A natureza jurídica das decisões dos tribunais de contas na ótica da Constituição Federal de 1988

Resumo: O presente artigo examina a ótica adotada pela Constituição Federal de 1988 (CF/88) quanto à natureza jurídica das decisões do Tribunais de Contas. Em função do mandamento constitucional, adotando o princípio da inafastabilidade jurisdicional, sugere-se que as decisões do Tribunais de Contas não possuem natureza judicante, visto que o Poder Judiciário pode rever decisões administrativas, caracterizado pelo fato de dizer definitivamente o direito. Propõe identificar a origem dos Tribunais de Contas, a partir das Constituições Federais, descrevendo seu papel e a relação com os Poderes estabelecidos. Delimita as competências atribuídas as Cortes de Contas na atual Lei Maior. Busca, também, demonstrar através de julgados do Supremo Tribunal Federal (STF) a posição institucional das Cortes de Contas, bem como as divergências doutrinárias acerca da natureza jurídica das decisões desses órgãos colegiados. O referencial teórico-metodológico parte de uma abordagem qualitativa, pautado em pesquisa bibliográfica e documental. Como resultado dos estudos elencados, conclui-se que a natureza jurídica das decisões dos Tribunais de Contas reveste-se de caráter judicante, pois, a própria Constituição Federal de 1988 trouxe exceção ao monopólio do Poder Judiciário, assegurando as Cortes de Contas a competência para julgamento definitivo das contas dos responsáveis por dinheiros, bens e valores da Administração Pública.

Palavras-chave: tribunais de contas. Natureza jurídica. Jurisdição. Controle jurisdicional.

Abstract: This article examines the perspective adopted by the Constitution of 1988 as to the legal nature of the decisions of the Courts of Auditors. Depending on the constitutional law by adopting the Principle of Non-obviation Jurisdictional, it is suggested that the decisions of the Courts of Auditors have no adjudicative nature, since the judiciary can review administrative decisions, characterized by the fact definitely say the right. It proposes to identify the source of the Audit Courts, from the Federal Constitutions, describing its role and relationship with the established powers. Delimits the powers conferred on the Court of Accounts in the current Higher Law. Also seeks to demonstrate through trial of the Supreme Court, the institutional position of the Audit Courts and the doctrinal disagreements about the legal nature of the decisions emanating from these collegiate bodies. The theoretical and methodological framework of a qualitative approach, based on bibliographical and documentary research. As a result of the listed studies, it is concluded that the legal nature of the decisions of the Audit Court is of adjudicative character, for the very Republican Constitution of 1988 brought exception to the monopoly of the judiciary, ensuring the Audit Courts jurisdiction for final judgment of the accounts of those responsible for money, goods and values ​​of public administration.

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Keywords: audit courts. Juridic nature. Jurisdiction. Jurisdictional control.

SUMÁRIO: Introdução. 2. Origem dos Tribunais de Contas nas Constituições brasileiras. 3. As competências dos Tribunais de Contas na Constituição federal de 1988. 3.1. Competências de auxílio ao Poder Legislativo. 3.2. Competências exclusivas dos Tribunais de Contas. 4. Posição institucional dos Tribunais de Contas. 5. Natureza jurídica das decisões do Tribunais de Contas. 5.1. Natureza administrativa das decisões. 5.2. Natureza judicante das decisões. Conclusão. Referências.

INTRODUÇÃO

Por sua tradicionalidade, a presença dos Tribunais de Contas com seu mister constitucional é indispensável à Administração Pública, sendo conhecido por ser um órgão sui generis de controle externo que possui função fiscalizadora, corretiva, consultiva, normativa, informativa, sancionadora, judicante, ouvidora e pedagógica. A Corte de Contas, como a própria CF/88 diz, auxilia o Poder Legislativo nas atribuições que lhe são outorgadas, sem subordinação, não assessorando e nem se submetendo ao crivo de qualquer dos poderes, sendo independente. O estudo da concepção histórica mostra que os Tribunais de Contas já foram objetos de divergências, a exemplo da Constituição de 1937.

A discussão da natureza jurídica das decisões emanadas das Cortes de Contas tem um papel fundamental, não podendo ser relegada à condição de exclusão dentro do Direito Brasileiro. Por isso, esta pesquisa é de suma importância para a comunidade científica/acadêmica em geral, mostrando embasamento teórico sobre a questão se o Poder Judiciário pode rever por completo as decisões das Cortes de Contas e quais os efeitos acarretados pela definitividade ou não das mesmas.

A escolha da área e, sobretudo, do tema, deu-se pela importância do estudo do Direito Constitucional. Por isso, houve a necessidade de estudar esse órgão tão comentado, em voga, nos dias atuais pelo seu significado e importância para a sociedade.

O controle desempenha um papel fundamental, mostrando as irregularidades e as boas práticas através dos instrumentos de fiscalização. Estas estão envolvidas no universo da Administração Pública, na qual um Poder exerce o controle sobre outro através das competências outorgadas pela Carta Republicana.

Diante disso, este trabalho tem como foco investigar a natureza jurídica das decisões das Cortes de Contas brasileiras, a fim de entende-las e, mais especificamente, demonstrar uma dissidência doutrinária, já que parte dos estudiosos considera que as decisões emanadas das Cortes de Contas são administrativas (BALEEIRO, 1978; CRETELLA JÚNIOR, 1987; DECOMAIN, 2006) e outra parte considera que as decisões são de natureza judicante (ARAÚJO, 2010; FERNANDES, 2005; FAGUNDES, 1967; SANTOS, 2003).

Percebe-se, hoje, uma transformação na abordagem das decisões das Cortes de Contas, por isso, a proposta desta pesquisa sustenta-se no seguinte problema: Qual a ótica adotada pela Constituição Federal de 1988 quanto à natureza jurídica das decisões do Tribunais de Contas?

Compreende-se que, em função do mandamento constitucional no art. 5°, inciso XXXV, que as decisões dos Tribunais de Contas não possuem natureza judicante, visto que o Poder Judiciário pode rever decisões administrativas, caracterizado pelo fato de dizer definitivamente o direito, mesmo que as decisões não sejam emanadas de órgão integrante deste poder.

Entretanto, há divergências doutrinárias dispondo que a natureza das decisões da Corte de Contas pode revestir-se de definitividade quanto ao mérito, restando ao Poder Judiciário somente a análise quanto a legalidade ou ilegalidade das decisões.

O referencial téorico-metodológico deste trabalho parte de uma abordagem qualitativa com enfoque descritivo e interpretativo, pautado em pesquisa bibliográfica e documental. Subsidiam os argumentos aqui debatidos autores constitucionalistas e administrativistas, dentre eles estão Araújo (2010), Baleeiro (1978), Castro (2010), Cretella Júnior (1987), Decomain (2006) Fernandes (2005), Guerra (2007), Moreira Neto (2001) e Santos (2003).

O texto segue dividido em quatro seções. A primeira expõe um breve contexto histórico sobre os Tribunais de Contas nas Constituições brasileiras, bem como os aspectos do surgimento do controle externo no ordenamento jurídico pátrio, e de como se estrutura.

Na segunda seção é feito um apanhado sobre as funções dos Tribunais de Contas na Constituição Federal de 1988, distinguindo as competências de auxílio ao Poder Legislativo e exclusivas das Cortes, explicando como se dá cada atribuição no âmbito do controle externo.

A terceira seção categoriza a posição institucional dos Tribunais de Contas perante os poderes republicanos constituídos, explicando as correntes doutrinárias acerca de sua independência ou subordinação ao Parlamento. Além disso, são demonstrados julgados referentes ao posicionamento do Supremo Tribunal Federal quanto ao tema.

E por fim, na última seção, são feitas comparações qualitativas de dois entendimentos sobre as decisões das Cortes de Contas, sendo a primeira que as decisões são de natureza administrativa e a segunda que as decisões se revestem de natureza judicante.

2 ORIGEM DOS TRIBUNAIS DE CONTAS NAS CONSTITUIÇÕES BRASILEIRAS

No que tange a origem dos tribunais de contas nas constituições federais brasileiras, remonta-se a uma ideia estritamente republicana, visto que a Constituição de 1824, outorgada na época do Brasil Imperial, não previa a criação de um órgão independente para o controle das receitas e despesas públicas. Essa função fora atribuída à Assembleia-Geral, na qual possuía funções legislativas juntamente com a sanção do Imperador. Dentre as suas diversas funções, destacavam-se as relacionadas diretamente aos recursos públicos, como a fixação anual das despesas públicas e a repartição direta da contribuição aos cidadãos, à autorização para que o governo pudesse contrair empréstimos, o estabelecimento de meios para pagamento da dívida pública e a regular administração dos bens nacionais.

Pouco depois da proclamação da República e durante a instalação do Governo Provisório, Manuel Alves Branco, seguindo os modelos francês e belga, através do Decreto nº 966-A, de 7 novembro de 1890, propôs a criação de Tribunal de Contas para o exame, revisão e julgamento dos atos concernentes à receita e despesa da República. O artigo (art.) 11 deste Decreto dispunha que o Ministro da Fazenda deveria expedir regulamento, através de decreto especial, para estabelecer a organização e as funções do Tribunal de Contas.

Entretanto, apesar do apoio que o normativo teve do então ministro da Fazendo Ruy Barbosa, seu sucessor, sr. Tristão de Alencar Araripe, não deu continuidade ao projeto, extinguindo a comissão que iria regulamentar o respectivo Decreto.

Com a promulgação da Constituição de 1891, houve um salto no que se refere ao controle dos recursos públicos, especificamente quanto à criação da Corte de Contas, nos termos do art. 89 desta Lei Suprema.

“Art 89 – É instituído um Tribunal de Contas para liquidar as contas da receita e despesa e verificar a sua legalidade, antes de serem prestadas ao Congresso. Os membros deste Tribunal serão nomeados pelo Presidente da República, com aprovação do Senado, e somente perderão os seus lugares por sentença (BRASIL, 1891).”

No ano seguinte, o quarto Ministro da Fazenda do governo de Floriano Peixoto, sr. Inocêncio Serzedelo Corrêa, deu iniciativa ao Decreto nº 1.166, de 17 de dezembro de 1892, na qual dispunha sobre a jurisdição, competências e atribuições do Tribunal de Contas. Posteriormente, instalou-se o Tribunal de Contas da União, com sede em Brasília, no entanto, a instalação da Corte foi bastante dificultosa, conforme demonstra Castro (2010, p. 273):

“A história mostra que o tribunal enfrentou obstáculo difíceis, porque todos gostam de controlar, mas não gostam de ser controlados. Ao se tornar independente e emitir opiniões que desagradaram o Governo, o próprio Serzedello Corrêa foi instado a rever as competências e a autonomia do tribunal. Floriano Peixoto, segundo presidente republicano, encaminhou a ele minuta de decreto que reduziria a ação do tribunal. Não aceitando esta imposição, Serzedello Corrêa pediu demissão do cargo de Ministro da Fazenda.”

A Constituição de 1934, por sua vez, dedicou uma sessão específica ao Tribunal de Contas, prevista no Capítulo VI (Dos Órgãos de Cooperação nas Atividades Governamentais). Dentre suas atribuições, estavam a de acompanhar a execução orçamentária e julgar as contas dos responsáveis por dinheiros ou bens públicos, além daquelas contidas nos artigos 101 e 102, referentes aos Contratos sujeitos à registro e ao parecer prévio sobre as contas do presidente da República, respectivamente:

“Art. 99 – É mantido o Tribunal de Contas, que, diretamente, ou por delegações organizadas de acordo com a lei, acompanhará a execução orçamentária e julgará as contas dos responsáveis por dinheiros ou bens públicos.[…]

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Art. 101 – Os contratos que, por qualquer modo, interessarem imediatamente à receita ou à despesa, só se reputarão perfeitos e acabados, quando registrados pelo Tribunal de Contas. A recusa do registro suspende a execução do contrato até ao pronunciamento do Poder Legislativo. […]

Art. 102 – O Tribunal de Contas dará parecer prévio, no prazo de trinta dias, sobre as contas que o Presidente da República deve anualmente prestar à Câmara dos Deputados. Se estas não lhe forem enviadas em tempo útil, comunicará o fato à Câmara dos Deputados, para os fins de direito, apresentando-lhe, num ou noutro caso, minucioso relatório do exercício financeiro terminado (BRASIL, 1934, grifo nosso).” 

Nessa Carta Magna, os membros do Tribunal de Contas eram nomeados pelo Presidente da República, com aprovação do Senado Federal, tendo as mesmas garantias dos Ministros da Corte Suprema. Além disso, o órgão de Contas possuía, quanto à organização do seu Regimento Interno e da sua Secretaria, as mesmas atribuições dos tribunais do Poder Judiciário.

Essas funções permaneceram na Constituição Republicana de 1937, exceto quanto ao Parecer Prévio sobre as contas de Governo. Segundo Silva citado por Dal Pozzo (2010, p. 87), “[…] as contas do governo passaram a ser objeto de parecer-relatório, com aprovação por meio de decreto-lei do próprio Presidente da República.”

Quanto a nomeação dos Ministros do Tribunal de Contas, a Carta Suprema assegurou a competência do Presidente da República, com aprovação do Conselho Federal. Todavia, em 1945, foi aprovada a Lei Constitucional nº 9, na qual retirou a aprovação dos ministros pelo Conselho Federal, mantendo a indicação pelo chefe do Poder Executivo.

Já a Lei Maior de 1946 posicionou o Tribunal de Contas no âmbito do Poder Legislativo, alocado na Seção VI, que tratava do orçamento, diferentemente do que ocorrera na Constituição Federal de 1937, em que a Corte estava elencada no Poder Judiciário. A administração financeira, por sua vez, ficou a cargo do Congresso Nacional, com auxílio do Tribunal de Contas.

O rol de atribuições da Corte foi ampliado para abranger o julgamento da legalidade dos contratos, aposentadorias, pensões e também a emissão de parecer prévio sobre as contas anuais do Presidente da República. A escolha e aprovação de seus membros era de competência do Senado Federal, sendo posteriormente nomeados pelo Presidente da República, possuindo os mesmos direitos, garantias, prerrogativas e vencimentos dos Juízes do Tribunal Federal de Recursos.

Na Constituição Federal de 1967, adotou-se expressamente a distinção dos termos “Controle Interno” e “Controle Externo”, ampliando a fiscalização. Segundo o art. 71 da Carta Magna, o controle externo ficaria a cargo do Congresso Nacional, tendo auxílio do Tribunal de Contas para atribuições de apreciação das contas do Presidente da República, o desempenho das funções de fiscalização financeira e orçamentária, o julgamento das contas dos administradores e demais responsáveis por bens e valores públicos, além de dar parecer prévio sobre as contas do chefe do Poder Executivo.

Diante disso, na análise dos aspectos anteriores à Constituição de 1967, Castro (2010, p. 273) descreve a atuação dos Tribunais através do controle prévio, estabelecidos pela Carta Maior:

“Até 1967, os Tribunais de Contas no Brasil praticavam o controle prévio. Todos os empenhos e contratos, onerando os orçamentos públicos, tinham de ser autorizados previamente pelos Tribunais. Esta prática tornou-se obsoleta, porque o volume de decisões a serem tomadas, em pouco tempo, cresceu de tal forma que os Tribunais de Contas não puderam mais responder à necessidade de aprovar ou reprovar previamente os empenhos.”

A auditoria financeira e orçamentária sobre as contas das unidades administrativas dos três poderes da União foi introduzida no ordenamento jurídico através do art. 71, §3º, que inovou expressamente ao ampliar a fiscalização no âmbito dos poderes legislativo e judiciário, bem como nas autarquias vinculadas a qualquer dos poderes da União.

Segundo Guerra (2007, p. 156) “a Carta de 1967 diminuiu o papel atribuído às Cortes de Contas, restando que o regime autoritário dominante à época não poderia mesmo conviver com um órgão detentor de atribuições de fiscalização e controle das contas públicas.”

O Tribunal de Contas da União (TCU) foi mantido no capítulo que trata do Poder Legislativo, posicionando-se na Seção referente à Fiscalização Financeira e Orçamentária (Seção VII). As nomeações dos Ministros do TCU continuaram sendo feitas pelo presidente da República, depois de aprovada a escolha pelo Senado Federal. Além disso, foram incluídos requisitos de idade mínima – trinta e cinco anos – e idoneidade moral, bem como notórios conhecimentos jurídicos, econômicos, financeiros ou de administração pública.

Nessa Carta Suprema, separou-se a sustação de ato ou contrato quando verificada ilegalidade. As alíneas “a” e “b”, § 5º, do art. 73, dispuseram que o Tribunal de Contas deveria assinar prazo razoável para que o órgão da Administração Pública adotasse providências necessárias ao exato cumprimento da lei, e no caso de não atendimento, deveria de ofício, sustar a execução do ato. E quanto aos contratos, o Tribunal deveria solicitar ao Poder Legislativo a sustação, se não fossem atendidas as recomendações daquele órgão, em função do preceito da alínea “c” do mesmo dispositivo legal.

“Art 73 – O Tribunal de Contas tem sede na Capital da União e jurisdição em todo o território nacional.[…]

§ 5º – O Tribunal de Contas, de ofício ou mediante provocação do Ministério Público ou das Auditorias Financeiras e Orçamentárias e demais órgãos auxiliares, se verificar a ilegalidade de qualquer despesa, inclusive as decorrentes de contratos, aposentadorias, reformas e pensões, deverá:

a) assinar prazo razoável para que o órgão da Administração Pública adote as providências necessárias ao exato cumprimento da lei;

b) no caso do não atendimento, sustar a execução do ato, exceto em relação aos contratos;

c) na hipótese de contrato, solicitar ao Congresso Nacional que determine a medida prevista na alínea anterior, ou outras que julgar necessárias ao resguardo dos objetivos legais (BRASIL, 1967).”

No que se refere a Emenda Constitucional nº 1/1969, inovou-se ao inserir a atuação dos Tribunais de Contas dos Estados e do Distrito Federal, visto que as Cartas anteriores não dispuseram de forma expressa. O § 3º do art. 16 dispôs sobre a criação de Tribunais para análise das contas dos municípios, desde que cumpridos os requisitos de população superior a dois milhões de habitantes e renda tributária acima de quinhentos milhões de cruzeiros novos.

Instituiu-se também a atribuição de as Cortes de Contas realizarem os cálculos das cotas estaduais e municipais a que os entes federados têm direito, atribuição mantida na Constituição de 1988.

Cabe destacar também que a Emenda Constitucional nº 07, de 13 de abril de 1977, trouxe uma importante alteração no que tange ao Tribunal de Contas, trazendo em seu art. 72, § 7º, exame de legalidade e concessão inicial de aposentadorias, reformas e pensões. Entretanto, essas apreciações dos Tribunais de Contas poderiam ser ignoradas, visto que o § 8º deste mesmo artigo dispunha que o chefe do poder executivo poderia dar continuidade a esses atos, independentemente de sua legalidade.

“Art. 72. […]

§ 7º O Tribunal de Contas apreciará, para fins de registro, a legalidade das concessões iniciais de aposentadorias, reformas e pensões, independendo de sua apreciação as melhorias posteriores.

§ 8º O Presidente da República poderá ordenar a execução ou o registro dos atos a que se referem o parágrafo anterior e alínea b do § 5º ad referendum do Congresso Nacional (BRASIL, 1977).”

Logo, o Poder Constituinte à época diminuiu as funções dos Tribunais de Contas asseguradas ao longo da história, reforçando o caráter inicial da discricionariedade na aplicação dos recursos públicos, proposto no início do governo republicano.

Finalmente, a Constituição Cidadã de 1988 instituiu um marco a respeito das competências e atribuições das Cortes de Contas, ampliando-as e promovendo-as a um patamar técnico, não apenas com exames de legalidade, mas também de legitimidade, economicidade, eficiência, eficácia, efetividade no exercício auxiliar do controle externo brasileiro.

3 AS COMPETÊNCIAS DOS TRIBUNAIS DE CONTAS NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988

Segundo Guerra (2007, p. 170), “competência é o feixe de atribuições reservadas a determinado órgão, entidade ou servidor, propiciando a estes a titularização do poder e a consequente capacidade de exercer suas funções.”

A Carta Republicana de 1988 assegurou novas competências aos Tribunais de Contas e manteve outras estabelecidas nas Constituições anteriores. O rol de competências dadas às Cortes de Contas pela atual Carta Magna possui eficácia plena, justamente pelo fato do constituinte não deixar ofuscadas funções precípuas perante a legislação infraconstitucional, assegurando que as mesmas pudessem ser aplicadas de forma imediata e autônoma, garantindo assim, que suas funções pudessem ser exercidas independentemente dos demais poderes.

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Historicamente, no exercício de suas atribuições, os Tribunais de Contas possuíam competências secundárias ou subsidiárias, atuando em caráter auxiliar à função fiscalizatória típica do Poder Legislativo, com o objetivo de resguardar a opinião técnica para qual a Corte de Contas foi criada. Por conseguinte, as competências primárias ou exclusivas nasceram com o objetivo de assegurar uma análise técnica independente, atuando através de ajuda mútua ao controle interno, e de forma desvinculada dos Poderes da República.

3.1 COMPETÊNCIAS DE AUXÍLIO AO PODER LEGISLATIVO

Uma das principais competências destinadas aos Tribunais de Contas e que perdurou até os dias atuais é a apreciação das contas prestadas pelo presidente da República, e por analogia, aos governadores e prefeitos vinculados ao respectivo Poder Legislativo, conforme artigos 71, inciso I, e 75, caput, da Carta de 1988:

“Art. 71. O controle externo, a cargo do Congresso Nacional, será exercido com o auxílio do Tribunal de Contas da União, ao qual compete:

I – apreciar as contas prestadas anualmente pelo Presidente da República, mediante parecer prévio que deverá ser elaborado em sessenta dias a contar de seu recebimento;[…]

Art. 75. As normas estabelecidas nesta seção aplicam-se, no que couber, à organização, composição e fiscalização dos Tribunais de Contas dos Estados e do Distrito Federal, bem como dos Tribunais e Conselhos de Contas dos Municípios(BRASIL, 1988, grifo nosso).”

A opinião técnica no parecer prévio subsidia o julgamento pelos membros das casas legislativas, visto que, sendo estes os representantes do povo aprovando ou reprovando as contas do chefe do Poder Executivo, devem se utilizar de parecer eminentemente técnico das Cortes de Contas para auxiliar e fundamentar na análise política precípua daquele Poder.

Ressalta-se que a aprovação das contas anuais pelo Poder Legislativo não inibe eventuais ações nas esferas cível e criminal, em função da independência destes e da proteção dos recursos públicos, podendo haver responsabilização caso haja descumprimento dos preceitos constitucionais e legais pelo agente ordenador de despesas.

Outra competência dos Tribunais de Contas na atual Lei Maior e já inseridas em outras Constituições é a realização de inspeções e auditorias, por iniciativa própria, da Câmara dos Deputados, do Senado Federal, de comissão técnica ou de inquérito, em órgãos e entidades que trabalhem, de qualquer forma, com recursos públicos (BRASIL, 1988).

Desde a Lei Maior de 1967, havia a indicação de instrumentos para assegurar a atuação do controle externo, dentre elas estavam os instrumentos de inspeção e auditoria. Segundo Guerra (2007, p. 176), “inspeção é o instrumento de fiscalização e controle atribuído ao Tribunal de Contas no escopo de suprir omissões, esclarecer fatos, comprovar declarações prestadas ou apurar denúncia relativa a ato praticado no âmbito de suas atribuições.”

Destaca-se ainda o conceito de Auditoria, sendo o:

“Exame analítico e pericial, desenvolvido pelas Cortes de Contas, que se segue ao desenvolvimento das operações. É o procedimento voltado à verificação e avaliação dos sistemas adotados, visando minimizar os erros ou desvios cometidos na gerência da coisa pública (GUERRA, 2007, p. 176).”

A utilização destes instrumentos relaciona-se intimamente com o art. 71, inciso VII da Constituição de 1988, ao informar sobre a competência dos Tribunais de Contas quanto a prestação de informações solicitadas pelo Poder Legislativo sobre a fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial. Observa-se o caráter auxiliar assegurado ao Parlamento, com o objetivo de resguardar a opinião técnica necessária à fiscalização dos bens públicos.

3.2 COMPETÊNCIAS EXCLUSIVAS DO TRIBUNAL DE CONTAS

A Constituição atual elenca, dentre as variadas competências de controle externo e fiscalizações reservadas aos Tribunais de Contas, a atribuição de apreciar a legalidade dos atos de admissão de pessoal, a qualquer título, disposta no art. 71, inciso III. Essa competência resulta na combinação ao art. 37, II, do mesmo diploma legal, que sujeita a Administração Pública à realização de concurso público para o exercício dos cargos de provimento efetivo.

“Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998).[…]

II – a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos, de acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego, na forma prevista em lei, ressalvadas as nomeações para cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998).

Art. 71. […]

III – apreciar, para fins de registro, a legalidade dos atos de admissão de pessoal, a qualquer título, na administração direta e indireta, incluídas as fundações instituídas e mantidas pelo Poder Público, excetuadas as nomeações para cargo de provimento em comissão, bem como a das concessões de aposentadorias, reformas e pensões, ressalvadas as melhorias posteriores que não alterem o fundamento legal do ato concessório (BRASIL, 1988).”

Contudo, excluem-se desta competência as nomeações para o cargo de provimento em comissão, justamente por ser de livre nomeação e exoneração, sendo as aposentadorias, reformas e pensões dos cargos efetivos atreladas ao Regime Próprio de Previdência Social, necessitando, portanto, de apreciação para fins de registro, conforme preceito constitucional.

No Item II do art. 71, o Texto Maior informa sobre a atribuição das Cortes de Contas quanto ao julgamento das contas de todos os agentes responsáveis por dinheiros, bens e valores públicos de qualquer órgão ou entidade pública, bem como daqueles que derem causa a perda, extravio ou outra irregularidade de que resulte prejuízo ao erário.

O inciso V do artigo supracitado dispõe sobre a fiscalização dos recursos públicos de empresas que possuem participação de dois ou mais países, observando que a fiscalização no exterior necessita seguir as regras de direito internacional, em virtude da soberania das nações. Como exemplo, o Tribunal de Contas da União (TCU) não possui competência para fiscalizar a Hidrelétrica de Itaipu, em função do Tratado Brasil-Paraguai. Entretanto, caso seja acordado no Conselho de Administração da empresa a necessidade de inspeções ou auditorias pelo Tribunal de Contas da União, o mesmo poderá fazê-lo.

As Cortes de Contas, com fulcro no inciso IV, art. 71, possuem competências de fiscalização dos recursos repassados pela União aos demais entes federativos, através de convênio, acordo, ajuste ou outros instrumentos congêneres. Guerra (2007, p. 182) conceitua convênio como “um dos instrumentos de que se utiliza o Estado para associar-se com entidades públicas ou privadas, diferenciando-se do contrato quanto às vontades das partes.”

No referido dispositivo, há dever de fiscalização do Tribunal de Contas do ente repassador de recursos, incluindo não somente os órgãos, entidades e pessoas receptoras, como também os agentes responsáveis pela gerência do dinheiro público.

Como consequência da fiscalização a ela inerente, a Corte de Contas pode aplicar sanções estabelecidas em lei. O inciso VIII do artigo acima mencionado deixa a cargo do legislador infraconstitucional as sanções, sendo uma delas a multa proporcional ao dano causado ao erário.

A função corretiva dos Tribunais de Contas está demonstrada no inciso IX, ao facultar a fixação de prazos para adoção de providências necessárias ao cumprimento da lei, caso haja ilegalidade. Posteriormente, caso não seja adotada as providências, os Tribunais de Contas podem sustar a execução do ato impugnado, conforme item X, comunicando a decisão ao Poder Legislativo respectivo.

Quanto aos contratos, o § 2º do art. 71 define que a competência para sustação é do Congresso Nacional. Entretanto, caso aquela Casa não solicite medidas ao Poder Executivo, ou este não as adote no prazo de noventa dias, o Tribunal de Contas da União poderá determinar a sustação do contrato.

Em função da analogia adotada no caput do art. 75, os Tribunais de Contas dos Estados e do Distrito Federal, bem como os Tribunais e Conselhos de Contas dos Municípios, poderão exercer essas competências no âmbito de sua jurisdição, juntamente com a casa legislativa na qual auxilia.

Finalmente, o inciso XI do art. 71 dispõe que o Tribunal de Contas deverá “representar ao Poder competente sobre irregularidades ou abusos apurados” (BRASIL, 1988). Essa competência decorre da responsabilidade quanto aos fatos que ultrapassarem o âmbito de fiscalização das Cortes de Contas. Quando verificada a existência de crime ou ato de improbidade administrativa, o Tribunal informará ao Ministério Público, órgão competente para apuração dos fatos.

Assim, as competências exclusivas formam o aparato instrumental único outorgado pelo texto constitucional aos Tribunais de Contas, fazendo com que o exercício de sua função estatal alcance um padrão de qualidade almejado pela nação brasileira, objetivando o sentido finalístico na qual lhe foram dadas essas atribuições.

4 POSIÇÃO INSTITUCIONAL DOS TRIBUNAIS DE CONTAS

Esse é um tema que gera discussão há bastante tempo, em função dos diversos entendimentos que a doutrina sugere para o art. 71 da Constituição Republicana de 1988. Acrescenta-se ainda o entendimento de diversos juristas sobre a posição institucional das Cortes de Contas como Órgão independente ao Poder Legislativo ou subordinado a este.

Convém comentar que o art. 71 da Lei Suprema, em uma interpretação sistemática, informa que o controle externo, a cargo do Congresso Nacional, será exercido com o auxílio do Tribunal de Contas, ou seja, o constituinte designou como órgão de fiscalização política o Congresso Nacional, resguardando o Tribunal de Contas para as fiscalizações técnicas.

Os instrumentos próprios dos trabalhos realizados pelas Cortes de Contas, como as inspeções e auditorias sugerem que os procedimentos são próprios de órgão de fiscalização, tal qual de controle externo, no caso em tela, caracterizando também a natureza independente dos Tribunais de Contas.

As próprias competências concedidas pela Carta Cidadã na seção que trata da fiscalização contábil, financeira e orçamentária sugerem essa autonomia. Entretanto, o entendimento e alcance do trecho “será exercido com auxílio do Tribunal de Contas da União” ainda causa divergências no que tange a posição institucional do órgão. A discussão principal envolve aqueles que afirmam ser as Cortes de Contas integrantes do Poder Legislativo e parte da doutrina que entende ser estes órgãos independentes.

Um dos expoentes da primeira corrente, o administrativista Carvalho Filho (2010, p. 599) diz que “o Tribunal de Contas é o Órgão integrante do Congresso Nacional que tem função constitucional de auxiliá-lo no controle financeiro externo da Administração Pública […].”

Ainda, Cretella Júnior (1987, p. 183), em análise histórica sobre as Cortes, bem como na discussão da atual Constituição, informa que “o Tribunal de Contas é preposto do Poder Legislativo, encarregado da fiscalização orçamentária.”

Os referidos autores se coadunam no entendimento que os Tribunais de Contas, por estarem inseridos na Constituição da República de 1988, mais especificamente no Capítulo I, do Título IV, que trata do Poder Legislativo, faria parte deste.

Baleeiro (1978, p. 435), ao fazer um estudo sobre a Lei nº 4.320/64 e as finanças públicas no Brasil, sustentou a subordinação dos Tribunais de Contas ao Poder Legislativo:

“O Tribunal de Contas, no sistema de freios e contrapesos da Constituição, é instrumento técnico do Congresso. O fato de que, no texto constitucional, está incluído em uma das seções do capítulo reservado ao “Poder Legislativo”, onde se traçam suas linhas gerais e suas atribuições, basta para filiá-lo ao Congresso.”

Além disso, após a criação da Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar nº 101/2000), o argumento desses autores fortificou-se, visto que o art. 20 desta Lei, na qual trata da repartição das despesas totais com gastos de pessoal, dispôs que dentro dos percentuais do Poder Legislativo estariam incluídos os limites destinados aos Tribunais de Contas. Também, na Lei Orçamentária Anual, as dotações dos Tribunais de Contas estariam inseridas juntamente com as do Poder Legislativo.

Já para a corrente majoritária, os Tribunais de Contas somente auxiliam o Congresso Nacional quanto ao exercício de suas competências constitucionais, sendo, entretanto, órgãos independentes.

Conforme preleciona Santos (2003, p. 63):

“Deste modo, demonstra-se razoável a linha de entendimento que acolhe a tese de que os Tribunais de Contas são órgãos autônomos, cuja jurisdição e competência advém diretamente do texto constitucional, mas que exercem tanto funções jurisdicionais propriamente ditas quanto funções meramente administrativas.”

A concepção de que os Tribunais de Contas não integram o Poder Legislativo advém do art. 44 da Carta Magna, dispondo que este é “exercido pelo Congresso Nacional, integrado pela Câmara dos Deputados e Senado Federal” (BRASIL, 1988).

O Supremo Tribunal Federal pronunciou-se diversas vezes, aceitando o argumento da independência institucional dos Tribunais de Contas, como na ADIn nº 1.140-5, de relatoria do Ministro Sydney Sanches:

“EMENTA: DIREITO CONSTITUCIONAL. TRIBUNAL DE CONTAS DO ESTADO: COMPETÊNCIAS RESERVADAS. ASSEMBLÉIA LEGISLATIVA. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE DE TEXTOS DE LEI COMPLEMENTAR E DA CONSTITUIÇÃO DO ESTADO DE RORAIMA. ALEGAÇÃO DE VIOLAÇÃO AOS ARTIGOS 49, IX, 71, I E II, 73, "CAPUT" E 96, C/C ARTIGO 75 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL.[…]

Não são, entretanto, as Cortes de Contas órgãos subordinados ou dependentes do Poder Legislativo, tendo em vista que dispõem de autonomia administrativa e financeira, nos termos do art. 73, caput, da Constituição Federal, que lhes confere as atribuições previstas em seu art. 96, relativas ao Poder Judiciário.[…](STF, ADI 1140, Relator Min. SYDNEY SANCHES, Tribunal Pleno, julgado em 03/02/2003, DJ 26-09-2003 PP-00004 EMENT VOL-02125-01 PP-00032)”

Dispõe, também, o Ministro Celso de Mello na ADIn nº 4.190:

“EMENTA: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE – ASSOCIAÇÃO DOS MEMBROS DOS TRIBUNAIS DE CONTAS DO BRASIL (ATRICON) – ENTIDADE DE CLASSE DE ÂMBITO NACIONAL – LEGITIMIDADE ATIVA "AD CAUSAM" – AUTONOMIA DO ESTADO-MEMBRO – A CONSTITUIÇÃO DO ESTADO- -MEMBRO COMO EXPRESSÃO DE UMA ORDEM NORMATIVA AUTÔNOMA – LIMITAÇÕES AO PODER CONSTITUINTE DECORRENTE – IMPOSIÇÃO, AOS CONSELHEIROS DO TRIBUNAL DE CONTAS, DE DIVERSAS CONDUTAS, SOB PENA DE CONFIGURAÇÃO DE CRIME DE RESPONSABILIDADE, SUJEITO A JULGAMENTO PELA ASSEMBLÉIA LEGISLATIVA – PRESCRIÇÃO NORMATIVA EMANADA DO LEGISLADOR CONSTITUINTE ESTADUAL – FALTA DE COMPETÊNCIA DO ESTADO-MEMBRO PARA LEGISLAR SOBRE CRIMES DE RESPONSABILIDADE – COMPETÊNCIA LEGISLATIVA QUE PERTENCE, EXCLUSIVAMENTE, À UNIÃO FEDERAL – PROMULGAÇÃO, PELA ASSEMBLÉIA LEGISLATIVA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO, DA EC Nº 40/2009 – ALEGADA TRANSGRESSÃO AO ESTATUTO JURÍDICO-INSTITUCIONAL DO TRIBUNAL DE CONTAS ESTADUAL E ÀS PRERROGATIVAS CONSTITUCIONAIS DOS CONSELHEIROS QUE O INTEGRAM – MEDIDA CAUTELAR REFERENDADA PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ATRICON – ENTIDADE DE CLASSE DE ÂMBITO NACIONAL – PERTINÊNCIA TEMÁTICA – LEGITIMIDADE ATIVA "AD CAUSAM" […] Os Tribunais de Contas ostentam posição eminente na estrutura constitucional brasileira, não se achando subordinados, por qualquer vínculo de ordem hierárquica, ao Poder Legislativo, de que não são órgãos delegatários nem organismos de mero assessoramento técnico. A competência institucional dos Tribunais de Contas não deriva, por isso mesmo, de delegação dos órgãos do Poder Legislativo, mas traduz emanação que resulta, primariamente, da própria Constituição da República. […] (STF, ADI 4190 MC-REF, Relator Min. CELSO DE MELLO, Tribunal Pleno, julgado em 10/03/2010, DJe-105 DIVULG 10-06-2010 PUBLIC 11-06-2010 EMENT VOL-02405-02 PP-00313 RTJ VOL-00213- PP-00436 RT v. 100, n. 911, 2011, p. 379-404).”

Essa corrente majoritária alega que, em nenhum momento, apesar da colocação dos Tribunais de Contas na parte referente ao poder legislativo, que o mesmo integra este Poder. Sustentam que a única competência em que poderia residir interpretação quanto a essa hierarquia seria a do art. 71, inciso I, da Carta Cidadã, visto que a apreciação das contas prestadas anualmente pelo chefe do Poder Executivo não acarretaria uma definitividade na opinião das Cortes de Contas, sujeitando também a uma revisão da Casa Legislativa da unidade federada a qual reside à jurisdição.

Ressalta-se também que o Poder Legislativo realiza o Controle Externo de forma política, e os Tribunais de Contas o fazem utilizando critérios técnicos necessários ao atingimento da finalidade para a qual foi criado.

Maranhão citado por Melo (1990, p. 102) explica a competência das Cortes de Contas quanto aos Poderes Constitucionalmente estabelecidos:

“Em relação ao Poder Executivo a função do Tribunal de Contas é de controle e revisão. […] Relativamente ao Poder Legislativo que, além de legislar, tem amplo poder de fiscalização, o Tribunal de Contas coopera tecnicamente na realização do Controle Externo. Quanto ao Poder Judiciário tem com ele similitudes. Como órgão, tem composição não idêntica, mas semelhante. Os ministros do Tribunal de Contas têm os mesmos direitos, garantias e impedimentos dos Magistrados do Poder Judiciário.”

Já Dal Pozzo (2010, p. 101-102) sustenta três correntes a respeito da posição institucional dos Tribunais de Contas:

“Sobre essa temática, verificam-se três posicionamentos, e assim não poderia deixar de ser, tendo em conta a teoria da separação dos Poderes: os que entendem que o Tribunal de Contas é órgão pertencente ao Poder Judiciário (primeira corrente); aqueles que pretendem ser ele um órgão do Poder Executivo (segunda corrente); e ainda aqueles que o concebem como parte integrante do Parlamento ou Poder Legislativo (terceira corrente).”

Deve-se fazer algumas observações quanto a esses três posicionamentos. A discussão sobre inserção das Cortes de Contas no âmbito do Poder Judiciário é ultrapassada, sobretudo pela classificação dos órgãos deste Poder insculpidos no art. 92 da Constituição de 1988, além da simetria do art. 73, ao estabelecer que se aplicam aos Tribunais de Contas as normas de organização própria de todos os tribunais judicantes. Não cabe aceitar esse posicionamento mesmo que a Constituição assegure prerrogativas, impedimentos, vencimentos e vantagens aos membros das Cortes de Contas semelhantes às dadas aos integrantes do Judiciário. Nem a discussão exposta neste artigo, acerca da competência julgadora dos Tribunais de Contas, os colocam no âmbito deste Poder.

Quanto à vinculação ao Poder Executivo, é incompatível a atribuição típica dos Tribunais de Contas, qual seja, a de auxiliar o Legislativo no exercício do controle externo, com as atividades do Poder na qual são realizadas a nobre atividade de administrar os recursos públicos, assegurando sua correta aplicação.

Além do mais, na interpretação sistemática do art. 74 da Lei Suprema, a criação do sistema de controle interno de cada Poder, sobretudo no inciso IV, proporcionando o apoio ao controle externo no que tange ao exercício de sua missão institucional, sustenta a independência dos Tribunais de Contas.

Observa-se também a opinião de Moreira Neto (2001, p. 12), no sentido de que houve erro na alocação das competências e atribuições das Cortes de Contas dentro do capítulo referente ao Poder Legislativo, em virtude do dever de inserção na parte que trata das Funções Essenciais à Justiça:

“O processo organizativo do poder está longe se ter esgotado no moderno constitucionalismo, e vai prosseguindo, a destacar novas funções específicas, que passam a ser desempenhadas por órgãos, mas que não mais se incluem nos três complexos orgânicos que são denominados, por metonímia tradicional, de Poderes, porque exercem o que eram antes as únicas, mas hoje restam apenas como as mais importantes segmentações do Poder do Estado (ou os “Poderes da União” como está no art. 2º, CF).

Os Tribunais de Contas são, assim, um nítido exemplo desse fenômeno, no contexto da ordem jurídica brasileira, mas, do mesmo modo, também o são as Funções Essenciais à Justiça, com ênfase no complexo orgânico do Ministério Público.”

Através das análises de diversos autores sobre a posição institucional dos Tribunais de Contas, sugere-se a sua classificação como órgão independente, sendo que sua alocação deva se dar em um capítulo específico na Lei Maior como Função Essencial ao Estado ou como ocorreu na Constituição da República de 1934, classificando-os como Função Essencial à Atividade Governamental, já que a própria finalidade republicana de criação deste órgão, além da interpretação teleológica do ordenamento jurídico, sujeita a esse entendimento.

5 NATUREZA JURÍDICA DAS DECISÕES DOS TRIBUNAIS DE CONTAS

Segundo Diniz (2004, p. 30), “natureza Jurídica é a afinidade que um instituto tem em diversos pontos, com uma grande categoria jurídica, podendo nela ser incluído o título de classificação.”

A cada instituição de um Poder Constituinte Originário, há discussões no que se refere à natureza jurídica das funções atribuídas a órgãos elencados na Carta Maior vigente. A discussão atual insere-se na interpretação do termo “julgar” descrito no art. 71, inciso II, da Lei Maior, e se essa disposição está em consonância ao art. 5º, inciso XXXV, no qual dispõe que a “Lei não excluirá da apreciação lesão ou ameaça a direito” (BRASIL, 1988).

Observa-se também, quanto à discussão adotada ser restrita somente às contas daqueles que possuem atribuição de utilização, arrecadação, guarda, gerência ou administração de dinheiro, bens e valores públicos, não devendo ser ampliada aos outros incisos do art. 71, visto que não há adoção explícita, e muito menos implícita, de expressão judicante ou quaisquer palavras relacionadas.

5.1 NATUREZA ADMINISTRATIVA DAS DECISÕES

Parte da doutrina entende que a natureza jurídica das decisões dos Tribunais de Contas reveste-se de caráter administrativo. O principal argumento leva em conta o monopólio jurisdicional adotado pelo art. 5º, inciso XXXV, da Constituição de 1988, na qual dispõe que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito” (BRASIL, 1988).

A sustentação de que o Brasil não adotou um contencioso administrativo equipara-se ao entendimento no sentido de estabelecer semelhança entre as decisões das Cortes de Contas com as de determinados órgãos colegiados do Poder Executivo, como o Tribunal Marítimo, Conselho Administrativo de Defesa Econômica, Comissão de Valores Mobiliários, Junta Administrativa de Recursos de Infrações de Trânsito e Conselho de Contribuintes do Ministério da Fazenda.

Para um melhor entendimento do assunto, Decomain (2006, p. 159) explica como se dá o exercício da jurisdição no Brasil e comenta um dos aspectos essenciais para que um órgão possa efetivamente dizer o direito:

“Distingue-se a atuação dos Tribunais de Contas, portanto, também nessa perspectiva de que, embora possa ocorrer por provocação de algum interessado, viável é que se dê também por iniciativa da própria Corte, o que na jurisdição não acontece. E mesmo quando os Tribunais de Contas atuam a partir da provocação de algum interessado, este nem sempre precisa ser a pessoa que, no caso da jurisdição, por estar envolvida no conflito, é, salvo exceções legalmente previstas, a única legitimada a buscar o socorro dos órgãos jurisdicionais.”

Ao criticar o termo “jurisdição” descrito no caput do art. 73 da Carta Republicana de 1988, Decomain (2006, p. 164) comenta que “imparcialidade e passividade, portanto, como requisitos da jurisdição, podem existir também no âmbito daqueles órgãos incluídos na estrutura orgânica do Poder Executivo, aos quais incumbe a prolação de decisões em determinadas matérias.”

Ressalta-se também que, na relação de órgãos do Poder Judiciário e nas Funções Essenciais à Justiça elencadas nos capítulos III e IV do Título que trata da organização dos poderes na Constituição de 1988, respectivamente, os Tribunais de Contas não estão nelas inseridos.

O Superior Tribunal de Justiça (STJ) posicionou-se, comentando, inclusive, aspectos da exclusão dos Tribunais de Contas dentre os órgãos do Poder Judiciário:

EMENTA: PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. AÇÃO DE IMPROBIDADE. RECEBIMENTO DA INICIAL. AGRAVO DE INSTRUMENTO. APROVAÇÃO DAS CONTAS PELO TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO. ART. 21, INC. II, DA LEI Nº 8.429/92. NÃO VINCULAÇÃO FRENTE AO PODER JUDICIÁRIO. POSSIBILIDADE DE IMPUGNAÇÃO VIA AÇÃO DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. FALTA DE PREQUESTIONAMENTO (ARTS. 267, INCS. I e VI e 295, INC. I E PAR. ÚNICO, INCS. I e III, DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL). INOVAÇÃO EM SEDE DE EMBARGOS DE DECLARAÇÃO.

1. O Controle exercido pelo Tribunal de Contas, não é jurisdicional, por isso que não há qualquer vinculação da decisão proferida pelo órgão de controle e a possibilidade de ser o ato impugnado em sede de ação de improbidade administrativa, sujeita ao controle do Poder Judiciário, consoante expressa previsão do art. 21, inc. II, da Lei nº 8.429/92. Precedentes: REsp 285305/DF, Primeira Turma, julgado em 20/11/2007, DJ 13/12/2007 p. 323; REsp 880662/MG, Segunda Turma, julgado em 15/02/2007, DJ 01/03/2007 p. 255; REsp 1038762/RJ, Segunda Turma, julgado em 18/08/2009, DJe 31/08/2009. […]

5. […] Acrescente-se que a atuação do TCU, na qualidade de Corte Administrativa não vincula a atuação do Poder Judiciário, nos exatos termos do art. 5º, inciso XXXV, CF.88, segundo o qual, nenhuma lesão ou ameaça de lesão poderá ser subtraída da apreciação do Poder Judiciário. (fls. 1559).

6. A natureza do Tribunal de Contas de órgão de controle auxiliar do Poder Legislativo, decorre que sua atividade é meramente fiscalizadora e suas decisões têm caráter técnico-administrativo, não encerrando atividade judicante, o que resulta na impossibilidade de suas decisões produzirem coisa julgada e, por consequência não vincula a atuação do Poder Judiciário, sendo passíveis de revisão por este Poder, máxime em face do Princípio Constitucional da Inafastabilidade do Controle Jurisdicional, à luz do art. 5º,inc. XXXV, da CF/88.

7. […] Além disso, como o Tribunal de Contas não faz parte do Poder Judiciário, as suas decisões não têm forma de coisa julgada, sendo sempre passíveis de revisão pelo Poder Judiciário, com fundamento no artigo 5º, inciso XXV, da Constituição. […]

12. Recurso Especial parcialmente conhecido e, nesta parte, desprovido. (STJ, Primeira Turma, REsp 1032732/CE. Relator: Min. Luiz Fux. Julgamento em 19/11/2009. Publicado no DJe de 03/12/2009, grifos nossos).”

Entretanto, o Ministro Relator Luiz Fux, pouco tempo depois de ser escolhido para integrar o Supremo Tribunal Federal, mudou seu posicionamento no julgamento da Reclamação (Rcl 15216/RJ), em função da Corte Suprema se posicionar em sentido contrário:

“1. RECLAMAÇÃO. ALEGAÇÃO DE OFENSA À ADI Nº 1.779, JULGADO QUE SE LIMITOU A RECONHECER A NECESSIDADE DE OS TRIBUNAIS DE CONTAS LOCAIS OBSERVAREM O MODELO FEDERAL APLICÁVEL AO TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO, CONSOANTE PREVISTO NA CARTA DE 1988. INOCORRÊNCIA DA ALEGADA VIOLAÇÃO, PORQUANTO A CONTROVÉRSIA NOTICIADA NESTES AUTOS NÃO VERSA O TEMA APRECIADO NA REFERIDA ADI. 2. IN CASU, A RECLAMAÇÃO IMPUGNA O RECEBIMENTO DE INICIAL DE AÇÃO DE IMPROBIDADE CONTRA ATO DE PREFEITO, SOB A ALEGAÇÃO DE QUE AS CONTAS TERIAM SIDO APROVADAS PELA CÂMARA MUNICIPAL, MALGRADO REJEITADAS PELO TRIBUNAL DE CONTAS.3. A SOBRE SE O ARTIGO 71, INCISO I, DA CRFB TAMBÉM ALCANÇA AS CONTAS DE GESTÃO DO CHEFE DO PODER EXECUTIVO AINDA NÃO FOI CONCLUÍDA PELO STF E ESTÁ SENDO DEBATIDA NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO Nº 597.362 COM REPERCUSSÃO GERAL.4. MANIFESTA INEXISTÊNCIA DE OFENSA À AUTORIDADE DE DECISÃO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL COM FORÇA VINCULANTE. RECLAMAÇÃO A QUE SE NEGA SEGUIMENTO, NOS TERMOS DO ART. 21, § 1º, DO RISTF.

Decisão: […] a atuação da Corte de Contas busca assento constitucional no inciso II do art. 71. Tal preceito permite o julgamento das contas dos gestores e administradores de verbas públicas. Trata-se de competência para examinar lesões ao erário decorrentes de ato de gestão, isoladamente considerados, em que se atribui à própria Corte de Contas a decisão definitiva. […] Se ficar configurado que o Prefeito titulariza a competência, específica e individualizada, de administrar a aplicação dos recursos públicos em sua municipalidade, como é o que se verifica no caso dos autos, franqueia-se ao Tribunal de Contas a possibilidade de proceder ao julgamento das contas municipais, com caráter de definitividade. Destarte, afasta-se a incidência, em tais casos do art. 71, inciso I, da Constituição de 1988, na medida em que se encontra adstrito aos aspectos mais gerais relacionados à execução do orçamento (contas políticas ou de governo). […] No âmbito das competências institucionais do Tribunal de Contas, o Supremo Tribunal Federal tem reconhecido a clara distinção entre: 1) a competência para apreciar e emitir parecer prévio sobre as contas prestadas anualmente pelo Chefe do Poder Executivo, especificada no art. 71, inciso I, CF/88; 2) a competência para julgar as contas dos demais administradores e responsáveis, definida no art. 71, inciso II, CF/88 (ADI nº 1.779-1/PE, Rel. Min. Ilmar Galvão, DJ 14.9.2001; ADI nº 1.140-5/RR, Rel. Min. Sydney Sanches, DJ 26.9.2003; ADI nº 849-8/MT, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 23.4.1999). No primeiro caso, cabe ao Tribunal de Contas apenas apreciar, mediante parecer prévio, as contas prestadas pelo Chefe do Poder Executivo. A competência para julgar essas contas fica a cargo do Congresso Nacional, por força do art. 49, inciso IX, da Constituição. Na segunda hipótese, a competência conferida constitucionalmente ao Tribunal de Contas é de julgamento das contas dos administradores e demais responsáveis por dinheiros, bens e valores públicos da administração direta e indireta, incluídas as fundações e sociedades instituídas e mantidas pelo poder público federal, e as contas daqueles que derem causa a perda, extravio, ou outra irregularidade de que resulte prejuízo ao erário (art. 71, II, CF/88). […] compete à própria Corte de Contas proceder a apreciação definitiva das contas do chefe do Poder Executivo Municipal. […] (STF – Rcl: 15216 RJ, Relator: Min. LUIZ FUX, Data de Julgamento: 17/06/2013, Data de Publicação: DJe-118 DIVULG 19/06/2013 PUBLIC 20/06/2013, grifos nossos).”

Por fim, convém comentar um aspecto recente refere-se ao novo Código de Processo Civil – CPC (Lei nº 13.105/2015), taxando os títulos executivos judiciais, na forma que não insere as decisões dos Tribunais de Contas dentre elas:

“Art. 515 São títulos executivos judiciais, cujo cumprimento dar-se-á de acordo com os artigos previstos neste Título:

I – as decisões proferidas no processo civil que reconheçam a exigibilidade de obrigação de pagar quantia, de fazer, de não fazer ou de entregar coisa;

II – a decisão homologatória de autocomposição judicial;

III – a decisão homologatória de autocomposição extrajudicial de qualquer natureza;

IV – o formal e a certidão de partilha, exclusivamente em relação ao inventariante, aos herdeiros e aos sucessores a título singular ou universal;

V – o crédito de auxiliar da justiça, quando as custas, emolumentos ou honorários tiverem sido aprovados por decisão judicial;

VI – a sentença penal condenatória transitada em julgado;

VII – a sentença arbitral;

VIII – a sentença estrangeira homologada pelo Superior Tribunal de Justiça;

IX – a decisão interlocutória estrangeira, após a concessão do exequatur à carta rogatória pelo Superior Tribunal de Justiça (BRASIL, 2015).”

O Código de Processo Civil anterior (Lei nº 5.869/1973), em seu art. 585, inciso VII, dava margem para interpretação acerca da definitividade das decisões dos Tribunais, ao estabelecer que os títulos executivos judiciais são “todos os demais títulos, a que, por disposição expressa, a lei atribuir força executiva” (BRASIL, 1973).

5.2 NATUREZA JUDICANTE DAS DECISÕES

Os argumentos defendidos pelos doutrinadores que aceitam a natureza judicante vêm, principalmente, do entendimento que a atual Carta Cidadã concedeu aos Tribunais de Contas a definitividade de suas decisões quando julga as contas anuais e também das contas especiais, de pessoas físicas ou jurídicas responsáveis pela coisa pública.

Comenta-se também que a própria Constituição, em seu art. 71, § 3º, concedeu eficácia de título executivo às decisões que resulte imputação de débito ou multa, sem adentrar no mérito quanto a natureza de título judicial ou extrajudicial. Entretanto, compreende-se que não cabe aos Tribunais de Contas promoverem a execução forçada de suas decisões. A competência é atribuída ao Poder Judiciário, na qual lhe foi outorgada por mandamento constitucional.

Decomain (2006, p. 170) descreve a revisibilidade das decisões dos Tribunais de Contas somente “na órbita de sua legalidade, e não quanto ao seu mérito.”

Está evidenciado na Súmula Vinculante nº 03, oriunda do Supremo Tribunal Federal (STF), que os processos perante o Tribunal de Contas da União (TCU) devam ser resguardados pelos institutos do contraditório e ampla defesa, acarretando, consequentemente, a impossibilidade de o Poder Judiciário rever o mérito das decisões das Cortes de Contas, assegurada a revisão quando houver erro de procedimento ou ilegalidade aparente.

Fernandes (2005, p. 167), em sua análise sobre o tema, sustenta determinados itens na qual devem ser levados em conta para que as decisões das Cortes de Contas sejam consideradas de natureza judicante, tendo em vista os trâmites processuais nesses órgãos:

– “os outros processos constituem matérias estritas de controle, e os de contas abrangem aspectos nitidamente jurisdicionais, porque envolvem direito, economia, contabilidade e/ou administração;

– os processos envolvendo “contas” são desenvolvidos à luz do princípio do contraditório e da ampla defesa;

– a exemplo dos processos judiciais, há citação formal do agente, audiência, prazo para defesa, inclusive o instituto de revelia, julgamento e recursos junto aos Tribunais de Contas, sem a exigência de recolhimento de depósitos e com efeito suspensivo e devolutivo;

– os processos de contas têm a intervenção obrigatória, sob pena de nulidade absoluta, do Ministério Público especial que atua junto aos Tribunais de Contas;

– todos os processos de contas têm sua gênese precisamente delineada na lei. Só nascem quando ocorre um dos motivos determinantes, v.g., advento de omissão na prestação de contas, ou ainda ato ilegal, ilegítimo ou antieconômico que cause dano ao erário.”

É importante observar também as garantias asseguradas pela própria Lei Suprema aos Tribunais de Contas, quase equiparando-os, nesse sentido, aos órgãos judicantes. Segundo o Texto Maior, ao Tribunal de Contas da União é assegurado “quadro próprio de pessoal e jurisdição em todo o território nacional” (BRASIL, 1988, grifo nosso). Por analogia, os Tribunais de Contas dos Estados, dos Municípios e as Cortes de Contas municipais possuem jurisdição em suas respectivas unidades federativas.

O termo “jurisdição” insculpido no art. 73 reforça a opinião doutrinária acerca da natureza judicante das decisões das Cortes de Contas. Acrescenta-se ainda o exercício das atribuições do art. 96 do Constituição, equiparando-os, assim, quanto a sua organização administrativa e funcional, aos órgãos do Poder Judiciário.

Segundo Fernandes (2005, p. 148):

“é impossível sustentar que o constituinte agiu displicentemente por ignorância ou descuido. Ao contrário, conhecendo a riqueza do vocabulário, utilizou-o com perfeição, ora restringindo, ora elastecendo a função. Nota-se, no elenco de competência, o rigor científico na terminologia empregada, acentuando a diferenciação, inclusive da finalidade de cada mister cometido. Para algumas tarefas empregou-se o termo apreciar, em outras, fiscalizar, em outras, realizar inspeção e auditoria e apenas em um caso, julgar.”

A adoção dos termos “julgar” e “jurisdição”, nos arts. 71, I, e 73, caput, respectivamente, parece demonstrar a interpretação teleológica adotada pelo Poder Constituinte Originário, quanto as competências outorgadas aos Tribunais de Contas, não sendo, conforme já citado, mero descuido do legislador.

Outro aspecto observado pelos defensores da natureza jurisdicional das decisões refere-se a equiparação dos ministros do TCU aos do STJ, quanto as garantias, prerrogativas, impedimentos, vencimentos e vantagens, conforme preceito do art. 73, § 3º, e os auditores, quando em substituição a ministro, as mesmas “garantias e impedimentos do titular e, quando no exercício das demais atribuições da judicatura, as de juiz de Tribunal Regional Federal” (BRASIL, 1988), segundo o § 4º do artigo supracitado.

Observa-se, também, quanto ao uso do vocábulo “judicatura”, no § 4º do art. 73, dando competência própria de julgamento aos ministros e auditores quando em substituição dos titulares. Aplicam-se as mesmas disposições aos conselheiros e auditores substitutos dos restantes dos Tribunais de Contas, equiparando-os, respectivamente, aos desembargadores e juízes de entrância final dos Tribunais de Justiça de suas unidades federativas.

Ao comentar sobre a utilização do termo “julgamento” e de palavras semelhantes no que se refere às Cortes de Contas, Fagundes (1967, p. 142) sugere a investidura

“[…] no parcial exercício da função judicante. Não bem pelo emprego da palavra julgamento, mas sim pelo sentido definitivo da manifestação da corte, pois se a regularidade das contas pudesse dar lugar a nova apreciação (pelo Poder Judiciário), o seu pronunciamento resultaria em mero e inútil formalismo.”

Araújo (2010, p. 297), comenta “que seria verdadeiro bis in idem se o Tribunal pudesse julgar as contas e o Poder Judiciário as apreciar de novo, agora para emprestar o selo da definitividade.”

Vê-se, portanto, que a própria Constituição tratou de assentar os devidos termos para que não houvesse interpretação diversa quanto ao sentido das decisões dos Tribunais de Contas, em sede de julgamento, sem que houvesse impedimento para que outros órgãos exercessem a jurisdição, fundada na natureza de suas competências, visando assim, servir a res publica.

CONCLUSÃO

Cabe relembrar que esta pesquisa buscou responder a seguinte questão; qual a ótica adotada pela Constituição Federal de 1988 quanto à natureza jurídica das decisões do Tribunais de Contas? Pois bem, para tanto, partiu da compreensão inicial de que, em função do mandamento constitucional no art. 5°, inciso XXXV, as decisões dos Tribunais de Contas não possuem natureza judicante, visto que o Poder Judiciário pode rever decisões administrativas.

Após a argumentação aqui exposta foi possível verificar a existência de divergências doutrinárias quanto ao tema. Ora, as competências atribuídas às Cortes de Contas pela atual Carta Magna dispostas no art. 71, inciso II, traduzem a natureza judicante outorgada aos órgãos de Contas, possuindo caráter de definitividade, mesmo que suas decisões se deem com eficácia de título executivo extrajudicial, possuindo nítida tutela constitucional, conforme art. 71, § 3º, CF/88, refutando, assim, o art. 515 do novo Código de Processo Civil (Lei nº 13.105/2015).

A adoção de título executivo para as decisões oriundas dos Tribunais de Contas advém do próprio mister constitucional. O art. 515 do novo CPC regula somente os títulos executivos extrajudiciais que estão na órbita da legislação ordinária, colocando-os de forma taxativa, não podendo, entretanto, retirar o caráter especial erga omnes resultante do julgamento das Cortes de Contas, com fundamento no Texto Maior.

Não obstante, a utilização dos termos “julgar”, “jurisdição” e “judicatura” descritas na Constituição Federal de 1988 conferem caráter jurisdicional as decisões proferidas pelos Tribunais de Contas, em função do sentido definitivo das manifestações das Cortes, visto que tais decisões resultam de processos nos quais são assegurados os institutos do contraditório e ampla defesa, fundamentadas na Súmula Vinculante nº 03, do Supremo Tribunal Federal, representando assim, a última palavra sobre a competência de julgar as contas dos administradores e demais responsáveis por bens, dinheiro e valores públicos.

Para tanto, a Lei Maior não excluiu do monopólio do Poder Judiciário determinados órgãos por ela indicados, tendo em vista que a própria Constituição assegura exceções ao princípio da inafastabilidade jurisdicional, devendo ater-se aos aspectos formais e de legalidade, não podendo apreciar o mérito com o intuito de modificação, caracterizando, desta forma, o juris dictio no que tange a própria finalidade de criação dos Tribunais de Contas e sua competência para julgamento de determinadas matérias.

Desta forma, a posição institucional independente das Cortes de Contas em relação aos demais Poderes confere a titularização da competência constitucional de julgamento das contas dos gestores públicos, demonstrados por meio de julgados oriundos do Supremo Tribunal Federal.

Por fim, adota-se como sugestão a alocação dos Tribunais de Contas em um capítulo específico na Constituição Federal como Função Essencial ao Estado, ou como ocorreu na Constituição da República de 1934, classificando-os como Função Essencial à Atividade Governamental, sobretudo, por seu caráter independente e de mister republicano.

 

Referências
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Informações Sobre o Autor

Joao Victor Farias Pereira

Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Amapá UNIFAP e Técnico de Controle Externo do Tribunal de Contas do Estado do Amapá TCE/AP


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