A norma penal em branco e seus limites temporais

Sumário: Introdução – 1. A necessidade de um tipo penal bem definido – 2. A norma penal em branco – 2.1. Conceito – 2.2. Classificação das normas penais em branco – 3. Breve escorço sobre a norma penal e seus limites temporais. – 3.1. A Extra-atividade, ultratividade e retroatividade da norma penal. – 3.2. Disciplina diversa: a lei penal excepcional ou temporária- 4. O problema da norma penal em branco e seus limites temporais.- 4.1. A questão da retroatividade.- 4.2. Critérios para a adoção da retroatividade da norma penal em branco – 4.2.1. O critério de Mirabete e Damásio de Jesus – 4.2.2. O critério de Pierangeli e Alberto Silva Franco. – 4.2.3. Nossa posição – 4.5. A questão do Cloreto de Etila.  Conclusão. Referências

“Quando as leis forem fixas e literais, quando só confiarem ao magistrado a missão de examinar os atos dos cidadãos, para decidir se tais atos são conformes ou contrários à lei escrita; quando, enfim, a regra do justo e do injusto, que deve dirigir em todos os seus atos o ignorante e o homem instruído, não for um motivo de controvérsia, mas simples questão de fato, então não mais se verão os cidadãos submetidos ao jugo de uma multidão de pequenos tiranos, tanto mais insuportáveis quanto menor é a distância entre o opressor e o oprimido; tanto mais cruéis quanto maior resistência encontram, porque a crueldade dos tiranos é proporcional, não às suas forças, mas aos obstáculos que se lhes opõem; tanto mais funestos quanto ninguém pode livrar-se do seu jugo senão submetendo-se ao despotismo de um só.” (Beccaria, Cesare. Dos delitos e das Penas).

INTRODUÇÃO.

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Cuidaremos, aqui, de tema delicado na doutrina e jurisprudência pátrias, qual seja, a questão referente às alterações da lei penal em branco e de sua norma complementadora e seus reflexos na aplicabilidade da lei penal no tempo.

Várias correntes existem sobre o tema, tentando de alguma forma estabelecer critérios para que se possa aplicar ou não as regras gerais de retroação a uma modalidade de norma tão repleta de particularidades.

Cumpre-nos, inicialmente, formar alguns conceitos, fundamentais para a boa apreensão do tema que ora se discute.

Deste modo, estabeleceremos, dentre outras, o que se deve entender por norma penal em branco, bem como, qual é o atual sistema de validade temporal da norma penal incriminadora.

Atentos para os novos paradigmas do Direito Penal, cuja inauguração em nosso ordenamento em muito se deve à Constituição Federal de 1988, iniciamos a explanação tratando da necessidade de que a norma incriminadora seja bem redigida, de modo que represente instrumento de garantia, mormente se considerarmos que a norma penal em branco, se mal utilizada, pode escapar deste preceito.

Enfim, não se pode olvidar da necessidade premente de se aplicar o Direito Penal sempre sob uma ótica garantista, buscando afinar a ciência com os ditames da nova ordem constitucional.

1. A NECESSIDADE DE UM TIPO PENAL BEM DEFINIDO.

Em 1764, Cesare Bonesana, Marquês de Beccaria, já vislumbrava, decerto influenciado pelos ideais iluministas de sua época, a necessidade de que as normas proibitivas fossem descrições precisas e pormenorizadas das condutas tidas como ilícitas, no intento de impedir a submissão do povo ao despotismo de um Estado opressor.

De fato, tal preocupação adquire, na época contemporânea, importância sempre presente, mormente diante do que se convencionou chamar de “Direito Penal de Garantia”, que se preocupa, em síntese, com a defesa do status libertatis do jurisdicionado, na tentativa do controle dos mecanismos de coerção estatais.

Neste contexto, devemos entender o tipo penal como opção de um povo em vedar determinada conduta considerada nociva aos bens comuns, devendo possuir, sempre que possível, a mais límpida redação, a fim de impedir a ambigüidade e a multiplicidade de interpretações que, decerto, poderiam ser usadas contra este próprio povo.

Neste jaez, exsurge aqui uma das mais importantes funções da norma incriminadora, qual seja, a função de garantia, expressa na possibilidade que todo cidadão tem de saber previamente qual conduta sua, e de que modo, pode vir a ser alvo da sanção estatal.

Ainda como expressão do garantismo, a nossa atual ordem constitucional traz, em seu art. 5°, XXXIX, o Princípio da Legalidade que, aplicado à disciplina penal, institui que todo tipo penal deve, necessariamente decorrer de lei em sentido formal, ou seja, fruto de deliberação legislativa.

Não é de outro modo que se expressa o Prof. Juarez Tavares[i] ao afirmar que “o princípio da legalidade, inserido no art. 5°, XXXIX, da Constituição da República, pelo qual se exige uma exata descrição da conduta criminosa, tem por escopo evitar possa o direito penal transformar-se em instrumento arbitrário, orientado pela conduta de vida ou pelo ânimo”.

Ademais, isso só não basta, é necessário que a lei seja clara, sob pena de violação do princípio da taxatividade. Tal princípio, na visão de Luis Regis Prado[ii], “significa que o legislador deve redigir a disposição legal de modo suficientemente determinado para uma mais perfeita descrição do fato típico (lex certa)”. E conclui sua lição dizendo que “tem ele, assim, uma função garantista, pois o vínculo do Juiz a uma lei taxativa o bastante constitui uma autolimitação do poder punitivo-judiciário e uma garantia de igualdade”.

Portanto, a escorreita definição das condutas criminosas é dever de um Estado Democrático de Direito justo e que queira atender os mais lídimos anseios de segurança jurídica.

No entanto, a completa definição da conduta criminosa é tarefa árdua atribuída à pena do legislador, e que muitas vezes é inatingível, como ocorre, exempli gratia, quando o Direito Penal é utilizado em matéria inadequada a seus objetivos, utilizado mais como prima ratio que como ultima ratio.

E, quando não se atinge este desiderato, caem por terra as garantias constitucionais e abrem-se as raias para o arbítrio estatal, com a criação excessiva de normas penais abertas e tipos incompreensíveis.

2. A NORMA PENAL EM BRANCO.

2.1. Conceito.

Não obstante, existem situações em que, seja pelo caráter da conduta que se quer regular, seja por questão de técnica legislativa, não se pode descrever exaustivamente todas a descrição da norma incriminadora.

Tal fato ocorre quando existem particularidades na conduta desvalorada que a classificam como de contínua mutação. Deste modo, não se pode empregar, simplesmente, uma norma legal (em sentido formal) para sua regulação que, pela sua própria origem, é naturalmente engessada.

É o caso por exemplo das normas penais que regulam os crimes contra a economia popular (Lei 1.521/51) que se submetem à contínua flutuação dos preços. É cediço que um tipo penal descritivo de um crime contra a economia popular pode rapidamente ficar ultrapassado, bastando, para isso, uma mera alteração na situação econômica do país. E, uma atualização legislativa, de tão delongada, certamente seria inócua.

Para corrigir estas distorções, criou-se o que se denomina de norma penal em branco, alcunha dada pela primeira vez por Karl Binding (blankettstrafgesetze), ao identificar normas que possuíam sanções previstas mas cuja incriminação dependiam da existência de outra norma.

De fato, nada mais é que um tipo penal incompleto, carente de aplicação por si só, que busca sua completude em outra norma. Nesta modalidade de normas, apenas se depreende o sentido exato da descrição da conduta ali contida quando conhecemos a norma complementar.

Sua importância, como se demonstrou, é a manutenção do preceito básico, que pode ser adaptado a novas realidades apenas com a modificação da norma complementar, geralmente sujeita a processo elaborativo mais simplificado.

Não se pode confundir norma penal em branco com a norma penal aberta, que, no dizer de Damásio de Jesus[iii] é aquela “que não apresenta a descrição típica completa e exige uma atividade valorativa do Juiz. Nele, o mandamento proibitivo inobservado pelo sujeito não surge de forma clara, necessitando ser pesquisado pelo julgador no caso concreto". Seriam tipos penais abertos, por exemplo, os delitos culposos.

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Vale ressaltar, também, a diferença entre norma penal em branco e as leis penais incompletas ou imperfeitas, que são aquelas que possuem, apenas, o preceito incriminador (conduta proibida), remetendo o intérprete a outra norma para se conhecer a sanctio juris. Luis Regis Prado cita como exemplo de norma penal imperfeita a contida na Lei 2.889/56 – Lei do Genocídio[iv].

2.2. Classificação das normas penais em branco.

As normas penais em branco podem ser classificadas, segundo a melhor doutrina, em normas penais em branco em sentido lato (impróprias ou homogêneas) e em sentido estrito (próprias ou heterogêneas).

As primeiras são aquelas cuja norma complementadora advém da mesma instância legislativa do tipo penal. Ou seja, como a definição dos crimes é de competência legislativa privativa da União (art. 22, I, da Constituição Federal) e vige em nosso sistema o princípio da reserva legal (art. 5°, XXXIX, CF), forçoso admitirmos que a norma penal em branco em sentido lato é aquela cuja norma complementadora é uma Lei Federal.

O exemplo mais citado na doutrina é o do art. 237, do Código Penal Pátrio, que tem a seguinte redação: “contrair casamento, conhecendo a existência de impedimento que lhe cause a nulidade absoluta: Pena – detenção, de três meses a um ano”.

Percebe-se, portanto, que a subsunção deste tipo penal a uma conduta criminosa exige a precisa compreensão do que é considerado causa de nulidade absoluta do matrimônio, circunstância que somente pode ser respondida se visitarmos o art. 1.521, da Lei 10.406/02 (novel Código Civil) que descreve os impedimentos matrimoniais.

Por sua vez são consideradas normas penais em branco em sentido estrito (heterogêneas ou próprias) aquelas em que a norma complementadora é oriunda de uma outra fonte legiferante, seja o Poder Executivo (regulamentos, instruções, etc.), ou os Poderes Legislativo Estaduais, Municipais, etc.

O exemplo clássico é do art. 12, da Lei 6368/76, que incrimina a conduta de tráfico ilícito de entorpecentes. A definição do que é ou não substância entorpecente e estabelecida por Portaria da DIMED, vinculada ao Ministério da Saúde.

São tidas por próprias porque efetivamente atendem a finalidade das normas penais em branco, qual seja, a de adequar o tipo penal sem necessidade de um vagaroso processo legiferante.

3. BREVE ESCORÇO SOBRE A NORMA PENAL E SEUS LIMITES TEMPORAIS.

3.1. A Extra-atividade, ultratividade e retroatividade da norma penal.

A retroatividade ocorre quando uma norma penal vigente no presente alcança situações passadas, o que a difere da ultratividade, que se dá quando uma lei penal continua sendo aplicada a uma conduta, mesmo após ter cessado sua vigência. Por outro lado, ocorre o fenômeno da extra-atividade quando uma norma penal reúne as duas características esposadas.

A regra geral, insculpida no art. 5°, XL, da CF, que foi adotada pelo Código Penal, em seu art. 2°, é que a lei penal nunca retroagirá salvo para beneficiar o réu. É o que se denomina correntemente na doutrina de retroatividade da lex mitior, que se aplica aos fatos pretéritos mesmo não sendo a lei da data do fato.

Nem a coisa julgada é empecilho, pois já decidiu o Colendo STF que “a lei nova se aplica, no que favorecer o agente, até mesmo já havendo condenação transitada em julgado” [v].

O fenômeno da retroação, por óbvio, não se aplica às leis mais gravosas. Nestes casos, a regra é a irretroatividade, aplicando-se a lei mais antiga, muito embora esteja revogada, pois “não pode haver retroatividade prejudicial ao réu” [vi].

Percebe-se, destarte, que a lex mitior é a única que tem extra-atividade, ou seja, aplica-se a fatos futuros, se lhe sobrevier lei mais gravosa, ou retroage, caso substitua uma lex severior.

Pode ocorrer, ainda, durante a sucessão das leis penais no tempo, que determinada conduta deixe de ser considerada crime, fenômeno este ao qual se dá o nome de abolitio criminis, que tem o condão de extirpar todos os efeitos penais da sentença condenatória. No entanto, continuam subsistindo seus efeitos civis, mormente o direito à reparação (art. 2°,CP).

3.2. Disciplina diversa: a lei penal excepcional ou temporária.

Lei penal excepcional é aquela que se destina a regular situações extraordinárias da vida em social, como revoluções, calamidades públicas, ou mesmo guerras. Seu período de vigência é dependente da duração do fenômeno anormal que se propôs a regular.

Lei temporária, segundo a lição de Adilson Mehmeri[vii], “é a que nasce com período de vigência pré-fixado, para o tempo necessário de duração do objeto a que ela se destina. Por isso ela tem que ser específica, enunciando o prazo de sua vitalidade”.

As leis penais excepcionais ou temporárias, justamente por sua natureza de transitoriedade, são submetidas a uma disciplina especial quanto à sua vigência temporal.

Consoante o art. 3°, do Código Penal Pátrio, são aplicáveis aos fatos praticados durante a sua vigência, mesmo após a sua revogação. São exceções, portanto, à regra da retroatividade da lex mitior posterior.

Tal regime especial, longe de constituir ofensa ao art. 5, XL, da Constituição da República, é uma necessidade imposta para regulação de determinadas condutas.

De fato, elas perderiam toda a utilidade se lhe fossem aplicadas as regras gerais de retroação. Bastaria pensar que, como são normas com vigência determinada, para escapar da sanção, o réu apenas precisaria atrasar o curso processual de modo que somente fosse condenado após sua revogação[viii].

Partilha do mesmo entendimento Celso Delmanto[ix], quando afirma que “elas perderiam toda a sua força intimidativa, caso o agente já soubesse, de antemão, que, após cessada a anormalidade (no caso das leis excepcionais) ou findo o período de vigência (das leis temporárias), acabaria impune pela aplicação do principio da retroatividade”.

Na realidade, não se vislumbra ofensa ao princípio da retroação mais benéfica (art. 5°, XL, CF), de modo que nos filiamos ao magistério de Guilherme de Souza Nucci[x] e Damásio de Jesus[xi], que pregam que a norma penal excepcional ou temporária possui, como elemento do tipo, o fator “tempo”, de modo que, ao deixar de viger, não lhe sucede nenhuma lei nova, mas apenas existe o retorno daquela que regulava a situação anteriormente. Por serem normas diferentes, não incidiria a regra constitucional.[xii]

4. O PROBLEMA DA NORMA PENAL EM BRANCO E SEUS LIMITES TEMPORAIS.

Não se encontra uniformidade, entre os autores brasileiros, acerca da validade temporal da norma penal em branco.

Alguns são defensores da impossibilidade absoluta de retroação da norma complementadora, outros se posicionam pela necessidade imperiosa de retroatividade, quando a norma tiver conteúdo mais benéfico.

Por outro lado, há quem postule por uma solução intermediária, ora pregando a retroação, ora negando-a, muito embora assim procedam sob premissas díspares.

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Em verdade, percebe-se, na doutrina, duas espécies de critérios: os que trabalham apenas sobre a possibilidade de retroação ou não, e aqueles que admitem a retroação, porém com ressalvas ou justificativas divergentes.

4.1. A questão da retroatividade.

O primeiro ponto que se impõe é o que tange a possibilidade de retroação das normas penais em branco, em virtude da mudança de seus complementos.

No Brasil, Paulo José da Costa Jr.[xiii] e Basileu Garcia[xiv] postulam que o complemento da norma penal em branco deve sempre retroagir, desde que mais benéfica para o acusado, tendo em vista o mandamento constitucional e o direito de liberdade do cidadão.

Em sentido contrário, surge a lição de Frederico Marques[xv], para quem a alteração da norma complementadora terá, sempre, efeitos irretroativos, por não admitir a revogação das normas em conseqüência da revogação de seus complementos.

A nosso sentir, nenhuma das soluções é satisfatória.

A primeira peca por retirar do Estado, por exemplo, importante mecanismo de controle, capaz de regular situações gravosas na economia, tornado inócua qualquer intervenção penal do Estado nesta seara. Nesta mesma linha é a lição de Pierangeli[xvi], que afirma que sua adoção “deixaria o consumidor inteiramente desprotegido e o Estado sem meio idôneo para combater a perniciosa especulação, em detrimento da comunidade.”

A segunda corrente claudica por não emprestar relevância penal à norma complementadora, de modo que desconsidera a possibilidade desta influir definitivamente sobre a criminalização da conduta, a ponto de gerar um abolitio criminis.

Por outro lado, a irretroatividade, como já exposto (v. 4.2, supra), não fere o regramento constitucional, vez que o fator tempo é elemento integrante do tipo da norma penal em branco, de modo que a norma que lhe sucede é diversa e não regulará exatamente a mesma matéria, não criando, pois, uma “exceção” a exceção da retroatividade benéfica.

Por isso, nossa opinião é intermediária. Posicionamos-nos pela admissão da ultratividade da norma penal em branco, somente em determinados casos, que adiante se aclarará, aplicando-se aos demais a regra geral do art. 5°, XL, da Constituição Federal, numa espécie de retroação condicionada.

4.2. Critérios para a adoção da retroatividade da norma penal em branco.

4.2.1. O critério de Mirabete e Damásio de Jesus.

Feito o posicionamento acerca da possibilidade condicionada de retroação da norma penal em branco, cabe-nos, agora, identificar os critérios que permitem diferenciar as normas penais em branco que podem retroagir com a alteração dos seus complementos.

A primeira acepção sobre o tema nos é dada pelo Prof. Damásio de Jesus[xvii], referendado por Mirabete[xviii].

Aduzem que somente tem influência a alteração do complemento se importar em modificação substantiva do tipo penal e não quando modifique circunstância que não comprometa a norma em branco.

De forma mais esclarecedora, Mirabete salienta que “de acordo, com Soler, só tem importância a variação da norma complementar na aplicação retroativa da lei penal em branco quando esta provoca uma real modificação da figura abstrata do direito penal, e não quando importe a mera modificação de circunstância que, na realidade, deixa subsistente a norma penal.”

Data venia, o conceito de alteração da figura do tipo penal é deveras fluido e de difícil aplicação, mormente se partirmos da premissa que a norma complementadora sempre faz parte do tipo penal. Sempre que houver alteração da norma complementadora, estaremos alterando a definição da conduta tida como criminosa.

Ademais, parece-nos que não existe base legal para se pensar desta forma.

4.2.2. O critério de Pierangeli e Alberto Silva Franco.

Outra acepção é a defendida por Pierangeli[xix] e Alberto Silva Franco[xx].

Segundo tais autores, a alteração de um complemento de uma norma penal em branco homogênea sempre teria efeitos retroativos, vez que, a norma complementar, como lei ordinária que é, também foi submetida a rigoroso e demorado processo legislativo.

A situação, contudo, se inverte quando se tratar de norma penal em branco heterogênea.

Neste caso, “a situação se modifica para comportar duas soluções. Quando a legislação complementar não se reveste de excepcionalidade e nem traz consigo a sua auto-revogação, como é  caso das portarias sanitárias estabelecedoras das moléstias cuja notificação é compulsória, cujo prazo para cumprimento da determinação legal é variável consoante a gravidade da moléstia, que, v.g., no caso do cólera, deve ser imediata, mas que em relação a outras doenças pode ser feita ate os três meses completados, a legislação complementar, então, pela sua característica, se revogada ou modificada, poderá conduzir também à descriminalização”[xxi].

Apesar do brilhantismo da lição dos supracitados mestres, verifica-se que esta não seria a melhor solução.

Quanto ao critério da excepcionalidade do complemento, nada temos a emendar. De fato, sem dúvida, tal critério nos parece o mais consentâneo com a realidade, sendo, inclusive, o esposado pelo Colendo STF.

No entanto, nada impede o legislador de, numa situação de excepcionalidade, criar uma norma penal em branco homogênea, que seja marcada pela temporariedade. Deste modo, estaríamos diante de uma norma penal em branco homogênea e irretroativa. Falha o critério, portanto, neste aspecto.

Partindo do mesmo entendimento, se manifesta Fernando Capez[xxii], ao discorrer que “não interessa se o complemento advém de lei ou de ato infralegal, pois a retroatividade depende exclusivamente do caráter temporário ou definitivo da norma.”

4.2.3. Nossa posição.

Partindo do entendimento de que a norma complementadora, sem sombra de dúvida, integra o tipo penal e tem natureza penal, devemos entender que qualquer alteração no complemento da norma altera a si própria. Resta contudo, definir em que circunstância se dá a retroação.

A melhor opção é entender que a norma penal em branco retroagirá sempre, independentemente de sua natureza homogênea ou heterogênea, se for mais benéfica ao réu e não contiver essência de norma excepcional ou temporária.

Em verdade, existem normas incriminadoras, carentes de complemento, que nitidamente, tem características de norma excepcional (v. supra, item 3.2), devendo-lhes, pois, serem submetidas à disciplina do art. 3°, do Código Penal.

Partilhando deste entendimento, o STF assim já se manifestou, muito embora utilize outras premissas: “em princípio, o art. 3° do Código Penal se aplica à norma penal em branco, na hipótese de o ato normativo que a integra ser revogado ou substituído por outro mais benéfico ao infrator, não se dando, portanto, a retroatividade. Essa aplicação só não se faz quando a norma, que complementa o preceito penal em branco, importa real modificação da figura abstrata nele prevista ou se assenta em motivo permanente, insusceptível de modificar-se por circunstâncias temporárias ou excepcionais, como sucede quando do elenco de doenças contagiosas se retira uma por se haver demonstrado que não tem ela tal característica [xxiii] (grifo nosso).

O que se pretende, em verdade, demonstrar é que a regra geral da retroação benéfica é perfeitamente aplicável às normas penais em branco, desde que, não possuam caráter excepcional ou temporário.

Por exemplo, a norma do art. 237, do Código Penal Pátrio, que tem a seguinte redação: “contrair casamento, conhecendo a existência de impedimento que lhe cause a nulidade absoluta: Pena – detenção, de três meses a um ano”. O preceito complementador não possui, de forma alguma, natureza excepcional. Desta forma, alguém que contraiu casamento conhecendo de impedimento que, hoje, não mais é causa de anulação do matrimônio, teve sua punibilidade extinta pelo art. 107, III, do Código Penal Pátrio.

No entanto, aquele que violou tabela de preços, esteve sujeito a uma norma excepcional, e, consoante art. 3°, CP, será punido por esta, não obstante tal tabelamento possa já ter sido revogado ou substituído por outro com valores reduzidos.

No sentido que vai no texto, o STF já decidiu que é “complemento da norma penal em branco passa a integrar, indubitavelmente, o conteúdo da conduta censurada, formando um todo, de forma que a alteração de uma parte, como resultado de uma nova valoração jurídica do mesmo fato, tem repercussão total e imediata, não se aplicando, ao caso em exame, a solução que a jurisprudência vem dando às hipóteses de tabelamento de preços, já que estas têm realmente caráter excepcional, vez que são editadas como forma de disciplinar o mercado em situações especiais, revelando que se trata mesmo da hipótese prevista no art. 3° do CP.[xxiv]

4.5. A questão do Cloreto de Etila.

Discussão acalorada sobre o tema diz respeito ao Cloreto de Etila, matéria-prima do lança-perfume, que, pelo curto período de oito dias, foi retirada da lista F2 – Lista das Substâncias Psicotrópicas de uso proscrito no Brasil, e incluída na Lista D2 – Lista de Insumos Químicos Utilizados como Precursores para Fabricação e Síntese de Entorpecentes e/ou Psicotrópicos.

O Cloreto de Etila foi retirado da lista no dia 7 de dezembro de 2000, data da publicação da resolução RDC n° 104, e recolocado pela publicação do Diário Oficial do dia 15 de dezembro de 2000.

Em suma, tal substância química deixou de ser considerada entorpecente, embora durante um curto período de tempo, de modo que, todos aqueles condenados pelo art. 12, da lei 6368/76, flagrados portando lança-perfume, tiveram sua punibilidade extinta.

Outra conclusão não se pode ter.

Como a norma insculpida no art. 12, da lei 6368/76 não contém preceito excepcional ou temporário algum, se aplica perfeitamente o fenômeno da abolito criminis, descriminalizando todos os fatos precedentes.

Neste jaez, Guilherme de Souza Nucci[xxv] verbera que “durante, aproximadamente, uma semana, no final de 2000, o cloreto de etila foi retirado da relação de substâncias de uso proibido, por razões de incentivo a outros setores da indústria, que utilizariam o produto. Foi o suficiente para gerar a aplicação retroativa da abolitio criminis verificada.”

No mesmo sentido, Luis Flávio Gomes ressalta que a republicação da Resolução 104 alterou completamente o texto anterior. Logo, é uma verdadeira lei nova. Sendo mais severa, vale tão-somente para fatos ocorridos a partir dela. A republicação evidentemente não tem eficácia retroativa porque é prejudicial aos réus” [xxvi]. Segue sua exposição afirmando que “todos os fatos envolvendo lança-perfume ocorridos no nosso país até 14.12.2000 estão completamente fora de qualquer conseqüência jurídico-penal relacionada com a Lei de Tóxicos. Pode eventualmente a conduta configurar contrabando, caso se comprove a importação do produto. Mas droga ilícita não pode ser considerada (até 14.12.00).”[xxvii]

Pode-se até argumentar que houve falha na publicação da Resolução, mas o fato é que o cidadão não pode responder pelos equívocos do Estado, muito menos diante de uma perspectiva garantista. Além do mais, como se veda a revisão pro societate, uma vez extinta a punibilidade não existe mais possibilidade de se punir o acusado pelo mesmo crime.

CONCLUSÃO.

Do exposto, podemos extrair as seguintes conclusões:

 

1.     Devemos entender o tipo penal como opção de um povo em vedar determinada conduta considerada nociva aos bens comuns, devendo possuir, sempre que possível, a mais límpida redação, a fim de impedir a ambigüidade, a multiplicidade de interpretações, ressaltar a função garantista do tipo penal e atender o principio da taxatividade.

2.     Existem situações em que, seja pelo caráter da conduta que se quer regular, seja por questão de técnica legislativa, não se pode descrever exaustivamente todas a descrição da norma incriminadora. Nestas circunstâncias o legislador se vale de um tipo penal incompleto denominado de norma penal em branco.

3.     Norma penal em branco é um tipo penal incompleto, carente de aplicação por si só, que busca sua completude em outra norma, e apenas se depreende o sentido exato da descrição da conduta ali contida quando conhecemos a norma complementar.

4.     Sua importância é a manutenção do preceito básico, que pode ser adaptado a novas realidades apenas com a modificação da norma complementar, geralmente sujeita a processo elaborativo mais simplificado.

5.     Podem ser classificadas em normas penais em branco em sentido lato (impróprias ou homogêneas) e em sentido estrito (próprias ou heterogêneas). Aquelas ocorrem quando o complemento advém da mesma esfera legislativa da norma principal, estas, quando a norma complementar é oriunda de instância diversa, como o Poder Executivo ou o Poder Legislativo dos Estados e Municípios.

6.     A retroatividade de uma norma penal ocorre quando está vigente no presente e alcança situações passadas, o que difere da ultratividade, que se dá quando uma lei penal continua sendo aplicada a uma conduta, mesmo após ter cessado sua vigência.

7.     Lei penal excepcional é aquela que se destina a regular situações extraordinárias da vida em social, enquanto lei temporária é aquela que contém prazo certo de duração.

8.     A lei penal excepcional ou temporária tem efeito ultrativo, ou seja, se aplica no futuro, muito embora possa não mais estar vigendo (art. 3°, do Código Penal).

9.     Com relação às normas penais em branco, percebe-se, na doutrina, duas espécies de critérios: os que trabalham apenas sobre a possibilidade de retroação ou não, e aqueles que admitem a retroação, porém com ressalvas ou justificativas divergentes.

10. A melhor opção é pela admissão da ultratividade da norma penal em branco, somente em determinados casos, aplicando-se aos demais a regra geral do art. 5°, XL, da Constituição Federal, numa espécie de retroação condicionada.

11. Dentre os critérios de aplicação da retroação da norma penal em branco, destacam-se os de Mirabete e Damásio, que pregam somente tem influência a alteração do complemento se importar em modificação substantiva do tipo penal e não quando modifique circunstância que não comprometa a norma em branco. Por sua vez, aduzem Pierangeli e Alberto Silva Franco que a alteração de um complemento de uma norma penal em branco homogênea sempre teria efeitos retroativos, ao invés da norma heterogênea, que retroagiria a depender de seu caráter excepcional.

12. A melhor opção, contudo, é entender, em síntese, que a norma penal em branco retroagirá sempre, independentemente de sua natureza homogênea ou heterogênea, se for mais benéfica ao réu e não contiver essência de norma excepcional ou temporária.

13. O Cloreto de Etila foi retirado da lista no dia 7 de dezembro de 2000, data da publicação da resolução RDC n° 104, e recolocado pela publicação do Diário Oficial do dia 15 de dezembro de 2000. Deste modo, sem sombra de dúvidas, ocorreu a extinção da punibilidade de todos aqueles condenados pelo tráfico desta substância.

14. Tal fato se deu, por óbvio, porque a norma do art. 12, da lei 6368/76, não tem caráter excepcional ou temporário.

 

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NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2003.
PIERANGELI, José Henrique. Escritos jurídico-penais. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999.
PRADO, Luis Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro. vol 1, parte geral. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2002.
TAVARES, Juarez. Teoria do Injusto Penal. 3.ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2003.
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2002.
 
Notas
[i] TAVARES, Juarez. Teoria do Injusto Penal. 3.ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2003.

[ii] PRADO, Luis Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro. vol 1, parte geral. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2002

[iii] JESUS, Damásio E. de. Normas penais em branco, tipos abertos e elementos normativos . Jus Navigandi, Teresina, a. 5, n. 51, out. 2001. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id= 2286>. Acesso em: 04 set. 2005.

[iv] Ob. Cit.

[v] STF, RE 102.932, DJU 10.5.85, p. 6855.

[vi] TACrSP, Ap. 384.807, j. 23.1. 85.

[vii] MEHMERI, Adilson. Noções Básicas de Direito Penal. São Paulo: Ed. Saraiva, 2000.

[viii] No mesmo sentido: Exposição de Motivos do Código Penal de 1940, n° 08.

[ix] DELMANTO, Celso, et alii. Código Penal Comentado. 6ª ed. Rio de Janeiro: Ed. Renovar, 2002.

[x] Nesse sentido: NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2003.

[xi] JESUS, Damásio E. Direito Penal. São Paulo: Ed. Saraiva, 2002.

[xii] Em sentido contrário: ZAFFARONI, Eugenio Raúl. PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2002 –  que defendem que a disposição legal do art. 3°, do CP, é de duvidosa constitucionalidade, posto que a exceção do art. 5°, XL, da Carta Magna tem caráter absoluto e não admite outras exceções.

[xiii] COSTA JR., Paulo José da. Comentários ao Código Penal. São Paulo: Ed. Saraiva, 2002.

[xiv] GARCIA, Basileu. Instituições de Direito Penal. São Paulo: Max Limonad, 1980.

[xv] MARQUES, José Frederico. Tratado de Direito Penal. São Paulo: Saraiva, 2000.

[xvi] PIERANGELI, José Henrique. Escritos jurídico-penais. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999.

[xvii] Ob. Cit.

[xviii] MIRABETE, Julio Fabrinni. Manual de Direito Penal – Parte Geral. São Paulo: Atlas, 2003.

[xix] Ob. Cit.                                                                                                     

[xx] FRANCO, Alberto Silva, et al. Código Penal e sua Interpretação Jurisprudencial. São Paulo: Ed. RT, 2004.

[xxi] Ob. Cit.

[xxii] CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal. Vol 1. São Paulo: Ed. Saraiva, 2004.

[xxiii] STF – HC 73.168-6 – Rel. Min. Moreira Alves, DJU 15.03.1996, p. 7.204.

[xxiv] STF, Lex 164/331, Rel. Min. Carlos Velloso, 2ª Turma.

[xxv] Ob. Cit.

[xxvi] GOMES, Luis Flávio. Descriminalização do Cloreto de Etila. Disponível em: http://www.proomnis. com.br/public_html/article.php?story=20041011090629544. Acessado em: 12 de setembro de 2005.

[xxvii] Ob. Cit.


Informações Sobre o Autor

Danilo Von Beckerath Modesto

Procurador Federal, Pós-graduado em Direito Penal e Processual Penal, Pós-graduado em Direito do Estado


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