A negação do Estado de Direito pelo Estado de Legalidade

Resumo: O presente artigo tem como objetivo analisar criticamente a “Negação do Estado de Direito pelo Estado de mera Legalidade” a partir da crítica elaborada por Carré de Malberg até os dias atuais com a leitura da problemática por Sérgio Resende Barros.


Palavras-chave: Direito, Estado, Legalidade, Constitucionalismo brasileiro


Abstract: This paper aims to critically examine the “Denial of the rule of law for the rule of law” from the criticism developed by Carré de Malberg to the present day with the reading of the issue by Sergio Resende Barros.


Keywords: Law, State, Legality, Constitutionalism Brazil


Sumário: 1 Introdução; 2 O Estado e sua estrutura histórica; 3 A denúncia de Carré de Malberg; 4 Releitura e atualização do problema por Sérgio Resende de Barros; 5 Um caso de legalismo; 6 Considerações Finais; 7 Referência Bibliográfica.


1 Introdução


O termo Estado modernamente começa a ser empregado no ocidente a partir do Renascimento, mas precisamente nos escritos de Maquiavel. Por Estado entende-se o conjunto de instituições sociais cuja função é marcada pela administração dos assuntos públicos, isto é, os que afetam em boa medida o funcionamento global da sociedade.


Nas sociedades de pouca complexidade, as funções do Estado não são desempenhadas por instituições especializadas, mas tão somente por indivíduos concretos, como por exemplo, os chefes dos clãs, ou por todos os membros do grupo, como as assembléias de municípios pequenos.


Nas sociedades mais complexas, embora o poder do Estado teoricamente se concentre numa pessoa ou em algumas poucas, suas funções estão institucionalizadas e diferenciadas de outras funções sociais.


Quando se estuda o Estado, algumas questões são suscitadas e exige atenção, principalmente as questões relativas à forma ou organização do Estado, questões relativas aos limites ou funções do Estado, como também questões que tocam à legitimidade do poder Estado. Junto a estas questões tem também ocupado uma sóbria atenção o fato da lei ser usada ideologicamente para aniquilar os princípios de ordem no Estado de Direito. O que se nota é a negação de um Estado que se diz de direito, mas que na mais pura das verdades é um Estado eminentemente legal.


Essa problemática foi inicialmente levantada por um jurista francês chamado Carré de Malberg e sua contribuição tem sido fonte de muitos entraves jurídico-epistemológicos. A denúncia de Carré de Malberg[1] ainda continua vivida. Contudo, em que pese sua eminente contribuição, vale dizer que Carré de Malberg estava, deveras, enganado quanto a abrangência de sua provocação, que se limitava tão apenas à França no período da passagem do século.[2]


Contemporaneamente surgem especulações jurídicas quanto ao tema, mas a nossa compreensão se vale das categorias jurídicas do Professor Doutor Sérgio Resende de Barros, para o qual a negação do Estado de Direito pelo Estado de Legalidade, ou mera legalidade, se estende a todos os países do ocidente, e, não obstante, ao Brasil.


Assim, o presente estudo, formado e conformado com a posição doutrinária do Professor Doutor Sérgio Resende de Barros, objetiva primeiramente apresentar uma breve noção histórica do Estado, bem como apresentar a denúncia de Carré de Malberg para o seu tempo e a do Professor Doutor Sérgio Resende de Barros para os dias atuais.


Ademais, cabe apresentar e analisar sob a luz destas duas teorias, um caso concreto ocorrido em nossos dias e finalizar o estudo com algumas considerações que parece-nos pertinentes.


2 O Estado e sua estrutura histórica


Tudo na vida está em contínuo e perene movimento. É um processo dinâmico e dialético, onde o ser de cada coisa se transforma em não-ser e o não-ser, se (re) transforma em um novo ser que sendo deixa de ser e deixando de ser se reforma em outro ser, como ensina em suas aulas o Professor Sérgio Resende de Barros. Desse modo, a mutação, ou a dialética das coisas deve ser aplicada à evolução histórica do Estado.


O Estado não é um fenômeno estático, mas sim animado de um movimento continuo de transformação. Ele não se move em uma órbita própria e autônoma, mas faz parte de todo aquele complicado sistema de forças que agita e solicita a sociedade em sua evolução.


Na antiguidade, a partir de Aristóteles distinguem-se três formas principais de Estado, ou mais precisamente três formas de organização, segundo o grau de concentração de poder político, a saber: a) monarquia, que se caracteriza pelo governo de uma só pessoa; b) oligarquia, em que se configura o governo de uns poucos; e, c) a democracia, em que impera o governo do povo.


As funções do Estado estendiam-se a todos os assuntos nos quais se requeria a participação coletiva dos cidadãos, como as relações com outras cidades, ou nos que interferiam interesses individuais contrapostos.


O Estado, nesse período, se é que assim podemos chamá-lo, era considerado legítimo na medida em que desempenhasse adequadamente sua função moral de fazer possível a justiça, isto é, a correta distribuição de obrigações e direitos entre os cidadãos.


Na idade média predominou a idéia da excelência da monarquia e a concepção teocrática, segundo a qual a legitimidade do poder do monarca tinha origem divina.[3] O desenvolvimento das cidades e posteriormente dos Estados na Europa, influiu decisivamente no desenvolvimento da reflexão sobre a natureza, limites e legitimidade do Estado.


Dessa época procede a distinção entre estado natural do homem e estado social. Em seu estado natural o homem não pode desenvolver todas as suas potencialidades; daí que racionalmente lhe convém chegar a um pacto, a um contrato, com os outros indivíduos para construir uma sociedade organizar uma forma de governá-la e de regular os conflitos entre indivíduos ou com outras sociedades.


O Estado se concebe como o resultado de uma decisão racional livremente adotada pelos indivíduos.  O expediente metodológico do contrato social é usado tanto para justificar um Estado Absolutista[4], como um Estado de cunho Liberal[5], no qual o poder do monarca está limitado pelos direitos básicos dos indivíduos e controlado por estes através de representantes eleitos. Mas, uma vez associada a legitimidade do poder do Estado à decisão livre e racional dos indivíduos, fica aberto o caminho para o desenvolvimento da moderna  teoria da democracia.


Os dois passos mais decisivos nesta direção são a teoria da separação de poderes de Montesquieu[6], segundo a qual as instituições encarregadas de governar, legislar e administrar justiça devem ser independentes, e a teoria da vontade geral expressada através do voto da maioria, como ensina Rousseau[7].


É preciso ficar claro que estas idéias influíram decisivamente na Revolução Francesa e na constituição dos Estados Unidos da América e, posteriormente, na passagem dos séculos XIX e XX, deram lugar ao desenvolvimento dos atuais sistemas democráticos de caráter representativo e constitucional.


Ao que indica a história, o último passo no desenvolvimento do Estado é a noção do Estado Social e Democrático de Direito. O Estado Social tem sua origem no movimento socialista do século XIX.


A crítica dos autores que trataram deste tema, e especialmente de Marx, à teoria liberal do Estado democrático consiste fundament6almente em assinalar que, dadas as condições de desigualdade social que se geram no sistema capitalista de produção, a igualdade jurídica dos cidadãos diante da lei, garantida pelo estado liberal, é puramente formal.


Por outro lado, a racionalidade e imparcialidade do Estado não passa na verdade de uma aparência detrás da qual se oculta sua verdadeira função de garantir a propriedade privada e o sistema social de dominação da classe capitalista sobre os trabalhadores.


Esta concepção nada mais demonstra que o desenvolvimento de uma concepção instrumentalista do Estado como instrumento de dominação das classes sociais; e a idéia de dotar o Estado democrático de uma dimensão social, determinando-lhe competências mais amplas que permitissem compensar, desde o poder político, as desigualdades sociais geradas pelo sistema capitalista.


A teoria da luta de classes associada à concepção instrumentalista do Estado influenciou decisivamente na idéia de Estado no ocidente. O desenvolvimento efetivo de um Estado social e democrático no contexto de uma economia capitalista não está isento de problemas: os limites entre o interesse social e a liberdade econômica na podem ser estabelecidas definitivamente.


As próprias limitações do poder dos Estados nacionais numa sociedade em que os poderes econômicos e culturais têm, cada vez mais, uma dimensão global, colocam novos desafios à idéia de Estado democrático e de direito.


Notadamente a questão da terminologia e a distinção entre o Estado, parecem surgir na obra ‘O Príncipe’ de Maquiavel. Quando Maquiavel e os homens de sua época começaram a empregar a palavra stato[8], sua significação era eminentemente revolucionária. Referiam-se a uma nova condição ou situação de uma sociedade humana, aquela em que ela se acha dotada de uma organização política centralizada e uniforme. Dessa forma, e daí em diante o Estado começou efetivamente ser chamado de Estado.


Em síntese, a evolução histórica do Estado não se dá de forma estanque, mas vai se constituindo e se desconstituindo ao mesmo tempo, passando de uma forma para outra no decurso da história e no desenrolar do tempo. Assim o Estado vai ganhando novas roupagens políticas na sua evolução.


O Estado inicialmente era considerado um patrimônio. Em outras palavras,  é aquele considerado como patrimônio da pessoa física do príncipe, do soberano, como objeto do seu poder de governo, podendo este, portanto, dispor livremente dele, cedendo-o, dividindo-o, transmitindo-o hereditariamente, sem encontrar limites nem em direitos privados, nem em direitos públicos subjetivos dos súditos, decorrendo o exercício da soberania da posse da propriedade, do dominium e não do imperium: dessas concepções feudais encontram-se exemplos nas modernas empresas coloniais bem como recordações históricas.


No desenvolvimento do estado, ele assume a característica de Estado de policia ou polizeistaat, no qual o príncipe governa não mai em nome próprio, mas em nome do estado, entendido, porém este como a própria instituição de coroa, e o poder publico é exercido discricionariamente pelo soberano, de conformidade com quilo que ele considera como interesse do Estado e dos súditos.


Note-se que o Estado, visto desse modo, não é mais coisa do príncipe res principis, mas é sujeito de uma soberania própria, exercida apenas pelo príncipe em seu nome (res populis, res publica). Aos súditos são conhecidos somente os direitos privados, sendo-lhes negados os direitos públicos; a razão de Estado, interpretada com os mais amplos poderes discricionários, é o que justifica qualquer providência, sem que aos particulares seja dada oportunidade de opor-se.


E nos últimos tempos surge o Estado de Direito[9] (Rechsstaat, Rule of Law e Etat de Droit) no qual os poderes do Estado são rigorosamente disciplinados por normas jurídicas, tanto no que se refere a atividade que eles devem regulamentar sem recíprocas violências e interferências, quanto relativamente aos interesses legítimos e aos direitos privados e públicos, reconhecidos em favor dos cidadãos, os quais podem fazê-los valer por via administrativa e jurisdicional, mesmo contra o próprio Estado, de modo que o Estado de Direito deve realizar o direito em todas as suas facetas e abrangências.


O reconhecimento e a tutela dos direitos dos particulares além da atuação das leis, tanto nas relações entre Estado e cidadãos, como nas dos cidadãos entre si, é o que melhor caracteriza aquela organização estatal juridicamente se qualifica como Estado de direito. Esse tipo de Estado, do qual procura avizinhar-se o Estado atual, é apenas, em parte, uma realidade, porque muitas relações entre Estado e cidadãos carecem ainda de regulamento jurídico e de tutela jurisdicional.


Enfim, de resto, cabe-nos dizer que o Estado dito democrático de direito realiza como tendência o ‘governo das leis’, em lugar do governo democrático de direito. E foi justamente esta tendência denunciada por Carré de Malberg e nos dias atuais pelo professor Drº Sérgio Resende de Barros.


3 A denúncia de Carré de Malberg


Carré de Malberg foi o primeiro jurista a denunciar a canonização e consagração da lei[10]. Conforme ensina o professor Sérgio Resende de Barros, essa ideologização da lei reduz o direito na autorização das condutas individuais apenas pela estrita observância da lei. Carré de Malberg chama isso de L’Etat legal, isto é, o estado legal. Como diz o professor Sérgio, algo muito diferente do Rechsstaat, ou seja, o Estado de Direito alemão.


O Estado legal denunciado por Carré de Malberg, ou a denúncia dele é considerada pioneira, pois foi ele quem percebeu o que se praticava na frança nada mais era do que um cumprimento da lei. Na verdade na sua França não se praticava um Estado de direito, mas sim um Estado Legal. Evidentemente o Estado legal é eminentemente diferente do Estado de direito. No Estado legal o valor máximo é a própria lei.


O Estado legal é, senão, condicionado pela ideologia do legalismo, ou seja, a supervalorização da lei. Essa característica Carré de Malberg não teve condições de denunciar, pois não se valeu da noção de ideologia para fazer sua análise e suas considerações críticas para demonstrar que na França o que existia de fato era um Estado marcado pela regência da lei.  Em outras palavras, o que houve na França foi o endeusamento da lei.


Outro equívoco da denúncia de Carré de Malberg foi a abrangência de suas considerações que se limitou na função administrativa do Estado. Não que sua demonstração crítica não tenha valido para nada, mas a deficiência de sua manifestação se deve ao fato de que Carré de Malberg “não teve condições históricas de perceber como ideologia o legalismo administrativo que determinou o Estado Legal.”[11]


Embora tenha sido pioneiro em denunciar o Estado de Legalidade, Carré de Malberg limitou-se tão somente na função administrativa do Estado  e no seu país de origem, ou seja, a França.


Fica da denúncia de Carré de Malberg o valor histórico do pioneirismo, mas fica também marcado nas veias da história constitucional suas limitações que se resumem nas suas condições históricas, na sua leitura restrita à França e à administração pública.


Enfim, a partir da análise malberguiana do Estado, entendendo-o como um Estado Legal e não de Direito, mas reduzindo a critica tão somente a França, vale dizer que sua maior contribuição foi abrir caminhos para os estudiosos da atualidade em perceber que sua critica pode e deve ser estendida para todos os Estado e todos os poderes – Legislativo, Judiciário e Executivo – de modo que fica a denúncia de que o Estado de Direito é viciado pelo legalismo, conforme se vê na teoria jurídica do Estado do Professor Sérgio Resende de Barros.


4 Releitura e atualização do problema por Sérgio Resende de Barros


Evidentemente o problema se estende aos nossos dias. Carré de Malberg tinha, parcialmente, razões para dizer que o que na verdade existia era um país banhado por lei e não por democracia e direito. Note-se, entretanto, que sua postura se restringia a França, o seu país. O que, de todo modo, denota seu equivoco, uma vez que a legalidade exacerbada está presente em todos os países do ocidente.


É justamente essa lacuna histórico-geografica, bem como, jurídico-epistemológica que o professor Sérgio Resende de Barros tem argumentado a falha de Carré de Malberg e demonstrado didaticamente que outros países também sofrem com a ideologia do legalismo, ou como diz, o Estado de mera legalidade.


Segundo Sérgio Resende de Barros, “não é raro o fato de que o Estado de direito não exista na essência onde ele existe na aparência. Ocorre aí o Estado legal, ou seja, um Estado de mera legalidade, que não passa de aparência ilusória do Estado de direito”[12].


O Estado legal é marcado pelo movimento ideológico da lei, ou seja, o Estado somente realiza suas funções em detrimento, em virtude do expressamente determinado em lei. Tudo é e está em função da lei neste Estado. Aparentemente, como ensina o professor Sérgio, o Estado é de Direito, mas na sua essência, na sua real efetividade não passa de um Estado de mera legalidade.


Para Sérgio Resende de Barros, “essas distorções convertem, enfim, o direito no torto, a democracia na autocracia, na medida mesma em que a legalidade plenamente substancial se converte no seu oposto: legalidade meramente formal.”[13] E continua dizendo que “nessa mesma medida, por igual razão, dá-se a negação do Estado de direito pelo Estado de legalidade. Essa é a legalidade que nega o direito.”[14]


Não basta afirmar que o Estado de legalidade nega o Estado de direito. Parece-nos claro e evidente. E de fato é, como demonstra Sérgio Resende de Barros. Todavia para ele, “nem toda legalidade é negativa do direito.”[15]


A luminosidade do pensamento do jurista está na interpretação dialética do problema. Em que pese seus argumentos, vale ressaltar:


“Essa oposição meramente negativa é superada por sua própria negação positiva: é a legalidade que nega a legalidade em um sentido ou noutro. O movimento é interno – inerente – à coisa. Daí, que é a própria coisa que se nega a si mesma em seu movimento, seja deleteriamente (para destruir-se no pior), seja evolucionariamente (para reconstruir-se no melhor), seja até revolucionariamente (para dar um salto qualitativo). Daí, também, que é a legalidade – se concretamente substancial – que pode renegar e regenerar a legalidade – ainda abstratamente formal”.[16].


A dialética entre a legalidade que nega e afirma o direito é o legível contributo do professor. Mas não podemos parar a reflexão nesse quesito. “A legalidade é o direito; e o direito é a legalidade”[17], diz ele. Essa tensão dialética é que faltou por ser demonstrada por Carré de Malberg, mas que é demonstrada minuciosamente por Sérgio Resende de Barros, que finaliza dizendo:


“O que necessariamente implica superará pela legitimidade, na proporção em que a lei se integrar com formas de autêntica participação do povo, comedindo a democracia substancial pela justiça social, esta sendo comedida, por sua vez, por uma equânime distribuição entre todos da riqueza produzida pelo trabalho de todos. É só nesse sentido que o Estado de legalidade pode ser um autêntico Estado de direito: convertendo-se constantemente em Estado de legitimidade. Fora daí, sobrevém a perversão”[18]


Interessante notar que até mesmo o ministro do Supremo Tribunal Federal, Eros Grau, compreende a investida da lei no Estado de direito e diz:


“O Estado autoritário, no entanto, inúmeras vezes se manifesta travestido de Estado de Direito. Sob a aparência de sujeição ao ‘domínio da lei’ atua um Estado que lança mão da legalidade como instrumento de opressão e opróbio.”[19]


E o ministro continua sua reflexão de forma a demonstrar que “em nada, absolutamente em nada, contribui a legalidade, enquanto apenas expressão formal do Estado de Direito, para alterar as condições sociais de existência dos economicamente desprivilegiados, no modo de produção capitalista.”[20] O ministro está em observância com as teorias de Carré de Malberg e do professor Sérgio Resende de Barros, ainda que não tenha feito sua análise a luz de um olhar revelador da ideologia subjacente ao estado que se diz de direito, mas que na sua essência nada mais é do que um estado de legalidade, ou mera legalidade, como afirma o professor Sérgio.


Ao que tudo parece, o Estado de Direito é possível se e somente se o Estado de Legalidade der espaço para o Estado de Direito. Talvez utópico, mas possível, como se pode ver em casos práticos como na adoção à brasileira, no caso do tratorista da Bahia, a ilegalidade revestida de legalidade da previdência social e outros que surgem e morrem no esquecimento.


5 Um Caso de legalismo no Brasil


Nos últimos tempos muito se tem percebido a ausência do Estado de Direito em decorrência da imposição da lei no Estado de mera Legalidade.


Em virtude da lei o Estado abafa os direitos dos particulares, ficando a mercê sempre da desonesta efetividade legal.


Foi exatamente o que ocorreu no caso do tratorista da Bahia que por força da lei foi obrigado a derrubar barracos, mas seu senso de justiça era mais aguçado que a própria lei, o que permitiu sua desistência quando viu uma mãe com seus filhos chorando pela derrubada do barraco.


Ou ainda, o caso da previdência que maquiada de cumpridora da lei faz minar o direito de qualquer sujeito que se beneficie dos direitos inerentes aquela instituição. Não faltam exemplos para demonstrar a estrita observância da lei, ou da ideologia da legalidade a que se vale o Estado.


É o Estado de Direito maquiado, revestido pela ideologia da lei. Exatamente como descrito por Carré de Malberg para França e por Sérgio Resende de Barros estendido aos nossos dias para todos os Estados e todos os Poderes.


A seguir apresentamos um caso de legalidade em que o autor da ação esperou por 5 (cinco) anos uma manifestação da justiça e depois foi surpreendido com a imperícia do IMESC que perdeu todos os laudos médicos. Para terminar o INSS não aceita seu pedido de aposentadoria por motivos de saúde, visto que em nenhum momento de sua vida contribuiu com a previdência. Embora tenha demorado todo esse tempo, é o que diz a sentença[21]:


“O autor __________, já  qualificado nos autos, propôs ação ordinária em face do Instituto Nacional do Seguro Social – INSS, visando a condenação da autarquia requerida à concessão ou restabelecimento de benefício assistencial de prestação continuada, previsto no art. 203 da Constituição Federal e no art. 20 da Lei nº 8.742/93, alegando ser o autor portador de graves problemas de saúde, o que o torna incapaz de praticar os atos da vida cotidiana, sendo totalmente dependente. Citada, a requerida apresentou contestação alegando o não preenchimento dos requisitos legais.[22]


Apenas o fato do autor ser portador de doença grave, o que o impossibilitava de trabalhar já era o suficiente para ser acolhido seu pedido de forma imediata, para que sua família não passasse nenhuma dificuldade. Contudo, a justiça, que também esta viciada pela ideologia da legalidade manifestasse a fundamentação legal e a devida decisão. Diz o juiz no caso:


“Fundamento e decido. A ação é procedente. A Constituição Federal, ao tratar da Assistência Social no art. 203, no inciso V previu a garantia de benefício de um salário mínimo mensal à pessoa portadora de deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios de prover a própria manutenção ou de tê-la provida por sua família, nos termos da lei. Este dispositivo foi regulamentado pela Lei nº 8.742/93, que previu o benefício de prestação continuada nos seus arts. 20 e 21, implantado em 10.01.96. Trata-se de um benefício contínuo, em que são beneficiários os idosos ou os deficientes que comprovem não possuir meios de prover a sua subsistência nem de tê-la provida por sua família, sendo desnecessário que o beneficiário tenha contribuído para a Seguridade Social, desde que não tenha outra fonte de renda. Assim, considerando que o benefício tem caráter eminentemente social, é desnecessária a prova de vinculação à Previdência Social. Neste sentido: “Assistência social. Renda mensal vitalícia. Lei 8.213/91, art. 139. CF/88, art. 203, V. `O art. 139, § 1º, da Lei 8.213/91, que estabelece como um dos requisitos para a concessão da renda mensal vitalícia ali prevista ter havido vinculação à Previdência Social por determinado lapso temporal, não é aplicável à espécie, dirigindo-se a segurados que, por várias razões, não tenham direito aos outros benefícios mais vantajosos dentre as diversas espécies de prestações a cargo da autarquia previdenciária. O benefício previsto no art. 203, V da CF/88 e Lei 8.742/93, regulamentada pelo Dec. 1.744/95, compreendido na Assistência Social, independe de contribuição para sua concessão, pois nasceu com o fim de atender aos desvalidos, ou seja, pessoas que, por não possuírem vinculação à Previdência Social, estão excluídas de sua abrangência, como é o caso da apelante. Presentes os demais requisitos, é de ser concedido o benefício pleiteado’. (TRF-3a Região – Ap. Cív. 89.546-6 – Rel.: Juiz Theotônio Costa – J. em 07/10/97 – DJ de 18/11/97 – JBD, 183/43)”. Deste modo, são necessários apenas dois requisitos básicos para a concessão do benefício, quais sejam, a idade ou a deficiência, que deve ser comprovada por exame médico pericial, e a impossibilidade de prover ou ter provida por familiares a sua manutenção. Nos termos do art.2º do Decreto n. 1.744/95, entende-se por família “a unidade mononuclear, vivendo sob o mesmo teto”, considerando-se incapaz de prover a manutenção da pessoa portadora de deficiência aquela cuja renda mensal “per capita” seja inferior ao valor previsto no parágrafo 3º do art. 20 da Lei n. 8.742/93, ou seja, inferior a um quarto do salário-mínimo. O estudo social foi favorável. No caso em tela, ainda, restou comprovada pericialmente a incapacidade do autor para o labor que lhe garanta a subsistência, sendo considerado incapaz para o desempenho profissional de qualquer natureza. Considerando que o benefício é devido após o cumprimento dos requisitos legais e regulamentares[23], comprovada a incapacidade física da requerente, é devido o benefício desde a data do requerimento na esfera administrativa, qual seja, 14/10/2002. Ante do exposto, e pelo que mais dos autos consta, JULGO PROCEDENTE o pedido para tornar definitiva a liminar concedida, como também para condenar a requerida a prestar em favor da requerente o benefício de prestação continuada, no valor de um salário mínimo mensal, com fundamento no art. 20 da Lei n. 8.742/93, a partir da data do requerimento administrativo, qual seja, em 14/10/2002, que deverá ser revisto a cada dois anos nos termos do art. 21 da mesma lei, corrigindo-se monetariamente as prestações vencidas e com incidência de juros moratórios de 1% ao mês. Em razão da sucumbência, condeno a ré ao pagamento de honorários advocatícios, sendo que estes, com fundamentos no art. 20, § 4º, do CPC, fixo em 10 % do valor da causa. Deixo de condenar a parte vencida ao pagamento das custas em razão da isenção prevista no art. 8°, § 1º da Lei nº 8.620/93. Tendo em vista que o valor da condenação é inferior ao valor de alçada estabelecido no § 2º do artigo 475 do CPC, deixo de determinar a remessa de ofício ao Egrégio TRF da 3ª Região. P.R.I.C Local, data e juízo”.


Note-se que até mesmo a sentença do magistrado é carregada de revisão legal. Embora esteja submetido a lei, o magistrado como ser incorporado a justiça também sofre, como todos sofremos com a ideologia da legalidade, que por muita vezes se transforma em ilegalidade. O Estado de direito que poderia ser o pacificador de problemas sociais, acaba por revolver mais problemas, na medida em que a lei é posta sobre o direito, de forma o abafar.


Casos como esse são encontrados aos montes. Em certos casos, uns atendem aos princípios da democracia e do direito, outros padecem em função da lei.


Dessa maneira é que se dá  a negação ideológica do Estado de direito pelo Estado de mera legalidade.


6 Considerações Finais


A história tem demonstrado ao longo dos anos essa negação ideológica do Estado de Direito pelo Estado de Legalidade.  Juristas tem se debruçado sobre o problema e alentado para a ideologia da legalidade. Mas o grito da lei é mais alto que a fala do direito. Embora, por mais radical que seja, é pura e nítida a assertiva do professor Sérgio Resende de Barros para o qual “o legalismo é a ideologia que aninha e esconde na forma da lei, um conteúdo autocrático, tendente à indiferença a-social ou mesmo à injustiça social, não raro acompanhada de um elitismo jurídico antidemocrático.”[24]


A Sociedade vive a ditadura da lei, Mas cada um é responsável por livrar o Estado dessa triste e arbitrária ideologia. A dignidade humana é a versão axiológica da natureza humana[25] e é por isso que o Estado deve lutar para se desfazer das ideologias que o cercam, ou que o determinam.


Estado e Sociedade devem juntar esforços para a concretização dos direitos sem a ideologia da legalidade, porque somente dessa forma poder-se-á afirmar que se vive em uma sociedade democrática, na qual todas as pessoas têm iguais direitos de desenvolver. É, dessa forma, obrigação do Estado se impor como democrático e de direito e se livrar da ideologia da mera legalidade denunciada por Carré de Malberg na França e Sérgio Resende de Barros estendida a todos os Estados e Poderes.


De resto cabe-nos dizer que a construção e o fortalecimento de um Estado Democrático exigem não apenas o reconhecimento das suas dificuldades, das suas subjacentes ideologias, mas a implementação de meios que o ajude a superar e a garantir a pacifica e harmônica convivência e interação do Estado, do direito e da lei.


 


Referências bibliográficas:

BARROS, Sérgio Resende de.  Direitos humanos: Paradoxo da Civilização. Belo Horizonte: Del Rey, 2003.

________. 1ª Aula: Essência e Aparência. 2009. São Paulo. PPG-Direito USP e UNIMEP.

________. 2ª Aula: Estado de Direito. 2009. São Paulo.  PPG-Direito USP e UNIMEP.

________. 3ª Aula: Estado de Legalidade. 2009. São Paulo. PPG-Direito USP e UNIMEP.

________. Aulas do programa de Pós-Graduação na Universidade Metodista de Piracicaba. Primeiro e Segundo Semestre de 2009.

MALBERG, Raymond Carré de. A função administrativa. Tradução de Sérgio Resende de Barros. In: MALBERG, Raymond Carré. Contribuition à la théorie génerale de l´état Paris: Librarie de la Société du Recueil Sirey, 1920.


Notas:

[1] O texto de Raymond Carré de Malberg, que serviu de base para o presente trabalho, foi traduzido por Sérgio Resende de Barros e distribuído aos alunos da disciplina “Controle de Constitucionalidade e Direitos Difusos e Coletivos” (apostila).  Aula de Mestrado em Direito na Universidade Metodista de Piracicaba. Piracicaba-SP. 2009. 1º Semestre. Trata-se da obra Contribuition à la théorie génerale de l´état, publicado em 1920, em Paris, pela Librarie de la Société du Recueil Sirey. O trecho traduzido se refere às páginas 485 a 494 da obra, referentes ao capítulo que recebeu o título A função administrativa, inserido no tema A função do Estado. As menções constantes deste trabalho são relativas ao texto traduzido, com sete páginas.

[2] A denúncia de Carré de Malberg foi restrita por três razões. Primeiro, porque se restringiu à França e ao Direito Administrativo de sua época. Segundo, porque não atingiu o condicionamento ideológico do Estado de direito pelo legalismo. Terceiro, “porque tomou a lei em sentido estrito e redutivo, como ato posto formalmente pelo poder constituído para legislar pela generalidade e não como norma jurídica emanada de qualquer ato do Estado que imponha conduta, até individualizada, como a sentença judicial”. Cf.: BARROS, Sérgio Resende de. 2ª Aula: Estado de Direito. pg. 09

[3] Cf.: BARROS, Sérgio Resende de. Controle de Constitucionalidade e Direitos Difusos e Coletivos (apostila).  Aula de Mestrado em Direito na Universidade Metodista de Piracicaba. Piracicaba-SP. 2009. 1º Semestre

[4] Como se vê claramente na obra de Hobbes acerca da doutrina do Estado.

[5] Ao contrário de Hobbes tem as teorias de Locke acerca do Estado mais de cunho liberal.

[6] BARROS, Sérgio Resende de. “Controle de Constitucionalidade e Direitos Difusos e Coletivos” (apostila).  Aula de Mestrado em Direito na Universidade Metodista de Piracicaba. Piracicaba-SP. 2009. 1º Semestre

[7] Ibidem

[8] A palavra Stato usada por Maquiavel vem do latim status que significa ‘modo de estar, posição, situação, condição’

[9] BARROS, Sérgio Resende de. “Controle de Constitucionalidade e Direitos Difusos e Coletivos” (apostila).  Aula de Mestrado em Direito na Universidade Metodista de Piracicaba. Piracicaba-SP. 2009. 1º Semestre

[10] Ibidem

[11] Ibidem

[12] Ibidem

[13] Ibidem

[14] Ibidem

[15] Ibidem

[16] Ibidem

[17] Ibidem

[18] Ibidem

[19] GRAU, Eros Roberto. O direito posto e o direito pressuposto. 6ª edição rev. e ampl. São Paulo: Malheiros editores, 2005. p.169. (redação original)

[20] Idem. pg 169

[21] O caso foi retirado da página do TJSP, Processo Nº 262.01.2002.000165-1.

[22] O grifo serve para demonstrar a incidência da ideologia da legalidade.

[23] Novamente o grifo serve para demonstrar a incidência da ideologia da legalidade. A legalidade está como já mencionado, em todas as esferas do estado, do legislativo, passando pelo executivo, a chegar ao judiciário.

[24] BARROS, Sérgio Resende de. As Gerações de Direito. In: Estado de Legalidade. (informação verbal).  Aula de Mestrado em Direito na Universidade Metodista de Piracicaba. Piracicaba-SP. 2009. 1º Semestre

[25] Cf. BARROS, Sérgio Resende de.  Direitos humanos: Paradoxo da Civilização. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. p. 460

Informações Sobre os Autores

Douglas Aparecido Bueno

Bacharel em Filosofia e em Ciências Jurídicas e Sociais,
Mestre em Direito.

José Natanael Ferreira

Advogado. Assessor Legislativo da Câmara Municipal de Americana. Mestre em Educação e em Direito.


Equipe Âmbito Jurídico

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