1. INTRODUÇÃO
Com as alterações promovidas pela Lei 12.015/09 foram aglutinados num mesmo tipo penal os antigos crimes de “estupro” e “atentado violento ao pudor”. Doravante quaisquer atos libidinosos perpetrados contra “alguém”, mediante violência ou grave ameaça, configuram o crime denominado “estupro”, de modo que a antiga distinção nominal com base na “conjunção carnal” ou outros “atos libidinosos diversos” não mais subsiste.
Consequentemente, amplia-se o rol de sujeitos ativos e passivos do crime de estupro. A mulher passa a poder integrar o polo ativo, enquanto o homem figura também como vítima, situações absolutamente insustentáveis na antiga configuração dicotômica. Agora deixou o crime de ser próprio, passando a tratar-se de crime comum.
Com isso joga-se uma pá de cal na antiga controvérsia sobre a tipificação da conduta da mulher que constrangesse um homem precisamente à conjunção carnal. Antes da Lei 12.015/09 essa verdadeira “hipótese de laboratório” no dizer de Rogério Greco [1], não poderia constituir estupro porque neste apenas figurava a mulher como sujeito passivo. De outra banda não configuraria atentado violento ao pudor porque neste a conduta não poderia constituir-se na prática da “conjunção carnal”, mas justamente em “outros atos libidinosos diversos” desta. Nesse contexto a doutrina em geral apontava a solução do crime de “Constrangimento Ilegal” (artigo 146, CP). [2]
Atualmente a solução simples e direta para o caso é a tipificação do crime de estupro (artigo 213, CP) em sua abrangente redação que admite a mulher como sujeito ativo e o homem como sujeito passivo, além de não mais restringir a conduta à “conjunção carnal”, passando a abranger quaisquer atos libidinosos.
É interessante destacar que essa ampliação da definição legal de “estupro”, a qual aparenta ser uma “grande novidade” no cenário jurídico, não passa de um retorno a estágios pretéritos do Direito Penal em que o vocábulo ou “nomen juris” “estupro” era utilizado de forma ampla e indistinta.
Em incursão histórica sobre o termo, Hungria, Lacerda e Fragoso lembram que no Direito Romano “chamava-se ‘stuprum’, em sentido lato, qualquer congresso carnal ilícito”. [3] Também Vigarello, em trabalho aprofundado relativo à evolução histórica do crime de estupro, expõe que a criminalização dos atentados à liberdade sexual iniciou-se reduzida ao ato libidinoso específico da “conjunção carnal”, havendo uma lacuna quanto a outras condutas, deixando em aberto a tipicidade de “um número indefinido de sevícias sexuais”. [4] É a legislação penal francesa do início do século XIX uma das primeiras a retomar uma definição ampla de “estupro”, abrangendo outros atos libidinosos diversos da “conjunção carnal”. O Código Penal Francês de 1810 vem colmatar essa lacuna legal e retomar o debate sobre o tema. [5] Ainda na década de 70 do século XX, o Senado francês discute o tratamento unificado dos crimes de estupro e atentado violento ao pudor, sob a nomenclatura do primeiro, optando-se, ao final, por uma fórmula dicotômica que distingue entre atos libidinosos de penetração (estupro) e outros atos libidinosos (atentado violento ao pudor). [6]
Percebe-se, portanto, que a distinção/unificação das condutas do estupro e do atentado violento ao pudor não constitui “novidade” no mundo jurídico, mas sim uma velha história de idas e vindas, encontros e desencontros, motivados por contingências e opções legislativas.
Não obstante a desnecessidade de espanto ante à atual unificação dos crimes de estupro e atentado violento ao pudor sob a rubrica do primeiro, há que ponderar o fato de que tal opção legislativa pode ensejar algumas consequências jurídicas inusitadas, as quais merecem detida reflexão.
Neste trabalho pretende-se abordar especificamente duas circunstâncias relevantes ligadas à gravidez da mulher resultante da conduta criminosa de estupro por ela mesma praticada contra um homem – vítima.
Um primeiro aspecto diz respeito à aplicabilidade da causa de aumento de pena ensejada pela prenhez, nos termos do artigo 234 -–A, III, CP, à mulher estupradora. Outra questão refere-se à possibilidade ou não da opção da mulher infratora pelo aborto legal em razão de gravidez resultante de estupro, de acordo com o disposto no artigo 128, II, CP.
Toda a reflexão sobre esses dois temas controversos se desenvolverá com base no estudo das normas jurídicas que regem a matéria, levando em conta as alterações produzidas pela Lei 12.015/09. No entanto, como não poderia deixar de ser, toda a fundamentação do estudo será permeada por fatores éticos e pela análise da justiça das soluções, considerando todos os interesses e fatores envolvidos, seja daqueles que podem manifestar sua vontade por atos e palavras (homens e mulheres), seja daqueles que dependem da proteção alheia de seus interesses e direitos por não serem ainda capazes de ação autônoma ou fala (vida humana intrauterina).
Ao final serão retomadas as principais idéias desenvolvidas ao longo do texto e formuladas as respectivas conclusões.
2. A ESTUPRADORA QUE ENGRAVIDA COM O ATO CRIMINOSO E A CAUSA DE AUMENTO DE PENA DA GRAVIDEZ
Com a possibilidade de a mulher ser sujeito ativo do crime de estupro, não será somente na condição de vítima que poderá engravidar em virtude do coito perpetrado mediante constrangimento. Agora também a própria criminosa que constrange o homem –vítima à conjunção carnal ou outro ato libidinoso idôneo pode vir a engravidar em razão de sua própria conduta ilícita.
Não há dúvida quanto à aplicação do aumento de pena quando a grávida é a vítima do crime, pois que esta arca com ainda mais um ônus resultante da prática criminosa de terceiro, inclusive o dilema de escolher entre levar adiante a gravidez ou realizar um aborto legal, nos termos do artigo 128, II, CP. Tal carga física e emocional imposta à vítima como resultado do crime obviamente justifica a exacerbação da reprimenda face ao considerável incremento do “desvalor do resultado”.
Porém, dúvida pode surgir nos casos em que a autora do crime de estupro é mulher e esta vem a engravidar como resultado do coito obtido mediante violência ou grave ameaça. Nessas circunstâncias seria também aplicável a causa de aumento de pena da gravidez? Afinal, agora a grávida é a própria autora do ilícito.
Para a solução dessa situação deve o “desvalor do resultado” ser aferido não com relação às consequências advindas da prenhez para a mulher criminosa, mas sim com referência ao homem vitimado pela conduta. Nesse passo entende-se que resta incólume a motivação da exasperação penal em virtude do incremento do “desvalor do resultado”. Isso porque o homem – vítima também sofrerá sérios prejuízos com o advento de uma gravidez indesejada originada de um coito violento. A situação pode atingir o homem vitimado sob o aspecto financeiro – patrimonial (problemas de sucessão hereditária, pensão alimentícia, gastos com a criação de um filho etc.) e também afetivo – emocional (dilema da convivência com a criança e a mãe criminosa; conflitos com a família do homem – vítima, relativos à sua esposa e outros filhos originários de relações legais etc.). Efetivamente a gravidez resultante do estupro praticado pela mulher contra o homem pode prejudicar muito este segundo e até mesmo, em certos casos, constituir um dos fins da prática delituosa. Imagine-se uma mulher que coage um homem muito rico ao coito, visando exatamente a gravidez para locupletar-se com a maternidade de um herdeiro abastado e os recursos de uma robusta pensão alimentícia. E se assim não for, mesmo que a gravidez se constitua em algo indesejado para a criminosa, isso não exclui sua responsabilidade pela conduta e seus resultados na medida em que atingem mais intensamente o varão – vítima sob variados aspectos, conforme acima consignado. Aliás, não se deve olvidar que a conduta ilícita da mulher também virá a atingir os interesses da futura criança, a qual certamente sofrerá danos psicológicos e afetivos pelo fato de saber-se originada de um ato criminoso e não de um relacionamento normal. Todos esses fatores não podem deixar de ser contabilizados no incremento do “desvalor do resultado” a indicar a justiça de uma exasperação punitiva dirigida à mulher infratora.
Assim sendo, conclui-se que a causa de aumento de pena da gravidez pode e deve ser aplicada também nos casos em que a grávida não é vítima do crime de estupro, mas sua autora. O “desvalor do resultado” segue intensificado, ainda que por razões diversas, desta feita enfocando os interesses e sentimentos da vítima masculina da infração e da própria futura criança.
3. A MULHER COMO SUJEITO ATIVO DO ESTUPRO, SUA GRAVIDEZ E O ABORTO SENTIMENTAL
No Brasil vigora quanto ao aborto um “Sistema Proibitivo Relativo” bastante rigoroso no qual a prática do abortamento é crime e somente em duas hipóteses há a possibilidade do aborto legal. Essas hipóteses são previstas no artigo 128, I e II, CP, sendo a primeira a do chamado “aborto necessário ou terapêutico” (como único meio para salvar a vida da gestante) e a segunda a do denominado “aborto sentimental, humanitário ou ético” (referente aos casos de gravidez resultante de estupro).
No aborto necessário o legislador apresenta uma solução para um dilema ético que surge numa verdadeira “situação – limite”, quando o médico é obrigado a optar pelo salvamento de uma das vidas em jogo na situação concreta em detrimento da outra. Guiando-se pelo critério da produção do menor dano possível, opta-se pela vida da gestante, sem que isso implique em desvalorizar ou desprezar a vida intrauterina.
Já no aborto sentimental, leva-se em consideração a inexigibilidade de que a mulher leve adiante uma gravidez e venha dar à luz a uma criança que foi concebida durante um ato de violência absurdo, o qual lhe acarreta sérios danos emocionais e psíquicos, muitas vezes bem maiores do que as próprias sequelas físicas relativas ao evento.
É bem verdade que a vida humana que se desenvolve intraútero não tem qualquer responsabilidade pelos atos ilícitos daquele que a gerou, sendo de todo louvável e desejável que a mulher, consciente disso, preservasse a vida em uma postura ética e justa. No entanto, o que é levado em conta pelo legislador nesses casos é o fato de que a lei penal não é produzida para regrar a conduta de “santos e heróis”, razão pela qual se abre caminho, em certos casos extremos, para a compreensão das fraquezas humanas, evitando-se exigir das pessoas mais do que elas normalmente poderiam oferecer. É claro que isso não significa também relegar à vida intrauterina uma posição secundária sob o ângulo ético. Isso não impede que se empreendam todos os esforços para a manutenção da vida intrauterina, independentemente de sua origem. Apenas significa que a legislação não se arvora em impor, mediante a ameaça da pena criminal, uma conduta eticamente irretocável, mas não afeta ao comum dos mortais.
Essa orientação adotada pelo legislador pátrio tem sido defendida na doutrina para os casos da mulher “vítima” de estupro que engravida:
“Pelo inciso II do artigo 128 está autorizado o aborto sentimental (ou ético, ou humanitário), que é aquele que pode ser praticado por ter a gravidez resultado de estupro. Tem-se entendido que, no caso, há, também, estado de necessidade ou causa de não – exigibilidade de outra conduta. Justifica-se a norma permissiva porque a mulher não deve ficar obrigada a cuidar de um filho resultante de coito violento, não desejado”. [7]
Ademais, a hipótese vinha sendo inclusive ampliada por analogia “in bonam partem” para os casos de gravidez resultante de atentado violento ao pudor. [8]
Note-se que tal necessidade de interpretação extensiva ou mesmo analógica do permissivo legal se esvai com o fim da anterior distinção entre “estupro” e “atentado violento ao pudor”, ora concentrada na nomenclatura generalizante de “estupro”.
Portanto, uma das consequências imediatas da unificação das figuras penais sobreditas foi a eliminação da necessidade de extensão do permissivo legal referente ao aborto em casos de gravidez resultante de “estupro” para os casos de “atentado violento ao pudor”. Doravante a dicção legal não causa qualquer perplexidade, abrangendo todos os casos de gravidez resultante de atos libidinosos violentos, sejam eles de “conjunção carnal” ou de qualquer outra espécie. [9]
Mas, até o momento se está tratando de casos em que a vítima do estupro engravida e pode, induvidosamente, valer-se da autorização legal para a prática do aborto sentimental. Ocorre que com o advento da Lei 12.015/09 surge a possibilidade de que a mulher seja a própria estupradora do homem – vítima e venha a engravidar como resultado de sua conduta criminosa. Aí é que surge a dúvida: poderá a mulher nessas circunstâncias (na condição de infratora e não de vítima) optar pelo aborto sentimental pelo motivo de que a gravidez resultou de um estupro? E mais, se a mulher não o quiser, poderá ser compelida à prática do aborto legal no interesse do homem vitimado?
Seguindo uma ordem que vai do mais simples para o mais complexo, inicia-se pela resposta à segunda pergunta formulada:
É visível que jamais seria admissível a imposição do aborto à gestante, ainda que criminosa e mesmo considerando os interesses do homem vitimizado. A primeira razão para essa afirmação encontra-se na cristalina dicção do artigo 128, II, CP, a exigir, para a prática do aborto sentimental, o requisito (indispensável) do consentimento prévio da gestante.
Além disso, deve-se lembrar o fato de que a lei brasileira prima pela proteção da vida humana intrauterina, conformando-se a um modelo proibitivo que somente cede excepcionalmente em casos extremos e mesmo assim jamais impõe como obrigatória a prática do abortamento sentimental. Optando a gestante por levar adiante a gravidez, interesses outros, ainda que relevantes, não têm, nem podem ter o condão de se sobreporem à preservação da vida humana.
E não é somente sob o prisma ético que tal solução se impõe, encontrando eco na legislação. Princípios básicos do Direito Penal como os da legalidade e da intranscendência estão a indicar o reto caminho da negativa da imposição do aborto à gestante criminosa. A legalidade impede tal imposição por ausência de semelhante previsão legal. Não há “pena de aborto” prevista para a mulher estupradora que engravida o que inviabiliza sua eventual aplicação. Para além disso, tal pena seria inviável de ser mesmo prevista, considerando o Princípio da Intranscendência, o qual não permite que a pena passe da pessoa do infrator para atingir diretamente terceiros inocentes. Ora, o aborto sentimental imposto seria um odioso exemplo de transcendência da lei penal, atingindo um terceiro cuja inocência chega ao grau mais elevado imaginável. Haveria infração, portanto, a um só tempo, às disposições do artigo 5º, XXXIX e XLV, CF.
Resta agora adentrar na segunda questão, qual seja, poderia a gestante criminosa, por sua vontade, optar pelo aborto sentimental?
É bem verdade que o permissivo legal (artigo 128, II, CP) não faz diferença entre os casos, referindo-se somente à gravidez que “resulta de estupro”. Também pode ser que em certas circunstâncias tal opção da gestante venha de encontro aos interesses financeiros, patrimoniais, afetivos e emocionais do homem vitimizado.
No entanto, entende-se que o aborto legal somente diz respeito à gestante vítima de estupro, jamais àquela que obteve por vontade própria a prática do ato libidinoso de que resultou a prenhez.
Embora realmente a lei em sua literalidade se refira à gravidez que “resulta de estupro” em geral sem fazer distinção entre a mulher como sujeito ativo ou passivo do crime, deve-se considerar o fator histórico que aponta para o fato de que à época da elaboração da norma não havia falar-se na mulher como sujeito ativo do estupro, possibilidade esta somente ensejada pelo recente advento da Lei 12.015/09. É, assim, trivial a conclusão de que a norma permissiva dirige-se como sempre se dirigiu à mulher como vítima e não como autora do estupro.
Entretanto, poder-se-ia acenar com a possibilidade de uma “interpretação progressiva” [10] ou “extensiva” do permissivo legal e, quem sabe, de aplicação de analogia benéfica.
Tais teses devem ser rechaçadas, pois a “interpretação progressiva” ou mesmo “extensiva”, que permitiria a adaptação do velho texto ao novo contexto urdido pela Lei 12.015/09 não parece encontrar abrigo na vontade legislativa. Também não há razão alguma de semelhança que justifique analogia da situação que envolve a mulher vítima de estupro com a da mulher estupradora. Além disso, há também razões de ordem ética e prática para vedar o beneplácito legal à mulher infratora.
A “interpretação progressiva” ou “extensiva” infringiria a “mens legis”, vez que jamais se pretendeu na legislação brasileira autorizar o aborto advindo de coito desejado pela mulher. A razão de ser do aborto sentimental é o reconhecimento pelo legislador do conflito e do sofrimento psíquico da vítima de estupro, daquela que necessitará buscar forças sobre – humanas para vencer a dor de conviver com terríveis lembranças durante a gestação e inclusive após o parto, por toda sua convivência com o filho advindo de uma relação sexual traumática. Não há de forma alguma justificativa para qualquer comiseração semelhante em relação àquela que desejou a relação sexual e até chegou ao ponto extremo de impô-la criminosamente ao homem – vítima. Não se pode compreender como um capricho criminoso que ensejou um coito desejado pela mulher poderia dar lugar a outro capricho, agora abrigado pela lei, em eliminar a vida intrauterina. Isso seria o cúmulo da banalização do desprezo pela vida humana em sua fase inicial.
Seria irrelevante o fato de que essa opção da gestante se adequasse aos eventuais interesses do homem – vítima. O “desvalor do resultado” da gravidez indesejada provocada pelo coito violento já tem seu tratamento na providência da exacerbação punitiva da infratora, nos termos do artigo 234 – A, III, CP. Os interesses (financeiros, patrimoniais, afetivos ou emocionais) do homem vitimizado não podem servir de pretexto para a superação da relevância maior da vida humana a ser tutelada. Seria absurdo sobrepor o interesse do vitimado em não pagar pensão ou dividir seu patrimônio em sucessão à vida humana em formação. Mesmo as questões afetivas e / ou emocionais podem ser resolvidas por outros meios que não a eliminação de uma vida. A situação do homem vitimado é bastante diversa da mulher em circunstâncias semelhantes, vez que este não precisa manter em seu corpo por nove meses torturantes o produto de uma relação sexual traumática.
Por outro lado a analogia não se adequa ao caso enfocado. Para a aplicação da analogia são necessários dois requisitos básicos:
a)A inexistência de norma reguladora de determinado caso;
b)A existência de norma reguladora de caso semelhante, a ser analogicamente estendida ao caso lacunoso.
Na situação em pesquisa inexiste lacuna legal. A gravidez resultante de estupro permite o aborto nos termos do artigo 128, II, CP, referindo-se claramente à mulher – vítima. De outra banda, estabelece a lei para a mulher estupradora um aumento de pena devido à gravidez derivada do estupro, considerando o incremento do “desvalor do resultado” em relação ao homem vitimizado. Não há qualquer norma permissiva prevista para o caso na novel legislação, a qual, aliás, se o quisesse, poderia ter reformulado a redação do artigo 128, II, CP, para abranger as novas possibilidades ensejadas pela Lei 12.015/09. Note-se que os casos estudados não são semelhantes, muito ao reverso, são mesmo contraditórios. Em uma situação trata-se da mulher na condição de vítima, em outra desta na condição de criminosa. Que espécie de analogia é aplicável a tal situação? Admitir que a mulher vítima de estupro aborte é uma coisa absolutamente diversa de admitir que a mulher autora do crime o faça. Neste segundo caso estar-se-ia permitindo que de um ato ilícito se gerasse um direito para o infrator, o que viola frontalmente os mais comezinhos Princípios Gerais do Direito.
Inclusive sob o prisma ético não seria jamais compreensível que se admitisse ceder a tutela da vida humana intrauterina em prol do simples desejo da criminosa que violou a dignidade e a liberdade sexual de outrem e agora pretende violar também a vida humana para satisfazer seu capricho de não arcar com o ônus de zelar pela futura criança.
Observe-se ainda que nem sempre o homem – vítima pretenderá a eliminação do produto da concepção. Nesse caso, permitir o aborto sentimental à gestante consistiria em uma terrível “vitimização secundária” do estuprado. Afinal, a lei somente exige o consentimento da gestante para o aborto humanitário, o que significa que ela poderia executá-lo à revelia do vitimado. Essa suposta faculdade disposta à infratora poderia inclusive, em casos que tais, converter-se em instrumento de pressão, chantagem emocional, intimidação ou moeda de troca para com o homem – vítima, fator este deveras preocupante, considerando que em regra o crime de estupro se processa mediante representação do ofendido (regra da ação penal pública condicionada disposta no artigo 225, “caput”, CP).
Assim sendo, entende-se que a disposição do aborto legal, na modalidade “sentimental”, disposta no artigo 128, II, CP, somente é aplicável aos casos em que a gravidez seja resultante de estupro, mas com a mulher figurando como vítima e não como autora do crime.
Por derradeiro vale salientar que no caso do chamado “aborto necessário ou terapêutico” (artigo 128, I, CP), ou seja, aquele permitido para “salvar a vida da gestante”, será indiferente a origem da gravidez. Tenha sido ela resultante de crime, de relações normais, seja a mulher vítima, infratora ou alguém que engravidou normalmente, sempre será possível o aborto legal. Seria impensável vedar a prática do aborto necessário à gestante que praticou estupro, pois que tal medida equivaleria a condená-la à morte. E a pena de morte é vedada, em regra, no ordenamento jurídico brasileiro por disposição constitucional (artigo 5º, XLVII, “a”, CF), não admitindo aplicação direta ou mesmo reflexa.
4. CONCLUSÃO
Foi estudada a questão da gravidez resultante de estupro e suas consequências jurídicas, especificando dois casos especiais:
a)Aquele da mulher autora do estupro em relação à causa de aumento de pena prevista no artigo 234 – A, III, CP;
b)Aquele referente ao aborto legal, denominado “sentimental, humanitário ou ético” com referência à mulher estupradora que engravida (artigo 128, II, CP).
No primeiro caso enfocado conclui-se pela aplicabilidade da exasperação penal à infratora, considerando o incremento do “desvalor do resultado” em relação aos interesses e sentimentos do homem lesado pela conduta.
No segundo caso decidiu-se pela inaplicabilidade do permissivo legal do aborto sentimental à mulher autora do crime de estupro. Ela não pode ser compelida ao aborto por vontade do homem vitimado devido à própria dicção do artigo 128, II, CP, que exige o consentimento da gestante. Ademais, tal proceder violaria os Princípios da Legalidade e da Intranscendência. Também se concluiu pela inaplicabilidade do permissivo no caso em que a gestante infratora desejasse o aborto. A norma autorizadora refere-se claramente e tem sua justificativa ético – jurídica com relação à mulher vítima de estupro e não àquela que comete o crime e depois quer livrar-se da prenhez. A tutela do bem jurídico vida humana intrauterina não pode ceder aos simples caprichos de infratores da lei penal que pretendam derivar supostos direitos dos atos ilícitos perpetrados.
Salientou-se ainda a questão da ampla aplicação do aborto necessário ou terapêutico, quando não há outro meio de salvar a vida da gestante. Nesse caso o aborto é permitido mesmo para a mulher infratora, de forma indistinta. Interpretação contrária levaria a condenar a mulher à morte, o que consistiria numa espúria e inconstitucional pena de morte reflexa.
Informações Sobre o Autor
Eduardo Luiz Santos Cabette
Delegado de Polícia, Mestre em Direito Social, Pós – graduado com especialização em Direito Penal e Criminologia, Professor de Direito Penal, Processo Penal, Legislação Penal e Processual Penal Especial e Criminologia na graduação e na pós – graduação da Unisal e Membro do Grupo de pesquisa em bioética e biodireito do programa de mestrado da Unisal.