Resumo: No trabalho que ora encerrado, fez-se uma análise, ainda que sucinta, do fenômeno que é o Direito Penal, análise que acabou informando precisar este estar adstrito à lógica decorrente do Princípio da Legalidade, poder/dever de que dispõe o Estado Moderno para manter a ordem, em substituição à autotutela e ao regime absolutista, pela própria essência personificador. Como restou assente, o Direito Penal sofreu grandes transformações. Estas transformações acabaram por denotar maior ou menor importância da vítima enquanto componente da relação jurídico-penal. Viu-se no decorrer do trabalho que, à luz do enunciado pelas escolas Clássica e Positiva, a vítima restou preterida, já que estas se calcavam na tríade delito-delinqüente-pena e dentro deste sistema esta não teve lugar. Analisando a realidade legislativa brasileira, inferiu-se que esta foi muito diferente ao longo da história. Assim se tratou dos regimes informados pelo Código Criminal do Império e, depois, dos decorrentes dos Códigos Penais. Vimos que muitas das disposições do Código Criminal, apesar na notada preocupação com a vítima, não mais poderiam subsistir, eis que contrariam muito do que se assegurou petreamente o legislador constitucional, por exemplo, a imposição de trabalho para a satisfação de direito do credor. Tratou-se também do Princípio da Legalidade, que acaba por informar o sistema de penas que vivenciamos: as privativas de liberdade, restritivas de direitos e de multa. Nem tão afinada com o princípio examinado, falou-se também, e, sobretudo, da multa reparatória. A multa reparatória foi inferida dentro do contexto de vigência da Lei nº 9.503/97. Traçou-se, pois, linhas sobre as condutas em si tipificadas, onde, inclusive, foram destacados alguns dos inconvenientes decorrentes do preterimento da proporcionalidade e da razoabilidade que devem orientar o procedimento legislativo.
Sumário: Introdução. 1. Principais aspectos do princípio da reserva legal. 1.1. Breves comentários a respeito do sistema de penas adotadas no Brasil. 1.1.1. Penas Privativas de Liberdade 1.1.2. Penas Restritivas de Direitos. 1.1.3. Pena de Multa. 2. O Código Nacional de Trânsito: Lei 9.503/97. 2.1. Especialidade da Lei nº 9.503/97. 2.2. Integração da lei nº 9.503/97 ao ordenamento vigente. 2.3. Incoerências encontradas no CTB 3. Da vitimização no direito penal. 3.1. Reparação de danos em matéria penal no Brasil. 3.2. Multa reparatória. 3.3. Constitucionalidade da multa reparatória 3.4. A multa reparatória na jurisprudência. Conclusão. Bibliografia.
INTRODUÇÃO
Partindo do postulado dicionarizado que introdução é ato ou efeito de introduzir, ou ainda, explicação que serve de preparação para um estudo, este é o momento de se apresentar o estudo desenvolvido ao leitor.
Inicialmente apontamos que o presente trabalho apresenta caráter predominantemente bibliográfico, ainda que se possam perceber ecos jurisprudenciais e algumas peculiaridades não referenciadas diretamente, como as vistas no tópico a tratar da constitucionalidade da multa reparatória, cerne temático desta monografia.
A finalidade deste trabalho final de curso é propiciar maior aprofundamento no conhecimento da Multa Reparatória, daí ter sido intitulado “A Constitucionalidade da Multa Reparatória no Código de Trânsito Brasileiro”. Por esta questão a presente monografia foi dividida em três capítulos, divisão feita objetivando a facilitar a compreensão do leitor.
No capítulo introdutório falar-se-á dos aspectos atinentes ao Princípio da Reserva Legal e do sistema de penas adotado no Brasil. Nesse ponto um destaque será conferido ao Princípio da Legalidade, verdadeiro pilar do Direito Penal, ressaltando que a nuança que deste decorre a interessar ao trabalho presente é a que contém a realidade do particular, já que a legalidade a comportar a atuação do agente público é tema transversal nesta monografia.
Como dito, ainda no capítulo primeiro, se enfrentará o sistema de penas no Direito Penal brasileiro, destacando neste ponto a efetividade das penas neste encontradas. Não apenas enquanto possibilidade punitiva, mas também como prerrogativa preventiva. Por essa ocasião inferências pessoais quanto às penas restritivas de direito serão tracejadas, já que o rol destas é muito extenso, permitindo que sua efetividade varie de acordo com a medida adotada.
No segundo capítulo se abordará especificamente a Lei nº 9.503 de 1997. Esta lei – introdutora do Código Nacional de Trânsito – será analisada sob a perspectiva de sua especialidade. Debaterá nesse diapasão a integração desta ao ordenamento vigente, tendo em vista a perspectiva sistêmica em que deve se circunscrever todas as leis, a fim de se manter a unidade do ordenamento. Nesse sentir cuidar-se-á precisamente da Lei nº 9.099/95, eis que esta foi referida diretamente pelo artigo 291 do código sob exame.
A despeito do caráter especial da lei de 1997 e da imposição de sua integração, um tópico no capítulo segundo será destinado especificamente para tratar das incoerências que nesta se percebem.
O terceiro capítulo cuidará da possibilidade de o autor do ato criminoso reparar diretamente à vítima. Ver-se-á que tal possibilidade se adstringe aos casos em que a vítima suportou prejuízos materiais, decorrentes, por certo, do ato criminoso, possibilidade erigida dentro do contexto de vitimização no Direito Penal; de maior consideração da vítima.
Dentro do contexto de vitimização se cuidará da multa reparatória enquanto possibilidade genérica. Falar-se-á, pois, da reparação em matéria penal no Brasil. Cuidar-se-á, por fim, da constitucionalidade da multa reparatória e de como esta tem sido percebida na jurisprudência.
1 PRINCIPAIS ASPECTOS DO PRINCÍPIO DA RESERVA LEGAL
Analisando a sistemática na qual se encontra inserido o Direito Penal uma questão resta clara: sua intervenção na sociedade deve estar adstrita ao Princípio da Legalidade, de onde surge a chamada reserva legal.
O Princípio da Legalidade afigura-se, pois, como sendo o único meio de evitar o arbitrário exercício do poder punitivo. Assim, para que se tenha por legítimo o comando cominado, este deve estar limitado às regras de positivação legal do Direito. Ou seja, deve observar todas as especificidades do processo legislativo.
A legalidade no Direito Penal possui importância estrutural singular, eis que se encontra inserta em uma lógica de poder/dever. Conquanto o Estado tenha o poder de punir em certas situações, essa prerrogativa é restringida à observância do comando legal. Garante-se, desta feita, os direitos individuais mínimos, postulado que nos permite inferir que os ditames do Direito Penal, em sua maioria, encontram base de sustentação no que se convencionou chamar Direitos Humanos de Primeira Geração[1], onde o Estado tem um dever precípuo de abstenção. Vige, pois, a autonomia da vontade.
Os apontamentos ora trazidos à colação foram sistematizados de forma clara e objetiva pelo professor Damásio, razão pela qual nos socorreremos de seu sempre seguro magistério. In verbis:
“O Princípio da Legalidade (ou de reserva legal) tem significado político, no sentido de ser uma garantia constitucional dos direitos do homem. Constitui a garantia fundamental da liberdade civil, que não consiste em fazer tudo o que se quer, mas somente aquilo que a lei permite. À lei e somente a ela compete fixar as limitações que destacam a atividade criminosa da atividade legítima. Esta é a condição de segurança e liberdade individual. Não haveria, com efeito, segurança ou liberdade se a lei atingisse, para os punir, condutas lícitas quando praticadas, e se os juízes pudessem punir os fatos ainda não incriminados pelo legislador.”[2]
Como não poderia deixar de ser, os preceitos referentes à legalidade foram instados em sede constitucional. Tal colocação se justifica, afinal a matéria penal demanda uma segurança que apenas os textos magnos conseguem conferir.
Os preceitos atinentes à legalidade encontram-se apostos no artigo 5º da Constituição Federal. São dotados, assim, do caráter pétreo inerente aos textos que cuidam das garantias individuais fundamentais[3].
Como não poderia deixar de ser, todo o sistema que se liga ao Princípio da Legalidade, matéria afeita em magnitude ao Direito Penal, está encampado pelo Código Penal, fato que decorre da necessidade de adequação de todo ordenamento ao asseverado na Carta Magna.
Na esteira da seara percorrida, consigna Luiz Carlos de Oliveira – em citação creditada ao professor Mirabete – que o artigo 1º do Código Penal “define o Princípio da Legalidade”[4], asseverando ser este “a mais importante conquista de índole política, norma básica do Direito Penal Moderno, inscrito como garantia constitucional.”[5] Pondera-se, assim, que a imputação de tipicidade a uma prática só se afigura legítima quando prevista em Lei, entendida em seu sentido estrito.
Os desdobramentos do Princípio da Legalidade são defendidos na doutrina brasileira, dentre outros, por Francisco Toledo, como se depreende de sua obra intitulada “Princípios Básicos de Direito Penal”[6].
O mestre Toledo, defendendo fórmula consagrada na doutrina estrangeira, sobretudo italiana, propugna que o Princípio da Legalidade apresentaria quatro desdobramentos, destacando: nullum crimen, nulla poena sine lege praevia[7]; nullum crimen, nulla poena sine lege scripta[8]; nullum crimen, nulla poena sine lege stricta[9]; e, nullum crimen, nulla poena sine lege certa[10].
As citadas especializações são, pois, corolárias do Princípio da Legalidade, cujo objetivo é garantir a inviolabilidade dos direitos e garantias individuais. Em matéria penal tal vedação à violação é possível em se assegurando que Lei a cominar pena seja anterior, escrita, estrita e certa.
Nessa linha de pensamento Fernando Carlomagno, citando o professor Osvaldo Palotti Junior, consigna que “a lei que institui o crime e a pena deve ser anterior ao fato.”[11] Impede-se desta forma a retroatividade da lei penal que tome por delituosa conduta anterior ao seu império, ou, ainda, agrave de qualquer maneira a situação do agente.
Em linha fundamental impõe-se que a Lei – entendida em sentido estrito, e não qualquer norma – a instituir pena deve ser antecedente ao fato tomado por punível, conclusão do que assevera o professor Toledo ao apontar que “só a lei em seu sentido estrito pode criar crimes e penas criminais.”[12] Axiologicamente impõe-se ainda – a par da consagração de que apenas a Lei pode tomar por típico certo ato – que, igualmente, apenas a Lei possa tomar por mais grave determinado ato, sendo certo que tal tomamento não pode retroagir.
Ao cuidar dos direitos e garantias individuais nosso legislador asseverou no artigo 5º da CF – pretificado pela impossibilidade de mutação pelo poder constituído derivado – que “não haverá crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal.” Tal garantia vem a somar com a estrutura democrática vivenciada, cujo pilar é a ordem constitucional vigente, fundamento das relações sociais e base a sustentar e regular as disposições de ordem penal: suas regras punitivas, sanções e bens jurídicos tutelados.
Importante consideração na direção ora debatida é a esposada pela professora Alice Bianchini[13] ao elucidar que “a criminalização da conduta deve pautar-se, neste quadro, por processo meticuloso e que jamais pode deixar de contemplar direitos e garantias inscritos na Constituição.”[14]
De fato, sabendo que o Direito Penal não pode ir de encontro às garantias individuais apostas em nossa Carta Magna, qualquer norma que contrariasse a postulados nesse sentido seria atentatória ao que se configurou de forma pétrea, razão pela qual deveria ser expurgada do mundo jurídico, já que eivada de inconstitucionalidade, formal e material. Formal e material porque não há procedimento legislativo autorizado a interferir nas matérias atinentes aos direitos e garantias individuais, óbice fundamentado no artigo 60, § 4º da Carta Constitucional.
O artigo 5º da CF, em seu inciso II, consagra o princípio em exame. Nos exatos termos da dicção constitucional “ninguém será obrigado a fazer ou a deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”. Conclui-se, assim, que, apenas a Lei pode impor a atuação ou abstenção do particular para que sua conduta esteja alinhada ao Direito legalmente positivado.
Os apontamentos do parágrafo anterior dizem pertinência à sistemática que deve seguir o particular. Todavia, é assente o entendimento de que tal tônica não pode ser aplicada em sua totalidade ao administrador público, conforme se verá.
Em sede de administração pública o Princípio da Legalidade veste outras roupas; as estilizadas pelo artigo 37 da CF. Deste, pois, aduz-se proposição em sentido diferente. Asseveramos assim, socorrendo-nos do magistério de Hely Lopes Meirelles, que o administrador público só deve atuar em existindo determinação legal expressa nesse sentido. Enquanto o particular pode fazer tudo o que lei não proíbe, o administrador público só pode aquilo que esta determina, consoante ao propugnado pelo citado mestre:
“A legalidade, como princípio de administração, (Constituição da República Federativa do Brasil – 1988, art.37, caput), significa que o administrador público está, em toda a sua atividade funcional, sujeito aos mandamentos da lei, e às exigências do bem-comum, e deles não se pode afastar ou desviar, sob pena de praticar ato inválido e expor-se à responsabilidade disciplinar, civil e criminal, conforme o caso.” [15]
O Princípio da Legalidade explicitado no art. 37, caput, da CF, estabelece a vinculação de todo o agir administrativo público à legalidade. Tal vinculação é o que embasa, em nosso sentir, a segura lição trazida à colação.
Feita a digressão tendente ao esclarecimento das nuanças que assume o Princípio da Legalidade, voltemos ao cerne da questão a se desenvolver: a faceta em que se insere o particular, fatalmente o artigo 5º de nossa Constituição. Os apontamentos referentes ao artigo 37 tiveram o condão de estabelecer dogmaticamente que o Princípio da Legalidade, por vezes, assume fardagem diferente do que se costuma imaginar.
O que se entende por reserva legal representa marco avançado do Estado de Direito, porque, consigo, amoldam-se comportamentos às normas legais. É, pois, de importância vital, já que estabelece as distinções entre o Estado constitucional e o absolutista. Vivenciando o primado da lei, em análise finalista expressão da vontade coletiva, cessam, por óbvio, as prerrogativas caprichosas de quem detêm o poder e suas tendências personalistas. Nada obstante podemos identificar leis que nascem com um propósito bastante definido, praticamente de efeito concreto, daí receberem apelidos, como a chamada Lei Fleury[16].
De modo geral, pelo princípio da reserva legal, nenhum ato pode ser considerado crime se não existir uma lei que o tipifique como tal. No mesmo sentir nenhuma pena pode ser aplicada sem que haja previsão de sanção para o consubstanciamento de uma conduta. Constitui, assim, real e eminente limitação ao poder estatal de fazer ingerências na esfera das liberdades individuais, como dito antes, face dos Direitos Humanos de Primeira Geração.
O princípio da reserva legal justifica-se por uma questão que nos parece clara: o caráter subsidiário do Direito Penal. Diz-se isto porque as normas penais são excepcionais, isto é, aplicáveis apenas onde não há outra possibilidade de conservação da segurança, da paz e da ordem social por outros mecanismos de controle, como a religião, a moral, ou mesmo o Direito Civil ou Administrativo. Por isso, só deve este ramo especializado do Direito ser utilizado na proteção de bens jurídicos onde reste claro ser o único meio a evitar mal maior.
Do parágrafo anterior depreende-se a acessoriedade do Direito Penal. Afigura-se que, onde a proteção de outros ramos sociais, incluído aí diferentes seções do Direito, mostram-se ausentes ou falhas, pode e deve o legislador lançar mão de sanções penais, frise-se, como alternativa última.
Na esteira das proposições tracejadas nos parágrafos pretéritos a lição do mestre Toledo mostra-se mais uma vez se esclarecedora. Observe-se que:
“Se a intervenção do Direito Penal só se faz diante da ofensa de um bem jurídico, nem todos os bens jurídicos se colocam a tutela específica do Direito Penal. Do ângulo penalístico, bem jurídico é aquele que esteja a exigir uma proteção especial, no âmbito da norma penal, por se revelarem insuficientes, em relação a ele, as garantias oferecidas pelo ordenamento jurídico em outras áreas extrapenais.”[17] (destacou-se)
Diz-se por fim que o fundamento básico da atuação do Direito Penal deve se limitar aos bens jurídicos fundamentais. Portanto, a elaboração de figuras penais típicas deve ser informada e corresponder à tutela de um bem consagrado na Constituição. Há de ser lembrando que, em nenhuma hipótese, tal elaboração pode ir de encontro aos direitos e garantias fundamentais.
Tendo em vista o caráter generalista do Código Penal, devemos nos socorrer de seus ditames para tratar desse tópico. Chegamos assim ao seu artigo 32, onde se encontra assente que as penas no Brasil são de três tipos: “privativas de liberdade, restritivas de direito e de multa.”
A fim de melhor estruturar o trabalho do ponto de vista pedagógico, entendemos por bem que essas possibilidades sejam tratadas em separado.
Vejamos então nos próximos itens como as possibilidades punitivas de que pode lançar mão o Estado para a preservação da paz social, através da tutela jurisdicional, estão sendo entendidas pelos operadores do Direito.
1.1.1 Penas Privativas de Liberdade
São modalidades de pena que se executam através da reclusão, da detenção ou mesmo da prisão domiciliar. Teleologicamente mostram-se afeitas ao exercício do jus puniendi do Estado quando o bem jurídico tutelado atingido tem maior importância na escala de valoração abstrata elaborada pelo legislador.
Embora a escala aventada não se paute por silogismos matemáticos, fato é que sua gradação pode ser entendida ao se observar a sistematização dos tipos penais. Não por acaso o homicídio fui o primeiro a ser tratado. Percebemos assim a magnitude do bem a receber tutela: a vida!
Caminhando nessa abstrata escala de valoração outros tipos são ventilados. Logo após cuidar da vida, foi preocupação do legislador a integridade física, a qual pode ser atingida de diversas formas. Assim tem-se a lesão corporal. Primeiramente “lesão corporal” e a seguir a do tipo “leve”. Incrimina-se a conduta a partir da consideração subjetivo-valorativa do bem a se preservar.
No que concerne às penas privativas de liberdade, assim como na de multa, não há muito a se discutir. Faz-se tal ponderação em razão de a atuação do juiz, nesses casos, pautar-se por regras de subsunção[18], que se socorre, em regra, dos critérios Bobbinianos[19]. A temática vivenciada é a do raciocínio silogístico, pautada, pois, pelo jogo de premissas.
Ainda que se suscite uma atuação automatizada, não podem ser olvidados preceitos específicos, que, indubitavelmente, impõe um grau de subjetivismo quando da aplicação da pena pelo julgador, caso da condição pessoal do agente, aduzida no artigo 59 do Código Penal.
Desbravando essa escala, que foi chamada subjetivo-valorativa, outros bens jurídicos são encontrados. Concomitantemente surgem outras formas de se os tutelar. Manifestar-se-á, pois, diferentemente, o direito de punir do Estado. Assim é que se chega às penas restritivas ou privativas de direitos.
1.1.2 Penas Restritivas de Direitos
Através dessa modalidade punitiva impõe-se um dever de atuação ou abstenção, normalmente ao querelado, já que essa forma de punir afina-se de forma mais estável aos crimes cuja ação penal é privada.
Ao cuidar das penas restritivas de direito o trabalho do juiz – e em alguns casos do promotor, por exemplo nos Juizados Especiais Criminais onde a proposta de transação penal parte do membro do parquet – é mais abrangente.
A afirmativa pretérita decorre da constatação de que o rol de medidas aplicáveis é bem mais extenso, conforme enumera Damásio Evangelista de Jesus, penalista emérito e delegado brasileiro do 9º Congresso das Nações Unidas sobre Prevenção do Crime e Tratamento do Delinqüente. Vejamos:
“1) prestação de serviço à comunidade; 2) limitação de fim-de-semana; 3) interdição temporária de direitos; 4) multa, mediante recolhimento aos cofres públicos; 5) verba indenizatória, destinada à vítima; 6) reparação do dano; 7) tratamento de choque – penas privativas de liberdade de curta duração; 8) tarefa – por exemplo, visita a hospitais, a residências de vítimas de trânsito, a obras assistenciais, a empresas e escolas; 9) proibição de freqüentar determinados lugares; 10) exílio local, ou confinamento; 11) freqüência a cursos profissionalizantes; 12) prisão domiciliar; 13) prisão descontínua; 14) admoestação pública ou privada; 15) retratação ou pedido de desculpas; 16) entrega de quantia em dinheiro para instituição de utilidade social; 17) entrega de quantia em dinheiro ao Estado, com destinação específica, como o subsídio à formação educacional, a atividades assistenciais ou artísticas; 18) pagamento de cestas básicas ou cobertores a instituições de caridade; 19) perda de direitos; 20) expulsão do território; 21) suspensão e privação de direitos políticos; 22) freqüência a cursos escolares; 23) multa assistencial, destinada a instituições públicas ou privadas de assistência social; 24) perda de cargo, função ou mandato eletivo.” [20] (destacou-se)
Dada a elasticidade do rol apresentado, e o imperativo de observância das condições pessoais do agente, que entendemos deverem ser sopesadas mesmo nos casos de transação penal, o trabalho de persecução penal assume muitas vias.
É fato que o trabalho de persecução penal pode assumir muitas vias, caminhos. Não se pode perder de mente, por isso, que um crime de trânsito cometido por “Alexandres Pires” é diferente do praticado por “Joaquins das Couves”, sobretudo no que diz respeito às conseqüências pecuniárias, pois os agentes possuem condições pessoais absolutamente diferentes.
Tal consideração impõe, ao se lançar mão de uma pena restritiva de direito, atenção sobejada às condições pessoais do agente. Esquecer disso é, ao mesmo tempo, tornar possível que a medida aplicada seja inócua por não punir e não prevenir o crime. Tal inocuidade é facilmente configurada, por exemplo, em se valendo o membro do Ministério Publico no oferecimento da transação penal da modalidade mais comum de pena restritiva de direito: a fadada “cesta básica”.
Para milionários o pagamento de cestas básicas não representa absolutamente nada em seu patrimônio. Para o “fulano das couves”, contudo, a medida pode ferir inclusive preceitos constitucionais, como o que aduz não poder a pena passar da pessoa do criminoso. Assim, enquanto a família de um pobre é atingida com o tomamento de medidas com reflexos pecuniários, nem mesmo o agente rico é atingido pela aplicação da medida com tal caráter.
As penas restritivas de direito, bem utilizadas, representam uma alternativa viável ao modelo encarcerador, mas é preciso ter em mente que, no trato dessas, o Princípio da Proporcionalidade assume uma importância que nem todos os aplicadores do direito alcançam e conferem ao princípio.
As penas em estudo encontram-se, a despeito da numerosa relação aventada pelo mestre Damásio, previstas no Código Penal, proposição encontrada no artigo 43. O seguinte traça parâmetros à utilização das mesmas, conforme se pode ler no diploma legal:
“As penas restritivas de direitos são autônomas e substituem a privativa de liberdade, quando: I – aplicada pena privativa de liberdade não superior a quatro anos e o crime não for cometido com violência ou grave ameaça à pessoa, ou qualquer que seja a pena aplicada, se o crime for culposo.”
A nosso ver, ainda que o trabalho ora desenvolvido apresente caráter eminentemente bibliográfico, caberia uma opinião pessoal. Assim asseguramos que, dentre as penas restritivas de direitos, a prestação de serviços à comunidade desponta como a mais efetiva. Primeiramente porque atende ao postulado básico da democracia, inscrito no artigo 5º da Constituição Federal, donde se aduz que todos são iguais perante a lei. Assim, os que se encontram na situação de prestadores de serviços sofrem com uma limitação temporal proporcional ao efeito lesivo de sua conduta, ocasião em que são tratados de forma absolutamente igualitária.
Além da igual limitação temporal – igualdade apurada de acordo à conduta consubstanciada –, atinge-se com igualdade a esfera econômica do agente. Não com qualquer igualdade, mas com a valorada pelo preceito Aristotélico de que os iguais devam ser tratados na proporção em que se desigualam.
O que se asseverou, a partir do que dissera Aristóteles, vem ao encontro da constatação de que o valor/hora de cada pessoa é diferenciado por suas potencialidades. O times is money, consagrador do capitalismo em sua essência, aponta que a prestação de serviços à comunidade atinge cada um na exata proporção em que se desiguala. Mostra-se, assim, efetiva ao punir[21] e ao prevenir novas condutas típicas.
Seguindo a abstrata escala valorativa aventada, chega-se à pena de multa, a terceira forma do exercício do direito de punir do Estado que se previu no Código Penal.
1.1.3 Pena de Multa
A pena de multa é, pois, a terceira forma de o Estado exercer seu direito de punir antevista no Código Penal, previsão valorada pela inscrição dessa modalidade punitiva na Constituição, expressamente no artigo 5º, XLVI, c.
Com essa modalidade punitiva em estudo o autor da conduta típica paga ao fundo penitenciário quantia fixada na sentença. Esse débito é calculado à base de dias-multa, variando de 10 a 360.
O valor “dia-multa” é fixado pelo juiz, não podendo ser inferior a 1/30 do maior salário mínimo mensal, nem superior a cinco vezes esse mesmo salário, vigente ao tempo do ato.
Com o advento da Lei nº 9.268/96 um novo caráter foi trazido para a pena de multa. Antes desta lei, caso não se pagasse a multa aplicada ou se frustrasse sua execução, a mesma era transmudada em detenção. Atualmente, todavia, tendo em vista assumir caráter de dívida de valor a pena de multa, impõe-se que, transitando em julgado a sentença condenatória cuja pena aplicada tenha sido a de multa, esta passa a ter natureza extrapenal. Desta consideração impõe-se que, restando inadimplida, o que se deve fazer é a promoção de sua execução pela Fazenda, a qual obedecerá aos moldes da cobrança judicial de Dívida Ativa.
2 O CÓDIGO NACIONAL DE TRÂNSITO: LEI 9.503/97
Antes de se adentrar especificamente no que alude o título do item em questão, é preciso que tracemos algumas linhas sobre o revogado Código Nacional de Trânsito de 1960, que, a par da especialidade latente de que se podia valer, não previa qualquer figura típica.
Dentro da sistemática do código revogado, não se considerou a agressão de bens jurídicos na direção de veículo automotor bastante para tipificar novas condutas. Não se valendo da possibilidade que lhe era facultada, o código revogado prescrevia apenas sanções administrativas e multas aos infratores.
Para a sociedade da década de 1960, talvez esse tenha sido eficaz, mas a evolução histórica acabou por demandar um novo regramento; a Lei nº 9.503/97. Esta lei, que entrou em vigor em 1998, trouxe consigo um novo tipo de vivência, assumindo ares penalistas. Nota-se, claramente, uma feição de Direito Penal no Código de Trânsito vigente.
Procurando oferecer tutela a interesses elevados da sociedade, adotou o legislador a solução de criar figuras penais específicas para coibir motoristas inconseqüentes, inobstante o caráter subsidiário do Direito Penal, donde se depreende que este “só deve intervir nos casos de ataques muito graves aos bens jurídicos mais importantes.”[22] Assim, é, pois, que “o caráter fragmentário do Direito Penal o conduz à intervenção mínima e subsidiária”[23], pela qual este “só deve agir quando os demais ramos do Direito, os controles formais e sociais tenham perdido a eficácia e não sejam capazes de exercer essa tutela.”[24]
Ainda que tenhamos de considerar o caráter fragmentário como indissociável do Direito Penal, parece-nos ter agido corretamente o legislador ao criar as figuras típicas no Código de Trânsito Brasileiro, pois o regramento anterior não mais atendia à realidade do complexo trânsito de nossos dias.
Para atingir o fim propugnado, o CTB criou os chamados crimes de trânsito, reservando um capítulo especial em que foram tipificadas onze condutas, elencadas entre os artigos 302 e 312. Valendo-se de sua potencialidade, previu tipos como o homicídio culposo de trânsito (art. 302), a lesão culposa de trânsito (art. 303) e a omissão de socorro no trânsito (art. 304).
2.1 ESPECIALIDADE DA LEI Nº 9.503/97
A Lei nº 9.503/97, introdutora do Código de Trânsito vigente, configura um micro-sistema. Uma lei especial afeita a cuidar especificamente das questões atinentes ao trânsito.
Em virtude do regramento introduzido pelo código sob exame, vislumbra-se que os dispositivos do Código Penal que oferecem tutela aos mesmos bens jurídicos foram revogados[25].
A abordagem acerca da revogação decorre do princípio da especialidade, regra de hermenêutica aventada pelo notável Norberto Bobbio. Tal princípio, aliás, integra o ordenamento jurídico desde a vivência romana, como se depreende do brocardo latino lex specialis derogat legi generali.
Tem-se, assim, que, o agente provocador de homicídio culposo no trânsito não mais se sujeitará às sanções do art. 121, § 3º do Código Penal, mas sim ao tipo especial criado pela Lei nº 9.503/97. O mesmo se diz do agente que provoque lesões culposas em acidente de trânsito, ou, ainda, omita socorro à vítima quando provoque acidente de trânsito.
Nos casos suscitados restarão, pois, por inaplicáveis os artigos 129, § 6º, e 135 do Código Penal, já que “se considera especial uma norma penal em relação a outra geral, quando reúne todos os elementos desta, acrescido de mais algum, denominado especializante.”[26]
A especialidade de que se valeu o legislador do Código de Trânsito trouxe consigo novos tipos específicos, que apontam cominações superiores às previstas no Código Penal.
Configura-se o caso em tela a chamada novatio legis in pejus, razão pela qual esses novos tipos não podem retroagir para alcançar atos anteriores à entrada em vigor da lei que os criou, pois, “permanecendo na lei nova definição do crime, mas aumentadas suas conseqüências penais, esta norma mais severa não será aplicada” [27], transcrição literal do asseverado pelo mestre Mirabete.
2.2 INTEGRAÇÃO DA LEI Nº 9.503/97 AO ORDENAMENTO VIGENTE
Por previsão inscrita no art. 291, parágrafo único[28] do Código de Trânsito Brasileiro, aplicam-se aos crimes cometidos na direção de veículos automotores as normas gerais descritas no Código Penal, no Código de Processo Penal e na Lei nº 9.099/95. Em análise a tal dispositivo, deparamo-nos com algumas questões que precisam ser mais bem compreendidas.
Os artigos da Lei nº 9.099/95, aludidos na lei em exame, tratam da formação do título executivo civil e do direito de representação (art. 74), da transação penal com aplicação imediata de pena restritiva de direito ou multas (art. 76) e da necessidade de representação da vítima no delito de lesão corporal culposa (art. 88).
Tal alusão deve ser entendida em consonância com o que dispõe o artigo 61 da lei de 1995, pois nesta resta consignado uma limitação à subsunção deste regramento. Assim, para que o regramento da “lei dos juizados especiais” seja aplicado de forma correta a luz da hermenêutica, impõe-se que a conduta praticada seja de menor potencial ofensivo. Por essa razão as possibilidades de subsunção da Lei nº 9.099/95 limitam-se àquelas para as quais se comine pena máxima não superior a um ano.
O legislador do Código de Transito Brasileiro estabeleceu a aplicabilidade da transação penal sem se ater diretamente à condição objetiva da pena cominada ao delito no parágrafo que a referencia. Contudo, no caput do artigo 291 – cabeça do corpo onde se prevê o referido parágrafo – a locução “no que couber” permite se aferir que a aplicação do regramento da Lei nº 9.099/95 à 9.503/97 deve se operar com ressalvas; apenas quando couber!
O corpo não pode contrariar a cabeça por razões óbvias. Não fosse essa imposição de aplicação restritiva, depreendida da expressão “no que couber” do caput, admitir-se-ia ter havido clara incoerência, uma vez que se estaria suplantando regras contidas na Lei nº 9.099/95 quanto a sua possibilidade de aplicação.
Producente se mostra nesse momento se colacionar o entendimento do professor Damásio, onde os princípios informadores da lei de 95 foram considerados. Deste se pode destacar, por oportuno, a seara donde emergiu a Lei nº 9.099, como se pode ler a seguir:
“A oralidade, a informalidade e a possibilidade de transação atendem ao desejo do constituinte de agilização da máquina judiciária, no sentido da pronta repressão das infrações penais menos graves. […] Essa finalidade encontra plena justificativa na correta opção do art. 61 da Lei de considerar infrações de menor potencial lesivo somente as contravenções penais e os crimes apenados, no máximo, com um ano de pena privativa de liberdade.”[29]
A transação penal é uma realidade que vem para atender desejo constitucional de agilização do Poder Judiciário, mas é preciso se ter por claro o entendimento de que o movimentar da máquina judiciária nesse sentido deve se limitar aos casos de infrações penais de potencial agressivo menor.
Ainda que caminhemos para um momento de maior consideração da vítima, é preciso se ter sedimentada a idéia de que a repreensão de algumas condutas interessa ao Poder Público, vítima mediata dessas. Daí ser preciso sopesar o movimento de vitimização para que não se invente “penas sem crimes”[30], ou se contrarie a máxima de que “não há pena sem prévia cominação legal.”
A despeito do espírito dessa lei voltaremos à questão no terceiro capítulo, onde se tratará da reparação do dano. Não através das possibilidades punitivas aludidas no primeiro capítulo, mas sim através da reparação do dano onde o beneficiário da reparação seja a vítima do delito.
2.3 INCOERÊNCIAS ENCONTRADAS NO CTB
Como o tópico ora tratado aventa as incoerências encontradas no regramento introduzido pelo CTB, não podemos olvidar o exame dos artigos 302 e seguintes desse.
Ao tratar da lesão corporal culposa na direção de veículo automotor foi prevista pena de detenção de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos. Ao agente que conduzir veículo automotor sob a influência de álcool ou substâncias análogas (art. 306), cominou-se pena de detenção que varia de 6 (seis) meses a 3 (três) anos.
Passando a análise para o artigo 308 se visualiza de fato discrepância. Tanto é verdade que a figura encontrada nesse – o delito de participação não autorizada em competição automobilística; “os famosos rachas” –, há a previsão de pena que varia de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos de detenção.
No que concerne aos rachas, que surgem dentro do espírito de emulação, nosso legislador perdeu grande oportunidade de coibir de forma mais severa tal prática perigosa e, lamentavelmente, costumeira.
Contrariando ao espírito da lei, impôs-se à configuração dessa conduta pena equivalente à aplicada ao agente que provoca lesão culposa ao conduzir veículo. Afigura-se, pois, notadamente desproporcionais tais cominações, o que se diz a partir da consideração de que os graus de periculosidade apresentados são claramente diferentes.
Levando-se em consideração a pena abstrata cominada aos delitos aduzidos, somente se admitiria a aplicação da suspensão do processo (art. 89 da Lei nº 9.099/95), e não a transação penal, esta prevista no art. 76, ainda que uma leitura apressada do parágrafo único do artigo 291 do CTB pudesse levar a outro entendimento.
Em análise aos novos dispositivos penais criados pelo Código de Trânsito, deparamo-nos com penas desproporcionais, como assevereram Luiz Régis Prado e Cézar Roberto Bittecourt[31]. Tomemos por exame a sanção prescrita ao delito de lesão culposa decorrente de acidente de trânsito (art. 303).
A leitura do tipo aduzido no parágrafo pretérito permite-nos inferir que a pena prevista é maior que a pena do crime de lesão corporal dolosa inscrita no art. 129, caput, do Código Penal. Em nosso sentir ocorreu incoerência legislativa, como se pode perceber na digressão seguinte.
Suponha-se que, conduzindo um veículo, um agente atropele culposamente um pedestre que atravessa uma rua, provocando-lhe lesões leves. Suponha-se que, irado por uma discussão de trânsito, um motorista atropele dolosamente um ciclista com a intenção de o lesionar, causando-lhe hematomas pelo corpo. No caso concreto, o agente que atropelou com dolo o ciclista, ou seja, com vontade dirigida de lesionar, terá sua conduta tipificada no art. 129, caput, do Código Penal, sujeitando-se, pois, a uma sanção que varia de 3 (três) meses a 1 (um) ano de detenção.
Em outro sentir, o agente provocador de lesão culposa será punido com detenção que varia entre 6 (seis) meses e 2 (dois) anos, pena cominada que se soma à possibilidade de se suspender sua habilitação, ou ainda, ser-lhe proibido dirigir. Afigura-se, certamente, flagrante a incoerência legislativa que fere, em essência, o Princípio da Proporcionalidade.
Ao incriminar um fato reprovável, incumbe ao legislador avaliar suas conseqüências sociais. Deve estabelecer uma proporção, ao menos razoável, entre a pena cominada e a gravidade efetiva, real nocividade social dos fatos incriminados[32], o que não parece ter sido o caso da digressão em tela.
Outro ponto questionável do novo Código diz respeito ao seu art. 302, onde se prevê a figura do homicídio culposo provocado pelo condutor de veículo motorizado.
O agente que provoca um homicídio culposo “genérico”, isto é, previsto no Código Penal, tem em seu desfavor a cominação de uma pena de 1 (um) a 3 (três) anos de detenção. Conforme o caso poderá ser beneficiado pelo instituto da suspensão do processo, previsto no art. 89 da Lei 9.099/95, uma vez que incidirá nas sanções do art. 121, § 3º do Código Penal.
Em outro sentir, o mesmo não se pode dizer do agente que comete um homicídio culposo conduzindo um veículo. Neste caso, a sanção cominada é a detenção de 2 (dois) a 4 (quatro), o que obstaria a aplicação de qualquer benesse prevista na lei de 1995.
3 DA VITIMIZAÇÃO NO DIREITO PENAL
A questão do tráfego em nosso país é muito complexa, sobretudo se considerarmos que “mais de cinqüenta mil pessoas morrem por ano em acidentes de trânsito no Brasil e, nem o Poder Público, investe suficientemente em campanhas educativas e nem a sociedade civil se toca da tragédia que abala os lares de quase todo os brasileiros.”[33] Diante desse quadro necessário se mostra tomar medidas que sejam efetivas para a reversão de tal cenário.
Este cenário precisa mudar, pois certos títulos de “campeão mundial”[34] em nada nos enobrece. Todavia, em razão da desconsideração da vítima, resquício das escolas Clássica – de Becaria e Fuerbach – e Positiva – de Lombroso, Ferri e Garofalo –, calcadas exclusivamente na tríade delito-delinqüente-pena, nosso sistema acaba por afirmar um esquecimento desta.
Dentro do sistema erigido da tríade “delito, delinqüente e pena” não há lugar para a vítima. Por isso, enquanto plenamente vigente esse modelo, não foi preocupação de nosso legislativo a vítima como componente da relação jurídico-penal.
A não preocupação com a vítima acabou demonstrando não ser razoável. Surgiram, assim, as primeiras manifestações em contrário, as quais culminaram com o cunhamento da locução vitimização[35] em 1956 pelo professor Benjamin Mendelsohn, a partir da qual deixou de estar circunscrita a relação jurídico-penal na tríade a sustentar as Escolas Clássica e Positiva.
A locução referida surgiu na esteira da obra The Criminal and Victim[36], publicada em 1940 por Hans von Hentig, a quem se credita a primazia de considerar a vítima fator na delinqüência.
Embora pareça, em uma leitura apressada, ser preocupação da vitimologia apenas um estudo da influência da vítima na ocorrência do delito, verdade é que esta se preocupa com os vários momentos do crime, desde a sua ocorrência até as suas conseqüências. Evidencia, sim, a importância da vítima para a configuração do delito, mas também explica sua conduta, aventa medidas para reduzir a ocorrência do dano, e, sobretudo – destaque que se dá pelo desdobramento do trabalho – preocupa-se com a assistência desta, campo onde nasce a idéia da reparação dos danos pelo autor do delito. Nasce, assim, a pena reparatória!
3.1 REPARAÇÃO DE DANOS EM MATÉRIA PENAL NO BRASIL
As ordenações Filipinas, que tiveram vigência no Brasil a partir de 1603, traziam as idéias de reparação e multa, mas sem uma sistematização. Tudo se encontrava confuso e não visava à indenização da vítima. Ao contrário, mesmo nos casos de confisco dos bens do criminoso tínhamos um único beneficiário: a “coroa”.
Com a outorga da Constituição de 1824, impôs-se a feitura de um diploma penal, afinal mostrava-se incoerente um país independente se valer da legislação de seu colonizador. Desta feita, no ano de 1830, pondo fim a qualquer discussão que se pudesse ter no terreno da soberania, foi editado o Código Criminal do Império, elaborado a partir do projeto de Bernardino Gonzaga.
O referido código foi considerado um avanço para a época, sobretudo porque previa a possibilidade da ação civil no processo criminal. Tal possibilidade viabilizava-se através do sistema da cumulação obrigatória.
Com o Código Criminal a vítima podia valer-se da via civil em face do delinqüente desde o momento do crime, inteligência do artigo art. 31, § 3º. O autor do fato delituoso, consoante o artigo 27 do citado código, tinha seus bens colocados em indisponibilidade. Assegurava-se, dessa forma, a preferência da vítima para a satisfação de seu eventual crédito apurado, preterindo, inclusive, o pagamento de multa, que, como visto no primeiro capítulo, tem como endereço os cofres públicos. Assim foi a orientação do artigo 30 do código em tela.
Vestiu-se o código em exame, notadamente, dos objetivos de proteção à vítima. Tanto é verdade que estabelecera a idéia da solução em favor do ofendido no caso de dúvida a respeito do valor da indenização, possibilidade inscrita em seu artigo 22. Hoje tal possibilidade mostra-se impraticável à luz dos ditames constitucionais que encampam o brocardo in dubio pro reu, verdadeiro pilar do Direito Penal Moderno.
Ainda no Código Criminal, previu-se a hipótese de prisão com trabalho do devedor para satisfazer o crédito da vítima. Tal hipótese decorria da necessidade de reparação do dano, que se operacionalizava, conforme o artigo 32, com o dispendimento da quantia necessária à satisfação do crédito decorrente do dano. Frise-se que essa possibilidade também não se afigura legítima de acordo à Constituição atual.
A proclamação da República trouxe em sua esteira a edição do Código Penal já no ano seguinte. A matéria que antes fora tema do Código Criminal, que impunha o regime da cumulação, passa a ser tema do Código Penal, precisamente nos artigos 31, 69, ”b”, e 70, onde se afirma a independência das ações civil e penal. Nesse sentir a questão da indenização do dano passa a ser matéria de índole meramente civilista, regulada, portanto, nas leis de cunho civil.
O Código Penal de 1890 seguiu a Lei nº 261, de 1841, que, em seu artigo 68, revogara o artigo 31 do Código Criminal do Império, estabelecendo a independência da ação civil e penal. A despeito dessa notada independência, cumpre informar que foi conferida força de coisa julgada civil à sentença penal ao se estabelecer a impossibilidade de se discutir existência do fato e autoria ao se deduzir no juízo cível as conseqüências pecuniárias do apurado em sede penal.
O sistema do Código de 1890 foi inserido no Código Penal de 1940, mantido até os dias de hoje, consoante a consideração de que a sentença penal é título executivo na esfera cível, conforme anunciado no 91, I do Diploma Penal.
A preocupação com a indenização e reparação às vítimas de crimes perdeu força com a vivência dos Códigos Penais em relação ao vivenciado na vigência do Código Criminal.
A par dessa constatação[37] podemos apontar que, ainda que em regime de exceção, impõe-se a reparação do dano, em regra, para que o criminoso possa obter a suspensão condicional da pena ou o livramento condicional.
Dentro do que se costuma chamar de Direito Penal mínimo é que se vislumbra o garantismo jurídico, em que a preocupação com o agente criminoso é maior do que com a vítima. Isso é justificado pela famigerada fórmula de sustentação das Escolas Clássica e Positiva: “delito, delinqüente e pena”.
A fórmula vivenciada na doutrina e em nosso sistema positivado – a do Direito Penal Mínimo – acabou por redundar em verdadeiro abandono da vítima. Nesse sentir asseveram Luiz Flávio Gomes e Antonio García-Pablos Molina, onde lemos em um magistério ponderado, que:
“O abandono da vítima do delito é um fato incontestável que se manifesta em todos os âmbitos: no Direito Penal (material e processual), na Política Criminal, na Política Social, nas próprias ciências criminológicas. Desde o campo da Sociologia e da Psicologia social, diversos autores, têm denunciado esse abandono: O Direito Penal contemporâneo – advertem – acha-se unilateral e equivocadamente voltado para a pessoa do infrator, relegando a vítima a uma posição marginal, ao âmbito da previsão social e do Direito Civil material e processual.”[38]
A despeito do esquecimento aventado, uma redescoberta da vítima parece ter surgido com a Lei nº 9.099/95. A exemplo do Código Criminal do Império, a preocupação com a vítima e com a reparação dos danos sofridos é clara. A prioridade deixa de ser a aplicação da pena e se volta para a necessidade de o agente delinqüente reparar os danos e prejuízos causados pelo seu ato à vítima.
Na seara introduzida pela lei de 1995 assume lugar de destaque a idéia da composição civil (arts. 71 a 74), onde resta consignado o dever do juiz de, sempre que existir dano, buscá-la. Parece-nos que a intenção do legislador é estimular a composição civil e, via de conseqüência, reparar o dano, destacando que esta implica renúncia ao direito de queixa ou representação.
Credita-se à Lei nº 9.099/95 a instituição no Brasil da suspensão condicional do processo, na qual, cumprindo o autor do fato delituoso o que se impuser, suspenso fica, pelo prazo de 02 a 04 anos, o procedimento animado por relação jurídica processual deduzida em juízo. Tendo em vista que a reparação do dano à vítima – no caso do art. 89, § 1º, I – afigura-se como pressuposto para o deferimento de tal medida, as Leis nos 9.099/95 e 9.503/97 se ligam intrinsecamente.
A Lei 9.503/97 demonstra grande preocupação com a vítima. Constata-se tal demonstração em seu art. 297, onde se prevê a imposição de multa reparatória, que “consiste no pagamento, mediante depósito judicial em favor da vítima, ou seus sucessores, de quantia calculada com base no disposto no § 1º do art. 49 do Código Penal, sempre que houver prejuízo material resultante do crime”.
Baseando-se no que dispõe o artigo 297 o juiz pode impor, em favor da vítima, o pagamento de pecúnia, esta nominada “multa reparatória”. Tal imposição afigura-se possível, a luz do CTB, em tendo a vítima suportado prejuízo material.
O que se vê na possibilidade aventada é uma preocupação com a vítima e a reparação dos danos sofridos por si, ainda que um pilar da Legalidade – não há pena sem prévia cominação legal –, inerente ao direito penal, trema a ponto de ser percebido por sismógrafos.
Preceitos contidos no Código Criminal voltam à cena jurídica nacional! Não mais como quis o legislador deste, eis que impusera penas hoje tidas por cruéis, caso do trabalho forçado para quitar o prejuízo experimentado pela vítima, mas como uma forma de dar efetividade à teoria da vitimização.
3.2 MULTA REPARATÓRIA
A pena de multa, como aventada no primeiro capítulo, é espécie de pena das estabelecidas no Código Penal. Corresponde, pois, ao pagamento ao fundo penitenciário de quantia fixada na sentença, nascida, portanto, dentro da tríade “delito, delinqüente e pena”, onde a vítima não é levada em consideração quando da análise do ato delituoso.
Em um sentir diferente do que se vivencia no Código Penal, o Código de Trânsito instituiu multa dotada de caráter reparador. Esta modalidade de pena fora prevista no Código Penal de 1969, mas cumpre destacar que não chegou a viger, já que o referido diploma do período militar foi revogado durante sua vacatio legis.
Ao contrário da pena de multa prevista no Código Penal, a multa reparatória consiste em se reparar a vítima via pagamento de cunho pecuniário.
Há que se ressaltar, pois, o suposto fático fundamental que informa ser pressuposto para surgimento dessa modalidade de multa: a demonstração de que o crime provocou prejuízo material à vítima. Por esta razão o valor apurado não pode ser superior ao valor do prejuízo demonstrado no processo.
A questão do prejuízo experimentado é tão importante no estudo da multa reparatória que, no caso de a vítima intentar ação de natureza civil pretendendo obter indenização pelos prejuízos sofridos, qualquer valor pecuniário que tenha recebido a título de multa reparatória será compensado.
No que concerne à execução desta modalidade de pena, aplicam-se as regras contidas nos artigos 50, 51 e 52 do Código Penal. Por isso essa deve ser paga nos 10 (dez) dias subseqüentes ao trânsito em julgado da condenação. Incidindo em inadimplência o condenado, poderá a vítima poderá se valer do procedimento executivo.
Ensina-nos o professor Bittencourt que o dano sofrido pela vítima do crime não deve ser punido, mas reparado, e a multa reparatória seria uma tentativa, ainda que pálida[39], de se mudar a injustiça histórica do Direito Penal no sentido de relegá-la ao infortúnio.
Para nós se mostra muito salutar que a vítima seja preocupação do legislador penal, mas essa preocupação não pode ignorar toda a base de sustentação do Direito Penal, pela própria essência, afeito à idéia da Legalidade. Ser legalista em matéria penal, é, pois, fundamental!
Não se trata de mero preciosismo, pois, consoante afirma a Constituição Federal, não se pode preterir o entendimento de que “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem previa cominação legal.”
Desse princípio constitucional o mestre Damásio assevera, no artigo publicado em mídia eletrônica “Dois temas da parte penal do Código Brasileiro de Trânsito”, antes já referenciado, que para a formação do tipo penal faz-se mister prever “a cominação genérica da pena” e o seu “complemento explicativo”. Com o primeiro requisito se chegaria à idéia de cabimento e em que consistiria a medida penal. Com o segundo se alcançaria os supostos de substituição e conversão da medida.
A pena pode ser cominada de forma geral, quando prevista na parte geral do estatuto criminal, ou especial, quando abstratamente imposta no preceito secundário da norma incriminadora, caso das previstas na parte especial do Código Penal ou na legislação extravagante.
Dentro dessa perspectiva ponderamos que as penas privativas de liberdade são cominadas na parte especial e em normas extravagantes, dotadas, assim, de caráter especial. Por outro lado, as penas restritivas de direitos obedeceriam, por ocasião da imposição, aos critérios gerais, inteligência do que dispõe o artigo 54 do CP, em que se lê que essas “são aplicáveis, independentemente de cominação na parte especial, em substituição à pena privativa de liberdade.”
Pelo que se expôs somos levados a concordar com o entendimento esposado pelo professor Damásio no artigo antes citado ao assegurar que o legislador do CTB teria se esquecido de cominar, genérica e especificamente, tipo que abarcasse a multa reparatória.
O legislador do Código de Trânsito não previu dispositivo genérico de cominação. Da leitura de seu art. 291 e ss não se percebe nenhum enunciado no sentido de criar preceito primário!
Da mesma forma não se encontra o chamado preceito secundário ao se estudar os tipos penais de trânsito. Tais tipos, criados pelo legislador do CTB ao fazerem a cominação especial de que se podiam valer ao elaborar a parte especial deste, art. 302 e ss, não anteviram nada que pudesse levar à idéia de multa reparatória.
A despeito do que se disse nos parágrafos anteriores, surge, curiosamente no mesmo diploma, o art. 297, que, ao instituir a multa reparatória, consigna enunciado complementar explicativo. Assim temos, tão-somente, o enunciado complementar explicativo; a segunda parte do sistema, portanto.
Essa segunda parte seria a pena, enquanto a primeira seria a cominação legal. Claramente foi subvertida a lógica que informa não haver “pena sem prévia cominação legal”, lógica que é requisito de constitucionalidade de qualquer norma penal.
Instituiu-se, assim, pena sem que houvesse previsão de uma conduta que a justificasse. O Princípio da Legalidade, que constitui real e eminente limitação ao poder estatal de fazer ingerências, acabou sendo preterido. Aparentemente o foi em prol da situação da vítima, como dito, relegada historicamente pelo Direito Penal. Todavia, ainda que tal esquecimento seja fático, não nos parece, do jeito que foi criada, poder subsistir a pena de multa reparatória, pois isso implicará em que haja pena sem cominação legal.
Assim o artigo 297, “isolado entre as outras disposições, sem maiores explicações, permite ao intérprete, numa primeira visão, ficar em dúvida sobre a natureza da multa reparatória: medida de natureza penal (pena alternativa) ou civil, ligada à antecipação da reparação do dano.”[40] Tal dúvida é a base de sustentação do entendimento do professor Arnaldo Rizzardo[41] no sentido de que não seria de se aplicar a multa em questão, já que não foi prevista como conseqüência de infrações, menos ainda como de crime.
Do que se aventa nesse momento surgiram discussões a respeito da constitucionalidade da multa reparatória, discussões que o professor Lélio Braga perpassa no livro intitulado “Vítima e Direito Penal”[42]. Consignou, assim, o entendimento de inconstitucionalidade esposados pelos professores William Terra de Oliveira, Paulo José da Costa Júnior e Maria Elizabeth Queijo, entendimentos que se somam ao defendido pelo ilustre Damásio.
Em outro sentir é o entendimento pugnado pelo professor Luiz Flávio Gomes[43], que sustenta a constitucionalidade da medida. Parece ter feito sua ponderação com base no Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, pelo qual torna-se possível, inclusive, se preterir um princípio como o da Legalidade, como pode ser depreendido da obra do professor Daniel Sarmento[44]. Dizemos isso porque nossa Constituição, abarcadora de normas de caráter aberto e compromissário que é, verdadeira síntese de ideologias, acaba por impor a ponderação de interesses como suposto de harmonia do sistema e isso pode levar ao preterimento, ainda que momentâneo, de um princípio.
O professor Flávio Gomes parece fazer uma análise teleológica da multa reparatória, apontando pretender essa atender aos anseios da vítima. A razão da introdução dessa multa residiria no fato de que as vítimas, em regra, em especial nos delitos de trânsito, enfrentam grande dificuldade para receber a indenização que lhes é devida. Tudo bem que o curso da ação penal não obsta ao ingresso de uma de natureza civil, mas esta, a par de não ser célere, pode ir de encontro ao aferido em sede penal[45]. Ademais, como é assente, para que a vítima execute civilmente a sentença penal condenatória, faz-se necessário o procedimento de liquidação, já que essa é ilíquida.
Pelo que se expôs, ainda que os argumentos decorrentes da ponderação de interesses possam se mostrar válidos, entendemos, em razão da estrita legalidade em que se encontra inserido o Direito Penal, que não merece subsistir a multa reparatória. É evidente que a vítima deve ser preocupação do Direito Penal, mas tendo em vista a possibilidade real de se correlacionar preceito e pena, não julgamos ser preciso se “constitucionalizar” medida que surgiu em descompasso com a Constituição.
No tópico anterior discutiu-se a respeito da constitucionalidade da multa reparatória, onde acabamos pendendo para os argumentos da inconstitucionalidade da medida. Não pela medida em si, mas pela consideração do contexto em que ela foi criada, sendo a pena de um “não tipo”. Isso mesmo, sem que se criasse um tipo penal punido com multa reparatória, essa veio ao mundo jurídico. Indubitavelmente teria muito a acrescer à realidade pretendida pela vitimologia e a chamada vitimização, mas se emergisse em sintonia com o Princípio da Legalidade, e não nos termos em que vige.
No tópico presente a preocupação volta-se para a compreensão da multa reparatória na jurisprudência. Em verdade, o foco da questão diz pertinência aos efeitos pecuniários que dessa decorrem, já que as questões sobre a legitimidade da medida foram discutidas no tópico pretérito.
Pois bem, consubstancia-se a multa reparatória pelo pagamento, mediante depósito judicial em favor da vítima, ou seus sucessores, de quantia calculada com base no disposto no § 1º do art. 49 do Código Penal, desde que o crime tenha acarretado prejuízos matérias à vítima.
Vê-se, pois, que, a multa reparatória, a despeito de sua gestação à margem do útero constitucional, foi idealizada objetivando efetivamente devolver à vítima seu status quo. Nesse ponto se assemelha ao pretensado pelo legislador da Lei nº 9.099/95, diferindo apenas no que diz respeito ao pagamento das verbas indenizatórias, já que no sistema dos Juizados Especiais o pagamento das verbas indenizatórias é acordado entre as partes, ao passo que em sede de multa reparatória vivencia-se imposição estatal, operacionalizada pela prestação da tutela jurisdicional a por termo ao processo. A aposição de valor, é, pois, encargo do magistrado.
É preciso se destacar que a questão da reconstituição do status quo ante diz respeito apenas aos aspectos materiais, nos exatos termos que a locução matéria informa, ou seja, “o prejuízo pessoal, que atingiu a própria vítima (matéria orgânica), como também a perda ou prejuízo que fere diretamente um bem patrimonial, diminuindo o valor dele, restringindo a sua utilidade, ou mesmo a anulando.”[46]
Da exegese do texto legal infere-se que a multa reparatória será obrigatoriamente aplicada quando houver prejuízo material, o que parece confrontar[47] com a falta de previsão em nosso ordenamento processual penal da apuração de prejuízos materiais.
Outra questão que precisa ser enfrentada, diz respeito à alusão que informa poder ser aplicada a medida em exame sem que tenha sido demandada pela vítima. Tal apontamento decorre do fato de multa reparatória ser fixada pelo juiz, independentemente da manifestação de quem houver sofrido as conseqüências do ato.
Essa medida seria plenamente justificada, já que o Direito Penal comporta traços de inquisitoriedade. Em sede de multa reparatória, contudo, o que se visualiza, em verdade, é a antecipação de questões civis em sede penal, razão pela qual entendemos, nesse diapasão, dever sobressair, sim, o Princípio da Demanda ou Adstrição, previsto nos artigos 2º, 128 e 460 do CPC.
O artigo 297 em seus §§ 1º e 3º estabelece os liames para o arbitramento da multa reparatória, destacando que o valor máximo fixado não possa suplantar o prejuízo material experimentado. Destaca ainda que o valor da multa reparatória, efetivamente paga, por óbvio, pode ser compensado por ocasião da dedução de eventual ação civil.
No sentido de que a multa reparatória só deve emergir nas situações em que a vítima tenha experimentado prejuízo material voltamos ao cerne do tópico em exame. Nesse sentir é que destacamos o entendimento jurisprudencial a informar que “nos crimes de trânsito, se dos autos não há prova do prejuízo material resultante do delito, inadmissível se torna a incidência da multa reparatória prevista no artigo 297, § 1º, da Lei 9.503/97.”[48] Vê-se, assim, que o suposto prejuízo material, além da consagração legislativa, também é consagrado em sede jurisprudencial.
Uma questão também muito importante sobre a qual vem se manifestando a jurisprudência diz respeito ao quantum indenizatório a ser conferido à família da vítima quando essa vem a falecer em razão de um crime de trânsito. Nesse ponto, ainda que o entendimento seja no sentido de recomposição material da vítima, outros pontos precisam ser enfrentados, já que a vida não pode ser restabelecida.
Exemplificando a proposição aduzida no parágrafo pretérito destacamos o julgado no Acórdão 1211661/1 do Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo, em que funcionou como relator o desembargador Luiz Ambra. Verbis:
Resta a prestação pecuniária imposta em favor da família da vítima, contra a qual se insurge. Cem salários mínimos, convenha-se, não se afigura quantia excessiva; a vida da vítima valia muito mais, certamente. E aqui está a se tratar de pena, solvendo a importância estipulada, não faz o réu favor algum a ninguém.
Pelo que se expôs aferimos que na jurisprudência a questão que tem se destacado em sede de multa reparatória diz respeito ao valor da indenização, dotada de caráter civil, mas aferida em sede penal. Conclui-se que o valor “prejuízo material” passa a ser o fiel da balança a se considerar por ocasião da concessão da medida em exame, a não ser nos casos onde a mensuração matemática se afigure impossível, como nas hipóteses de serem as vítimas fatais.
CONCLUSÃO
A Lei nº 9.503/97, introdutora do Código de Trânsito vigente, configura um micro-sistema, lei especial afeita a cuidar, especificamente, das questões atinentes ao trânsito, revogando, por isso, os dispositivos do Código Penal que oferecem tutela aos mesmos bens jurídicos.
O Código de Trânsito Brasileiro surge em um contexto, reiniciado com a Lei nº 9.099/95, de consideração da vítima. De alguma forma o espírito do Código Criminal do Império reencarna no código em exame. A vítima reassume papel na relação jurídico-penal, em oposição à tríade “delito, delinqüente e pena”, onde essa não tinha lugar.
Dentro do sistema erigido da tríade “delito, delinqüente e pena” não há lugar para a vítima. Esse acaba por informar o conceito de Direito Penal mínimo, onde a preocupação do Direito Penal se volta, sobretudo, para o caráter subsidiário desse ramo especializado. Por isso, as maiores preocupações enquanto plenamente vigente tal modelo, se dirigiu para a figura do agente delinqüente.
A não preocupação com a vítima, preterida pela figura do agente criminoso, demonstrou não ser plausível. Assim surgiram manifestações que culminaram com o cunhamento da locução vitimização em 1956 pelo professor Benjamin Mendelsohn.
O CTB veste-se dos objetivos da vitimização. Logo usa as roupas da proteção da vítima, o que é muito salutar. A Lei 9.503/97 demonstra grande preocupação com essa, o que pode ser percebido pela maior rechaçamento, em regra, dos tipos penais quando praticados a frente de um veículo automotor. Ainda assim certas condutas, a par da evidente lesividade, como os rachas, não foram proporcionalmente repelidas pelo nosso legislador.
Preocupação oposta da que pretendeu as escolas Clássica e Positiva pode ser percebida, também, no art. 297 do código em tela, em que se prevê a imposição de multa reparatória, consistente no pagamento em favor da vítima, ou seus sucessores, através de depósito judicial, nos casos em que o ato criminoso tenha desencadeado prejuízo material.
Tal previsão afigura-se muito salutar. Mais salutar seria se a medida realmente inovadora, a multa reparatória, não contrariasse a máxima do Princípio da Legalidade, que informa não haver “pena sem prévia cominação legal”.
Com o esquecimento da lógica dos preceitos – o restritivo jogo de premissas em que deve estar contido os preceitos punitivos – uma pena passou a fazer parte da cena jurídica nacional. O desdobramento natural foi suplantado, eis que se impõe conseqüência para um ato não identificável, identificação que pressupõe ser essencial em matéria penal.
A alusão que se fez ao Princípio da Legalidade impôs que se buscasse aferir da constitucionalidade da multa reparatória prevista no CTB. Assim apontou-se o entendimento de inconstitucionalidade esposado pelos professores William Terra de Oliveira, Paulo José da Costa Júnior, Maria Elizabeth Queijo e Damásio de Jesus, todos afeitos à idéia de que não se pode subverter o preceito máximo da inexistência de pena sem prévia cominação legal.
No sentido da constitucionalidade Luiz Flávio Gomes sustentou apontar a medida prevista no art. 297, apontamento que inferimos ter sido esposado com base no Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, com o qual seria possível se preterir, conforme anúncio de Daniel Sarmento, até mesmo um princípio.
Nosso entendimento, por fim, aponta no sentido de que a multa reparatória tem muito a acrescer à cena jurídica penal nacional, mas não merece subsistir nos termos em que foi assentada no art. 297 do CTB. É evidente que a vítima deve ser preocupação do Direito Penal, mas tal preocupação não pode ser fundamento para se “constitucionalizar” medida descompassada com a Constituição, ainda mais em um contexto de incontinência legislativa em que não se afigura difícil criar sistema penal em que preceito e pena estejam expressamente relacionados.
Juíza de Direito em Roraima. Doutoranda em Ciências Jurídicas e Sociais pela UMSA. Professora licenciada de Direito Penal da FACSUM. Pós-Graduada em Direito Público pela UNIGRANRIO. Associada ao CONPEDI – Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito. Bacharel em Direito pelo Instituto Vianna Júnior.
Mestrando em Direito Constitucional pela UNESA. Conferencista do CONPEDI. Professor da Escola de Administração Judiciária do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Bacharel em Direito pela Universidade Católica de Petrópolis. Concursado da Corregedoria-Geral da Justiça do Estado do Rio de Janeiro.
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