Resumo: O presente trabalho de graduação tem por objetivo o estudo e a análise das discussões sobre as seguintes questões: a classificação do crime de embriaguez ao volante; a (não)obrigatoriedade do teste do etilômetro (bafômetro) e a (in) constitucionalidade das penalidades e medidas administrativas aplicadas aos que se negam a realizar o teste do “bafômetro”. Através da bibliografia divergente utilizada na elaboração desse trabalho, concordamos com a corrente que classifica o crime de embriaguez ao volante, previsto no art. 306 do Código de Trânsito Brasileiro, como um crime de perigo abstrato. Com o advento da “Lei Seca”, o legislador suprimiu desse artigo a exigência de expor a dano potencial a incolumidade de outrem. Portanto, para a configuração do crime, basta que o condutor esteja dirigindo seu veículo com concentração de álcool igual ou superior a 6 (seis) decigramas por litro de sangue, não sendo necessária a comprovação de que alguém foi exposto a algum perigo, pois este é presumido através do comportamento delituoso do condutor que se encontra sob a influência de álcool. Quanto à questão da (não)obrigatoriedade do teste do “bafômetro” e a conseqüente (in)constitucionalidade das penalidades e medidas administrativas advindas da recusa deste, também sobressaem as divergências de pensamentos. Em momento algum de nosso trabalho deixaremos de reconhecer que os direitos individuais fundamentais devem ser respeitados e reconhecidos pelo Poder Público, mas mostraremos que esses direitos, quando em aparente conflito com outros direitos também constitucionalmente protegidos, porém coletivos e públicos, podem sofrer certa limitação, através do princípio da Ponderação, de forma a se harmonizar com os interesses e os bens coletivamente relevantes e igualmente protegidos. Em virtude disso, temos, de um lado, os direitos individuais do condutor e, de outro, os direitos individuais e coletivos da população em geral, tais como o direito à vida e à segurança pública, que são afrontados quando o motorista ingere bebida alcoólica e em seguida assume a direção de um veículo. Com base nos princípios da Legalidade e da Ponderação buscaremos dar o embasamento legal e necessário, a fim de demonstrar que é lícito às autoridades fiscalizatórias utilizarem o teste do “bafômetro” como instrumento de prevenção às tragédias ocorridas no trânsito brasileiro, de forma que o condutor abordado não possa se recusar ao teste de alcoolemia por meio do etilômetro sem sofrer as devidas sanções.[1]
Palavras-chave: Obrigatoriedade, Bafômetro, Constitucionalidade, Conflito, Ponderação, Legalidade, Lícito.
Sumário: Introdução. 1. As leis de trânsito no Brasil.1.1. Breve histórico.1.2. A Lei 9.503, de 23 de setembro de 1997 (CTB). 1.3 Dispositivos do CTB relativos à embriaguez ao volante sob a ótica das Leis 9.503/97 e 11.275/06.2. Art. 306 do Código De Trânsito Brasileiro: crime de perigo ou crime de dano? 2.1 Crimes de perigo e de dano. 2.1.1. Crimes de perigo. 2.1.1.1. Crimes de perigo concreto. 2.1.1.2. Crimes de perigo abstrato. 2.2. Crimes de dano. 2.3. Classificação do crime de embriaguez ao volante. 3. A obrigatoriedade do teste do “bafômetro”. 3.1. Análise do caput do art. 277 do CTB. 3.2. A (in)constitucionalidade do § 3º do art. 277 do CTB. 3.3. A Lição dos números. Conclusão. Referências bibliográficas.
INTRODUÇÃO
No decorrer das últimas décadas, o trânsito brasileiro vem sendo palco de inúmeras tragédias. O crescente número de acidentes colaborou diretamente para levar nosso País a figurar entre os campeões mundiais de mortes no trânsito. As estatísticas estimam que ocorram entre 30 mil e 45 mil mortes por ano, das quais 70% teriam o envolvimento do fator álcool. Além disso, seriam aproximadamente 377 mil feridos por ano. Os números são assustadores, porém são o reflexo da realidade brasileira.
A Lei de Trânsito anterior, Lei 5.108/66 (CNT), regulamentada pelo Decreto 62.127/68, pelo desuso e pela omissão de suas normas que não previam qualquer espécie de crime aos condutores de veículos, já não exercia o poder de limitação ao comportamento do condutor, que, a todo o momento, desrespeitava os ordenamentos legais, pois não havia por parte das autoridades constituídas uma ação efetiva de repressão. Esse fato colaborou, somente, para aumentar o sentimento público de impunidade e estimular o cometimento de infrações.
Preocupado com essa situação, o legislador pátrio instituiu o novo Código de Trânsito Brasileiro (CTB), através da Lei n.º 9.503 de 22 de setembro de 1997. O CTB foi concebido com o intuito de tentar resolver, ou pelo menos minimizar, a problemática da associação do consumo de bebida alcoólica à direção de veículo automotor.
Apesar do rigor de suas normas, o CTB não obteve os resultados almejados e a mortalidade no trânsito brasileiro continuou a crescer. A perspectiva de diminuição das tragédias não se concretizou e coube ao legislador promover alterações na legislação de trânsito brasileira.
Em resposta ao assustador aumento de acidentes e mortes no trânsito foram promulgadas as Leis 11.275/06 e 11.705/08 (Lei Seca). Essas leis realizaram modificações significativas em vários dispositivos do Código de Trânsito Brasileiro que tratam da embriaguez ao volante, tanto no aspecto penal, quanto na esfera administrativa.
Dentre as alterações promovidas pela recente “Lei Seca”, aquelas que mais geram polêmica fazem referência ao crime de embriaguez ao volante e às penalidades previstas ao condutor que se recusar ao teste do “bafômetro”. Com relação ao novo tipo penal de embriaguez ao volante a controvérsia gira em torno da classificação do delito, se este é de perigo concreto, de perigo abstrato ou de dano. Quanto à discussão das penalidades impostas aos que se recusarem ao teste do “bafômetro” a divergência decorre da (não)obrigatoriedade do referido teste e da conseqüente (in)constitucionalidade de tais penalidades. Para uma parte da doutrina, a obrigatoriedade da submissão ao teste do “bafômetro” fere Princípios Constitucionais e Direitos Humanos Fundamentais, como a presunção do estado de inocência, o direito de permanecer calado e a ampla defesa. Uma outra parte da doutrina entende que impor o teste do “bafômetro” é totalmente constitucional, pois busca defender os valores previstos em Princípios Constitucionais superiores, visando preservar a vida humana, a incolumidade física da coletividade e de seu patrimônio, assim como a paz social.
Cabe a nós analisarmos as idéias das correntes divergentes para que possamos nos familiarizar a uma delas e posteriormente buscar soluções para a colisão de Princípios Constitucionais evidenciada nos conflitos de direitos existentes entre o condutor do automóvel e a coletividade.
1. AS LEIS DE TRÂNSITO NO BRASIL
Inicialmente, destacamos que o presente capítulo se propõe, tão somente, a fazer uma breve referência ao histórico da legislação de trânsito no Brasil acompanhando a evolução dos dispositivos referentes à embriaguez ao volante, a partir da idéia dos seguintes autores: André Abreu de Oliveira (2008); Cynthia Cibelle Pacheco de Menezes (2007); Eduardo Luiz Santos Cabbette (2008); Giovani Ferri (1998); Leon Frejda Szklarowsky (2008) e José Ricardo Rocha Cintra de Lima (1999).
1.1. Breve histórico
Ao longo de sua existência, as leis de trânsito brasileiras vêm sofrendo uma série de modificações e adequações na busca incessante de alterar a triste realidade enfrentada por todos que dependem do meio viário para se locomover diariamente. Realidade essa, que faz com que a sociedade brasileira testemunhe todos os dias o aumento das vítimas por acidentes de trânsito devido à agressividade, irresponsabilidade e atitudes criminosas dos condutores, que através de seus comportamentos inadequados colaboram diretamente para elevar as estatísticas negativas do nosso trânsito.
A primeira legislação de trânsito a vigorar no Brasil foi o Código Nacional de Trânsito, instituído pelo Decreto-lei n.º 2.994, de 28 de janeiro de 1941. Em setembro do mesmo ano, mais precisamente no dia 25, foi aprovado o Decreto-lei n.º 3.651, que deu nova redação ao Código Nacional de Trânsito, sendo criados o Conselho Nacional de Trânsito – CONTRAN, com sede no Distrito Federal e subordinado diretamente ao Ministério da Justiça e Negócios Interiores, e os Conselhos Regionais de Trânsito – CRT, nas capitais dos Estados, subordinados aos respectivos governos.
Para substituir o Código defasado que vigorava desde 1941, foi realizado, no ano de 1958, o II Congresso Nacional de Trânsito. Fruto desse Congresso foi a produção do primeiro anteprojeto do Código de Trânsito, o qual foi remetido ao Congresso Nacional em 26 de agosto de 1960 e aprovado através da Lei n.º 5.108, de 21 de setembro de 1966, sendo assim, instituído o segundo Código Nacional de Trânsito. Em 23 de fevereiro de 1967, o Decreto-lei n.º 237 promoveu alterações nesse código com a criação do Departamento Nacional de Trânsito – DENATRAN, integrante do Ministério da Justiça e Negócios Interiores. E finalmente, no dia 16 de janeiro de 1968, o Código Nacional de Trânsito foi regulamentado pelo Decreto-lei n.º 62.127.
Durante a sua vigência, o Código Nacional de Trânsito (CNT) de 1966 sofreu várias alterações, mas mesmo assim caiu em desuso, pois eram poucos os que conheciam as suas normas e este já não refletia a realidade do trânsito brasileiro. Esses fatos, aliados a fatores como a crescente imprudência, o excesso de velocidade, a ingestão de bebidas alcoólicas pelos condutores de automóveis e os números assustadores de tragédias no trânsito desencadearam na necessidade de se produzir uma legislação de trânsito mais atual, que se adequasse às circunstâncias que anteriormente não eram consideradas.
De acordo com o autor Jair Vieira Lot:
“O superado Código Nacional de Trânsito de 1966 vigorou até 21 de janeiro de 1988 sem nunca ter previsto em suas normas qualquer espécie de crime referente aos condutores de veículos, tão-só prescrevendo punições administrativas e multas aos infratores (Capítulo XI, arts. 94 a 111)”.[2]
Para suprir tais deficiências, o CNT foi revogado pelo Código de Trânsito Brasileiro (CTB), instituído e publicado em 23 de setembro de 1997 pela Lei n.º 9.503, com vigência prevista a partir de 22 de janeiro de 1998.
1.2. A Lei 9.503, de 23 de setembro de 1997 (CTB)
No dia 06 de junho de 1991, através de Decreto Presidencial, foi criada uma Comissão Especial destinada a elaborar o anteprojeto do novo Código de Trânsito Brasileiro. Após sua elaboração, o anteprojeto foi publicado no Diário Oficial da União na edição de 13/07/1992. Abriu-se então à sociedade, a possibilidade de enviar sugestões ao Ministro da Justiça no intuito de se produzir uma legislação com a participação popular e, posteriormente à sua análise, o anteprojeto transformou-se no Projeto de Lei n.º 3.710 de 1993.
O então denominado Código Brasileiro de Trânsito, na proposta original do Executivo, era composto de 198 (cento e noventa e oito) artigos, aos quais foram acrescidos 93 (noventa e três) no momento em que o anteprojeto foi oficialmente encaminhado ao Poder Legislativo no ano de 1993.
Na Câmara dos Deputados, o Projeto de Lei n.º 3.710 passou a ser denominado Código de Trânsito Brasileiro (CTB). Além de promover várias alterações no projeto do Executivo, o CTB teve um acréscimo de 34 (trinta e quatro) artigos, totalizando 325 (trezentos e vinte e cinco) dispositivos.
Por questões de ordem Legislativa, o Projeto de Lei da Câmara foi enviado ao Senado Federal em abril de 1994. Após ser analisado nessa instância, o projeto foi amplamente modificado, sendo oferecidas inicialmente 137 (cento e trinta e sete) emendas, razão pela qual foi editado o Substitutivo de n.º 73.
Diante das modificações, o Substitutivo do Senado voltou à Câmara dos Deputados para ser analisado. Após ser apreciado pela Comissão Especial, o Substitutivo teve algumas propostas aprovadas e outras rejeitadas.
E finalmente, no dia 23 de setembro de 1997, o Exm.º Sr. Presidente da República, após vetar vários dispositivos do Projeto de Lei n.º 3.710 de 1993, instituiu o Código de Trânsito Brasileiro.
O atual Código de Trânsito Brasileiro foi sancionado com o objetivo principal de buscar soluções para o caos em que se encontrava o sistema viário brasileiro. Ao contrário do Código anterior (Lei n.º 5.108/66), o novo Código impôs sanções aos motoristas imprudentes que dirigem seus veículos colocando em risco a vida dos demais condutores e pedestres. O legislador buscou ser rigoroso e adotar medidas severas na pretensão de minimizar o elevado índice de mortes ocorridas anualmente no trânsito brasileiro.
A elaboração dessa Lei representa um poderoso aliado às autoridades constituídas para a imposição do regramento previsto na norma e na aplicação das sanções cabíveis aos motoristas que cometem infrações e fazem de seus automóveis verdadeiras armas na condução dos mesmos. No entanto, há muito que se pensar, fazer e modificar, pois diversas são as lacunas na Lei que possibilitam aos motoristas infratores continuarem cometendo barbáries no trânsito e nos deixando com a sensação de impunidade sem perspectivas de melhora.
1.3. Dispositivos do CTB relativos à embriaguez ao volante sob a ótica das Leis 9.503/97 e 11.275/06
O art. 165 da Lei n.º 9.503/97 previa como infração de trânsito gravíssima a conduta do motorista que dirigisse “sob a influência de álcool, em nível superior a seis decigramas por litro de sangue, ou de qualquer substância entorpecente ou que determine dependência física ou psíquica”.
Entretanto, a redação do caput desse dispositivo foi alterada pela Lei n.º 11.275 de 7 de fevereiro de 2006, que suprimiu do art. 165 do CTB o trecho que determinava o nível de álcool para configurar a infração. Diante dessa lei, basta que o motorista esteja dirigindo sob a influência do álcool para incorrer na transgressão aludida anteriormente. Portanto, foi extinto qualquer limite de álcool na infração de embriaguez ao volante, conforme preconiza sua atual redação: “Art. 165. Dirigir sob a influência de álcool ou de qualquer substância entorpecente ou que determine dependência física ou psíquica”.
O mesmo limite de seis decigramas de álcool por litro de sangue era usado como referência pelo art. 276 do CTB para comprovar que o condutor se achava impedido de dirigir veículo automotor: “Art. 276. A concentração de seis decigramas de álcool por litro de sangue comprova que o condutor se acha impedido de dirigir veículo automotor”.
Por sua vez, o caput do art. 277 do CTB, com redação determinada pela Lei n.º 9.503/97, também adotava o limite de seis decigramas de álcool por litro de sangue para impor ao motorista os testes e exames a fim de apurar o estado do condutor do veículo:
“Art. 277. Todo condutor de veículo automotor, envolvido em acidente de trânsito ou que for alvo de fiscalização de trânsito, sob suspeita de haver excedido os limites previstos no artigo anterior, será submetido a testes de alcoolemia, exames clínicos, perícia, ou outro exame que por meios técnicos ou científicos, em aparelhos homologados pelo CONTRAN, permitam certificar seu estado.”
Com o advento da Lei n.º 11.275/06, o art. 277 também sofreu alterações no que diz respeito aos níveis de consumo de álcool. Deixou de se considerar os seis decigramas de álcool por litro de sangue, bastando apenas a suspeita de que o condutor esteja dirigindo sob a influência de qualquer quantidade de álcool para ser submetido aos testes e exames que comprovem sua alcoolemia.
“Art. 277. Todo condutor de veículo automotor, envolvido em acidente de trânsito ou que for alvo de fiscalização de trânsito, sob suspeita de dirigir sob a influência de álcool será submetido a testes de alcoolemia, exames clínicos, perícia ou outro exame que, por meios técnicos ou científicos, em aparelhos homologados pelo CONTRAN, permitam certificar seu estado.”
Importante ressaltar que é necessário estar sob suspeita de dirigir embriagado ou envolver-se em acidente de trânsito, para que o condutor de veículo automotor seja alvo de fiscalização e possa ser submetido aos testes, exames e perícias elencados no artigo supracitado.
Outra mudança trazida pela Lei n.º 11.275/06 foi a criação do § 2º do art. 277. Tal parágrafo traz a possibilidade de recusa por parte do motorista, em submeter-se à realização dos testes, exames e perícias previstos no caput deste artigo.
“§ 2o No caso de recusa do condutor à realização dos testes, exames e da perícia previstos no caput deste artigo, a infração poderá ser caracterizada mediante a obtenção de outras provas em direito admitidas pelo agente de trânsito acerca dos notórios sinais de embriaguez, excitação ou torpor, resultantes do consumo de álcool ou entorpecentes, apresentados pelo condutor.”
A redação do caput do art. 277 foi dada com o intuito de facilitar a abordagem e a fiscalização pelos Agentes de Trânsito e autoridades competentes. Ao acrescentar o § 2º ao dispositivo, a Lei n.º 11.275/06 propiciou aos infratores, aos motoristas envolvidos em acidentes de trânsito e aos condutores alvos de fiscalização a possibilidade de recusa à realização dos testes de alcoolemia. Esse preceito da Lei desencadeou na crescente falta de colaboração dos motoristas, que usam o argumento da não-obrigatoriedade para se eximirem dos referidos testes.
Ao tratar “Dos Crimes em espécie”, o Código de Trânsito Brasileiro em seu art. 302 faz referência ao homicídio culposo na direção de veículo automotor. Todavia, somente com a criação da Lei n.º 11.275/06 foi acrescentado a este dispositivo o inciso V que faz alusão ao crime cometido por motorista sob a influência do álcool. O inciso supracitado é uma das causas de aumento de pena do crime de homicídio culposo na direção veicular. Essa circunstância é prevista para quem comete o crime em questão, estando sob a influência do álcool ou substâncias entorpecentes de efeitos análogos, tendo como conseqüência direta o aumento da pena de um terço à metade.
“Art. 302. Praticar homicídio culposo na direção de veículo automotor:
Penas – detenção, de dois a quatro anos, e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor.
Parágrafo único. No homicídio culposo cometido na direção de veículo automotor, a pena é aumentada de um terço à metade, se o agente:
I – […];
V – estiver sob a influência de álcool ou substância tóxica ou entorpecente de efeitos análogos.”
Com relação ao art. 303 do CTB, este muito se assemelha ao artigo 302, referido anteriormente, no que diz respeito às mudanças evidenciadas com o advento da Lei n.º 11.275/06. A prática da lesão corporal culposa na direção de veículo automotor terá sua pena aumentada de um terço à metade para aquele condutor que incorrer em qualquer das hipóteses do parágrafo único do art. 302. Portanto, o motorista que estiver sob a influência de álcool ou substâncias tóxicas de efeitos análogos e praticasse lesão corporal culposa a outrem, terá sua pena elevada de um terço à metade, como podemos observar na transcrição de sua redação:
“Art. 303. Praticar lesão corporal culposa na direção de veículo automotor:
Penas – detenção, de seis meses a dois anos e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor.
Parágrafo único. Aumenta-se a pena de um terço à metade, se ocorrer qualquer das hipóteses do parágrafo único do artigo anterior.”
Diante dos tipos específicos dos Crimes de Trânsito previstos nos arts. 302 (homicídio culposo) e 303 (lesão corporal culposa) do Código de Trânsito Brasileiro, pode-se entrever que estes derrogaram os dispositivos que se assemelham a eles no Código Penal. Através do Princípio da Especialidade, inserido no art. 12 do Código Penal (lex specialis derogat legi generali), sustenta-se que o condutor de veículo automotor que provocar homicídio culposo no trânsito, estará sujeito às sanções do tipo especial do art. 302 da Lei n.º 9.503/97 (CTB) e não mais às do art. 121, § 3º, do Código Penal. Nesse entendimento, o professor Damásio de Jesus pondera:
“Se a lei especial, incriminando certos fatos, ou considerando determinadas figuras típicas sob ângulo diferente, ditar preceitos particulares para a sua própria aplicação, em contraposição às normas do Código, o conflito aparente de normas será resolvido pelo princípio da especialidade”.[3]
O mesmo deve ser considerado com relação ao motorista que causar lesões corporais culposas na condução de seu veículo através de acidente de trânsito. Nesse caso, não se aplicará o art. 129, § 6º, do Código Penal, sendo o enquadramento legal baseado no art. 303 do CTB, pois conforme acentuam os doutrinadores Luiz Régis Prado e Cezar Roberto Bittencourt, também “se considera especial uma norma penal em relação a outra geral, quando reúne todos os elementos desta, acrescidos de mais algum, denominado especializante”.[4]
Por fim, o art. 306 do CTB é outro dispositivo que se encontra na parte “Dos Crimes em Espécie” e faz menção aos delitos cometidos por condutores de veículos sob a influência do álcool ou substâncias de efeitos análogos. É tipificado como crime de embriaguez ao volante e se perfazia somente quando a incolumidade de outrem estivesse exposta, ou seja, deveria haver o perigo concreto, se exigindo a comprovação de ameaça aos demais condutores ou pedestres. Não bastava que o motorista estivesse conduzindo seu veículo sob a influência de álcool ou substâncias entorpecentes de efeitos análogos, sendo necessário que o condutor dirigisse de maneira perigosa (avançando sinal vermelho, dirigindo em ziguezague, guiando com excesso de velocidade, etc.), colocando em risco a segurança pública.
“Art. 306. Conduzir veículo automotor, na via pública, sob a influência de álcool ou substância de efeitos análogos, expondo a dano potencial a incolumidade de outrem:
Penas – detenção, de seis meses a três anos, multa e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor.”
As penas impostas por esse artigo só poderiam ser efetivamente aplicadas quando houvesse a comprovação do estado de embriaguez do condutor, conforme estava previsto no art. 277 do CTB.
2. art. 306 do Código de Trânsito Brasileiro: crime de perigo ou crime de dano?
Devemos ressaltar que, no segundo capítulo, faremos uma abordagem doutrinária destacando a diferença entre os crimes de perigo e de dano, buscando, posteriormente, o enquadramento que a legislação e doutrinadores dão ao delito de embriaguez ao volante, a partir das idéias dos seguintes autores: Cezar Roberto Bitencourt (2002); Damásio Evangelista de Jesus (1998); Diego Romero (2004); Eduardo Luiz Santos Cabette (2008); Guilherme de Souza Nucci (2007), Luiz Flávio Gomes (2008); Luiz Regis Prado (2006); Mário Machado (2008) e Renato Marcão (2009).
2.1. Crimes de perigo e de dano
Quanto ao resultado provocado, os crimes podem ser qualificados como crimes de perigo e de dano.
2.1.1. Crimes de perigo
Nos crimes de perigo, o delito é consumado com a simples possibilidade de lesão ao bem jurídico protegido. Não se faz necessária a produção de um dano efetivo, mas tão-somente a criação da situação de perigo que possa ou não desencadear no dano. Nas palavras dos doutrinadores Guilherme de Souza Nucci e Luiz Regis Prado, para aquele “os crimes de perigo são os que se contentam, para a consumação, com a mera probabilidade de haver um dano”[5] e para este “nos delitos de perigo basta a existência de uma situação de perigo”.[6]
Em síntese, o crime de perigo é aquele que, mesmo não destruindo ou diminuindo o bem jurídico tutelado pelo direito penal, representa uma ponderável ameaça ou risco à existência ou segurança de ditos valores protegidos. O perigo pode ser concreto ou abstrato (presumido).
2.1.1.1. Crimes de perigo concreto
Concreto é o perigo que precisa ser demonstrado, provado para que seu agente seja punido, ou seja, deve ser investigado e comprovado que houve um perigo real de lesão para o bem jurídico tutelado. O delito só se consuma se o bem jurídico for exposto a dano real.
A realização do crime de perigo concreto pressupõe uma efetiva produção de perigo para o objeto da ação, devendo ser demonstrada a situação de risco corrida pelo bem juridicamente protegido, não sendo necessária a ocorrência de lesão para que seja infringida a norma penal.
Nesse entendimento, o autor Diego Romero conclui que:
“Assim, para a caracterização dos crimes de perigo concreto faz-se necessário a coexistência de no mínimo três situações, a saber: primeiramente, é fundamental existir um objeto tutelado que entre no âmbito de conhecimento e volição daquele que pratica determinada ação que acaba expondo tal objeto a perigo de dano; em segundo lugar, esta ação realizada deve criar real e individual perigo de dano ao objeto da ação; e em terceiro lugar, do ponto de vista do bem jurídico, esta exposição concreta a perigo traduz-se em uma situação em que, apresenta-se provável a causação de uma lesão, que não pode ser evitada de forma alguma.”[7]
2.1.1.2. Crimes de perigo abstrato
Quanto ao perigo abstrato, o doutrinador Cezar Roberto Bitencourt nos ensina que é um perigo presumido juris et de jure, ou seja, não precisa ser provado, basta que seja realizada uma ação que pressuponha a situação de perigo.[8]
O delito de perigo abstrato é, nas palavras do jurista alemão Claus Roxin, “aquele em que se castiga a conduta tipicamente caracterizada perigosa como tal, sem que no caso concreto tenha que ocorrer um resultado de exposição a perigo”.[9] Ante a noção de perigo abstrato notamos a preocupação pela diminuição do risco, pois procura-se proteger o bem jurídico antes mesmo de sua exposição a perigo real, efetivo de dano. A realização dessa modalidade delitiva dependerá da prática de um comportamento que viole uma norma jurídica formal, ou seja, da realização de um ato proibido pelo legislador, mesmo que não cause dano ou sequer um perigo efetivo à ordem jurídica. Portanto, não é necessária a ocorrência de dano efetivo do bem jurídico e nem, ao menos, a possibilidade de perigo concreto para haver punição.
Nesse sentido, pode-se dizer que com o alcance dos crimes de perigo abstrato, busca-se defender a ordem social e o direito à segurança de todos os indivíduos da sociedade. Procura-se proteger o bem jurídico tutelado, reprimindo as condutas que por si, geram perigo suficiente, independentemente de qualquer outro acontecimento.
A presunção do perigo e do dano, além de buscar uma efetiva repressão ao crime, facilita os caminhos da punição criminal, pois a produção de lesão e de perigo real são punidos antecipadamente através da antecipação de tutela penal, não sendo necessária a prova de um dano e nem sequer a prova da causalidade entre a conduta e o resultado, já que este é presumido.
2.2. Crimes de dano
Nos crimes de dano, para a configuração e consumação do delito, deve haver a efetiva lesão do bem jurídico tutelado. Para o doutrinador Guilherme de Souza Nucci “trata-se da ocorrência de um prejuízo efetivo e perceptível pelos sentidos humanos”.[10]
O autor Luiz Regis Prado, ao tratar dos crimes de dano, os chama de delitos de lesão, e, conceitua estes como sendo “a conduta delitiva que provoca um dano concreto ou material. Trata-se de uma especificação do delito de resultado (ex.: art. 121, CP – delito de homicídio)”.[11]
Portanto, a diferença básica entre os crimes de perigo e os crimes de dano, reside no fato de que para a configuração daqueles basta a simples exposição do bem jurídico a uma situação de perigo, enquanto que para estes deve haver a efetiva lesão do bem protegido juridicamente para a consumação do delito.
2.3. Classificação do crime de embriaguez ao volante
Em sua redação original (Lei n.º 9.503/97), o crime previsto no caput do art. 306 do CTB era descrito da seguinte maneira: “Art. 306: Conduzir veículo automotor, na via pública, sob a influência de álcool ou substância de efeitos análogos, expondo a dano potencial a incolumidade de outrem.”
O entendimento predominante era de que se tratava de um delito de perigo concreto. Luiz Flávio Gomes e Cezar Roberto Bitencourt são autores que defendem essa tese. Para esses doutrinadores, a frase “expondo a dano potencial a incolumidade de outrem”, deixava clara a exigência da caracterização de um perigo real, sendo assim, impositivo para a configuração do crime a comprovação de um risco efetivo do bem jurídico coletivo, “suficiente para rebaixar o nível de segurança viária (condutor sob influência da substância + direção anormal, de forma a rebaixar o nível de segurança viária)”.[12]
Para outra parte da doutrina, o crime era de perigo abstrato, pois defendem a tese de que só o fato de alguém dirigir embriagado já coloca em risco a segurança dos demais condutores e pedestres. Afilia-se a essa corrente o doutrinador Arnaldo Rizzardo.
Havia, ainda, uma terceira corrente, que sustentava a idéia de que o crime do art. 306 do CTB, tratava-se de um delito de dano. São favoráveis a ela, os doutrinadores Fernando Capez e Damásio Evangelista de Jesus. Segundo esses autores, quando uma pessoa conduz veículo automotor nas vias públicas sob efeito de álcool e de outras substâncias psicoativas, ela está atingindo efetivamente o bem jurídico tutelado – segurança viária – e não somente colocando-o em risco. Vale ressaltar as palavras do renomado professor Damásio Evangelista de Jesus:
“Não se trata de infração penal contra a pessoa. Não se exige, diante disso, prova de que algum objeto jurídico individual sofreu risco de dano. Basta, pois, a probabilidade de dano, a possibilidade de risco à coletividade ou “dano potencial”, que reduz o nível de segurança nas relações de trânsito (objetividade jurídica principal). Dirigindo embriagado e de forma anormal (crime de mera conduta), o motorista expõe a coletividade a relevante probabilidade de dano que constitui lesão ao objeto jurídico “incolumidade pública”, no que concerne à segurança do trânsito (delito de lesão). Repita-se: o sujeito passivo é a coletividade e não a pessoa. Em face disso, a conduta delituosa é dirigida contra o objeto jurídico “segurança coletiva”, não sendo preciso que um dos membros do corpo social seja exposto a uma situação de real perigo.”[13]
Concordamos com as idéias dos autores que defendem a tese do perigo concreto. O crime do art. 306, em sua redação original, só poderia ser caracterizado como um crime de perigo concreto, pois o legislador exigia literalmente a comprovação casuística de perigo. Estava descrito em seu texto o perigo exigido para a sua configuração. Esse perigo deveria ser real, investigado e comprovado caso a caso. Portanto, seria inviável classificá-lo como crime de perigo abstrato, visto que não bastava tão-somente a presunção de uma situação de perigo. Também não poderia ter o enquadramento no crime de dano, pois seria necessário ocorrer concretamente uma lesão efetiva ao bem jurídico tutelado para que assim fosse qualificado.
Contudo, com o advento da Lei n.º 11.705, a chamada “Lei Seca”, em 19 de junho de 2008, o caput do art. 306 do CTB foi alterado, ganhando uma nova redação:
“Art. 306: Conduzir veículo automotor, na via pública, estando com concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 (seis) decigramas, ou sob a influência de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência.”
Como podemos notar, foi extinta a exigência literal do perigo concreto. O legislador suprimiu do texto a exigência de “exposição a dano potencial”, outrora vigente.
A partir da alteração do art. 306 do CTB, a discussão a respeito da classificação do crime de embriaguez ao volante ganhou novo impulso e destaque.
Seguimos a corrente doutrinária que defende, através do novo texto legislativo, que o art. 306 do CTB deixou de ser um crime de perigo concreto e passou a se enquadrar nos crimes de perigo abstrato. A nosso ver, atualmente, o crime de embriaguez ao volante configura-se com a mera conduta de conduzir veículo automotor, nas vias públicas, “estando com concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 (seis) decigramas ou sob influência de qualquer substância psicoativa que determine dependência”.
Com base nessa nova redação, parece-nos evidente que o legislador pretendeu estabelecer que a simples conduta de dirigir embriagado (na dosagem definida pela lei) é crime. Portanto, temos em questão um crime de perigo abstrato em que a ofensa é presumida pela lei, não sendo necessário para sua configuração qualquer situação fática que indique que alguém sofreu ou poderia sofrer algum risco em decorrência de determinada conduta de outrem.
Nas palavras do professor Eduardo Luiz Santos Cabette:
“O perigo agora se deduz da concentração de álcool no sangue ou da influência de outra substância psicoativa.
Diante desse novo quadro legislativo, impõe-se o reconhecimento de que o art. 306, CTB, descreve crime de perigo abstrato. Mesmo que uma pessoa seja surpreendida dirigindo normalmente, mas sob efeito de álcool, por exemplo, em taxa superior à tolerada para fins penais, ela incidirá na prática criminosa. A infração se perfaz somente pela condução nas condições descritas no tipo penal.”[14]
Renato Marcão é outro jurista que defende a tese do crime de perigo abstrato. Segundo o autor, o legislador ao dar nova redação ao caput do art. 306 do CTB, deixou de exigir a ocorrência de perigo concreto para a configuração do delito:
“O legislador passou a entender que conduzir veículo na via pública nas condições do art. 306, caput, do Código de Trânsito Brasileiro, é conduta que, por si, independentemente de qualquer outro acontecimento, gera perigo suficiente ao bem jurídico tutelado, de molde a justificar a imposição de pena criminal.
Não se exige mais um conduzir anormal, manobras perigosas que exponham a dano efetivo a incolumidade de outrem.
O crime, agora, é de perigo abstrato; presumido”.[15]
Entretanto, a maioria dos autores criminalistas divergem de nossas idéias e consideram que o crime do art. 306 do CTB continua sendo de perigo concreto, mesmo após a alteração de sua redação.
Mário Machado é um desses autores que se opõe ao crime de perigo abstrato. Na visão do autor, não existe crime sem a ofensa a um bem jurídico. Sendo a segurança viária o bem jurídico tutelado, nos casos de crime por embriaguez ao volante, só ocorrerá o delito quando àquela for afetada ou colocada em risco. “É elementar no direito penal que a existência de crime exige um mínimo de lesividade ao bem jurídico protegido. O princípio constitucional implícito da ofensividade não permite crime de perigo abstrato”.[16]
Diante desse entendimento, o autor supracitado conclui que o crime de embriaguez ao volante só estará configurado quando o condutor dirigir seu veículo em via pública, estando sob a influência de álcool (desde que a concentração de álcool por litro de sangue seja igual ou superior a 6 decigramas) e gerando perigo à segurança viária, ainda que indeterminado. E, nesse sentido, Mário Machado explica: “pode não haver, no momento, perigo concreto a uma determinada pessoa, mas basta perigo indeterminado, isto é, um risco potencial para a segurança viária a partir da direção anormal”.[17]
Seguindo essa linha de pensamento, o mestre Luiz Flávio Gomes preconiza que é inadmissível, no ordenamento jurídico moderno, crimes de perigo abstrato, pois estes são incompatíveis com o princípio constitucional da ofensividade. Eis aqui a exposição de sua tese:
“Todo tipo penal que descreve um perigo abstrato deve ser interpretado na forma de perigo concreto (ainda que indeterminado, que é o limite mínimo para se admitir um delito, ou seja, a intervenção do Direito Penal).”[18]
No entendimento do referido autor, não basta somente o fato de dirigir embriagado para haver a configuração do delito penal, sendo imprescindível que o condutor dirija de forma anormal e descontrolada (contra-mão, zigue-zague, avançando sinal vermelho).
Gomes também elucida que existem três formas de proteger os bens jurídicos em questão. A primeira delas seria exigir que da conduta resultasse um perigo concreto para uma pessoa concreta, ou seja, perigo concreto determinado. A segunda forma trata do perigo concreto indeterminado, isto é, aquele que causa uma situação de perigo e coloca em risco o bem jurídico coletivo – segurança viária. A última forma refere-se ao perigo abstrato, que é repudiado pelo autor:
“A forma extremada, que constitucionalmente está vedada ao legislador, consiste em valer-se do perigo abstrato (que é uma posição absolutista, autoritária, que fere o princípio da ofensividade).”[19]
Em torno das divergências dos autores e com base em nosso posicionamento, faz-se necessário expormos as causas, motivos e argumentos que nos levaram a crer que o crime de embriaguez ao volante trata-se de um crime de perigo abstrato, ou seja, em que a ofensa ao bem jurídico é presumida pela lei.
Primordialmente, é necessário enfatizar nossa concordância com a corrente divergente, a respeito de que é inadmissível a criação arbitrária pelo legislador de infrações penais para condutas que não lesam e nem criam perigo a bens jurídicos. Contudo, essa concordância não nos exime de acreditar que o princípio constitucional da ofensividade é observado no momento em que classificamos o crime de embriaguez ao volante, previsto no art. 306 do CTB, como crime de perigo abstrato.
Pelo princípio da ofensividade entende-se que “o fato é típico quando o bem jurídico, revelado pela norma de valoração, vem a ser concretamente afetado ou por uma lesão ou por um perigo concreto de lesão”.[20]
Nesses termos, Luiz Flávio Gomes expõe o seu pensamento:
“Em um Estado Constitucional que se define, com efeito, como democrático e de Direito, e que tem nos direitos fundamentais seu eixo principal, não resta dúvida que só resulta legitimada a tarefa de criminalização primária que recai sobre condutas ou ataques concretamente ofensivos a um bem jurídico, e mesmo assim não todos os ataques, senão unicamente os mais graves (fragmentariedade)”[21].
Dessa forma, podemos concluir que apenas os ataques insuportáveis e que podem vir a causar repercussões negativamente nítidas à convivência social é que devem ser incriminados. Por força do princípio da ofensividade, a sanção penal somente será legítima quando a conduta externada cause uma grave e insuportável ofensa ao bem jurídico resguardado pela norma.
Na visão do professor Luiz Flávio Gomes, dois são os requisitos necessários para a configuração do delito: “além da presença de uma ação ou omissão (uma conduta), também se faz necessário um resultado jurídico, que consiste numa perturbação (intolerável) do bem tutelado, isto é, de uma liberdade alheia”.[22]
Em que pese toda a argumentação acerca do princípio da ofensividade, não podemos deixar de reconhecer que existem condutas que, por si, independentemente de qualquer outro fato, geram e representam um grave perigo aos bens jurídicos tutelados, dispensando a análise casuística por sua notoriedade e justificando a imposição da penalidade criminal.
E quanto à combinação álcool e volante, não restam dúvidas, de que ela é extremamente perigosa tanto para aquele que conduz o veículo sob efeito de álcool, quanto para os demais condutores e pedestres que circulam pelas vias públicas.
Partindo dessa premissa, podemos inferir que comprovada a embriaguez ao volante não será necessário provar que havia perigo concreto na conduta de quem dirigia o veículo automotor, pois esse perigo é um fato notório, comprovado pelos milhares de acidentes de trânsito, produzidos em sua imensa maioria pelo fato lastimável da ebriedade ao volante. Nesses acidentes, inúmeros e imensuráveis são os prejuízos causados à vida, à integridade física, à saúde e ao patrimônio de uma infinidade de pessoas. Todos estes, direitos fundamentais necessários ao desenvolvimento da personalidade do indivíduo, protegidos pela Constituição Federal, no caput do seu art. 5º:
“Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança, e à propriedade […].”[23]
Ao tratar da segurança pública, a Constituição Federal, em seu art. 144, caput, prevê que sendo ela “dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio […]”.[24]
Somente a segurança no trânsito, objeto jurídico da tutela penal, será capaz de preservar a incolumidade pública resguardada pela nossa Carta Magna. E para proporcionar um trânsito seguro nas vias públicas é indispensável a percepção de que não existem níveis e discernimento seguros para conduzir veículos sob efeito de álcool ou de substâncias psicoativas. O fato é notório e, portanto, independe de uma análise escrupulosa de cada caso concreto. Conforme nos ensina o doutrinador Júlio Fabbrini Mirabete:
“Os fatos notórios independem de prova (notória non egent probatione), pois são aqueles cujo conhecimento integra a cultura normal, a informação dos indivíduos de determinado meio.”[25]
Fernando Capez é outro autor que, apesar de reconhecer a existência e respeitar a importância do princípio da ofensividade – e não poderia ser diferente -, dá seu parecer favorável à notoriedade dos fatos no caso em tela:
“Em suma, entendemos que a ofensividade ou lesividade é um princípio que deve ser aceito, por se tratar de princípio constitucional do direito penal, diretamente derivado do princípio da dignidade humana (CF, art. 1º, III). Sua aplicação, no entanto, não pode ter o condão de abolir totalmente os chamados crimes de perigo abstrato, mas tão somente temperar o rigor de uma presunção absoluta e inflexível. A ofensividade deve ser empregada para afastar as hipóteses de crime impossível, em que o comportamento humano jamais poderá levar o bem jurídico a lesão ou a exposição a risco de lesão.”[26]
Na aplicação desses conhecimentos é inviável pensarmos em crime impossível nas situações de perigo criadas por aqueles que conduzem seus veículos sob efeito de álcool ou de substâncias entorpecentes. Portanto, o raciocínio lógico e as estatísticas agressivas do trânsito nos levam a crer que impossível é fechar os olhos e ignorar aquilo que é óbvio e evidente, ou seja, que direção e álcool não combinam. Respeitar o rigor da lei nada mais é do que respeitar a preservação da vida humana, não somente a dos demais indivíduos, mas também a própria.
Devemos primar pelo princípio constitucional da dignidade humana, ou seja, tratar com igualdade de direitos todos os homens; observar, assegurar e proteger os direitos inalienáveis do homem e garantir o desenvolvimento da personalidade do ser humano e impedir atuações que impliquem na sua degradação. Trazendo esse princípio para dentro da esfera do crime em questão veremos que o desrespeito a ele é incontestável. Conduzir veículo automotor sob a influência de álcool ou de outras substâncias psicoativas significa dizer que o direito à vida, à segurança e à incolumidade estão sendo colocados em risco, ferindo assim o princípio referido anteriormente, pois a conduta irresponsável desses motoristas, por si só, induz à existência de perigo real à coletividade. Determinados comportamentos pressupõem lesividade sem que seja necessário comprovar de maneira casuística a ofensa ao bem jurídico tutelado. Através da concepção do art. 334, I do CPC, que deve ser estendido ao Direito Penal, confirma-se a idéia de que não dependem de prova os fatos notórios: “Art. 334: Não dependem de prova os fatos: I – notórios; […]”.[27]
Ante o exposto e em conseqüência do estudo e da análise das idéias divergentes dos autores supracitados, nos tornamos partidários da corrente que classifica o crime de embriaguez ao volante como crime de perigo abstrato. Portanto, não é necessário comprovar aquilo que já está provado nas estatísticas alarmantes do trânsito e na destruição de milhares de vidas inocentes. O perigo é real e notório quando nos deparamos com situações em que, motoristas bêbados dirigem seus veículos sem a mínima responsabilidade. Acreditamos que todo condutor ao assumir o volante após ingerir bebida alcoólica, tem (ou deveria ter) a devida consciência de que está colocando em risco a sua própria vida e a das demais pessoas que trafegam pelas vias públicas. Consequentemente, deverá estar preparado para responder por seus atos e sofrer as devidas punições.
3. A OBRIGATORIEDADE DO TESTE DO “BAFÔMETRO”
As recentes alterações ocorridas no Código de Trânsito Brasileiro com a entrada em vigor da Lei n.º 11.705/08 (“Lei Seca”), proporcionaram um amplo debate, não somente entre os juristas, percorrendo todos os segmentos da sociedade, principalmente no que tange à obrigatoriedade do teste do “bafômetro” e sua correspondente constitucionalidade.
Ao nos afiliarmos à corrente que se posiciona a favor do crime de perigo abstrato nos casos de embriaguez ao volante, ou seja, de que o delito estará configurado quando o condutor guiar seu veículo estando com concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 (seis) decigramas, entendemos e acreditamos ser o teste do “bafômetro” a única maneira viável, capaz de permitir aos agentes policiais a constatação do teor alcoólico ingerido pelo motorista que for alvo de fiscalização.
Imbuídos desse pensamento, torna-se necessária uma análise minuciosa e detalhada do caput e especialmente do parágrafo 3º do art. 277 do CTB, para que possamos sustentar nosso posicionamento a respeito da (não)obrigatoriedade do teste do “bafômetro” e sua respectiva (in)constitucionalidade, com base na colisão de princípios constitucionais e nas idéias dos seguintes autores: Alexandre de Moraes (2008); Antônio Álvares da Silva (2008); Celso Antônio Bandeira de Mello (2006); Fernando Brandini Barbagalo (2008); João Baptista Herkenhoff (2009); Luiz Flávio Gomes (2008) e Renato Marcão (2009).
3.1. Análise do caput do art. 277 do CTB
Dentre os testes de alcoolemia previstos no caput do art. 277 do CTB, o que gera mais polêmica e debates é o “bafômetro”. Inúmeras são as críticas atribuídas a ele, mas também existem os defensores da sua prática devido ao elevado índice de mortes ocorridas no trânsito envolvendo condutores embriagados. Com base nessa divergência de pensamentos, pretendemos analisar as idéias de cada corrente, a fim de esclarecer e sustentar, através de argumentos convincentes, aquela corrente à qual somos partidários.
Após as alterações de redação e inclusão de parágrafos, o art. 277 do CTB adquiriu a seguinte redação:
“Art. 277. Todo condutor de veículo automotor, envolvido em acidente de trânsito ou que for alvo de fiscalização de trânsito, sob suspeita de dirigir sob a influência de álcool será submetido a testes de alcoolemia, exames clínicos, perícia ou outro exame que, por meios técnicos ou científicos, em aparelhos homologados pelo CONTRAN, permitam certificar seu estado. (Redação dada pela Lei n. 11.275, de 2006)
§ 1o Medida correspondente aplica-se no caso de suspeita de uso de substância entorpecente, tóxica ou de efeitos análogos. (Remunerado do parágrafo único pela Lei n. 11.275, de 2006)
§ 2o A infração prevista no art. 165 deste Código poderá ser caracterizada pelo agente de trânsito mediante a obtenção de outras provas em direito admitidas, acerca dos notórios sinais de embriaguez, excitação ou torpor apresentados pelo condutor. (Redação dada pela Lei n. 11.705, de 2008)
§ 3o Serão aplicadas as penalidades e medidas administrativas estabelecidas no art. 165 deste Código ao condutor que se recusar a se submeter a qualquer dos procedimentos previstos no caput deste artigo.” (Incluído pela Lei n. 11.705, de 2008)
Uma breve leitura desse artigo é suficiente para notarmos a preocupação do legislador com relação aos testes de alcoolemia. Serão alvos de fiscalização, tendo que se submeter aos testes de “bafômetro”, aqueles condutores que se envolverem em acidente de trânsito e os que forem abordados, sob suspeita de dirigirem seus veículos estando sob a influência de álcool.
Contrário a essa idéia, o professor Luiz Flávio Gomes repudia a obrigatoriedade dos testes de alcoolemia. Para o autor, “em matéria de prova da embriaguez há, de qualquer modo, uma premissa básica a ser observada: ninguém está obrigado a fazer prova contra si mesmo (direito de não-autoincriminação)”.[28] Com base nesse pensamento, o doutrinador acredita que ninguém deverá ser compelido a ceder seu corpo ou parte dele para a obtenção de uma prova, ou seja, ninguém está obrigado a ceder sangue ou soprar o “bafômetro” contra sua própria vontade.
Na mesma linha de argumentação, o jurista Renato Marcão entende que o condutor não está obrigado a submeter-se aos testes de alcoolemia e, que a autoridade não poderá sujeitá-lo, contra sua vontade, a determinados procedimentos visando apurar o teor alcoólico ingerido. “Não poderá, em síntese, constrangê-lo a exames de alcoolemia (sangue, v.g.) ou teste em aparelho de ar alveolar pulmonar (etilômetro), vulgarmente conhecido por ‘bafômetro’”.[29]
É com base nos princípios do “silêncio constitucional” (art. 5º, LXIII, CF) e da “presunção de inocência” (art. 5º, LVII, CF), que o autor supracitado acredita que o condutor não está obrigado a se pronunciar a respeito dos fatos contra ele imputados e nem produzir prova em seu desfavor.
Veremos mais adiante que o princípio da não-autoincriminação, assim como os demais princípios em questão, não são absolutos. Atribuir-lhes a condição de direito absoluto estimularia a perpetuação de crimes e incentivaria a violação de bens jurídicos tutelados pelo ordenamento jurídico, pois não caberia prova em contrário. Portanto, deverá preponderar o princípio da relatividade para que seja possível a realização de provas. Como bem observa o doutrinador constitucionalista Alexandre de Moraes:
“[…] a consagração do princípio da inocência, porém, não afasta a constitucionalidade das espécies de prisões provisórias, que continua sendo, pacificamente, reconhecida pela jurisprudência, por considerar a legitimidade jurídico-constitucional da prisão cautelar […].”[30]
Em oposição às idéias dos autores mencionados anteriormente, consideramos importante, nesse momento, enfatizarmos a relevância do princípio constitucional da legalidade, que está previsto no inciso II do art. 5º da CF/88: “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”.[31] Com base nos ensinamentos do Doutor Alexandre de Moraes:
“[…] tal princípio visa combater o poder arbitrário do Estado. Só por meio das espécies normativas devidamente elaboradas conforme as regras de processo legislativo constitucional podem-se criar obrigações para o indivíduo, pois são expressão da vontade geral.”[32]
Significa dizer que ao cidadão é garantido o poder de auto-motivação, ou seja, ele tem, em regra, a liberdade para se conduzir, ressalvadas as vedações em lei, visto que deverá submeter-se e respeitar à lei, dentro da esfera de atuação estabelecida pelo legislador.
Ora, a lei existe, e nós sabemos que a legislação de trânsito está aí justamente para legitimar os testes de alcoolemia previstos no Código Brasileiro de Trânsito, desde sua criação em 1997. Diante desses argumentos não há que se falar em infração aos direitos e princípios constitucionais, pois todos os comportamentos humanos estão sujeitos ao princípio da legalidade.
De acordo com o entendimento jurisprudencial já se decidiu que:
“Se a norma objetiva determina que a autoridade mande, é porque pessoa intimada tem que atender ao mando. Se não atender, comete delito de desobediência, por ter sido a ordem legal e amparada em norma vigente. A ampla defesa nada mais faz do que assegurar aos acusados todos os meios legais para a defesa, inclusive, fornecendo defensores aos que não possuam. Ela, entretanto, não concede ao acusado o direito de não atender a determinações legais pois, se assim fosse, estaria em conflito com o disposto no inc.II, do art. 5º, da mesma Carta magna, que reza que todos os cidadãos são obrigados a fazer algo, desde que exista lei determinando, ao afirmar que ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei.”[33]
Nesse contexto, consideramos incoerentes as alegações de que há violação e desrespeito aos princípios referidos anteriormente quando o condutor é submetido aos testes de alcoolemia. Para sustentar nossas idéias iremos nos apoiar nos ensinamentos do professor Antônio Álvares da Silva que faz a seguinte referência ao tema:
“Vários juristas alegam a inconstitucionalidade desse dispositivo, pois ninguém pode ser considerado culpado antes da condenação. Ora, a autoridade administrativa e a policial não são juiz. Elas não condenam. Apenas agem como lhes compete. Se houve excesso ou ilegalidade, cumpre ao Judiciário intervir.
Também não está violado o princípio de que ninguém pode ser obrigado a participar de atos que o incriminem. A autoridade pública, ante a relutância do condutor em participar de testes ou atos que poderiam provar também sua inocência, agiu por presunção, que é também um meio criado pela Ciência do Direito e largamente aplicado no raciocínio jurídico: tem-se por ocorrido um fato que, em certas circunstâncias, normalmente ocorre.”[34]
Nas sábias palavras do autor em destaque, “o que não se pode admitir é que o cidadão alegando direitos individuais, impeça a aplicação da lei no interesse de todos”.[35] Os interesses coletivos devem prevalecer sobre os interesses individuais, pois o Estado age em nome de todos nós. É exatamente essa previsão de limitação que o autor Alexandre de Moraes destaca em sua obra de direito constitucional:
“Os direitos e garantias fundamentais consagrados pela Constituição Federal, portanto, não são ilimitados, uma vez que encontram seus limites nos demais direitos igualmente consagrados pela Carta Magna (Princípio da relatividade ou convivência das liberdades públicas).”[36]
Ao cidadão é vedado se valer da utilização desses direitos individuais visando a prática de atividades ilícitas e o conseqüente afastamento da responsabilidade civil ou penal, pois isto culminaria no total desrespeito ao Estado de Direito.
Nesse sentido, é inviável pensarmos na possibilidade de transferir ao Estado o ônus absoluto de provar a culpa, pois dessa maneira estaremos dificultando e criando entraves ao combate à criminalidade, devido à diversidade de delitos existentes na atual realidade em que vivemos. Acreditamos que a colaboração dos indivíduos para a busca da verdade real não irá comprometer sua liberdade e nem a presunção de sua inocência.
Confirmando a idéia de licitude e obrigatoriedade do teste do “bafômetro”, o desembargador Antônio Álvares da Silva afirma que devem sofrer as conseqüências aqueles que não permitem a prática de atos, que poderiam inclusive provar sua inocência. Apesar de ser obrigatório, o condutor não poderá ser coagido mediante força a soprar o bafômetro. Porém, visto que há a imposição legal para que o faça, sua recusa irá redundar na presunção de veracidade dos fatos contra ele alegados. Por ser um instrumento útil de descobrimento da verdade real, o desinteresse em realizar o teste do “bafômetro” será interpretado de maneira desfavorável contra o infrator, dentro do livre convencimento do Juiz. Não existindo culpa, tal ausência deverá ser demonstrada à autoridade competente, através de provas que convençam o julgador de que não realizou a conduta imputada.
Logo, o teste do “bafômetro” será obrigatório para os dois casos previstos no caput do art. 277 do CTB. Nos casos de acidente, é óbvia a necessidade de submeter o envolvido ao teste, a fim de apurar seu estado, e, na hipótese do elemento, suspeita, de dirigir sob a influência de álcool, vale registrar as palavras do referido autor:
“O agente de trânsito só pode suspeitar de um motorista que está dirigindo sob a influência de álcool ou substância análoga por sinais externos que demonstrem conduta incompatível com as normas de trânsito, por exemplo, direção oscilante, desatenta, perigosa, avanço de sinais, alta velocidade, exposição de perigo etc.”[37]
Portanto, é necessário que o motorista demonstre indícios suficientes de embriaguez para que o agente da fiscalização possa suspeitar e deduzir a alcoolemia de determinado condutor. A convicção gerada pelos sinais externos de anormalidade do motorista, permite ao agente policial praticar o ato previsto na lei, ou seja, fazer valer o teste do “bafômetro” para confirmar o estado em que se encontra o suspeito. Nesses casos, mesmo sem a ocorrência de acidente, é lícito o teste de alcoolemia.
A obrigatoriedade do teste do “bafômetro” só poderá ocorrer nos dois casos específicos: acidente ou fiscalização sob suspeita de embriaguez. Nos casos em que o condutor, mesmo estando sob a influência de álcool, estiver dirigindo de maneira responsável e não oferecendo sinais externos de embriaguez, ele não será compelido a submeter-se ao teste do “bafômetro” ou qualquer outro exame de alcoolemia. Nesse sentido, Antônio Álvares da Silva entende que “o poder de polícia do Estado tem limites e deve ser exercido com rigor, mas também com moderação e equilíbrio”.[38]
Concordamos com o autor quanto à interpretação favorável à obrigatoriedade do teste nos dois casos específicos referidos anteriormente. Porém, acreditamos que tal imposição deveria ser estendida a todos os condutores abordados pelos agentes de fiscalização, sendo desnecessário exigir, na segunda hipótese de realização do teste, que o condutor dirija de maneira imprudente e irresponsável.[39]
Do contrário, estaremos desvalorizando e minimizando a relevância do crime de embriaguez ao volante, o qual só pode ser provado através do referido teste, pois a sua configuração é de cunho taxativo, visto que é exigido uma concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 (seis) decigramas para a comprovação do tipo penal previsto no art. 306 do CTB.
Importante ressaltar que os níveis de álcool mencionados pelo CTB só podem ser verificados através do exame de sangue. Por ser inviável manter um médico plantonista em todos os locais de fiscalização e, como o agente policial não tem permissão e nem possui aptidão para realizar tais exames, só lhe restará a possibilidade de pôr em prática o teste do “bafômetro”. Em outras palavras, apenas o etilômetro será capaz de verificar o estado do condutor e se este incorreu no crime de perigo abstrato estudado no capítulo anterior.
É claro que, para isto, devemos considerar os níveis de equivalência e tolerância abrangidos pela lei. Para tanto, torna-se imperioso analisarmos os ensinamentos do professor Antônio Álvares da Silva, baseados no Decreto n.º 6.488/08. A tolerância verificada por esse Decreto corresponde a 2 (dois) decigramas de álcool por litro de sangue, que equivale a um décimo de miligrama por litro de ar expelido pelos pulmões. Ou seja, o consumo de álcool até esse limite não implicará em pena alguma ao condutor. Para o autor, essa condescendência só faz sentido nos casos especiais, de pessoas que “são obrigadas a ingerir álcool: remédios, xaropes, desinfetantes bucais; degustadores de bebidas alcoólicas etc”..[40] Seriam as exceções ao art. 165 do CTB, que prevê punições para todos que dirigem sob a influência de qualquer concentração de álcool: “Art. 165: Dirigir sob a influência de álcool ou de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência”.
Se a concentração estiver entre 2 (dois) e 6 (seis) decigramas de álcool por litro de sangue, o infrator incidirá na infração administrativa prevista pelo art. 165 do CTB, sujeitando-se à multa, suspensão de dirigir, retenção do veículo e recolhimento do documento de habilitação. Por equivalência, quando for efetuado o teste do “bafômetro”, o nível para incorrer na infração descrita anteriormente, estará entre 1,5 e 2,9 décimos de miligrama por litro de ar expelido pelos pulmões. Nessas concentrações, “de dois até seis decigramas (limite a partir do qual o infrator incide em crime de trânsito), há uma faixa neutra de 4 (quatro) decigramas, que será incluída para compor a faixa da infração administrativa”.[41]
E, por fim, no entender do autor em destaque, a partir de 6 (seis) decigramas, equivalentes a 3 (três) décimos de miligrama por litro de ar expelido pelos pulmões, estará configurado o crime de trânsito de embriaguez ao volante, sendo o infrator penalizado com detenção, multa, suspensão de habilitação ou proibição de obtê-la.
A amplitude de abrangência do art. 276 do CTB, com redação dada pela Lei Seca, só veio a confirmar a idéia de tolerância zero: “Art. 276: Qualquer concentração de álcool por litro de sangue sujeita o condutor às penalidades previstas no art. 165 deste Código”. Ao postular, que qualquer concentração de álcool no sangue fará o condutor incidir numa infração de trânsito, o legislador foi claro quanto ao seu repúdio à embriaguez ao volante. Quem dirige não deve beber e quem bebe não deve dirigir. O rigor da lei deve ser observado e aplicado para que as normas não fiquem apenas no papel e, possam ter a eficácia desejada.
Tudo isto serve para reforçar o conhecimento de que é, terminantemente, proibido dirigir sob a influência de álcool, seja qual for a concentração deste no sangue. Com base nesse entendimento podemos deduzir que o teste do “bafômetro” é o único meio viável e disponível ao agente de trânsito, para que este possa apurar o estado do condutor, verificar seu enquadramento legal de acordo com os níveis de consumo descritos anteriormente, e conseqüentemente evitar injustiças.
No nosso entendimento, não pode prosperar a tese incongruente de que alguns indivíduos são mais resistentes ao álcool do que outros. Os estudos científicos comprovam que o consumo de álcool, mesmo em pequenas quantidades, é suficiente para diminuir a atenção, o reflexo e o discernimento do ser humano. E, esses três fatores são indispensáveis para quem pretende dirigir de maneira segura e responsável. Portanto, todos os condutores devem estar cientes de que o Código de Trânsito Brasileiro não permite a ingestão de álcool para quem for dirigir. O objetivo da lei é, justamente, evitar que fique a critério do motorista a sua auto-avaliação sobre a quantidade de bebida alcoólica que poderá ingerir para que, posteriormente, possa guiar seu veículo de maneira segura, pois na imensa maioria dos casos tais avaliações são equivocadas, visto que o álcool diminui consideravelmente a capacidade de atenção e coordenação do ser humano.
Consideramos esse o momento oportuno para retomarmos a discussão a respeito dos casos em que o condutor será obrigado a submeter-se ao teste do “bafômetro”. Como vimos anteriormente, a lei especifica dois casos para a imposição do teste: envolver-se em acidente de trânsito e dirigir sob suspeita de embriaguez. Porém, em nosso entendimento, já aludido em outra oportunidade, os testes deveriam ser obrigatórios para todos os condutores que fossem abordados pelos agentes policiais nas fiscalizações.
Devemos deixar claro que não pretendemos, com essa sugestão, paralisar o trânsito das cidades e muito menos todo e qualquer motorista indiscriminadamente. Tratam-se de situações específicas, como a utilização de “blitz” nas redondezas de casas noturnas, bares e, em geral, naqueles locais onde podemos presumir que haverá um grande contingente de pessoas consumindo álcool e posteriormente guiando seus veículos. Ao serem abordados, esses condutores até podem estar dirigindo normalmente, mas quem garante que logo adiante não se envolverão em um acidente provocando uma tragédia e tornando-se apenas mais um número nas estatísticas? Também seria válida uma fiscalização mais rigorosa nas rodovias em fins de semana e feriadões, pois como se sabe os índices de acidente e mortalidade no trânsito aumentam muito nesses períodos.
Nossa intenção não é propor um Direito Penal autoritário, pois acreditamos que todo excesso é prejudicial à aplicação e ao cumprimento das leis, porém devemos primar por “um Direito Penal equilibrado que, punindo o erro, desperte nos cidadãos o caminho mais seguro e compensador do comportamento adequado”.[42] Ao Estado Democrático de Direito cabe, sempre que imprescindível, estabelecer normas de conduta de natureza penal e administrativa, a fim de garantir maior segurança coletiva e tranqüilidade social, respeitando sempre o princípio da dignidade humana e, não resta dúvida que as atitudes inconseqüentes dos motoristas brasileiros representam risco potencial que legitimam medidas severas e nitidamente coercitivas.
É diante desses pensamentos que procuramos embasar e sustentar nossa idéia, de que deveria ser desnecessária a exigência de suspeita de embriaguez para poder submeter o condutor ao teste do “bafômetro”. Sendo assim, vários condutores podem violar a lei, seguir bebendo e colocando em risco a vida de inúmeras pessoas inocentes sem que sejam punidos pelo crime ou infração cometida. A lei de trânsito tem o intuito de prevenir e tentar combater os excessos cometidos por irresponsáveis ao volante, e, somente a severidade na fiscalização poderá dar resultados positivos e aproximar-se ao máximo do objetivo desejado.
3.2. A (in)constitucionalidade do § 3º do art. 277 do CTB
Como vimos anteriormente, ao sancionar a Lei Seca o legislador adotou a política da tolerância zero para tentar combater a embriaguez ao volante. E para solidificar essa idéia, incluiu o parágrafo 3º ao art. 277 do CTB, prevendo punições para os condutores que se recusarem aos testes e exames de alcoolemia previstos nesse artigo. Com base nessa inclusão, é possível notar a clara intenção do legislador: proteger a segurança viária através da imposição dos testes e exames de alcoolemia e da conseqüente penalização daqueles que se recusarem à realização de tais procedimentos. Trata-se da tentativa incessante de localizar condutores embriagados para que estes sofram as penalidades previstas aos que burlam as leis e não têm o comportamento adequado de acordo com as regras impostas pelo Estado de Direito, que visa uma convivência pacífica e saudável entre seus cidadãos.
Entretanto, devemos enfatizar que a maioria dos autores e doutrinadores se opõe à obrigatoriedade dos testes e exames de alcoolemia. A rejeição a eles e, mais especificamente, ao teste do “bafômetro” está fundada no princípio constitucional que veda à auto-incriminação. Baseados nesse princípio, sob o argumento de que ninguém está obrigado a produzir provas contra si mesmo, a corrente contrária aos testes considera inconstitucional o § 3º do art. 277 do CTB.
Seguindo essa linha de raciocínio, o professor Luiz Flávio Gomes pondera que o condutor que se recusar ao exame de sangue e ao teste do “bafômetro” não deverá sofrer nenhuma sanção. “Quem exercita um direito (direito de não-autoincriminação) não pode sofrer qualquer tipo de sanção. O que está autorizado por uma norma não pode estar proibido por outra”.[43]
Partilhando desse pensamento, o Juiz de Direito Fernando Brandini Barbagalo afirma que a inclusão do § 3º ao art. 277 do CTB, tornou o dispositivo inconstitucional, por entender que:
“Esse comando contraria uma gama de garantias fundamentais como presunção da inocência, proibição de auto-incriminação, decorrente do direito do silêncio, dignidade da pessoa humana. Ainda quando for evidente a embriaguez, sem a concordância do motorista nenhuma prova pode ser realizada, sob pena de ser considerada ilícita.”[44]
Na visão do referido magistrado, àquele condutor que se recusar a realizar o teste do “bafômetro” ou exame de sangue não poderá ser imposta qualquer penalização, pois estará pondo em prática seus direitos e garantias fundamentais previstos na Constituição Brasileira.
A alegação dos referidos autores, ao considerarem a inconstitucionalidade do § 3º do art. 277 do CTB, tem por base os princípios constitucionais da presunção de inocência (art. 5º, LVII); do direito de permanecer calado (art. 5º, LXIII) e da ampla defesa (art. 5º, LV). Segundo os defensores dessa tese, nesses três dispositivos está implícito o princípio que veda a auto-incriminação. Conhecido também sob a expressão latina, nemo tenetur se detegere, a não auto-incriminação impede que qualquer cidadão deponha contra si mesmo e confesse a própria culpa.
Torna-se relevante enfatizarmos que não existe na Constituição Federal do Brasil, de forma expressa, dispositivo prevendo que ninguém seja obrigado a produzir prova contra si. A vedação à auto-incriminação está prevista explicitamente no art. 8º, II, g, da Convenção Americana de Direitos Humanos, da qual o Brasil tornou-se signatário em 6 (seis) de novembro de 1992, através do Decreto n.º 678:
“Artigo 8º – Garantias judiciais […];
2. Toda pessoa acusada de um delito tem direito a que se presuma sua inocência, enquanto não for legalmente comprovada sua culpa. Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas: […];
g) direito de não ser obrigada a depor contra si mesma, nem a confessar-se culpada;”[45]
Comungando da mesma opinião de Luiz Flávio Gomes e Fernando Brandini Barbagalo, o autor Antonio Scarance Fernandes dá sua opinião com relação ao princípio previsto na Convenção Americana de Direitos Humanos:
“Com a convenção de Costa Rica, ratificada pelo Brasil e incorporada ao direito brasileiro (Decreto 678, de 6.11.1992), o princípio foi inserido no ordenamento jurídico nacional, ao se consagrar, no art. 8º, n. 2, g, da referida Convenção que ‘toda pessoa tem direito de não ser obrigada a depor contra si mesma, nem a declara-se culpada’. Significou a afirmação de que a pessoa não está obrigada a produzir prova contra si mesma. Pode por exemplo invocar-se esse princípio em face do Código de Trânsito para não se submeter ao teste por “bafômetro”.[46]
Discordamos do entendimento dos referidos autores e consideramos totalmente procedente, lícito e constitucional o teste do “bafômetro”. A análise do art. 8º, II, g, da Convenção Americana dos Direitos Humanos nos leva a acreditar que não seja a melhor interpretação essa sustentada pelos autores supracitados. A redação desse dispositivo veda a auto-incriminação, não obrigando o depoimento contra si e a própria confissão, apenas quando for instaurado o devido processo legal contra determinado indivíduo. Ao realizar o teste do “bafômetro”, o agente policial estará agindo de acordo com o seu dever legal no desempenho de suas funções administrativas e não como Juiz de Direito, pois não irá condenar ninguém, mas tão-somente colher provas para um futuro processo penal ou administrativo.
Para sustentar nossa idéia nos apegamos aos ensinamentos do professor Antônio Álvares da Silva, que sugere uma interpretação limitativa do inciso LXIII do art. 5º da CF/88: “o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado”.[47] Tal limitação deve basear-se no fato de que “[…] no Direito Público age-se de acordo com a determinação da lei enquanto, no direito privado, age-se livremente até o ponto em que a lei imponha limites”.[48] Para o autor, no momento em que o dispositivo constitucional fala em “preso”, deveria ser vedado estender o direito de calar a suspeitos livres, pois significaria “transferir para o Estado, desaparelhado e pobre como o nosso, um ônus do qual ele não dá conta de desincumbir-se”.[49]
O princípio que proíbe a auto-incriminação faz referência ao depoimento e testemunhos verbais do próprio réu. Ou seja, o direito de permanecer calado, inerente ao preso, não pode ser estendido ao cidadão comum que se encontra em liberdade. Usar dessa prerrogativa é o mesmo que “fugir ao controle legítimo da autoridade policial e furtar-se às aplicações das leis de trânsito”.[50] Na realização do teste do “bafômetro” não há réu, não há processo e, portanto, não cabe o direito de calar, pois o cidadão que for alvo da fiscalização não está preso e nem o referido teste tem a finalidade de incriminá-lo, visto que pode, inclusive, isentá-lo da suspeita de embriaguez que recai sobre ele.
Outro argumento favorável em defesa da constitucionalidade do teste do “bafômetro”, reside na necessidade de ponderação entre os princípios constitucionais conflitantes no caso em questão. Não se discute a importância dos direitos fundamentais individuais. Porém, eles não podem ser entendidos em sentido absoluto, em face da natural restrição resultante do alcance do bem comum.
Sob tal perspectiva, o jus-filósofo alemão Robert Alexy reconhece que os princípios têm pesos diferentes e que o princípio com maior peso deverá ter precedência sobre o outro:
“As colisões de princípios devem ser solucionadas de maneira totalmente distinta. Quando dois princípios entram em colisão – tal como é o caso quando segundo um princípio algo está proibido e, segundo outro princípio, está permitido – um dos princípios tem que ceder ante o outro. Porém, isto não significa declarar inválido o princípio desprezado nem que no princípio desprezado há que introduzir uma cláusula de exceção. Mas bem o que sucede é que, sob certas circunstâncias um dos princípios precede ao outro. Sob outras circunstâncias, a questão da precedência pode ser solucionada de maneira inversa. Isto é o que se quer dizer quando se afirma que nos casos concretos os princípios têm diferente peso e que prevalece o princípio com maior peso. Os conflitos de regras se levam a cabo na dimensão da validez; a colisão de princípios – como só podem entrar em colisão princípios válidos – tem lugar além da dimensão da validez, na dimensão do peso.”[51]
Nesse contexto, o Estado deve identificar e fazer prevalecer, sob determinadas condições, a ordem de precedência dos direitos e garantias fundamentais, ou seja, proteger aquele que tenha maior peso, a fim de garantir a segurança de todos e o bem comum. Portanto, a ferramenta constitucional da ponderação deverá ser utilizada para resolver a problemática ora suscitada.
De fato, a própria Declaração dos Direitos Humanos das Nações Unidas admite, expressamente, em seu art. 29 que:
“Toda pessoa tem deveres com a comunidade, posto que somente nela pode-se desenvolver livre e plenamente sua personalidade. No exercício de seus direitos e no desfrute de suas liberdades todas as pessoas estão sujeitas às limitações estabelecidas com a única finalidade de assegurar o respeito dos direitos e liberdade dos demais, e de satisfazer as justas exigências da moral, da ordem pública e do bem-estar de uma sociedade democrática. […]” [52]
Vejamos: de um lado, temos os direitos individuais do condutor e, de outro, os direitos coletivos da sociedade. O condutor apóia-se no direito à sua intimidade e inviolabilidade pessoal. Já a coletividade prima pelo direito à vida, à integridade física e à segurança dos demais condutores e pedestres, todos esses, direitos englobados pelo princípio constitucional da dignidade humana. Em referência a essa colisão, o art. 32, II, da Convenção Americana dos Direitos Humanos prevê que: “Os direitos de cada pessoa são limitados pelos direitos dos demais, pela segurança de todos e pelas justas exigências do bem comum, em uma sociedade democrática”.[53]
Aliando esse dispositivo à teoria dos direitos fundamentais de Robert Alexy e á Declaração Universal dos Direitos Humanos, nos parece tão inviável quanto impossível sacrificar o direito à vida, à integridade física e à segurança de toda uma sociedade para beneficiar o direito de não ser constrangido de um condutor que é suspeito de dirigir sob a influência de álcool. Ademais, a leitura atenta dos objetivos citados pela Convenção deixa clara que a proteção dos direitos coletivos se encontra acima da proteção dos individuais, sobrepondo-se aos apontados direitos fundamentais de presunção de inocência e proibição de auto-incriminação.
Isto quer dizer que os direitos fundamentais individuais devem ser interpretados com certa ressalva e de maneira limitada, pois em determinados casos será necessário cerceá-los para garantir direitos fundamentais coletivos. Em que pese tal raciocínio, acreditamos que o argumento da inconstitucionalidade do teste do “bafômetro” torna-se insustentável.
Quanto ao constrangimento à intimidade e à inviolabilidade pessoal do indivíduo é destacável registrar as palavras de João Baptista Herkenhoff:
“Não me sinto constrangido ao passar por máquinas que detectam metais, nos aeroportos, bancos etc.
Se o critério é o da prudência parece-me que, no Brasil, o bafômetro é bem mais importante do que o detector de metais nos aeroportos. Da embriaguez no volante resultam milhares de mortes. Já quanto à possibilidade de atos de terrorismo no espaço aéreo brasileiro, creio que a possibilidade é remota. O Brasil não invade países, não derruba governos que não lhe são simpáticos, não mata presidentes de outras nações. Assim, acho que estamos mais ou menos a salvo de atos de terrorismo.”[54]
Sábias palavras do professor do Mestrado em Direito da Universidade Federal do Espírito Santo. Essa questão nos parece relevante, pois entendemos que os detectores de metais e o “bafômetro” possuem finalidades análogas, qual seja a de prevenir delitos e combater a criminalidade. Tolerar a passagem pelo detector de metais e considerar a submissão ao teste do “bafômetro” um constrangimento, significa dizer que estaremos utilizando critérios diferentes para duas medidas idênticas de repressão ao crime.
O mesmo pode ser dito da abordagem realizada por seguranças em casas noturnas, estádios de futebol, locais de shows etc. Todos que freqüentam esses locais são submetidos a uma inspeção que visa à segurança do público. Ninguém pode negar-se a tal revista, e nem por isto, trata-se de comportamento inconstitucional. Na atual realidade em que vivemos, a criminalidade disseminou-se de tal maneira, que se tornou necessária a adoção de um caráter preventivo por parte do Direito Penal. Somente métodos repressivos serão eficazes no combate às mais diversas formas de delitos existentes.
Entendemos que a ponderação também deve ser aplicada entre o princípio que veda a auto-incriminação e o interesse público. É inadmissível que aquele seja colocado acima do dever do Estado de aplicar e cumprir as leis. Uma vontade individual não pode prevalecer sobre o interesse coletivo da aplicação das leis e da garantia do ordenamento jurídico. É indispensável para o alcance da finalidade relacionada à sociedade que o direito individual sofra restrição, não vingando o argumento de uma suposta afronta ao direito de não produzir prova contra si mesmo. Em suma, a finalidade maior deve ser a apuração da verdade no interesse do Estado de Direito. Do contrário, estaríamos paralisando a ordem jurídica e impedindo a efetividade da autoridade pública em defesa da sociedade.
Nesse sentido, Antônio Álvares da Silva entende que é necessário construir uma nova dogmática para o Direito Penal, pois o mundo moderno impõe aos juristas uma nova mentalidade e novos instrumentos jurídicos. Os direitos humanos devem ser respeitados em sua totalidade, porém “não se há de reagir à criminalidade, cada dia mais sofisticada e radical, com medidas meramente liberais e inconseqüentes”.[55] É imprescindível restringir certos direitos invocados pelo cidadão e impor os limites atuais do moderno Direito Penal.
Para o jurista alemão Claus Roxin:
“[…] o poder estatal de intervenção e a liberdade civil devem ser levados a um equilíbrio, de modo que garanta ao indivíduo tanta proteção estatal quanto seja necessária, como também tanta liberdade individual quanto seja possível.”[56]
O dever do Estado de proteger seus indivíduos está acima de qualquer direito individual e, portanto, não pode se limitar à liberdade de um indivíduo. Ao cidadão sempre caberá o dever de colaborar para o esclarecimento da verdade. As provas não pertencem ao acusado e nem ao acusador, mas sim à justiça, que através delas buscará a elucidação dos fatos. Dessa forma, o indivíduo deverá se submeter aos interesses coletivos, para que se apurem os fatos de modo a se chegar à verdade.
Com relação ao direito de permanecer calado, devemos enfatizar que o propósito desse direito é inibir o poder público de obter confissões mediante força, coerção ou fraude. Trata-se da proteção do réu contra o arbítrio e a intervenção indevida do Estado, a fim de evitar confissões obtidas por meios ilícitos, visto que ninguém pode obrigar um cidadão a falar, a não ser sob tortura, o que desvirtuaria sua manifestação. Em síntese, o princípio do silêncio constitucional condena as confissões obtidas por violência, tortura ou fraudes.
Contudo, esse direito “jamais teve a extensão que lhe foi dada pela doutrina brasileira, como direito absoluto do acusado, a ponto de inibir a própria vontade do Judiciário”.[57] Não restam dúvidas de que o cidadão deve ter sua proteção constitucional respeitada, porém o princípio em destaque jamais visualizou proporcionar meios favoráveis para que se impeça ou prejudique o funcionamento da atividade jurisdicional. O Estado é legitimado e tem por objetivo primordial buscar a verdade e o esclarecimento dos fatos, não sendo permitido que a contumácia de determinado indivíduo impeça a eficácia dos atos do Estado Democrático de Direito.
Para reforçar essa idéia devemos salientar os conhecimentos de Antônio Álvares da Silva:
“Não é possível que, quando o legislador toma uma providência e enfrenta com rigor o problema, a aplicação da lei sofra restrições com base numa falsa argüição de inconstitucionalidade, retirando do princípio do art. 5º, LXIII, uma inadequada e errônea analogia de que um cidadão suspeito de dirigir embriagado não possa submeter-se a testes de alcoolemia, porque estaria produzindo prova contra si mesmo”.
Quanto à presunção de inocência, outro princípio constitucional exaltado na defesa da inconstitucionalidade do § 3º do art. 277 do CTB, é válido ressaltar que tal direito é decorrente da obrigação que o Estado tem de provar a culpa na acusação, pois ele é quem detém a pretensão punitiva. Sua previsão está descrita no art. 5º, LVII, da CF/88: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.[58]
Tal presunção deve de fato existir, mas como já foi ressaltado em outra oportunidade, não podemos elevar a inocência de um cidadão ao absurdo de exigir do Estado prova absoluta, visto que em raras oportunidades isto será possível. Com o aumento da criminalidade é necessário que a presunção de inocência sofra derrogações e atenuações, em função do bem comum. Novamente aqui, vemos que são estabelecidos limites para a fixação do princípio em questão. Isto serve para confirmar a idéia de que os princípios não são absolutos em si e devem ser interpretados com certa ressalva, pois o Estado, na aplicação da lei, deve estar em equilíbrio e pé de igualdade com os direitos do cidadão, para que uma parte não obtenha benefícios em detrimento da outra.
Nas palavras do autor Norbert Horn buscamos dar embasamento ao nosso ponto de vista quanto à flexibilização de tal princípio:
“Não se quer desprestigiar sua importância, mas apenas coloca-lo devidamente no lugar que hoje de fato ocupa na Ciência do Direito. Como não há um só valor concentrado em princípio, mas vários, há que se cogitar, não da existência, mas da coexistência de todos eles, pois os valores se prestam a julgar a ação humana, considerando seus objetivos.”[59]
A sociedade democrática no seu todo possui objetivos variados, portanto não podemos nos restringir a buscar a realização de apenas uma finalidade, mas sim ampliar o campo de valores a serem julgados e considerados de acordo com as demais pretensões oriundas da coletividade. Isto explica o abrandamento dos princípios em questão.
Em referência a esse entendimento, Antônio Álvares da Silva faz as seguintes considerações sobre o princípio do nemo tenetur se detegere:
Ao lado de sua finalidade de não obrigar o suspeito a depor e produzir prova contra si próprio, há outros valores que também precisam ser considerados, igualmente importantes e inseparáveis do estado democrático: o direito-dever que o Estado tem de punir os que violam as leis legitimamente estabelecidas e garantidoras de princípios e valores socialmente aceitos.[60]
Nesse aspecto, o réu que for condenado por ter soprado no “bafômetro” não poderá alegar que sua penalização se deu mediante auto-incriminação, visto que teremos a comprovação da ocorrência de um fato punível (dirigir sob influência de álcool).
Ao impor o teste do “bafômetro”, o legislador estendeu ao agente policial uma ação por presunção. E a presunção deve ser largamente aceita no direito, pois seu objetivo visa ampliar e elevar à área de atuação do ordenamento jurídico a todos os setores da vida social, estendendo-o aos fatos prováveis mediante fatos certos. O Estado, através do Poder Público, não tem condições de provar concretamente tudo e constatar a verdade absoluta. Sendo assim, contenta-se com o provável e presume a verdade em certas situações, baseando-se na experiência e na repetição de fatos. Para tanto, é lícito ao Direito utilizar-se desses meios para ampliar os limites do ordenamento jurídico, a fim de que responda aos fatos sociais em sua plenitude, considerando que tais fatos se presumem acontecidos, através da probabilidade de sua real e efetiva verificação.
A aplicação dessa técnica jurídica é totalmente procedente e válida para os casos de suspeita de embriaguez ao volante. A experiência, a repetição dos fatos e as estatísticas têm comprovado freqüentemente que inexiste qualquer nível de segurança para os casos em que o motorista dirige sob a influência de álcool. Em virtude disto, torna-se lícito que o agente policial imponha o teste do “bafômetro” ao condutor suspeito de dirigir embriagado, pois sua presunção estará baseada nas decorrentes tragédias noticiadas diariamente pelos meios de comunicação. A imposição ao referido teste tem o objetivo de comprovar a embriaguez do condutor suspeito e conseqüentemente impedir que esse motorista prossiga na direção de seu veículo, evitando-se, assim, a ocorrência de uma provável tragédia.
Utilizando-se dessa presunção, o legislador incluiu o § 3º ao art. 277 do CTB, prevendo as mesmas medidas administrativas e penalidades decorrentes da direção sob a influência de álcool, para os que se recusarem a realizar os testes de alcoolemia. O condutor que não ingeriu bebida alcoólica não teria razões para escusar-se de tais procedimentos, portanto “se o condutor se recusa a submeter-se aos testes de alcoolemia, presume-se que esteja na condição neles prevista e aplicam-se as penalidades e medidas administrativas pertinentes”.[61] Tais penalidades e medidas administrativas são as previstas no art. 165 do CTB:
“Art. 165. […];
Infração – […]
Penalidade – multa (cinco vezes) e suspensão do direito de dirigir por 12 (doze meses);
Medida Administrativa – retenção do veículo até a apresentação de condutor habilitado e recolhimento do documento de habilitação.”
Como já foi dito anteriormente, a recusa ao teste do “bafômetro” implicará no recolhimento do documento de habilitação e na proibição de prosseguir guiando o veículo, pois o legislador presume que o condutor encontra-se sob influência de álcool e conseqüentemente sem condições de dirigir de maneira segura e responsável. Conclui-se aqui, que “a teoria serve para, baseando-se em fatos e relações já conhecidos, prever novos fatos e relações”.[62]
Simultaneamente à aplicação das penalidades e medidas administrativas descritas anteriormente, o condutor que, sob suspeita de dirigir alcoolizado, negar-se ao teste será enquadrado no crime de desobediência, previsto pelo art. 330 do Código Penal Brasileiro: “Desobedecer a ordem legal de funcionário público: detenção de 15 (quinze) dias a 6 (seis) meses, e multa”.[63]
Na ocorrência desses casos, a corrente que defende a inconstitucionalidade do § 3º do art. 277 do CTB alega desrespeito e violação ao princípio da ampla defesa e do contraditório, que está previsto na Constituição Brasileira em seu art. 5º, LV: “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”.[64]
Entendemos que tal direito é uma das maiores conquistas do Estado Democrático de Direito, pois “transformou-se num símbolo de defesa contra o Estado tirano e invasivo, que condenava pessoas sem direito de defesa e sob a presunção de culpa não provada”.[65] Trata-se da oportunidade que o infrator tem de ser ouvido, para que produza defesa antes que se aplique a penalidade cabível.
Porém, acreditamos que assim como os demais princípios, o direito de ampla defesa deve ser sofrer restrições, para que não se transforme em elemento inibidor da atividade do Estado.
Novamente, aqui, deve haver um permanente equilíbrio entre o direito do cidadão contra a ação do Estado e o dever deste na aplicação da lei. Do contrário, estaríamos negando a atuação da Administração pública, pois o Estado age em proveito do interesse da coletividade. Em face desse equilíbrio, ambos devem cumprir seu papel para que tenhamos uma sociedade organizada que valorize o indivíduo e a ordem social em que ele se encontra inserido.
No entendimento do autor Celso Antônio Bandeira de Mello, à Administração Pública não cabe a possibilidade de escolha de sancionar ou deixar de fazê-lo. Nos casos concretos de atos ilícitos é devidamente obrigatório que o Estado se utilize de sua imperatividade e execute coercitivamente, através da aplicação da sanção prevista dentro da esfera legal de sua atuação. O interesse público exige o dever e não a faculdade de aplicação da sanção.[66]
No entanto, é necessário ressaltar que à embriaguez acusada pelo teste do “bafômetro” deverão ser aplicadas sanções de natureza provisória, pois posteriormente, na instauração do processo penal ou administrativo, o réu terá o direito de se defender amplamente. Somente assim, teremos a necessária conciliação do dever de intervenção do Estado, que há de ser imediato, e o direito de defesa, que é garantia constitucional do cidadão, somente indispensável quando já deflagrada a ação correspondente. Conseqüentemente, estará respeitado o princípio da legalidade, que é o limite e a extensão de toda a atividade estatal.
Através de seus atos, o legislador busca aproximar-se ao máximo da certeza nas relações sociais, e, para isto, todos os cidadãos têm o dever de contribuir com o Estado para a aplicação da ordem jurídica, pois o Poder Público não pode dar conta de tudo sozinho. Nesses termos, Antônio Álvares da Silva faz a pertinente observação:
“Imagina-se o absurdo de a autoridade pública não poder intervir nas urgências da vida social, porque não haveria chance de defesa das pessoas envolvidas. Seria esse o caminho mais seguro para levar a sociedade ao caos e o estado de direito à destruição. Atividade infratora ou criminosa é que seria valorizada, em prejuízo da atividade estatal. Inverter-se-iam os valores. A presunção estaria em favor da ilegalidade e não da lei.”[67]
É dever do Estado assegurar uma circulação tranqüila no trânsito e, através dos agentes de fiscalização, zelar pela segurança nas vias públicas com a finalidade maior de proteger a vida, a integridade física dos cidadãos e de seus patrimônios. Para tanto, pode utilizar dos meios legais visando tornar efetiva a fiscalização.
Nesse sentido, deduz-se que a atividade de intervenção direta da Administração, na aplicação do teste do “bafômetro”, está dentro da esfera legal de sua atuação, pois não se pode admitir que o cidadão, alegando direitos individuais, impeça a aplicação da lei no interesse de todos. Cabe ao poder público o dever de punir criminosos, pois somente a aplicação e a eficácia das leis trarão a efetiva crença dos indivíduos no Estado e em seus direitos.
Tomando-se por base tudo que foi exposto até agora, evidencia-se que o Brasil está entre as nações mais rigorosas do mundo no que diz respeito ao consumo de álcool ao volante. Diante de tal rigidez, entendemos que o legislador pátrio preocupou-se prioritariamente com a segurança coletiva, que tem de ser preservada ante o abuso de direitos por parte do individual. Discordamos da idéia de que a imposição ao teste do “bafômetro” desrespeita direitos fundamentais dos cidadãos, pois entendemos que a severidade da lei prima pela preservação de um bem jurídico maior, que é a vida e a incolumidade física das pessoas. Ao determinar a exigência do teste, a lei atua em legítima defesa de todos os cidadãos.
Acerca da exposição de todos esses argumentos, em nossa humilde opinião consideramos que o § 3º do art. 277 do Código de Trânsito Brasileiro nada tem de inconstitucional. Foi um dispositivo criado de maneira correta e oportuna pelo legislador, pois visa combater a criminalidade e os excessos cometidos por condutores embriagados. O caráter preventivo e educativo da nova legislação de trânsito deve ser louvado, pois consiste numa resposta ao clamor social que precisava de intervenção legislativa.
Para corroborar nosso entendimento consideramos conveniente ressaltarmos a decisão proferida pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul (Processo n.º 70025419912), a qual negou habeas corpus impetrado por motorista que desejava desobrigar-se a passar pelo teste do “bafômetro”. A decisão indeferitória ocorreu no dia 17 de julho de 2008, através do julgamento do desembargador Newton Brasil de Leão, integrante do 2º grupo criminal do TJ/RS. No entendimento do referido magistrado:
“[…] se obedecido o processo legislativo para a edição das leis, e não sendo flagrantemente inconstitucional seu conteúdo, a sujeição de todos a ela é imperativo, independentemente do desagrado que isso possa causar”.[68]
A decisão destacou, ainda, a convicção pessoal do magistrado de que não há elementos a indicar que a autoridade agirá de forma arbitrária e desprovida de bom-senso. O julgador também salientou que o motorista não está exposto a nenhum constrangimento, uma vez que “tudo depende, apenas, de suas atitudes”.[69]
Partilhando do mesmo entendimento, a desembargadora Elba Aparecida Nicolli Bastos, outra julgadora do 2º grupo criminal do TJ/RS, também optou por denegar habeas corpus (Processo n.º 70025800756) a motorista que desejava furtar-se aos testes de alcoolemia previstos pela lei de trânsito. A magistrada acredita que a atividade fiscalizatória dos agentes no interesse da segurança do trânsito não afronta aos direitos constitucionais individuais, nem vislumbra constrangimento ilegal ao impetrante. Suas palavras são de enorme significância:
“[…] o direito ao trânsito seguro é de todos, portanto, dever do Estado de assegurar este direito e dever de cada um, enquanto particular, em respeitar os regulamentos e sujeitar-se às medidas necessárias à atividade de fiscalização imprescindível à preservação dos bens maiores da hierarquia de valores qual seja a vida, a integridade física dos outros.
Não pode o cidadão consciente, ética e socialmente comprometido com os valores da vida em sociedade, pretender em sobrepor o bônus, seu lazer individual em fazer o que deseja, inclusive ingerir bebida alcoólica transferindo o ônus dos efeitos deletérios do descumprimento das normas regulamentares, mesmo que eventualmente à sociedade e a outros que venham a sofrer eventuais danos.”[70]
Com base nas sentenças dos relatores Newton Brasil de Leão e Elba Aparecida Nicolli Bastos, concluímos que ao negarem habeas corpus aos motoristas que pretendiam poder se recusar a passar pelo teste do etilômetro, os desembargadores em questão consideram a Lei Seca totalmente constitucional, sendo imperativa a submissão dos motoristas às determinações da legislação de trânsito.
Torna-se relevante deixarmos claro que baseamos nossa opinião em teses doutrinárias e nas sentenças aludidas anteriormente, visto que inexiste entendimento jurisprudencial robusto devido ao pouco tempo de vigência da Lei n.º 11.705/08. O entendimento não é pacífico e gera muitas controvérsias. Portanto há muito que se discutir a respeito do assunto, sempre de maneira ponderada e buscando valorizar o equilíbrio nas relações sociais para que uns não tenham seus direitos considerados de maneira absoluta em detrimento das garantias dos demais.
3.3. A Lição dos números
As estatísticas de acidentes de trânsito envolvendo condutores embriagados retratam a triste realidade brasileira. Para comprovar os benefícios da Lei Seca iremos nos valer dos números, os quais são impressionantes e precisam ser vistos e analisados.
Antes da entrada em vigor da Lei 11.705/08 tínhamos a seguinte realidade:
Acidentes:
– Brasil: 45 mil mortes/ano (incluindo óbito após 24 hs do acidente, oficialmente gira em torno de 30.000 mortes/ano);
– 376.589 mil feridos/ano;
– Mais de 1 milhão de acidentes/ano;
– Prejuízos materiais em mais de 2 bilhões de dólares;
– Prejuízos sociais em mais de 2 bilhões de dólares;
– O governo gasta em média R$ 14.321,25 com vítima não fatal de acidente de trânsito;
– A cada 22 minutos morre uma pessoa em acidente de trânsito;
– A cada 07 minutos ocorre um atropelamento;
– A cada 57 segundos acontece um acidente de trânsito;
– Acidente de trânsito é o segundo maior problema de saúde pública do país, só perdendo para a desnutrição;
– 377 mil acidentes com vítimas;
– 60% dos feridos no trânsito ficam com lesões permanentes;
– Em 70% dos casos de acidentes com mortes, o fator álcool estava presente, mesmo sem configurar embriaguez (grifo nosso);
Gerais:
– Trânsito – 3ª causa mortis do Brasil;
– 55% de ocupação dos leitos hospitalares
– No Brasil, a proporção é de 1 morto para 690 veículos, enquanto na França é para 3.000, Suíça 3.600, Alemanha 4.200, EUA 5.300.
Através desses dados, retirados do site http://www.transitobr.com.br/numeros.htm, podemos notar a dramática e alarmante situação em que se encontra o trânsito brasileiro. Como pode se observar, o fator álcool estava presente em 70% dos acidentes registrados, ou seja, das 45 mil mortes a cada ano no Brasil, o fator álcool está presente direta ou indiretamente em 31.500 mortes.
Nosso país é o quinto colocado mundialmente em número de mortes relacionadas aos acidentes de trânsito. E o que mais impressiona nesses números é o fato de que quase metade das vítimas não estava de carro. Em virtude disto, conclui-se que o trânsito, pelo comportamento de alguns irresponsáveis, ceifa milhares de vidas que, ainda hoje, poderiam estar dando a sua contribuição à sociedade e ao país, mas infelizmente tiveram suas trajetórias interrompidas ou drasticamente prejudicas pelo tráfego irracional.
De acordo com os estudos do IPEA – Instituo de Pesquisa Econômica Aplicada, o impacto social e econômico dos acidentes é devastador. Em razão do afastamento das vítimas da atividade produtiva, a perda é imensa e altamente danosa à economia, pois os custos atingiram a cifra de R$ 24,6 bilhões nos anos de 2004 e 2005.[71] São gastos exorbitantes que poderiam ser utilizados em atividades geradoras de bens e serviços. A revolta e a indignação só aumentam quando pensamos que tudo isto poderia ser evitado e prevenido através da aplicação das leis.
Um ano após entrar em vigor, a Lei Seca colaborou para diminuir os acidentes de trânsito e também reduzir a taxa de mortalidade hospitalar e os gastos governamentais para o atendimento de feridos. Um estudo realizado pela Abramet (Associação Brasileira de Medicina de Tráfego) apontou, entre outros levantamentos, que, no Brasil, houve uma queda de 28,3% nas internações hospitalares, traçando um declínio de 55.070 internações para 39.464. A mortalidade hospitalar também decresceu 13,6% depois que a lei passou a vigorar, o que significa que deixaram de morrer 917 pessoas, ou seja, cinco por dia. A conseqüência foi a queda nos custos que o Estado gera para atender os feridos, totalizando uma economia de mais de 23 milhões de reais.[72]
A exposição desses fatos, aliados às publicações da imprensa de que a Lei Seca colaborou para a diminuição de ocorrência de acidentes, são suficientes para justificar a existência da lei. Porém, não basta termos leis rigorosas, mas leis aplicáveis. E para justificar nossa idéia nos baseamos, assim como o professor Antônio Álvares da Silva, no ensinamento de Beccaria: “não é o rigor da pena, mas a certeza de sua aplicação que influencia as pessoas, levando-as a desistir do ilícito”.[73]
Criar leis para que estas permaneçam apenas no papel sem serem colocadas em prática de acordo com a realidade da vida, só serve para desmoralizá-las. O desrespeito a elas só ocorre, porque entre nós impera a cultura de que é mais fácil burlar as leis do que cumpri-las. Vemos isto a todo o momento e em todos os segmentos da sociedade, desde os mais necessitados até o mais alto escalão. No dia em que mudarmos nossa visão de justiça e revertermos essa expectativa, melhorará sensivelmente a qualidade de vida e o bem-estar do povo.
A violação e o desrespeito às normas jurídicas sem qualquer punição aos infratores geram certa descrença a uma parcela da sociedade, mas apesar disso a grande maioria dos cidadãos ainda acredita que a Justiça possa ser a última e derradeira esperança. A confiança que esses indivíduos e grande parte da sociedade depositam no Judiciário deve ser retribuída pelo legislador e por aqueles que executam as leis, através de medidas judiciais efetivas e eficientes para a defesa da coletividade. Caso contrário, as normas perderão seu sentido social e a população deixará de acreditar na Ciência do Direito.
O rigor da lei torna a atitude daqueles que conduzem seus veículos após a ingestão de bebida alcoólica uma afronta ao ordenamento jurídico pátrio. Tais condutas colocam esses motoristas à margem da lei mesmo sem a ocorrência de um dano concreto, pois a irregularidade está caracterizada na combinação álcool e volante. Impedir que o Estado, através de seus agentes, se utilize dos meios disponíveis e legais para fiscalizar a situação dos condutores é tornar a Lei inoperante prejudicando sua própria razão de ser, qual seja, evitar óbitos no trânsito.
A constatação de que a entrada em vigor da “Lei Seca” e o rigor empenhado pelos agentes de trânsito na fiscalização contribuíram para reduzir, entre 30% e 40%[74], os índices de mortes e acidentes no trânsito, nos traz o anseio de que esse controle não pode ser descontínuo e perder seu impacto positivo através do desleixo e falta de interesse do governo na observação da prática dos dispositivos legais.
Chegamos a um ponto em que se tornou impossível conviver com a impunidade e a desordem no trânsito brasileiro. Todavia, o legislador cumpriu sua missão e, através dos novos dispositivos da legislação de trânsito interveio na sociedade para obter condutas adequadas para que seus cidadãos tenham uma vida melhor, mais pacífica e digna. A observância das normas não pode cair em desuso, pois somente a execução rigorosa destas poderá salvar milhares de vidas inocentes.
CONCLUSÃO
É sabido, pelo senso comum, que toda a norma jurídica que impõe determinada conduta só é cumprida, de regra, quando prevê também uma sanção ao descumprimento da aludida conduta. Agora, entretanto, pressionado pelos fatos sociais, o legislador não só radicalizou a sanção, mas se dispôs a aplicá-la efetivamente. Caso contrário, teríamos leis que vigem, mas não dispõem de eficácia. E no Brasil, freqüentemente, as leis são burladas sem que sejam aplicadas as devidas sanções aos infratores. A dificuldade de retirar as leis dos Códigos e estendê-las a realidade da vida social é imensa.
Com o intuito de solucionar, ou pelo menos minimizar a inoperância das leis de trânsito, o legislador pátrio instituiu a Lei n.º 11.705, de 19 de junho de 2008, apelidada de “Lei Seca”. O espírito intimidatório e punitivo dessa recente Lei visa coibir os comportamentos anti-sociais dos motoristas infratores. Além de possuir caráter reeducativo, o rigor de suas sanções também procura evitar danos a pessoas ou coisas.
Apesar do Código de Trânsito Brasileiro prever a obrigatoriedade do teste do “bafômetro” desde a sua instituição em 1997, sua aplicação era ínfima, pois não existiam sanções aos condutores que se recusassem a realização do devido teste. Com o advento da “Lei Seca” o legislador supriu tal lacuna da Lei de trânsito, confirmando a obrigatoriedade do teste do “bafômetro” e prevendo penalidades e medidas administrativas aos que se negarem a soprar no aparelho etilômetro.
No decorrer desse trabalho fizemos um estudo aprofundado das discussões e divergências das correntes antagônicas. Isto nos possibilitou o convencimento de que tanto a obrigatoriedade do “teste do bafômetro” quanto a aplicação das respectivas penalidades em caso de recusa à realização deste são constitucionais. Não pode o particular, que cometeu um delito ou uma infração de trânsito, invocar seus direitos individuais fundamentais em detrimento dos direitos individuais e coletivos da sociedade, também protegidos pela Constituição Federal. Por ser um caso concreto de colisão de Princípios Constitucionais deverá haver um sopesamento dos direitos em conflito. Posteriormente a análise dos prós e contras em caso de consideração de determinado direito, deverá prevalecer aquele que tiver maior peso. Ou seja, o Estado deve identificar a ordem de precedência dos direitos e garantias fundamentais a fim de garantir a segurança de todos, o bem comum e a paz social.
Isto não significa dizer que os direitos individuais do condutor serão excluídos, mas eles deverão ser interpretados de maneira limitada, devendo ceder ante os bens maiores protegidos pelo Estado Democrático de Direito: a vida; a incolumidade física dos cidadãos e de seu patrimônio e a segurança pública. O Estado deve proteger seus cidadãos através da punição daqueles que atentam contra a coletividade. A falta de penalização aos condutores irresponsáveis geraria um ônus indesejável à coletividade inocente que não cometeu nenhum crime e, por isso, não deve pagar pelos erros de outros.
Portanto, o rigor da “Lei Seca” deve ser observado e colocado em prática pelas autoridades constituídas, visto que o teor preventivo de seu conteúdo é totalmente lícito no combate a criminalidade. Ademais, as estatísticas comprovam que o advento da “Lei Seca” colaborou para diminuir visivelmente as tragédias no trânsito brasileiro.
Ainda estamos longe de atingir o objetivo desejado na redução de acidentes e mortes no trânsito brasileiro, mas é inegável que a violência sofreu certa atenuação. Tudo que vier em benefício da coletividade deve ser louvado, e a “Lei Seca” entrou em vigor com essa pretensão. Cabe agora, às partes envolvidas no sistema viário brasileiro, agirem de acordo com a Lei para que as pessoas possam sair de suas casas para trabalhar ou se divertir e seus familiares fiquem tranqüilos, na esperança de que a integridade física e a vida de seus entes queridos não serão ceifadas por motoristas inconseqüentes que ingerem bebida alcoólica antes de assumir a direção de um veículo.
Notas:
Informações Sobre o Autor
Umberto Ibrahim Abu Shireh Tassi
Acadêmico de Direito da FURG/RS