Resumo:Este trabalho procurou, de forma concisa, sintetizar os atuais entendimentos da doutrina brasileira e aplicados na mais recente jurisprudência a respeito das uniões entre pessoas do mesmo sexo, em especial um contraponto entre a aplicação do instituto da união estável a existência de uma sociedade de fato.
Palavras chave: união; família; homoafetividade; afeto; sociedade.
Abstract: This study sought to concisely summarize current understandings from Brazilian doctrine and applied in the most recent case law regarding marriages between same sex partners, specially a comparison between the implementation of the common-law marriage and the commercial partnership.
Keywords: Family; afect; homosexual; common-law; marriage
Tanto a Constituição Federal de 1988, quanto o Código Civil de 2002, foram omissos ao tratar da união entre pessoas do mesmo sexo, reconhecendo apenas aquelas decorrentes de relações heterossexuais, reservando a proteção estatal apenas aos relacionamentos entre homem e mulher.
Ao omitir do texto legal a figura da união entre pessoas do mesmo sexo, o legislador pátrio, ao mesmo tempo em que não resguarda tais uniões, não as veda, não havendo qualquer impedimento, legal ou constitucional, para a união entre homossexuais.[1] Assim Airton Rocha Nóbrega sintetiza este posicionamento constitucional:
“Ao referir-se, entretanto, à diferença entre sexos, [a Constituição Federal] não possui em nenhum momento o intuito de admitir uma terceira posição, relacionada às preferências homossexuais, preservadas contra a discriminação, ante a ausência de lei que a vede, mas sem proteção especificamente orientada pelo exercício da opção de relacionamento sexual feita por cada um”.[2]
Todavia, ignorar as uniões homoafetivas é ignorar um fato social e um fato jurídico. Social porque o relacionamento entre pessoas do mesmo sexo, independentemente de sua origem, é histórico, acompanhando o ser humano em toda sua existência.[3] A opção em se relacionar com pessoas do mesmo sexo já foi motivo tanto de aceitação social (v.g.: Grécia Antiga), como de repúdio, tendo sido considerado crime, como na Alemanha Nazista, e até mesmo doença pela Organização Mundial de Saúde.[4]
Além de sua relevância histórica e social, não há como negar a repercussão jurídica dos relacionamentos homossexuais. Ao formarem uma entidade baseada no afeto, contínua e duradoura, com esforços laborais e financeiros conjuntos, com a intenção de constituir família, as relações homoafetivas não podem ser ignoradas pelo Estado, principalmente pelo Poder Judiciário, haja vista o seu reflexo jurídico entre os pares e perante terceiros.
A fim de suprir essa omissão legal, a jurisprudência pátria tem reconhecido apenas a existência de sociedade de fato, em que sócios do mesmo gênero têm o direito de participação no patrimônio formado pelo esforço comum, sem qualquer caráter familiar, gerando tão-somente efeitos cíveis, nos termos do artigo 981, do Código Civil[5]. É este o entendimento de diversos juristas, dentre eles Carlos Roberto Gonçalves[6] e Maria Helena Diniz[7], a qual afirma, in verbis:
“(…) no nosso entender, na verdade, refere-se à união homossexual e não à união estável como entidade familiar, porque esta por força da CF/88 não se aplica à união entre pessoas do mesmo sexo. Para admitirmos casamento e união estável entre homossexuais teríamos, primeiro, que alterar a Constituição Federal, mediante emenda constitucional. A relação homossexual só pode gerar uma sociedade de fato entre os parceiros para eventual partilha do patrimônio amealhado pelo esforço comum, evitando o locupletamento ilícito”.[8]
Em se tratando de reconhecer a relação homoafetiva enquanto sociedade de fato, a autora transcreve recente jurisprudência, da qual pode-se destacar a seguinte ementa de acórdão, relatado pelo Desembargador Antônio Carlos Stangler Pereira, do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul:
“APELAÇÃO CÍVEL. UNIÃO HOMOSSEXUAL. IMPOSSIBILIDADE DE EQUIPARAÇÃO À UNIÃO ESTÁVEL. O relacionamento homossexual entre duas mulheres não se constitui em união estável, de modo a merecer a proteção do Estado como entidade familiar, pois é claro o § 3º do art. 226 da Constituição Federal no sentido da diversidade de sexos, homem e mulher, como também está na Lei 8.971, de 29 de dezembro de 1994, bem como na Lei 9.278, de 10 de maio de 1996. Entretanto, embora não possa se aplicar ao caso a possibilidade de reconhecimento de união estável, em tendo restado comprovada a efetiva colaboração de ambas as partes para a aquisição do patrimônio, impõe-se a partilha do imóvel, nos moldes do reconhecimento de uma sociedade de fato. Apelo parcialmente provido”.[9]
No mesmo sentido o voto do relator Ministro Barros Monteiro, do Superior Tribunal de Justiça:
“COMPETÊNCIA. RELAÇÃO HOMOSSEXUAL. AÇÃO DE DISSOLUÇÃO DE SOCIEDADE DE FATO, CUMULADA COM DIVISÃO DE PATRIMÔNIO. INEXISTÊNCIA DE DISCUSSÃO ACERCA DE DIREITOS ORIUNDOS DO DIREITO DE FAMÍLIA. COMPETÊNCIA DA VARA CÍVEL. Tratando-se de pedido de cunho exclusivamente patrimonial e, portanto, relativo ao direito obrigacional tão-somente, a competência para processá-lo e julgá-lo é de uma das Varas Cíveis. Recurso especial conhecido e provido”.[10]
Corroborando este posicionamento doutrinário está Guilherme Calmon Nogueira da Gama, para quem “a Constituição deixa evidenciado que a família não-parental somente pode ser constituída entre um homem e uma mulher, não tutelando – ao menos como família – a união entre pessoas do mesmo sexo”.[11]
Não obstante, segundo o entendimento de Maria Berenice Dias, ainda que seja este o entendimento dominante na doutrina e jurisprudência pátria, reconhecer as uniões entre pessoas do mesmo sexo como sociedade de fato significa equiparar essas uniões a qualquer união civil, de caráter comercial, formada pelo affectio societatis, isto é, um vínculo apenas negocial entre as partes, negando-se a relação afetiva que existe com as características de uma família, no caso, formada por homossexuais.[12] Assim escreve a autora, in verbis:
“Nega-se a origem do vínculo, que é um elo de afetividade, e não uma obrigação de bens e serviços para o exercício de atividade econômica. A conseqüência é desastrosa. Chamar as uniões de pessoas do mesmo sexo de sociedade de fato, e não de união estável, leva à sua inserção no Direito Obrigacional, com conseqüente alijamento do manto protetivo do Direito das Famílias o que, via de conseqüência, enseja o afastamento também do Direito Sucessório”.[13]
Ademais, a autora prossegue em seu posicionamento, defendendo que em momento algum a Constituição Federal de 1988 ou a legislação infraconstitucional proíbe a relação entre pessoas do mesmo sexo ou mesmo veda seu reconhecimento enquanto entidade familiar. De acordo com essa posição doutinária, o artigo 226 da Constituição Federal não apresenta um rol taxativo, imodificável, de entidades familiares, mas apenas reconhece expressamente algumas instituições (união estável, casamento e família monoparental), deixando de se posicionar a respeito das relações homoafetivas.[14]
Mais. Para Maria Berenice Dias, a falta de previsão legislativa das uniões entre homossexuais afasta desses indivíduos os direitos garantidos constitucionalmente aos heterossexuais, como se esta fosse a única orientação sexual existente. Para ela, esta omissão não apenas causa insegurança jurídica, como viola os direitos humanos, a saber, a igualdade e a liberdade, esta última na hipótese da já estudada liberdade sexual.[15]
A partir deste entendimento, o direito fundamental da igualdade é afrontado ao garantir apenas às uniões heterossexuais os direitos garantidos pela Constituição Federal e pelo Código Civil, restringindo a proteção estatal à entidade familiar formada por um homem e uma mulher, enquanto aos homossexuais não são garantidos quaisquer direitos, sendo ignorados pela legislação pátria.[16]
A parcela da doutrina que defende o reconhecimento jurídico da união homoafetiva entende que a omissão legislativa no que tange essas relações implica em ofensa ao direito da livre orientação sexual, já estudado anteriormente, bem como ao princípio da dignidade da pessoa humana, isto é, o direito a uma existência digna e à busca da felicidade, vez que a única orientação sexual protegida pelo ordenamento jurídico do Brasil é a heterossexualidade. Nesse sentido a lição de Érika Harumi Fugie, nos termos do magistério de Adriano De Cupis:
“Confere-se ao direito de liberdade natureza ubíqua, é público e privado, podendo ser oponível pelos indivíduos entre si ou pelo indivíduo conta o Estado. Consiste a liberdade na prerrogativa da pessoa de desenvolver, sem obstáculos, suas atividades no mundo das relações. O direito à liberdade permite ao indivíduo reclamar acima de tudo os bens de viver e de viver incólume, imprimindo às suas energias o caminho que prefere, dentro dos limites prescritos. A ausência de obstáculos ao exercício da atividade pessoal nada mais é que o modo de ser da pessoa”.[17]
De acordo com este entendimento, ao suprimir dos pares homoafetivos os direitos garantidos às relações heteroafetivas, o legislador constitucional e infraconstitucional, em razão da orientação sexual, inflige um tratamento indigno a um ser humano, ignorando a condição pessoal do indivíduo.[18]
A solução trazida por considerável parcela da doutrina e da jurisprudência pátria, a do reconhecimento dessas relações homoafetivas enquanto sociedade de fato, também esbarra na violação dos direitos fundamentais. Ao reconhecer estas uniões enquanto parcerias de caráter meramente cível, o Poder Judiciário dispensa tratamento desigual às uniões homoafetivas, garantindo apenas aos heterossexuais o reconhecimento da entidade familiar e a proteção pelo Direito de Família, como se apenas as uniões entre pessoas de sexo opostos fossem dotadas de afeto, enquanto as uniões homoafetivas não passassem de um vínculo obrigacional.[19]
Novamente merece destaque a lição de Maria Berenice Dias, in verbis:
“As uniões heterossexuais, por força constitucional, foram reconhecidas como sociedades de afeto, mas as uniões homossexuais, pela omissão legal, ainda são identificadas como meras sociedades de fato. A depender da identidade ou diversidade sexual dos parceiros, diferenciada a tutela jurisdicional que lhes será outorgada. Buscando o judiciário para o reconhecimento dos efeitos decorrentes da união, certamente diversas serão as soluções de ordem pessoal e patrimonial, se for o par do mesmo ou de distinto sexo. Mesmo sendo idênticas a postura dos conviventes e a natureza afetiva do vínculo que os une, receberão tratamento desigualitário. Se forem parceiros heterossexuais, a demanda tramitará perante a Vara de Família”.[20]
Os tribunais pátrios vêm reconhecendo as uniões homoafetivas como entidades familiares. O Tribunal de Justiça de Minas Gerais, em recente acórdão da 7ª Câmara Cível, assim decidiu:
“AÇÃO ORDINÁRIA. UNIÃO HOMOAFETIVA. ANALOGIA COM A UNIÃO ESTÁVEL PROTEGIDA PELA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. PRINCÍPIOS DA IGUALDADE (NÃO-DISCRIMINAÇÃO) E DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. RECONHECIMENTO DA RELAÇÃO DE DEPENDÊNCIA DE UM PARCEIRO EM RELAÇÃO AO OUTRO, PARA TODOS OS FINS DE DIREITO. REQUISITOS PREENCHIDOS. PEDIDO PROCEDENTE. À união homoafetiva, que preenche os requisitos da união estável entre casais heterossexuais, deve ser conferido o caráter de entidade familiar, impondo-se reconhecer os direitos decorrentes desse vínculo, sob pena de ofensa aos Princípios da Igualdade e da Dignidade da Pessoa Humana. O art. 226 da Constituição Federal não pode ser analisado isoladamente, restritivamente, devendo observar-se os Princípios Constitucionais da Igualdade e da Dignidade da Pessoa Humana. Referido dispositivo, ao declarar a proteção do Estado à união estável entre o homem e a mulher, não pretendeu excluir dessa proteção a união homoafetiva, até porque, à época em que entrou em vigor a atual Carta Política, há quase 20 anos, não teve o legislador essa preocupação, o que cede espaço para a aplicação analógica da norma a situações atuais, antes não pensadas. A lacuna existente na legislação não pode servir como obstáculo para o reconhecimento de um direito”.[21]
A partir dos estudos de Érika Harumi Fugie, a postura adotada pelo Estado, ao não reconhecer juridicamente as uniões homoafetivas, afastando delas direitos garantidos às uniões heteroafetivas, relações formadas a partir de uma origem comum, o afeto, possui caráter discriminatório, ofendendo os direitos à igualdade e a uma existência digna. Em recente texto publicado na Revista do Instituto Brasileiro de Direito de Família:
“O fato de se estabelecer uma autêntica affectio maritalis entre pessoas do mesmo sexo não configura uma comunidade familiar? A união consensual dos companheiros homossexuais, com vistas à comunidade de vida e de interesses não merece o mesmo reconhecimento jurídico das uniões estáveis entre pessoas do sexo oposto? Não há, pois, obstáculo algum para que o conceito de união estável estenda-se tanto às relações homossexuais quanto às heterossexuais. A convivência diária, estável, sem impedimentos, livre, mediante comunhão de vida e de forma pública e notória na comunidade social independe da orientação sexual de cada qual. Inexiste razão para não se outorgar reconhecimento jurídico às uniões afetivas entre pessoas do mesmo sexo”.[22]
A parcela da doutrina que entende que as relações homoafetivas devem ser reconhecidas enquanto entidades familiares, vez se tratarem de relações dotadas de afeto, afirmam que estas relações devem ser objeto de tratamento igualitário pelo Estado, não podendo o Poder Público se omitir no reconhecimento dos direitos constitucionalmente garantidos a todos os indivíduos, sem qualquer discriminação, sejam eles homo ou heterossexuais. Para esses juristas, a orientação sexual deve reservar-se à intimidade dos indivíduos, não cabendo ao Estado garantir ou restringir direitos em razão da sexualidade.
De acordo com este entendimento, o reconhecimento jurídico pelo Estado das uniões entre pessoas do mesmo gênero enquanto entidades familiares independe de alterações no texto da Constituição Federal de 1988 ou da legislação infraconstitucional, em razão da auto-aplicabilidade dos direitos fundamentais da liberdade, da igualdade e da dignidade da pessoa humana.
Advogado criminal de Piracicaba/SP; graduado em Direito pela UNIMEP – Universidade Metodista de Piracicaba; associado ao escritório Pedroso Advogados Associados
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