Resumo: Este artigo tem por objetivo discutir o caso Bélgica v. Senegal 2009 sobretudo o julgamento de julho de 2012 à luz dos diversos princípios que informam o debate do tema no Direito Internacional
Palavras chave: Extradição – Tortura – Obrigação de Investigar e Julgar – Corte Internacional de Justiça
A obrigação de investigar e julgar ou extraditar, também denominada “aut dedere aut judicare”, constitui norma internacional de caráter processual que tem por finalidade combater a impunidade e centrar o sistema de proteção aos direitos humanos na vitimização dos seres humanos. Este propósito encontra-se presente em diversos tratados internacionais destinados a criminalizar condutas consideradas ofensivas a toda a humanidade, consideradas como coletivo. Esta obrigação constitui parte integrante de diversos tratados, incluindo a Convenção contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes que tipifica o crime de tortura e obriga os Estados-parte do tratado a adotar medidas de caráter legislativo e processual para cumprimento da obrigação de investigar e julgar os indivíduos acusados pela prática do referido crime.[1] A interpretação da Convenção no que se refere à obrigação de investigar e julgar ou extraditar indivíduos acusados pela prática do crime de tortura foi objeto de debate raro em caso da Corte Internacional de Justiça (CIJ) que passa a informar a jurisprudência internacional a respeito do tema. A decisão da CIJ, bem como as opiniões separadas dos magistrados da Corte, revelam a constante tensão entre o principio aut dedere aut judicare e as diferentes abordagens relativas à proteção dos direitos humanos no que se refere à repressão de crimes internacionais, o papel dos arranjos regionais de cooperação, o reconhecimento do escopo da jurisdição universal e de estatutos de limitação referentes à retroatividade das leis. Este artigo tem por objetivo discutir o caso Bélgica v. Senegal (2009), sobretudo o julgamento de julho de 2012, à luz dos diversos princípios que informam o debate do tema no Direito Internacional.
Contexto Fático e Normativo do Caso Bélgica v. Senegal (2009)
A disputa envolvendo Bélgica e Senegal refere-se ao cumprimento, por parte do Senegal, da obrigação de julgar e processar o ex-presidente do Chade, Sr. Habré, pela prática de violações sistemáticas de direitos humanos, incluindo o crime de tortura. Em 2000 iniciam-se investigações no Senegal, e na Bélgica, dos crimes supostamente praticados por Habré, a pedido de indivíduos de nacionalidade do Chade e da Bélgica que alegam terem sido vítimas do regime repressor liderado por Habré entre 1982 e 1990, enquanto Presidente do Chade. Vale ressaltar que o Senegal concedeu asilo político ao Sr. Habré em 1990, quando foi deposto do poder no Chade. Assim, a partir do momento em que são iniciados procedimentos de investigação, o Estado senegalês, por ser parte integrante da Convenção contra a Tortura, e pelo fato do Sr. Habré se encontrar em território senegalês e estar sujeito à jurisdição deste Estado, passa a possuir a obrigação de investigar e julgar o acusado por pratica de crime de tortura. Inicialmente, a corte senegalesa afirma não possuir jurisdição para julgar chefe de Estado por crimes praticados durante o tempo em que estava no poder.[2] Esta posição é mantida no julgamento do pedido de extradição solicitado pela Bélgica em 2005 que resultou em troca de mensagens diplomáticas até 2009, quando a Bélgica decide acionar a CIJ para demandar o cumprimento da obrigação internacional do Senegal de investigar e julgar os crimes de tortura supostamente praticados pelo Sr. Habré, e na falha, extraditar o acusado para a Bélgica para ser processado e julgado com base no artigo sete da Convenção contra a Tortura.
Direito Internacional Convencional e Jurisdição Universal
No caso Bélgica v. Senegal (2009), a opinião majoritária dos juízes da CIJ considerou que apesar do crime de tortura constituir jus cogens, e, portanto, refletir costume internacional, não havia necessidade de fundamentar a obrigação de investigar e julgar ou extraditar além dos termos da Convenção de Tortura que constitui a base legal para a jurisdição da Corte no caso. Assim foi adotada uma posição legalista que ignora o conteúdo axiológico da obrigação decorrente do tratado. Nesse sentido, a Corte fixou entendimento acerca da distinção entre a obrigação de investigar e julgar, considerada principal, e obrigação de todos os Estados que ratificaram a Convenção. A obrigação de extraditar, por sua vez, no entendimento da jurisprudência majoritária constitui opção disponível aos demais Estados apenas no caso de falha, incapacidade ou falta de vontade do Estado sujeito à obrigação de investigar e julgar. O fato é que a base valorativa para o reconhecimento do dever de extraditar, como opção, ignora o desenvolvimento do costume internacional relativo à noção de jurisdição universal, isto é, a competência jurisdicional de Estados não diretamente envolvidos na prática de atos contrários ao Direito Internacional para investigar e julgar atos considerados jus cogens e que constituem obrigação erga omnes. Nesse sentido, o juiz Cançado Trindade critica a decisão da Corte em sua opinião separada:
“O principio básico da humanidade, enraizado na consciência humana, surgiu e se manteve contra a tortura. Com efeito, a proibição jus cogen da tortura emana em última análise da consciência jurídica, e encontra expressão no corpus juris gentium.”[3]
Assim a opinião da Corte no sentido de que a obrigação de investigar e julgar não possui o mesmo peso da obrigação de extraditar, entendida esta como opção oferecida ao Estado-parte[4], pode ser considerada um retrocesso, pois a CIJ perdeu a oportunidade de fixar uma interpretação teleológica que contextualiza o desenvolvimento da jurisdição universal como mecanismo hábil para combater a impunidade.[5] Diversamente, a Corte apenas se ateve a declarar que a proibição da tortura é baseada na prática internacional e no opinio juris, sem relacionar o pedido de extradição da Bélgica ao contexto internacional de proteção aos direitos humanos.[6] A decisão, ao contrário, limitou-se a declarar que o Estado senegalês, por não ter tomado as medidas cabíveis em tempo razoável e compatível com a Convenção, havia violado a obrigação de investigar e julgar. Ao manter a primazia do principio da subsidiariedade em relação à obrigação de extraditar, a CIJ favoreceu os argumentos do Senegal em detrimento dos defendidos pela Bélgica, aplicando o direito convencional internacional descontextualizado dos valores e propósitos protegidos pela própria Convenção contra a Tortura que demanda medidas efetivas para proteção das vítimas. A abordagem estatal, adotada pela Corte, nesse sentido, privilegia os direitos da soberania e de não intervenção estatal em detrimento da urgência de proteção dos direitos humanos envolvidos.
Principio da Não-Retroatividade e Direito Penal Internacional
Em relação ao aspecto temporal da obrigação de investigar e julgar ou extraditar a Corte fixou entendimento no sentido de que a Convenção contra a Tortura aplica-se apenas a atos praticados após a ratificação do tratado pelos Estados-parte. Isto é, segundo a posição majoritária não é relevante o fato de que segundo os princípios do Direito Penal Internacional não se aplicam os estatutos de limitação referentes a não retroatividade para crimes contra humanidade. Segundo o entendimento do Corte, cada Estado encontra-se sujeito às normas contidas no tratado após a data da ratificação. Tal posição não explica a incoerência entre a aplicação do principio da retroatividade e o reconhecimento do caráter imperativo da obrigação de investigar e julgar ou extraditar suspeitos de praticar o crime de tortura. Além de incoerente, a interpretação é descontextualizada e ignora a firme tendência jurisprudencial fixada a partir dos julgamentos de Nuremberg.[7]
Nesse sentido, o juiz Cançado Trindade, critica a posição majoritária na opinião separada chamando a atenção para o fato de que há abordagens distintas para a aplicação do principio da não-retroatividade no direito doméstico e no direito internacional. A abordagem do direito internacional, no entendimento de Cançado Trindade, privilegia a proteção da vítima e do ser humano (pro persona humana, pro victima) de maneira que a violação da obrigação aut dedere aut judicare para o crime de tortura deve ser compreendido como contínua violação do jus cogens, proibição que não se sujeita a limites temporais e espaciais.[8] Ao favorecer uma abordagem pro-estatal, a Corte acaba por ignorar o papel da justiça restaurativa na reabilitação das vítimas.[9]
Sistema de Proteção dos Direitos Humanos e Cooperação Internacional, Regional e Bilateral
O caso envolvendo a interpretação da Convenção contra a Tortura evidencia a complexa relação decorrente da aplicação de normas internacionais em diferentes âmbitos das relações internacionais. A participação da União Africana (UA) e da Comunidade de Comércio dos Estados do Oeste da África (ECOWAS) na controvérsia exemplifica diferentes tentativas de solução regional. Enquanto a UA demanda reformas legislativas por parte do Senegal, a ECOWAS apoia a decisão do judiciário senegalês que reconhece a imunidade de chefe de Estado do ex-presidente do Chade.[10]
No âmbito internacional, a CIJ é acionada para resolver litigio bilateral, mas com clara conexão com a tendência da jurisprudência das cortes regionais de proteção aos direitos humanos e tribunais internacionais ad hoc, a exemplo da Corte Interamericana de Direitos Humanos, a Corte Europeia de Direitos Humanos, o Tribunal Internacional para os crimes da ex-Iugoslávia e de Ruanda.[11]
Ao ignorar a vasta prática internacional relativa às violações de crimes internacionais protegidos pelo direito internacional convencional, a Corte acabou por favorecer uma interpretação restritiva que foca na relação bilateral entre Bélgica e Senegal como partes do tratado. Entendimento este que desconsidera a primazia do discurso dos direitos humanos, que apesar de doutrinariamente ser considerado subdisciplina do Direito Internacional Público, possui autonomia suficiente para influenciar a interpretação da controvérsia entre dois Estados, assim devendo ser informado pelo caráter imperativo e a supremacia moral do conteúdo das regras envolvidas na disputa.
Conclusões
Ao interpretar a obrigação aut dedere aut judicare aplicada à Convenção contra a Tortura no caso Bélgica v. Senegal, a jurisprudência majoritária da Corte Internacional de Justiça optou por uma perspectiva formalista que privilegia uma abordagem estatal centrada na soberania. Neste sentido, a Corte perdeu uma oportunidade de harmonizar a jurisprudência internacional de acordo com a tendência do Direito Penal Internacional que reconhece a imprescritibilidade dos crimes internacionais que afrontam a humanidade, entendida como coletivo. Além disso, ao favorecer a obrigação de investigar e julgar, sem estabelecer prazos razoáveis para acionar a opção de extraditar, a decisão não garante efeito concreto ao pedido da Bélgica. Isto é, apesar de condenar o Senegal por violação do dever de investigar e julgar, não confere à Bélgica o direito de requerer a extradição do Sr. Habré, mesmo após anos de procrastinação por parte do Estado senegalês.
Informações Sobre o Autor
Tatiana Waisberg
Professora de Direito Internacional na Escola Superior Dom Helder Câmara. Bacharel e Mestre em Direito pela PUC-MG, LLM com tese pela Faculdade de Direito Buchman da Universidade de Tel Aviv. Pesquisadora do Centro de Estudos Avançados em Direito Zvi Meitar (Fellowship, 2005-8). Advogada e Consultora Jurídica em Belo Horizonte.