lei nº 9.610/98 (“Lei de Direitos
Autorais”), são aqueles pertencentes aos artistas intérpretes ou executantes,
aos produtores fonográficos e às empresas de radiodifusão.

No entanto, a referida lei cometeu um deslize nos parágrafos 1º, 2º e
3º do artigo 184 ao fazer menção apenas aos artistas intérpretes ou executantes
e aos produtores fonográficos, deixando assim de incluir as empresas de
radiodifusão na tipificação legal. Portanto, a rigor, apenas a regra geral
estabelecida pelo caput do artigo 184
seria aplicável à violação de direitos conexos detidos por empresas de
radiodifusão.

Apesar de o artigo 184, caput,
do Código Penal, tipificar o crime de violação de direito de autor e direitos
conexos sem intuito de lucro, parece-nos que a tônica da Lei 10.695/03 é
penalizar, principalmente, a prática que tenha intuito de lucro direto ou
indireto, conforme expressamente estabelecem os parágrafos 1º, 2º e 3º desse
mesmo artigo. Para esses casos, o legislador aumentou a pena, com o claro
intuito de combater a prática da pirataria de obras protegidas por direitos
autorais, inclusive nas novas tecnologias, como a Internet, cujo tipo penal foi
definido pelo parágrafo 3º do artigo 184.

Além disso, a Lei 10.695/03 resolve definitivamente a polêmica questão
acerca da cópia única para uso privado do copista, sem intuito de lucro, ao
inserir o parágrafo 4º no artigo 184, que exclui tal prática, de forma
expressa, da incidência das penas previstas nos parágrafos precedentes.
Portanto, copiar obra integral, em um só exemplar, para uso exclusivamente
privado, sem intuito de lucro, não é tipificado como crime.

Essa, porém, não era a regra do nosso ordenamento jurídico até a
entrada em vigor da Lei 10.695/03, razão pela qual tal alteração é muito bem
vinda. De fato, o artigo 46, inciso II, da Lei de Direitos Autorais, diz que
não constitui ofensa aos direitos de autor “a reprodução, em um só exemplar, de
pequenos trechos, para uso privado do copista, desde que feita por este, sem
intuito de lucro”. Portanto, a limitação ao direito de autor contida no
referido artigo legal seria aplicada apenas à reprodução de pequenos trechos e
não de obra integral. É por essa razão que a cópia integral de uma obra
qualquer, como um livro, por exemplo, até a entrada em vigor da Lei 10.695/03,
era tipificada como crime de violação de direito de autor.

No entanto, apesar de a Lei 10.695/03 ter expressamente excluído da
tipificação penal a reprodução privada da obra para uso particular do copista,
em um único exemplar, sem intuito de lucro, o fato é que continua em vigor a
regra do artigo 46, inciso II, da Lei de Direitos Autorais. Portanto, o titular
dos direitos autorais ainda pode ingressar com uma ação na esfera cível,
visando a apreensão das obras reproduzidas ou a suspensão da prática, além do
pagamento de uma indenização pela reprodução integral não autorizada. Por essa
razão, já existem diversos estudos em andamento visando alterar a redação do
artigo 46, inciso II, da Lei de Direitos Autorais, de forma a permitir a cópia
integral nos mesmos termos estabelecidos pela Lei 10.695/03.

Assim, podemos dizer que uma das características mais louváveis da Lei
10.695/03 foi a de ter estabelecido pesos diferentes para as penas aplicáveis à
reprodução com e sem intuito de lucro, além de ter excluído da tipificação
penal a cópia única para uso privado do copista, sem intuito de lucro, uma vez
que cada uma dessas práticas tem diferentes impactos na esfera social e
econômica.

Apesar disso, ainda perduram algumas dúvidas acerca da tipificação
penal da troca de arquivos de música na Internet, através da tecnologia peer-to-peer, que hoje é uma das formas
mais discutidas de aquisição de obras intelectuais. Para tanto, é necessário,
num primeiro momento, verificar se a disponibilização da obra na Internet
ocorreu com o consentimento do titular dos direitos autorais. Em caso
afirmativo, decorre que a cópia única dessa obra, para uso particular, sem
intuito de lucro, realizada posteriormente à sua disponibilização na Internet,
não tipificaria o crime de violação de direitos autorais e conexos. No entanto,
se a obra foi disponibilizada na Internet sem a autorização do titular dos
direitos autorais, a pessoa que a disponibilizou e os respectivos copiadores
privados incidiriam no tipo penal previsto no caput do artigo 184 do Código Penal. Caso haja intuito de lucro,
ainda que indireto, da parte de quem a disponibilizou sem autorização, o tipo
penal a ser aplicado é o estabelecido pelo parágrafo 3º do referido artigo
legal.

Finalmente, outra novidade da Lei 10.695/03 que merece atenção é a
revogação do artigo 185 do Código Penal, que, em linhas gerais, tipificava como
crime a atribuição de falsa autoria a obra literária artística e científica.
Sabemos que o direito autoral vem sofrendo uma profunda transformação no
sentido de privilegiar o seu aspecto patrimonial, o que pode ser verificado
pela própria regulamentação internacional da matéria no âmbito da OMC-TRIPS.
Também contribuíram para essa transformação os novos valores trazidos pela
Internet e pela tecnologia digital que acabam por revestir de certa
“moralidade” alguns atos que, nas obras analógicas, seriam considerados
“imorais” ao autor. A produção de obras digitais derivadas, através de
recombinações de obras preexistentes, muitas vezes sem autorização do autor
primígeno, é apenas um dos exemplos da prática que vem ganhando aceitação
social, apesar das restrições legais.

Porém, se há um direito moral de autor que necessariamente tem de ser
preservado, inclusive com a manutenção do tipo penal específico para incriminar
a respectiva violação, é o direito de o autor ser reconhecido como o criador de
uma determinada obra. A preservação desse direito não mais tem como fundamento
apenas o interesse individual do autor, mas de toda a coletividade, de forma a
garantir às pessoas a correta informação acerca da procedência das informações
e das obras intelectuais disponibilizadas.

Dessa forma, não vemos razão para a Lei 10.695/03 ter suprimido o
artigo 185 do Código Penal. Na verdade, a criação de uma tipificação criminal
com pena específica para a falsa atribuição de autoria, na redação anterior do
Código Penal, justificava-se pelo valor relevante que esse direito moral de
autor representa para a nossa sociedade.

Podemos assim concluir que o impacto da Lei 10.695/03 sobre o sistema
do direito de autor brasileiro foi positivo, pois, de um lado, atende aos
interesses da indústria e do governo no combate à pirataria e, de outro, o dos
usuários de obras intelectuais, que não mais são penalizados criminalmente pela
realização de cópias privadas de obras intelectuais, sem intuito de lucro.

 


 

Informações Sobre o Autor

 

Guilherme C. Carboni

 

Advogado Responsável pelo Departamento de Propriedade Intelectual de Tozzini, Freire, Teixeira e Silva Advogados

 


 

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