Introdução
O crime de descaminho, previsto no artigo 334, § 1º, “c” e “d” do Código Penal, não está, a princípio, elencado no rol dos crimes contra a ordem tributária, sendo que os agentes que o praticam, não possuem o direito de invocar em seu benefício, dispositivos legais, bem como entendimentos jurisprudenciais voltados para os crimes tributários.
Contudo, duas decisões recentes acerca da matéria, proferidas pelo Superior Tribunal de Justiça e pelo Supremo Tribunal Federal deram uma nova interpretação ao tema. Estas decisões, além de ressaltar a natureza tributária do crime de descaminho, permitiram a abertura de uma pequena abordagem sobre a real necessidade de aplicação do Direito Penal nessas circunstâncias, sendo estes, os objetos do presente artigo.
Sobre o crime de descaminho
Antes de adentramos na análise dos julgados, vamos realizar uma breve exposição sobre o delito em questão.
O crime de descaminho, previsto no artigo 334, § 1º, “c” e “d” do Código Penal, cuja redação foi instituída pela Lei nº 4.729/1965, foi primeiro dispositivo legal a tratar da sonegação fiscal no Brasil.
Configura-se pela “fraude empregada para evitar o pagamento de direito ou importo devido pela entrada ou saída de mercadoria não proibida.”[1]
Pela transcrição supra observa-se que o tipo penal do delito de descaminho, em que pese os entendimentos em contrário, está relacionado com a proteção à ordem econômica e tributária, o que sustenta o atual posicionamento dos nossos tribunais a seguir comentados.
HC nº 137628/RJ – 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça.
O acórdão ora analisado foi proferido pela 6ª Turma do STJ, no julgamento do HC nº 137628/RJ e teve como relator o Ministro Haroldo Rodrigues. Nele foi determinado o trancamento de uma ação penal interposta para a apuração de crime de descaminho, pois no entendimento da turma, a falta de decisão definitiva no processo administrativo destinado a apurar o valor do tributo devido pela prática do delito de descaminho, geraria a ausência de condição objetiva de punibilidade exigida pelo tipo penal.
Primeiramente, nós podemos observar que o STJ aplicou ao crime de descaminho o comando da Súmula Vinculante nº 24 do Supremo Tribunal Federal que dispõe que não tipifica crime material contra a ordem tributária, previsto no art. 1º, inciso I a IV, da Lei 8.137/1990, antes do lançamento definitivo do tributo.
Apesar da referida súmula se referir aos crimes contra a ordem tributária, percebe-se que foi estendido ao crime de descaminho, o entendimento de que antes do término do procedimento administrativo que visa a apuração do débito tributário decorrente das condutas previstas no artigo 334, § 1º, “c” e “d” do Código Penal, não há que se falar na instauração de inquérito policial ou na interposição de ação penal.
O acórdão em comento deixa bem claro a natureza tributária que deve ser atribuída ao delito de descaminho.
HC Nº 85.842/SP – 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal.
Já o segundo acórdão objeto deste estudo, foi proferido pela 1ª Turma do STF no HC nº 85.942/SP e teve como relator, o Ministro Luiz Fux.
Neste julgado, o pretório excelso reconheceu a possibilidade de extinção da punibilidade do crime de descaminho, mediante o pagamento do débito tributário antes do recebimento da denúncia criminal.
A decisão da suprema corte baseou-se em dois pontos:
a) O primeiro seria de que o crime de descaminho possui natureza tributária;
b) Já o segundo ponto, o estaria amparado no fato do artigo 34 da Lei nº 9.249/95, permitir a extinção da punibilidade, mediante o pagamento do tributo, dos crimes previstos na Lei nº 4.729/65, que por sua vez, foi a norma que instituiu o artigo 334, §1º, alíneas “c” e “d” do Código Penal.
Mas uma vez, observa-se o posicionamento, desta vez do STF, em atrelar um instituto voltado aos crimes tributários e previdenciários, qual seja, a extinção da punibilidade mediante o pagamento do tributo, à um delito que, até então, não possuía natureza tributária.
A natureza tributária do crime de descaminho e a fragmentariedade do Direito Penal.
Sem prejuízo dos comentários feitos sobre os julgados, os mesmos demonstram nitidamente em primeiro lugar a atual tendência dos nossos tribunais, em atribuir ao crime de descaminho, que tem como tipo objetivo Iludir, no todo ou em parte, o pagamento de direito ou imposto devido pela entrada, pela saída ou pelo consumo de mercadoria [2]a natureza de crime tributário, permitindo que a este seja conferido o mesmo tratamento destinado aos delitos previstos no artigo 1º da Lei nº 8.137/90.
Neste sentido é oportuno colacionar um trecho do acórdão proferido no HC nº 85.942/SP:
“(…) Ademais, é nítida a natureza tributária do crime de descaminho mercê de tutelar o erário público e a atividade arrecadatória do Estado.(…)” (HC nº 85.942/SP – 1ª Turma do STF – Ministro Relator Luiz Fux)
Trata-se, sem dúvida alguma, de um grande avanço neste seara, tendo em vista que a intenção do legislador, ao criar a figura típica do artigo 334 do CP, corroborada pela possibilidade de extinção da punibilidade mediante o pagamento do tributo, foi de coibir a supressão ou redução de tributos e, consequentemente, aumentar a arrecadação tributária, o que não justifica desta forma a repressão penal para tais circunstâncias.
Por sua vez, esta conclusão, traz a discussão outro ponto relevante sobre os ilícitos tributários, qual seja, a sua real necessidade de criminalização, pois resta nitidamente claro que a aplicação de institutos processuais destinados aos crimes tributários, como os aqui citados, visa permitir que o objetivo maior do Estado, qual seja, a arrecadação, seja cumprido de forma mais eficaz.
Eduardo Reale Ferrari expõe este pensamento:
“Em conformidade com o princípio da ofensividade, em um Estado de Direito de cariz social e democrático, o Direito Penal só pode interferir em situações nas quais se verifiquem lesões insuportáveis às condições comunitárias, essenciais ao livre desenvolvimento e realização da personalidade humana, dos quais o trabalho e a ordem econômica estão obrigatoriamente atrelados.”[3]
Portanto, ao equiparar o crime de descaminho ao ilícito tributário, permitindo inclusive a sua extinção mediante do pagamento do tributo, o Estado demonstra de forma contundente que a sua preocupação não é punir o agente, mas sim garantir que o tributo oriundo da prática delituosa seja recolhido aos cofres do erário público, na medida em que não há, pelo no que tange ao crime de descaminho, ofensas à bens jurídicos juridicamente relevantes merecedores da proteção da tutela penal.
Mestrando em Processo Penal da PUC/SP.
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