A lógica do consenso na administração pública contemporânea em face do paradigma do resultado

CONSIDERAÇÕES INICIAIS


O Estado contemporâneo, moldado sob a denominação de Estado de Direito Democrático, tem como supedâneo a democracia, onde há a consagração da proteção dos direitos fundamentais dos homens e da dignidade da pessoa humana, verdadeiros substratos que perfazem o núcleo essencial da Constituição da República de 1988.


Com a evolução do Estado Liberal de Direito para o Social de Direito, afluindo-se no hodierno Estado de Direito Democrático, houve a reformulação do Direito Administrativo, com a consequente mutação da Administração Pública, em suas mais diversas searas. É nesse contexto que o exercício da função administrativa deve ser aprimorado, objetivando garantir, sobremodo, o efetivo cumprimento dos direitos fundamentais dos homens e a proteção da dignidade da pessoa humana.


Na era do Estado de Direito Democrático, e com a implementação da reforma administrativa, vigora a preeminência da concertação sobre a imposição nas relações de poder entre a sociedade e o Estado.


Assiste-se, pois, à passagem da Administração unilateral à Administração consensual, de modo a assegurar o pleno desenvolvimento das potencialidades individuais, bem como garantir maior eficiência na consecução do interesse público; há, portanto, maior inquietude e necessidade de conciliar a eficiência do agir estatal com a preservação dos direitos fundamentais da pessoa humana.


O presente trabalho tem por escopo analisar a imprescindibilidade da adoção da consensualidade na Administração Pública Contemporânea, de forma a proporcionar maior eficiência e legitimidade do agir estatal em prol de gestão focada em resultados.


SURGIMENTO DA CONSENSUALIDADE: A DELIMITAÇÃO DO FENÔMENO CONSENSUAL


Os modelos políticos da antiguidade raramente abriam espaços para a liberdade individual das pessoas, o que inviabilizava a formação de pólos de consenso na sociedade. Como assevera Moreira Neto (2003, p.133), os referidos modelos “fundavam-se na concepção oposta, de que era necessária a existência de um pólo de poder dotado de suficiente concentração de poder para impor comportamentos e segurar uma convergência fundada na coerção”.


A dogmática inicial do Direito Administrativo rechaçava o implemento de qualquer atividade consensual pela Administração Pública. Esta teria a função de tão-somente executar, de forma objetiva, os comandos gerais fixados na lei. A execução desses comandos não poderia ser objeto de ajuste, acordo ou negociação, sob pena de desnaturação de sua objetividade, bem como de transgressão do papel da lei.


Contudo, no Estado de Direito Democrático, já é possível reconhecer um princípio do consenso em edificação; figura nas relações de poder entre a sociedade e o Estado o primado da concertação sobre a imposição. Inaugura-se, desse modo, era de relações paritárias entre os cidadãos e a Administração. (MOREIRA NETO, 2003).


Urge considerar que, a partir desse momento, o Estado passa a preocupar-se com o ser humano, com o cidadão. Almeja-se, pois, a consagração de estrutura notadamente participativa, com vistas à realização do ideal democrático e em plena sintonia com os princípios que consagram a Administração Pública Democrática.


Consensualidade, consensualismo, concertation, Administração concertada, Administração consensual, soft administration[1] são expressões que refletem formas novas de democracia participativa, em que o Poder Público, ao invés de decidir unilateralmente, utilizando-se desde logo do ato administrativo, procura ou atrai os indivíduos para o debate de questões de interesse comum, as quais deverão ser solvidas mediante acordo.


Com efeito,


“A expansão do consensualismo na Administração Pública vem acarretando a restrição de medidas de cunho unilateral e impositivo a determinadas áreas da ação administrativa. Isso provoca o florescimento da denominada Administração consensual, e a mudança de eixo do Direito Administrativo, que passa a ser orientado pela lógica do consenso”. (OLIVEIRA, 2005, p.27)


O recurso à consensualidade permite uma administração flexível e, sobretudo, capaz de solucionar casos atípicos. Responde, em particular, ao que se espera de uma Administração moderna, conforme os ditames do Estado de Direito Democrático que não vê apenas no cidadão um simples súdito, mas um titular de direitos e um parceiro da Administração e que, por isso, o inclui na atividade administrativa como corresponsável.


Neste cenário, poder-se-ia pensar que a incessante necessidade de utilização de instrumentos consensuais no âmbito do Direito Administrativo moderno implicaria na desconsideração do poder extroverso do Estado[2]. Todavia, é preciso ir mais além deste raciocínio simplório e por demais falacioso.


O atributo da imperatividade, em que pese compor-se em legítimo meio de ação estatal, deve sim ser compatibilizado com os instrumentos consensuais de atuação do poder público. Nessa esteira, já dizia Bobbio (1987, p.26) que “o Estado de hoje está muito mais propenso a exercer uma função de mediador e de garante, mais do que a de detentor do poder de império”. 


O que é certo, diga-se por oportuno, é que o fenômeno consensual, bem como suas expressões formais, tem provocado a deposição do ato administrativo do papel de protagonista do Direito Administrativo em vários países do mundo, o que ainda se mostra incipiente em termos de Brasil.


Destarte,


“hoje, no limiar de uma nova era, em face da vertiginosa intensificação da atividade administrativa e dos crescentes reclamos de democratização da Administração Pública, em sintonia com os postulados do Estado Democrático de Direito, o conceito de ato administrativo, até então visto como eixo gravitacional do Direito Administrativo, parece dar sinais de fadiga e exaustão, não mais comportando a árdua missão de conceito central do complexo mutante do Direito Administrativo de nossos dias”. (PESSOA, 2002)


Malgrado o fato de tratar-se de importante modo de exercício da função administrativa em um Estado de Direito Democrático, a consensualidade não pode substituir de forma indiscriminada o agir unilateral da Administração.


Nesse sentido, o regime de consenso somente pode ser aplicado onde houver autorização legal que ateste as benesses de seu emprego diante de circunstâncias particulares específicas. Ademais, como bem enfatiza Baptista (2003, p. 270), “o consenso não pode levar à abdicação de funções pela administração nem à eliminação de poderes públicos, mantendo-se nos limites admitidos constitucionalmente”.


REDEFINIÇÃO DO CONCEITO DE INTERESSSE PÚBLICO NO ESTADO DE DIREITO DEMOCRÁTICO E A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA POR CONSENSO


Os modelos autoritários de execução da função administrativa, centrados no ato administrativo, não suscitam o entusiasmo e o “desejo de colaboração” dos cidadãos-administrados, e nem sempre garantem a legitimidade e eficiência do agir administrativo.


Impende salientar que a redefinição do conceito de interesse público é condição essencial para a admissibilidade do consenso administrativo em decisões outrora puramente reservadas às decisões de império. Entretanto, não há como negar que o conteúdo do denominado “interesse público” é dinâmico, uma vez que experimentou sensíveis mudanças do Estado Liberal até os dias hodiernos.


Nesse quadro, no Estado Liberal, estava consolidada a contraposição absoluta entre o público e o privado, o que restou desmantelado pelo Estado de Direito Democrático, em que o interesse público já não mais rebate o interesse privado.


Os movimentos transformadores do Estado contemporâneo, que marcaram as últimas três décadas, visaram à reavaliação dos fins do Estado, bem como ao reexame das funções típicas do modelo estatal providencialista- que marcou a era do Estado Social- e da forma como tais funções eram desempenhadas comumente.


Como bem assevera Baptista (2003, p. 265), “o fim da crença na existência de um interesse público superior e autônomo abriu espaço para a consideração dos demais interesses sociais”. Logo, uma das características mais robustas no Estado contemporâneo é a colaboração entre o público e o privado.


Corroborando com esse entendimento, Ávila (2007, p. 13) atesta que “o interesse privado e o interesse público estão de tal forma instituídos pela Constituição Brasileira que não podem ser separadamente descritos na análise da atividade estatal e de seus fins. Elementos privados estão incluídos nos próprios fins do Estado”.


Verifica-se a renovação da concepção de interesse público. Este deve se confundir com a atividade da Administração Pública na realização da democracia e dos direitos fundamentais.


Afere-se que o núcleo do Direito Administrativo não é o poder ou suas conveniências, mas sim a realização do interesse público entendido como forma de afirmação do princípio da dignidade da pessoa humana. Nessa senda, a atividade administrativa somente se dará com a finalidade de atender as necessidades individuais e coletivas que estejam de acordo com o inestimável valor da dignidade da pessoa humana[3].


Assinala Moreira Neto (2003) que o processo de democratização dos dias hodiernos conduz à necessidade de verificar, em cada oportunidade, como se configura o interesse público. Diante de tal verificação, constata-se que, em todos os casos, a configuração do interesse público se dá por meio da intangibilidade dos valores relacionados aos direitos fundamentais.


Nessa mesma vertente posiciona-se Justen Filho (2005), quando aduz que qualquer invocação genérica ao interesse público, sem a respectiva realização dos direitos fundamentais, deve ser repudiada por ser incompatível com o ordenamento jurídico e com o Estado de Direito Democrático.


A toda evidência, encontra-se fragorosamente menoscabado o “Princípio da Supremacia do Interesse público sobre o particular”[4]. Este jamais poderá ser invocado quando houver um atentado contra o princípio da dignidade da pessoa humana- atente-se que o núcleo norteador da Constituição da República de 1988 é valorização do ser humano de forma digna-, pois é inadmissível que se sacrifique a dignidade de um único cidadão a pretexto de se realizar o interesse público.


Outra não é a conclusão que se extrai dos dizeres de Ávila (2007, p.28), ao afirmar que o “Princípio da Supremacia do Interesse Público sobre o particular” “não pode ser descrito separada ou contrapostamente aos interesses privados: os interesses privados consistem em uma parte do interesse público”[5].


A crescente imbricação de interesses de todo o gênero[6] nas sociedades contemporâneas- que cria espaços comuns entre o público e o privado- contribui, sobremaneira, para a intensificação da participação e multiplicação das figuras consensuais na Administração Pública.


Com efeito,


“Repudiar o totalitarismo e o arbítrio estatal não envolve qualquer desmerecimento à transcendência do interesse público. Afirmar a democracia, os limites ao Estado e a dignidade do cidadão não significa limitar o Estado nem subordiná-lo ao interesse privado. O Estado é dos instrumentos inafastáveis de realização do bem comum e de tutela ao interesse da coletividade. Bem por isso, a construção de um Estado de Direito não eliminou o Direito Público. Muito pelo contrário, o Direito Público é indissociável da idéia de um Estado de Direito.” (JUSTEN FILHO, 2003, p. 167)


Não se pode ignorar que, com a ascensão de fenômenos como a Governança Pública[7], emerge nova forma de administrar, cujas referências são o diálogo, a negociação, o acordo, a coordenação, a descentralização, a cooperação e a colaboração. Desse modo, o processo de determinação do interesse público passa a ser desenvolvido a partir de uma perspectiva consensual e dialógica, a qual contrasta com a dominante perspectiva imperativa e  monológica.


A Administração Pública por consenso enseja a idéia da busca de soluções negociadas para o atendimento do interesse público. É precípuo esclarecer que, com o emprego da consensualidade, jamais se transige sobre o interesse público- o que seria inconcebível à luz do princípio da indisponibilidade de tal interesse-; o que ocorre é a otimização do método para o seu atendimento.


CONSENSUALIDADE SOB A ÉGIDE DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEMOCRÁTICA E FOCADA NA GESTÃO DE RESULTADOS


A princípio, insta afirmar que o princípio da subsidiariedade é fundamental na ordem jurídica do moderno Estado Social de Direito, na medida em que conduz à aceitação da persecução do interesse público pelo indivíduo e por corpos sociais intermediários, situados entre ele e o ente estatal. A subsidiariedade aponta no sentido da valorização da liberdade individual, devendo o indivíduo ser livre para agir desde que não prejudique o bem geral e os seus pares[8]. (QUADROS, 1995)


O princípio em questão está presente na Constituição da República de 1998, mormente na ordem econômica, com a determinação de que o Estado intervenha na economia apenas excepcionalmente.


Em apertada síntese, como bem estatui Moreira Neto (2003, p. 135), “atende-se ao princípio da subsidiariedade sempre que a decisão do poder público venha a ser tomada de forma mais próxima possível dos cidadãos a que se destinem”.


Logo, na medida em que foi excluído o monopólio estatal na persecução do interesse público deve ser estimulada a atuação da sociedade, do que decorre o princípio da participação. 


Nesse diapasão, o surgimento da consensualidade se deu graças à evolução do Estado que, após o colapso das duas grandes guerras, elegeu a democracia como elemento indissociável do agir administrativo. Destarte, a tutela dos direitos fundamentais, o princípio da subsidiariedade, a idéia de uma constituição como norma e a participação dos cidadãos foram essenciais à eclosão do fenômeno consensual como a nova face da Administração Pública.


É precípuo reconhecer relação estreita entre o instituto da consensualidade e a participação administrativa. Não se pode olvidar que a evolução dos mecanismos de participação ocorreu de forma simultânea à evolução do fenômeno consensual. Esse entendimento é corroborado por Baptista (2003, p. 266), ao salientar que “aparece, então, a concertação como uma forma particular de participação, na justa medida em que se situa entre os pólos tipo do fenômeno participatório: o direito de ser ouvido e a intervenção vinculante no processo de decisão”.


O princípio da participação popular na gestão e no controle da Administração Pública é inerente à idéia de Estado de Direito Democrático. Ademais, decorre implicitamente de várias normas consagradoras da participação popular em diversos setores da Administração Pública, em especial na parte referente à ordem social. (DI PIETRO, 2009)


Com efeito,


“A atividade de consenso-negociação entre Poder Público e particulares, mesmo informal, passa a assumir papel importante no processo de identificação de interesses públicos e privados, tutelados pela Administração. Esta não mais detém exclusividade no estabelecimento do interesse público; a discricionariedade se reduz, atenua-se a prática de imposição unilateral e autoritária de decisões. A Administração volta-se para a coletividade, passando a conhecer melhor os problemas e aspirações da sociedade. A Administração passa a ter atividade de mediação para dirimir e compor conflitos de interesses entre várias partes ou entre estas e a Administração. Daí decorre um novo modo de agir, não mais centrado sobre o ato como instrumento exclusivo de definição e atendimento do interesse público, mas como atividade aberta à colaboração dos indivíduos. Passa a ter relevo o momento do consenso e da participação”. (MEDAUAR, 2003, p. 211)


A participação do cidadão no cotidiano da Administração Pública não está restrita às hipóteses de exercício dos direitos políticos. Muito mais do que isso, a ele deve ser dada a oportunidade de participar do cotidiano da gestão pública, inclusive na tomada das decisões administrativas[9].


Nesse diapasão,


“A participação e a consensualidade tornaram-se decisivas para as democracias contemporâneas, pois contribuem para aprimorar a governabilidade (eficiência); propiciam mais freios contra o abuso (legalidade); garantem a atenção de todos os interesses (justiça); proporcionam decisão mais sábia e prudente (legitimidade); desenvolvem a responsabilidade das pessoas (civismo); e tornam os comandos estatais mais aceitáveis e facilmente obedecidos (ordem).” (MOREIRA NETO, 2003, p.41)


É inegável que a Administração Pública deve abrir cada vez mais espaço à participação do administrado. Esta participação terá a função precípua de orientação e de colaboração dos cidadãos, e, principalmente, servirá de controle para o desempenho do agir administrativo.


Por sua vez, a atividade consensual contribui, outrossim, para aumentar a transparência das atividades administrativas. Esta transparência visa levar ao conhecimento da sociedade todos os comportamentos dos entes administrativos, tornando-se públicos e tendo como conseqüência uma atividade administrativa translúcida. (SANTOS, 2006)


Dentro dessa perspectiva, afere-se a consensualidade como instrumento moralizador e de imparcialidade da Administração Pública, uma vez que


“é preferível, por óbvio, que os interesses privados associados à Administração Pública sejam devidamente identificados em um acordo formal do que, como ocorre por vezes, acertados em prévias negociatas de bastidores e, depois, trazidos a público disfarçados de interesses da coletividade.” (BAPTISTA, 2003, p. 267)


Conforme esposado alhures, a redefinição do conceito de interesse público ensejou mudanças na administração autoritária que passou a admitir o exercício da função pública mediante consenso. Logo, nesse processo árduo de definição jurídica de interesse público, sobressai a lógica da ação administrativa como parte essencial do conceito de finalidade pública.


Administração Pública deve se pautar de acordo com o que emana a Constituição, com ênfase nos direitos fundamentais, na democracia e na dignidade da pessoa humana. A juridicidade, por ir além da legalidade, revela que a atividade estatal deve se subjazer ao conjunto de princípios e regras do ordenamento jurídico, valorizando a realização dos direitos dos cidadãos, não se atendo somente à mera aplicação da lei administrativa.


Desse modo, a consensualidade está estritamente atrelada ao princípio da eficiência. Nesse sentido, é consabido que a Administração não deve se limitar ao cumprimento literal da lei no exercício da função pública. É preciso mais; há que se descobrir a forma mais eficiente de cumpri-la, elegendo para tanto, dentre as escolhas teoricamente possíveis, aquela que permita atingir os resultados indispensáveis para a consecução do interesse público. Não restam dúvidas de que este tem condições de ser realizado com maior eficiência em um contexto de harmonia e, simultaneamente, com a satisfação de interesses privados.


Nessa esteira, enfatiza Moreira (2003, p.181), quanto à eficiência, que “não basta a inconsciente busca dos fins legais. Estes sempre devem ostentar qualidades humanas e sociais positivas”.


Portanto, a gestão para resultados[10] é um dos lemas que melhor atende ao novo desafio da Administração Pública Contemporânea no Estado de Direito Democrático. A eficiência na condução dos interesses públicos deve ser interpretada como mandamento constitucional inafastável para a efetiva realização dos resultados. Nesse enfoque, é lícita a ilação de que as técnicas democráticas- tais como a consensualidade- perfazem meios indispensáveis na condução dos negócios de uma coletividade.


Resulta claro que a adoção da consensualidade, presente no agir administrativo, também atende, sobremodo, o princípio da proporcionalidade. Nesse sentido, enfatiza Bittencourt (2008, p. 71) que “sempre que se puder realizar o interesse público, mediante atuação consensual do particular, os mecanismos coercitivos deverão ser evitados, uma vez que se apresentam desproporcionais”. Portanto, o princípio da proporcionalidade impõe, na medida do possível, a adoção de mecanismos consensuais no manejo de interesses públicos.


Ademais, não se pode olvidar que o consenso no agir administrativo contribui para o fomento da segurança jurídica dos cidadãos frente ao Estado. Como bem ressalta Mello (2003, p. 123), “o princípio da segurança jurídica, no Direito Administrativo, destina-se a garantir consequências normativas estáveis e previsíveis, favoráveis ao desenvolvimento das atividades de exercício da função administrativa em consonância com princípios de legalidade ampla, de isonomia e de proteção ao interesse público”.  


Portanto, o emprego de técnicas negociais enseja maior estabilidade nas relações administrativas, aumentando, outrossim, o grau de segurança jurídica dos envolvidos. Nesse sentido, para dar satisfação às novas exigências da sociedade, visando ao seu aperfeiçoamento, imperioso se faz o emprego do consenso, de maneira a restaurar a segurança jurídica, sem perda da eficiência.


MANIFESTAÇÕES DA CONSENSUALIDADE NO DIREITO ADMINISTRATIVO


A princípio, cumpre esclarecer que a consensualidade pode ser considerada sob dois ângulos distintos. O primeiro a inclui no conceito de participação em sentido lato. Nesse enfoque, o fenômeno consensual assemelha-se ao conceito de participação na gestão, como forma de união dos cidadãos na realização de funções públicas[11].


Uma outra vertente, que não exclui a primeira, enfatiza Baptista, (2003, p. 179), enxerga na consensualidade “uma modalidade de ação e de preparação de decisões que decorre do avanço participativo”. Nessa acepção, a consensualidade representa uma técnica de decisão administrativa, utilizada para excluir os conflitos entre a Administração e os administrados. Em ambas as acepções, o instituto em apreço representa a manifestação do fenômeno participatório na Administração Pública.


Não se pode olvidar que ainda está em pleno desenvolvimento o tratamento jurídico da consensualidade, havendo uma escassa normatividade existente sobre o tema, mormente em se tratando de Brasil, embora se possa afirmar que esse país não está alheio a essa nova forma de função administrativa.


Mister evidenciar que o instituto da consensualidade pode ocorrer entre a Administração e os cidadãos-administrados, bem como nas relações entre as próprias Administrações Públicas.


Como bem aponta Baptista (2003), os acordos interadministrativos decorrem do exercício do poder de auto-organização da Administração, na contramão do que se evidencia no consenso entre Administração e os cidadãos, que, conforme exposto, decorre da idéia de participação na função administrativa.


Nesse sentido, são expressões da consensualidade interadministrativa os acordos de programa, os convênios, protocolos e os contratos de gestão[12], que auferem grandes vantagens, mormente com o aumento de eficiência da atividade administrativa, bem como da competitividade da Administração Pública, tendo em vista a melhor consecução do interesse público.


É precípuo destacar o fenômeno consensual entre a Administração e os cidadãos e os cidadãos, mormente na solução de conflitos, com a adoção de formas alternativas de composição[13]. Nessa senda, os exemplos típicos dessa composição consensual de conflitos pela via administrativa são a conciliação, a mediação, a arbitragem[14], os ajustes de conduta[15] e os acordos substitutivos[16].


Torna-se evidente que, tanto nas modalidades preventivas, bem como na composição de conflitos em que se envolve a Administração Pública, como bem enfatiza Moreira Neto (2003, p. 154), “jamais se cogita de negociar o interesse público, mas de negociar os modos de atingi-lo com maior eficiência. É que coexiste com o interesse público deduzido no conflito, o interesse público, não menos importante de compô-lo”.


CONSIDERAÇÕES FINAIS


O processo de evolução do Estado, e do Direito Administrativo, até a consolidação do Estado de Direito Democrático, propiciou a construção da consensualidade, inaugurando o primado da concertação sobre a imposição nas relações de poder entre a Administração Pública e os cidadãos.


Dessa forma, uma das principais tarefas da Administração Pública consensual diz respeito ao emprego de mecanismos consensuais como soluções preferenciais aos comandos estatais unilaterais e imperativos que dominavam o Direito Administrativo clássico.


Nesse sentido, a consensualidade exsurge para propiciar a consagração de uma estrutura participativa, com vistas à realização do ideal democrático e em plena sintonia com os princípios que consagram a Administração Pública Democrática.


Conforme se demonstrou, a redefinição do conceito de interesse público foi imprescindível para a admissibilidade do consenso administrativo em decisões outrora puramente reservadas às decisões de império. Assim, o processo de determinação do interesse público passa a ser desenvolvido a partir de uma perspectiva consensual e dialógica.


A Constituição da República de 1988 constitui-se em corte epistemológico no ordenamento jurídico nacional, vindo a consolidar princípios inerentes ao Estado de Direito Democrático. É nesse contexto que o interesse público passa a concretizar-se pela intangibilidade dos valores relacionados aos direitos fundamentais dos cidadãos e pela proteção da dignidade da pessoa humana. Assim sendo, impõe-se a lógica do consenso na proteção destes valores, concorrendo, sobremaneira, para o enriquecimento dos modos e formas de atendimento do interesse público.


     A nova administração pública põe fim à arbitrariedade burocrática, e orienta-se, precipuamente, ao cidadão e à dinâmica da obtenção de resultados. Nesse diapasão, o agir estatal deve se submeter a todo o ordenamento jurídico, aos princípios constitucionais e jurídicos. Eis a consagração do princípio da juridicidade, em que a Administração não deve vincular-se meramente ao princípio da legalidade formal, mas sim ao próprio Direito, mormente aos princípios constitucionais albergados na Constituição da República de 1988, destacando-se, dentre eles, o princípio da eficiência.


Destarte, a consensualidade aumenta a eficiência, a transparência, a legitimação e a estabilidade da função administrativa, contribuindo para que o Estado, modelo aberto e democrático, a bem desempenhe suas tarefas, e atinja seus objetivos de maneira compartilhada com os cidadãos.


 


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Notas:

[1] Nos dizeres de Baptista (2003, p. 272), “essas expressões, no entanto, não divergem substancialmente quanto ao seu conteúdo. Em princípio, todas podem ser empregadas indistintamente para a representação do mesmo fenômeno.”

[2] Esse poder influencia unilateralmente na esfera jurídica do particular à luz do princípio da supremacia do interesse público; é o poder que o Estado tem de constituir, unilateralmente, obrigações para terceiros, com extravasamento dos seus próprios limites.

[3] Em observância aos brilhantes apontamentos de Sarlet (2001, p. 112), “não restam dúvidas de que toda a atividade estatal e todos os órgãos públicos se encontram vinculados pelo princípio da dignidade da pessoa humana, impondo-lhes, neste sentido, um dever de respeito e proteção, que se exprime tanto na obrigação por parte do Estado de abster-se de ingerências na esfera individual que sejam contrárias à dignidade pessoal, quanto no dever de protegê-la contra agressões por parte de terceiros, seja qual for a sua procedência”. O princípio em tela “não apenas impõe um dever de abstenção (respeito), mas também condutas positivas tendentes a efetivar e proteger a dignidade do indivíduo”.

[4] Há, destarte, segundo Moreira Neto (2003), uma passagem de uma viciosa relação de supremacia a uma valorosa relação de ponderação que marca, desse modo, o atual estágio evolutivo da interação entre a sociedade e o Estado. Nesse sentido, diante o caso concreto, deve haver uma ponderação de interesses como método de decisão administrativa. Cabe à Administração o dever de ponderar os interesses relevantes.

[5] Desse modo, o interesse público deverá ser obtido mediante um procedimento racional que envolva a disciplina constitucional de interesses individuais e coletivos. Outrossim, deve haver um juízo de ponderação que permita a realização de todos eles na maior extensão possível; eis a invocação do postulado da proporcionalidade.

[6] Nesse enfoque, a imbricação conceitual entre interesse público, interesses individuais, individuais homogêneos, coletivos e difusos não permite falar em uma regra de prevalência absoluta do público sobre o privado, bem como do coletivo sobre o individual.

[7]Pode-se afirmar que a governança pública, cujas origens datam de meado da década de 90 do século XX, é um modelo alternativo a estruturas governamentais hierarquizadas. Os governos passam, a ser mais eficazes em um marco de economia globalizada, garantindo e respeitando, sobremaneira, as normas e valores próprios de uma sociedade democrática. A governança pública se debruça na qualidade da interação entre os distintos níveis de governo, e entre estes e as organizações empresariais e da sociedade civil.

[8] Segundo Medina (2007) “o princípio da subsidiariedade aponta pela primazia da iniciativa privada sobre a iniciativa estatal, devendo o Estado abster-se de exercer atividades que o particular tem condições de exercer por sua própria iniciativa e com seus próprios recursos”.

[9] Não se pode olvidar que é o princípio da soberania popular que impõe a participação efetiva e operante do povo na coisa pública, no contexto do Estado de Direito Democrático. Mas essa participação não se exaure na simples formação de instituições representativas. Nessa lógica, torna-se imperiosa a presença do elemento popular na formação da vontade do Estado e da Administração Pública.

[10] Assiste-se, pois, a partir dos anos 90, à realização de uma reforma administrativa que deixou de se concentrar em termos organizativos, como no passado, para preocupar-se, sobremodo, com o agir estatal em prol de resultados.

[11] Nessa acepção, um dos institutos que exteriorizam a consensualidade é a audiência pública, mecanismo constitucional por intermédio do qual as autoridades públicas e agentes públicos em geral abrem as portas do poder público à sociedade para facilitar o exercício direto e legítimo da cidadania popular, em suas várias dimensões, permitindo-se a apresentação de propostas, a apresentação de reclamações, a eliminação de dúvidas, a solicitação de providências, a fiscalização da atuação das instituições de Defesa social, de forma a possibilitar e viabilizar a discussão em torno de temas socialmente relevantes.

[12] O contrato de gestão, consoante Diógenes Gasparini (2001, p 602), é o “ajuste celebrado pelo Poder Público com órgãos e entidades da Administração direta, indireta e entidades privadas qualificadas como organizações sociais, para lhes ampliar a autonomia gerencial, orçamentária e financeira ou para lhes prestar variados auxílios e lhes fixar metas de desempenho na consecução de seus objetivos”.

[13] Não se pode olvidar que o consenso está presente, à luz dos ensinamentos de Moreira Neto (2003), na tomada de decisões administrativas, sendo exemplos de espécies o plebiscito, o referendo, a coleta de opinião, o debate público, a audiência pública, a assessoria externa, a cogestão e a delegação atípica. Por sua vez, evidencia-se a consensulidade na execução administrativa, cujas espécies são os contratos administrativos de parceria e os acordos administrativos de coordenação. Nesse diapasão, também exsurge o consenso na prevenção de conflitos administrativos, tal como ocorre nas comissões de conflito.

[14] Para Moreira Neto (2003, p. 155), “na conciliação, as partes devem envidar esforços para promover um acordo que ponha fim ao conflito, centrando-se na figura de um conciliador que teria a tarefa de conduzir as partes na negociação e oferecer-lhes alternativas. Na mediação, a condução das negociações por um mediador dar-se-á de modo a reduzir as divergências identificadas e a ampliar as convergências, levantando os inconvenientes de prolongar-se o conflito, de modo a que seja encontrada uma solução satisfatória para as partes. Na arbitragem, as partes aceitarão a solução do conflito decidida por árbitros”.

[15] À luz do § 6º, do art. 5º, da Lei nº 7.347, de 24/07/85, que disciplina a ação civil pública prevê, expressamente a possibilidade de solução consensual, in verbis: “§ 6º Os órgãos públicos legitimados poderão tomar dos interessados compromisso de ajustamento de sua conduta às exigências legais, mediante cominações, que terá eficácia de título executivo extrajudicial”.

[16] Um dos mecanismos consensuais, espécie de acordo substitutivo, é o acordo de leniência, previsto no art. 35-B da Lei 8.884/94 (Lei Antitruste): “A União, por intermédio da SDE, poderá celebrar acordo de leniência, com a extinção da ação punitiva da administração pública ou a redução de um a dois terços da penalidade aplicável, nos termos deste artigo, com pessoas físicas e jurídicas que forem autoras de infração à ordem econômica, desde que colaborem efetivamente com as investigações e o processo administrativo e que dessa colaboração resulte:  I – a identificação dos demais co-autores da infração; e

II – a obtenção de informações e documentos que comprovem a infração noticiada ou sob investigação”. Neste tipo de acordo substitutivo, há a ponderação dos custos e benefícios da decisão. Troca-se a pena por uma prestação de melhor proveito para a coletividade.  


Informações Sobre os Autores

Shirlei Silmara de Freitas Mello

Doutora em Direito pela UFMG. Professora Adjunta na Faculdade de Direito “Prof. Jacy de Assis” da Universidade Federal de Uberlândia (UFU).

Roziana G. Camilo Lemos Dantas

Acadêmica de Direito na Faculdade de Direito da Universidade Federal de Uberlândia/MG


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