A origem da vida e seus impactos jurídico-sociais

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Considerações Iniciais

Este artigo decorre do Projeto “Impacto social e efeitos jurídicos decorrentes das novas tecnologias nas relações privadas”, desenvolvido desde 2005 na Faculdade Nacional de Direito/UFRJ; não apresenta conclusões definitivas, nem tem essa pretensão. Avisamos ao leitor que são algumas idéias que desenvolvemos com objetivo de contribuir com o Direito e com ordenamento jurídico brasileiro.

Sua relevância social justifica-se, pois os impactos sociais da biotecnologia têm grande repercussão na vida cotidiana das pessoas . É certo que algumas das tecnologias não são economicamente acessíveis à maioria da população, no entanto, a questão de qual é o momento do início da vida trás consigo conseqüências para qualquer um. Além disso, a solução para esta questão será a base que determinará a resposta de até que parte do período gestacional poderia ser utilizado o embrião para fins de pesquisa ou descarte, se é que poderia sê-lo.

Assim, inadmissível que o Brasil ocupe posição secundária quanto à criação de princípios e normas reguladoras do uso de tecnologias e práticas provenientes do Biodireito.

Além do mais, este assunto é atual, o que torna ainda mais importante, haja vista que as tecnologias de reprodução assistida, clonagem em geral, e a utilização de células-tronco para fins terapêuticos são muito recentes.

O momento, mais que oportuno para estes apontamentos. Ressalte-se, inclusive, que o Supremo Tribunal Federal está julgando a ADIN nº 3510, que foi proposta pelo Procurador Geral da República, no tocante ao art. 5º da Lei de Biossegurança, que traz de forma muito intensa a discussão de qual é o momento do início da vida.

Células-tronco: definições e introspecção científica.

Necessário demonstrar ao leitor, partindo-se de um ponto de vista científico, qual a definição e como se insere atualmente, o estudo das células-tronco no ordenamento jurídico brasileiro, sem obviamente não olvidarmos do contexto histórico.

Tamanha relevância é conferida ao tema que tramita a referida Ação Direta de Inconstitucionalidade no Supremo Tribunal Federal acerca do art. 5º da lei 11.105/2005. Tal dispositivo trata da utilização das células-tronco para fins de pesquisa e terapia.

As células-tronco podem ser definidas no meio científico como:

… células indiferenciadas que podem dar lugar a distintos tipos de tecidos, sejam os constituídos por células hepáticas, nervosas, epiteliais ou as diversas células sanguíneas. Possuem um poder de renovação prolongado, capaz de dividir e gerar células igualmente indiferenciadas ao longo da vida do organismo e com potencial de formar um ou mais tipos celulares diferenciados”. [1]

Classificam-se as células-tronco em quatro tipos:

. célula-tronco unipotente, que é capaz de produzir uma única linha celular responsável pela manutenção das condições fisiológicas dos tecidos e sua reparação em caso de dano. Pode ser encontrada tanto nas células adultas quanto nas células embrionárias;

. célula-tronco multipotente, que possui capacidade limitada de reativar seu programa genético. Quando é devidamente estimulada, pode evoluir até formar certos tipos de células diferenciadas, mas não todos. Também pode ser encontrada tanto nas células adultas quanto nas células embrionárias.

. célula-tronco pluripotente, que é capaz de gerar todo tipo de célula do organismo humano e de auto renovar-se, mas não está apta para desenvolver um embrião completo. Só é encontrada nas células embrionárias;

. célula-tronco totipotente, como sendo aquela possuidora da capacidade de multiplicar-se e diferenciar-se até o desenvolvimento de um indivíduo completo. É capaz de originar todos os tecidos humanos. Encontra-se exclusivamente nas células embrionárias.

A ciência mostra, então, que as células-tronco em fase adulta seriam classificadas como multipotentes, portadoras de qualidades limitadas tal como podemos verificar na classificação trazida pelo renomado cientista. Assim podemos concluir que as pesquisas de que tratam a lei estariam restritas às células-tronco totipotentes, derivadas das técnicas de fertilização in vitro, ou seja,  a fusão dos gametas realizada por qualquer técnica de fecundação extracorpórea que podem gerar um ser humano completo.

Tais células se apresentariam como indiferenciadas, sendo obtidas pela supramencionada técnica de reprodução assistida, por qual chega-se ao resultado de um embrião, que será alvo de replicações para estar apto a dar início ao processo de implantação no útero feminino. Tais células só poderiam ser obtidas de embriões. O que ocorre, e se mostra então como ponto chave da discussão deste estudo, é que nestas técnicas de reprodução assistida teremos um número considerável de embriões excedentes e, desta forma, chegou-se à indagação acerca do uso desses embriões criopreservados (ou crioconservados, congelados) em pesquisas científicas.

Num contexto histórico recente, as células-tronco tiveram os anos 80 como berço, e desde o início deste século têm mais espaço no meio científico por possuirem grande potencial para combate e cura de doenças diversas, dentre elas algumas bastante temidas na atualidade, tais como paralisias, distrofias musculares, diabetes, mal de Parkinson, câncer entre outras.

Conforme o dispositivo legal, os embriões a serem utilizados para pesquisa com células-tronco são aqueles considerados inviáveis para a medicina reprodutiva, somado-se ao fato de estarem congelados antes da lei, ou até três anos antes de sua edição. A ANVISA tem como interpretação para com o artigo analisado que só estaríamos tratando de embriões que estão congelados, e estavam congelados até o dia da edição da lei, ou seja, daí em diante todos os embriões que venham a ser congelados e considerados viáveis não poderiam ter como destino a doação.

Cabe, então, especificar o porquê dos três anos dispostos no art. 5º da Lei nº 11.105/2005. Bastante discutido à época da edição da lei, tal lapso temporal, nada tem a ver com a questão da viabilidade do embrião, mas com duas razões legislativas: uma primeira seria a de que se deveria obrigar o casal a refletir durante um período mínimo antes de se realizar uma potencial doação para fins de pesquisa, juridicamente se deveria esperar o período de 3 anos. Uma segunda razão, que se mostra bastante importante, foi a tentativa do legislador de evitar que se façam embriões especificamente destinados ao uso em pesquisas científicas, gerando assim o que poderia se chamar de “indústria do embrião congelado”, originando uma série de fraudes à lei.

Dissecando o texto legal, passamos a verificar o que seria então o termo “inviável” utilizado pelo legislador. Inviável, a partir do estudo do Decreto 5.591 de 22 de novembro de 2005, em seu art. 3º, inciso XIII, seriam aqueles com alterações genéticas comprovadas por diagnóstico pré implantacional, conforme normas específicas estabelecidas pelo Ministério da Saúde, que tiveram seu desenvolvimento interrompido por ausência espontânea de clivagem após período superior a vinte e quatro horas a partir da fertilização in vitro, ou com alterações morfológicas que comprometam o pleno desenvolvimento do embrião.

Mas quantos embriões congelados há no Brasil?  Segundo levantamento da Sociedade Brasileira de Reprodução Humana Assistida[2], apresentada à ANVISA recentemente, em amostra realizada com as 15 maiores clínicas de reprodução assistida no país, há 9.914 (nove mil, novecentos e quatorze) embriões congelados. Destes, 3.219 (três mil duzentos e dezenove) congelados no Brasil há mais de três anos.

A partir deste número bem próximo ao real cenário brasileiro acerca da matéria, importante se faz tecer algumas observações que farão recair drasticamente o número de embriões congelados em potencial a serem alvo da Lei de Biossegurança. Em primeiro lugar, é tido de forma consensual na doutrina médica, com aval da Organização Mundial de Saúde, que a iniciativa média de sobrevida de um embrião pós-congelamento é de 50%, podemos concluir que, se neste momento fossem descongelados todos os embriões acima mencionados (número referente aos que estão congelados a mais de 3 anos), haveria metade deles, ou seja, 1.610 (mil seiscentos de dez) embriões viáveis a reprodução.

Uma segunda observação a ser feita de forma pacífica na doutrina médica, é que a taxa de sucesso na medicina reprodutiva é de 25% (vinte e cinco por cento) a cada ciclo de três embriões. Desta maneira, passaríamos a tratar de apenas 134 (cento e trinta e quatro) embriões com chances de dar origem a uma criança.

Uma terceira e última observação numérica a ser feita se relaciona ao caráter social e cultural acerca da doação de embriões a pesquisas científicas. Estudos internacionais nos trazem uma taxa máxima donativa de 15% dos embriões para fins científicos. Chegaríamos ao número de 20 (vinte) embriões com reais chances de virem a gerar futuras “pessoas humanas”.

Finalmente uma última reflexão por demais simplória acerca da sua relação com a vida em caráter geral, qual seja: um óvulo fecundado ou em um estágio posterior, um zigoto, sem encontrar um útero materno para seu desenvolvimento não terá outro destino senão a morte.

Princípios

Para dissertar acerca de um assunto tão controverso como o da origem da vida, tem-se uma inclinação por estabelecer uma base principiológica a fim de se mostrar flagrante a necessidade de uma base, para que sobre um alicerce se possa iniciar uma discussão producente.

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Se não existem normas jurídicas postas no ordenamento jurídico positivo interno, inicia-se a busca pelos valores e princípios básicos existentes no sistema jurídico pátrio e no Direito Comparado que sejam capazes de servir como escopo e substrato teórico à criação de normas.

Assim, passaremos a expor os princípios jurídicos já consagrados em nosso ordenamento que servirão ao tratamento da matéria e, ainda, alguns novos princípios frutos de criação doutrinária recente.

Inicialmente ressalte-se o direito constitucional à vida. A Constituição Federal no caput de seu artigo 5º explicita a existência deste direito. Também é de grande importância estabelecer o entendimento que ao se retirar as células-tronco de um embrião ele é sacrificado, e que o mesmo ocorre com o embrião clonado.

A questão que se estabelece é em relação a qual seria a abrangência deste direito à vida, vez que o ordenamento dá maior ênfase e proteção a este direito à medida que a vida se prolonga, provando sua viabilidade fática. Tendo este sido um forte argumento a favor da clonagem terapêutica exposto pelo “Conectas Direitos Humanos”[3] e pelo “Centro de Direitos Humanos”[4] ao se apresentarem conjuntamente como amicus curiae na ADIN n º 3510. Isto é evidenciado, por exemplo, pelo fato de o crime de aborto receber menor pena que o de homicídio.

Neste contexto, mostra-se relevante ressaltar argumento contrário. A Convenção Interamericana de Direitos Humanos (Pacto de San José de Costa Rica), em seu artigo quarto, assegura o direito à vida e enuncia que o direito de ter sua vida respeitada é de toda pessoa, dizendo que este direito deve ser legalmente protegido, e, em geral, a partir da concepção.

Outro princípio de grande relevância é o da dignidade da pessoa humana, consagrado como um dos fundamentos de nosso Estado Democrático de Direito no inciso III do primeiro artigo de nossa Constituição, sendo um princípio fundamental.

Dignidade da pessoa humana refere-se ao fato de ser a pessoa humana titular de direito por si só, sendo ela mesma sujeito e objeto supremo das normas jurídicas, seja considerada isoladamente, seja como coletividade. E, sobretudo, de direitos humanos e fundamentais. Há, como ressalta Fernando Ferreira dos Santos[5], três concepções básicas da dignidade da pessoa humana. A primeira é a individualista, segundo a qual, ao proteger-se o individuo, protege-se indiretamente a coletividade. A segunda, a do transpersonalismo, compreende que se protegendo os direitos e interesses coletivos, protegem-se, indiretamente os dos indivíduos. A terceira e última concepção é a personalista, que diz que se deve compatibilizar os interesses coletivos e os individuais, sem haver preponderância nem subordinação de qualquer desse interesses.

A Constituição Federal no inciso II do artigo 4º preceitua que o princípio da prevalência dos direitos humanos é um dos que regem a República Federativa do Brasil.

Também se deve considerar o princípio da livre expressão da atividade científica (art. 5º, IX). A questão que se mostra, na verdade, é qual o limite desta liberdade, até onde aplicar este princípio e se ele é subordinado a outro maior.

Leandro Sarai em seu artigo denominado “Aplicação terapêutica das células-tronco embrionárias: reflexões sobre o direito a vida”, comenta que o princípio da ordem natural das coisas[6], poderia ser suscitado para fundamentar posição contrária à utilização destas técnicas. Por este princípio compreende-se que mesmo se possível a alteração da maneira natural que se dão as coisas, não deveria ser feito por gerar sérios resultados. E então conclui: “Em suma, a vida não é um processo de direção dupla. É de único sentido. Assim, a intervenção humana após a morte encefálica não interfere na vida, mas a manipulação dos óvulos fecundados, antes da formação do sistema nervoso, representará uma alteração da ordem natural.”

Há, ainda, o princípio da precaução, pelo qual se entende que a sociedade deve agir de forma antecipada a fim de precaver-se de eventuais conseqüências maléficas desconhecidas ainda pela ciência.

Diante disto podem-se tomar duas posições divergentes. A primeira é baseada no princípio da inocuidade absoluta, segundo a qual não deve utilizar-se de tecnologia cujas conseqüências são desconhecidas. Esta é a posição do Greenpeace. A segunda é a de que em atividades cujo risco é desconhecido, deve-se exigir que o explorador utilize a melhor técnica disponível[7]

Finalmente, deve-se considerar que, ao surgir uma controvérsia a respeito de qual princípio deveria ser aplicado, há duas posições doutrinárias possíveis de serem adotadas. A primeira é a da ponderação que foi trazida para o Brasil por Luis Roberto Barroso. Para os que aderem a esta corrente, é possível se compatibilizar princípios, chegando a uma posição peculiar resultado da ponderação dos princípios que se mostram aparentemente controversos. A segunda é a da exclusão que é fruto da crítica da primeira teoria. Desta posição se deduz que um princípio será rejeitado em prol de outro que se quer privilegiar, isto é, que parece mais relevante, mais digno de proteção na situação fática.

O início da vida

O momento em que se dá o início da vida é questão na qual há muita desavença não só por parte dos juristas, mas também entre a comunidade científica, já que na matéria ora tratada o Direito apóia-se em subsídios fornecidos pela medicina. Existem muitas correntes que versam sobre a matéria.

O então Procurador da República ao interpor a ADIN nº 1350 usou como base a opinião de diversos especialistas que sustentam que a vida se inicia no momento da concepção. No entanto, há também outra gama de cientistas que entendem que é com o com a implantação do blastócito no útero materno (nidação), que se dá no sexto ou no sétimo dia de gestação, que a vida começa. Outros afirmam que é com o início da atividade cerebral que se inicia a vida, esta ocorre no décimo quarto dia da gestação, quando as células do feto estão diferenciadas das do anexo.

Portanto, para os que entendem que a vida se inicia com a nidação ou com o início da atividade cerebral a utilização da técnica de clonagem terapêutica não seria em nada violadora ao princípio constitucional de proteção à vida, já que, apesar de a obtenção de células-tronco embrionárias acarretar necessariamente na destruição do embrião, ele estaria no correspondente ao quinto dia da gestação que é anterior a fixação do embrião no útero materno ou de ser iniciada a atividade cerebral.

É válido destacar que a Organização das Nações Unidas desde ano de 2001 tentava aprovar uma convenção contra a clonagem reprodutiva dos seres humanos. Nenhum país mostrou-se contrário à aprovação desta convenção. Na verdade mais de 80 países aderiram. Contudo, muitos temem que a possibilidade de aprovação da clonagem terapêutica pela sociedade internacional implique em se tornar quase que impossível proibir a clonagem reprodutiva.

Os EUA, a Santa Sé, Itália e Espanha são contrários à prática da clonagem, não só para fins reprodutivos, mas também para fins terapêuticos. [8]

Segundo uma notícia encontrada no site da ONU intitulada “Brasil rechaça tratado contra a clonagem”, em 2005 setenta e um países votaram em prol da aprovação de uma convenção que proíba todo e qualquer tipo de clonagem. O Brasil votou contra a convenção da ONU que proíbe qualquer espécie de clonagem (reprodutiva e terapêutica), posicionando-se com o grupo dos países mais progressistas dentre os quais estão França, Bélgica, Alemanha e Coréia do Sul. Estes países são favoráveis a um tratado que proíba apenas a clonagem reprodutiva, reservando para os países legislarem internamente sobre a clonagem terapêutica. Informou-se também que quarenta e seis países islâmicos entendem que este assunto só pode ser decido por unanimidade e, por isso, abstiveram-se de votar. [9]

Ao que tudo indica, as conversações a respeito da matéria não prosperaram. No momento, parece pouco provável que a sociedade internacional vá entrar em acordo sobre matéria tão controversa, formalizando isto no estabelecimento de um tratado sobre clonagem no âmbito da ONU.

ADIN nº 3510/2005

No dia 20 de abril de 2007 foi realizada uma “audiência” no Supremo Tribunal Federal, em que pesquisadores, religiosos e membros da sociedade civil debateram acerca do polêmico e desafiante tema: “Quando começa a vida?”, para fundamentar e legitimar a decisão futura acerca da Ação Direta de Inconstitucionalidade proposta pelo então Procurador-Geral da República Cláudio Fontelles em face da Lei de Biossegurança, Lei nº 11.105/05.

Basicamente, a exposição dos especialistas foi dividida em dois grupos: o denominado Bloco 1 (um) é composto por pessoas contrárias aos dispositivos da Lei de Biossegurança que permitem a utilização de células-tronco embrionárias em pesquisas científicas; e o Bloco 2 (dois), por especialistas a favor das pesquisas. Os palestrantes foram convidados pelos principais interessados na ADIN: STF, PGR, Confederação Nacional dos Bispos do Brasil e Presidência da República.

O cerne da questão

Em relação à definição de vida humana, a questão em pauta no Supremo não é se determinar a definição científica da mesma, mas sim o STF julgar a que formas de vida humana o Artigo 5º da nossa constituição garante “a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade…”.

Outras formas de vida humana, como fetos resultantes de aborto ou que representam risco de vida à gestante, são legalmente violadas no Brasil; quando aceitamos as técnicas de fertilização in vitro, aceitamos a criação de embriões em “larga escala”, que atualmente encontram-se armazenados congelados, não desejados para fins reprodutivos por seus pais biológicos; e a decisão de tornar inviolável o “direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade” destes embriões terá enorme impacto na viabilidade da área de reprodução assistida, além de criar sérios problemas legais referentes àqueles embriões atualmente congelados.

De fato, a Lei de Biossegurança nos termos em que foi aprovada pelo Senado Federal e pela Câmara dos Deputados permite e regulamenta o desenvolvimento de pesquisa com estas células, área de extrema importância estratégica e que poderá ser revertida em grande benefício para a população na área de saúde, de forma ética e legal.

Assim, a questão parece não se tratar de quando começa a vida, se na fecundação, até certo ponto banalizada pela indústria da fecundação in vitro, ou se no nascimento, ao respirar; mas sim até que ponto vale preservar a simples vida embrionária, que provavelmente nem se converterá em vida adulta no futuro, sacrificando seres vivos agora, que assistem à morte das células concomitante ao esvaziamento do seu direito à vida. Não existem respostas certas, talvez nem mesmo perguntas, mas apenas incertezas quando o assunto é o bem mais precioso do ser humano, a vida.

A complexidade da questão do confronto entre duas visões e formas de vida remete às entranhas da finalidade da ciência do direito, ao mesmo tempo em que se relaciona com a moral e outras áreas das ciências humanas. Nesse sentido, brilhante é a colocação de Couture:

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(…) o direito atua sempre buscando equilíbrio da conduta humana. Junto a uma possibilidade, coloca uma limitação; junto à liberdade, que é um poder, aparece responsabilidade, que é uma forma de dever. Poder e dever buscam, dessa forma, seu equilíbrio necessário.[10]

Para os anais do Supremo…

Partindo da premissa de que à Jurisdição Constitucional cumpre assegurar a efetividade dos direitos fundamentais, consagrando o regime democrático, chega-se à conclusão de que para o bom exercício de sua função, faz-se mister que aquela Corte Suprema se posicione de forma aberta às várias correntes de pensamento que coexistem na sociedade. Assim, é também preciso assegurar meios para que a sociedade civil organizada possa contribuir na formação do pensamento dos intérpretes oficiais.

Neste contexto, exatamente por suscitar inúmeras indagações a respeito da proteção de garantias constitucionais, precipuamente do direito à vida, o Ministro Carlos Ayres Britto viu-se em situação sui generis, ao perceber o quão fundamental seria a obtenção de tais esclarecimentos. Assim, muito acertadamente, designou a realização de uma audiência pública para a elucidação das questões de fato subjacentes ao questionamento da validade constitucional do referido artigo, fazendo-o em breves linhas:

(…) a matéria veiculada nesta ação se orna de saliente importância, por suscitar numerosos questionamentos e múltiplos entendimentos a respeito da tutela do direito à vida. Tudo a justificar a realização de audiência pública, a teor do § 1º do artigo 9º da Lei nº. 9.868/99. Audiência que, além de subsidiar os Ministros deste Supremo Tribunal Federal, também possibilitará uma maior participação da sociedade civil no enfrentamento da controvérsia constitucional, o que certamente legitimará ainda mais a decisão a ser tomada pelo Plenário desta nossa colenda Corte.”

Fato é que a designação da primeira audiência pública da história do Supremo Tribunal Federal representou mais um sinal de abertura do procedimento de interpretação constitucional à sociedade organizada brasileira. Dessa forma, a decisão final a ser tomada pelo Supremo já não poderá mais ser encarada como um ato isolado e intelectivo dos seus membros, vez que do processo de elaboração desse ato decisório participaram – de forma essencial, destaque-se – os especialistas indicados pelo Autor, pelos requeridos e também pelos amici curiae.

No entanto, cabe aqui fazer um breve questionamento acerca da nomenclatura adotada para designar tal “debate científico”. Sim, pois nos termos em que foi concebida, pela Lei nº. 9.868/99, a Audiência Pública realizada no Parlamento brasileiro possui, claramente, maior amplitude do que aquela realizada no âmbito do Supremo Tribunal Federal, vez que aquela tem por fim a finalização de um processo legislativo, pressupondo um ato normativo abstrato em formação, enquanto que nesta, a atuação da Corte Suprema é limitada às balizas impostas pelos autores das específicas impugnações que lhe são dirigidas. Daí a necessidade de se fazer esta pequena ressalva, que, de forma alguma, visa tirar o mérito de tamanho avanço.

Neste sentido, inclusive, há que se reconhecer que a realização da audiência para a instrução da ADIN 3510 é um marco na história do controle de constitucionalidade no Brasil. Não apenas por ter sido a primeira sessão pública para oitiva de especialistas da história do Supremo Tribunal Federal, mas também porque ela teve a virtude de explicitar um processo evolutivo que, ainda que timidamente, já se fazia notar na mais alta Corte do país: uma caminhada, a passos firmes e largos, para uma maior abertura do processo de interpretação constitucional das normas.

Conclusão

Analisando os de direitos constitucionais, consideram-se que haja três gerações (ou dimensões) ainda não caracterizados ou definidos de forma exaustiva. Bobbio[11], contudo, menciona os de quarta geração decorrentes das manipulações em “indivíduos”.

A verdade é que esta geração de direitos foi finalmente alcançada, e terá avanços bastante significativos em intervalo de tempo muito curto. O Direito não é criado todo de uma vez, mas sim em ciclos que irão acompanhando a vida humana e seu desenvolvimento. À medida que o homem se infla de conhecimento acerca da sua existência, bem como amplia seus limites fáticos de atuação, também devem ser alargados os limites normativos ou jurídicos de forma que não se venha a formar um vácuo entre o ordenamento jurídico e o cidadão. De forma acertada, Gracielle Carrijo Vilela e Marcelo Zuppo Alves Moreira entendem que a evolução biotecnológica deve ser acompanhada tecnicamente, de maneira democrática , e sua regulamentação deve pautar-se em todos os princípios e regras constitucionais. Deste modo, seus eventuais riscos tornam-se minorados. Considerando-se que os direitos difusos e coletivos já encontram definição no ordenamento jurídico moderno, faz-se necessário compreender e analisar esses direitos.[12]

Sendo assim, o objetivo maior do Biodireito é o de promover benefícios à sociedade, fruto do desenvolvimento técnico-científico, capazes de proporcionar ao ser humano melhor bem estar social proveniente da transposição das barreiras ou limitações impostas pela natureza. Obviamente que tais avanços deverão obedecer às consolidações feitas pelo ordenamento jurídico, desenvolvendo-se de forma estruturada e não de forma inconseqüente e irresponsável.

Trazendo esta conclusão especificamente à questão das células-tronco verificaremos que com razão comentou o Ministro Ayres de Britto na Audiência Pública realizada: “Às vezes você tem que decidir entre o certo e o certo, em outras, entre o certo aparente e o certo aparente”.

Sendo assim, pode-se chegar a duas tendências: uma pela não utilização das células-tronco. Esta não utilização se daria pelo fato de não se conseguir a extração de células-tronco por outro meio senão a morte de um embrião congelado. Tal morte viria a condenar princípios como o direito à vida e a dignidade da pessoa humana de uma pessoa “em potencial”.

De outro lado, pela utilização das células-tronco para fins de pesquisas científicas, não somente em prol dos direitos constitucionais visando a ciência, a saúde, mas a própria vida em si, além de outros argumentos fáticos que se expõem em seguida.

Um contra argumento se dá não no sentido de inexistência de vida, mas pelo fato de não ser ainda uma vida humana, tal qual a protegida pelo Direito (que se dá de forma gradativa), sendo esta por interpretação sistemática entendida como aquela viável, que se desenvolveria por si só, o que não ocorre com o embrião fora do útero materno. Outro contra argumento seria o de que não se pode deixar à própria sorte pessoas com males diversos, e que sem a ajuda científica morreriam em brevidade, em favor de expectativas de direitos, provenientes também de expectativas de vida. Hipóteses estas que não se teria certeza nem mesmo acerca de uma possível nidação dos embriões protegidos ou da sua viabilidade. Assim poderíamos chegar à hipótese absurda, de o embrião congelado ter seu “prazo de validade”, não mais podendo ser utilizado nem para pesquisas e nem para fertilização e, concomitantemente, a morte de um número infinito de pessoas com as mais diversas doenças que poderiam ter sido salvas com um resultado de cura proveniente deste mesmo embrião.

Por fim, é pacífico que o tema é da maior complexidade moral, ética, social, psicológica, científica e humanitária. E assim põe se termo a estas anotações o ensinamento de Francisco Amaral, no sentido de sempre nos indagarmos em futuros acontecimentos do gênero despontados pela comunidade científica, se aquilo que se torna possível no campo da ciência deve ser obrigatoriamente ético.

“(…) A questão inicial que apresenta é a saber se tudo o que é cientificamente ou tecnicamente possível também o é eticamente. E quando os limites éticos se tornam insuficientes, recorre-se então aos limites jurídicos. Função nossa, dos juristas, é precisamente estabelecer os limites, elaborando modelos, construções e teorias jurídicas que sirvam de critérios de orientação ao intérprete, ao aplicador do direito, nos casos em que se discutam os diversos aspectos do direito da vida humana. Diga-se, de imediato, que a autonomia da ciência não significa liberação da ética, e que a liberdade de pesquisa se estende ou amplia tanto quanto o respeito pela pessoa humana. “[13]

 

Notas:
[1] VELAZQUES, José Luis. Del homo al embrión: Etica y Biología para al siglo XXI. Barcelona: Gedesa, 2003, p. 88; citado por GUIMARÃES, Adriana Esteves. Clonagem terapêutica: seus enfoques bioéticos e biojurídicos, 2005.
[2] http://www1.folha.uol.com.br/folha/ciencia/ult306u13158.shtml
[3] Conectas tem o objetivo de promover o respeito aos direitos humanos por meio do fortalecimento de ativistas e acadêmicos no Brasil e no hemisfério sul e fomentar sua interação com as Nações Unidas. Sua página na internet é: www.conectas.org
[4] É uma organização da sociedade civil sem fins lucrativos, com o objetivo de promover, difundir e garantir, os Direitos Humanos Civis, Políticos, Econômicos, Sociais, Culturais, à Paz e ao Desenvolvimento. Seu site na internet é: www.cdh.org.br
[5] Artigo “Princípio constitucional da dignidade da pessoa humana” de Fernando Ferreira dos Santos (promotor de Justiça no Piauí, mestre em Direito Público pela UFC) retirado do site Jus Navidandi
[6] www.revistadoutrina.trf4.gov.br
[7]  Artigo: “O princípio da precaução no Direito Ambiental” escrito por Silvana Brendler Colombo.
[8]  Informação veiculada por: O Globo On Line em 28/02/2002 em reportagem intitulada “Brasil defende convenção para proibir clones”
[9]  Notícia do dia 24/02/2005 retirada do site www.onu-brasil.org.br
[10] Eduardo J. Couture. Introdução ao Estudo do Processo Civil. Trad. Hiltomar Martins Oliveira, Belo Horizonte: Ed. Líder, 2003, p. 25.
[11]  BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Trad. Carlos Nelson Coutinho. 11ª Ed. Rio de Janeiro: Campus, 1992.
[12] http://www.pontojuridico.com/modules.php?name=News&file=article&sid=2
[13]  Francisco Amaral. Ensaios Jurídicos. Por um estatuto jurídico da vida humana: a construção do Biodireito. Conferência proferida no Simpósio de Bioética da Faculdade Estadual de Londrina, em 26.05.97.

 


 

Informações Sobre os Autores

 

Flavio Alves Martins

 

Prof. Adjunto de Direito Civil na UFRJ e na UNIGRANRIO. Professor do Programa de Mestrado da UNIFLU. Coordenador Projeto Impacto social e efeitos jurídicos decorrentes das novas tecnologias nas relações privadas

 

Debora de Sá Costa

 

Acadêmica na Faculdade Nacional de Direito da UFRJ. Integrante do Projeto Impacto social e efeitos jurídicos decorrentes das novas tecnologias nas relações privadas.

 

Gabriel Valladão França

 

Acadêmico na Faculdade Nacional de Direito da UFRJ. Integrante do Projeto Impacto social e efeitos jurídicos decorrentes das novas tecnologias nas relações privadas. Bolsista UFRJ/PIBIC.

 

Juliana Carvalho Brasil da Rocha

 

Acadêmica na Faculdade Nacional de Direito da UFRJ. Integrante do Projeto Impacto social e efeitos jurídicos decorrentes das novas tecnologias nas relações privadas. Bolsista CNPq/PIBIC

 


 

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