Resumo: Discorre sobre a proibição de penas de prisão perpétua, comparando a forma como se procede a tal proibição em diversos países latino-americanos e no Brasil. Ressalta que a proibição constitucional das penas de caráter perpétuo e a individualização das penas são regras tradicionalmente estabelecidas no Direito brasileiro, como corolários da orientação humanitária de nosso Direito Constitucional. Conclui serem insuperáveis os óbices à ratificação, por parte do Brasil, do Estatuto de Roma da Corte Penal Internacional, uma vez que o mesmo, não admitindo ratificação com reservas, prevê a reclusão perpétua e ainda não individualiza a pena para cada um dos tipos penais nele previstos, dois dispositivos que, no entender do autor, não podem ser alterados mediante emenda constitucional, mas somente com a revogação da atual Carta Magna.
Palavras-chave: Tribunal Penal Internacional; Estatuto de Roma; direitos humanos; Direito Penal internacional; Constituição Federal; prisão perpétua; pena perpétua; pena – individualização, principio da humanização e claúsula pétrea.
Abstract: It discourses about the prohibition of life imprisonment, comparing the form as such prohibition is proceeded between several Latin-American countries and in Brazil. It points out that the constitutional prohibition of the life punishment and the individualization of the punishments are rules traditionally established in the Brazilian Law, as corollary of Brazilian Constitutional Law Humanitarian orientation. It concludes that the obstacles to the ratification are insuperable, concerning to Brazil, the Rome Statute of the International Criminal Court, once the same, not admitting ratification with reservations, it foresees the perpetual reclusion and it doesn’t still distinguish the punishment for each one of the penal types foreseen in itself, two dispositives that, in the author’s understanding, they cannot be altered by constitutional amend, but only with the repeal of the current Brazilian Constitution.
Key words – International Criminal Court; Rome Statute; Human Rights; International Criminal Law; Brazilian Constitution; life imprisonment; punishment – adequacy.
I – INTRODUÇÃO.
Pela primeira vez na história foi protocolado no Supremo Tribunal Federal, em 16.07.2009, através da Petição 4625-1, o primeiro pedido de cooperação judiciária que objetiva a detenção para ulterior entrega ao Tribunal Penal Internacional de Chefe de Estado estrangeiro, em pleno exercício de suas funções como Presidente da República do Sudão.
Explicitando a alta relevância da questão em seu despacho inicial, reconhecendo necessidade de prévia audiência da Procuradoria-geral da República, o Ministro Celso de Melo enumera diversos temas que deverão ser discutidos na análise deste pleito, dentre os quais: o reconhecimento, ou não, da competência originária do Supremo Tribunal Federal sobre a matéria em causa; – a possibilidade de entrega da pessoa reclamada, ao Tribunal Penal Internacional, pelo Governo do Brasil, considerado o modelo constitucional entre nós vigente (CF,art. 5º, XLVII, “b”), nos casos em que admissível, pelo Estatuto de Roma, a imposição da pena de prisão perpétua (Artigo 77, n. 1, “b”); – a imprescritibilidade de todos os crimes previstos no Estatuto de Roma (Artigo 29);- a impossibilidade de invocação, por Chefe de Estado, de sua imunidade de jurisdição em face do Tribunal Penal Internacional (Estatuto de Roma, Artigo 27);- a questão pertinente às relações entre o Estatuto de Roma (que descreve os denominados “core crimes”), complementado pelo Anexo referente aos “Elements of Crimes”, adotado em 09/09/2002, e o postulado constitucional da reserva de lei formal em matéria de definição (que há de ser prévia) de tipos penais, bem assim das respectivas sanções, notadamente em face da indeterminação das penas por parte do Estatuto de Roma, eis que não foram por ele cominadas de modo específico e correspondente a cada tipo penal;- o reconhecimento, ou não, da recepção, em sua integralidade, do Estatuto de Roma pela ordem constitucional brasileira, considerado o teor do § 4º do art. 5º da Constituição, introduzido pela EC nº 45/2004.
Especialmente no tocante a este ultimo tema o Eminente Decano da Suprema Corte destaca que:
“… cabe assinalar que se registram algumas dúvidas em torno da suficiência, ou não, da Pet 4.625 / REPÚBLICA DO SUDÃO14 cláusula inscrita no § 4º do art. 5º da Constituição, para efeito de se considerarem integralmente recebidas, por nosso sistema constitucional, todas as disposições constantes do Estatuto de Roma, especialmente se se examinarem tais dispositivos convencionais em face das cláusulas que impõem limitações materiais ao poder reformador do Congresso Nacional (CF, art. 60, § 4º).”[1]
A possibilidade da adesão do Brasil à jurisdição do Tribunal Penal Internacional já era prevista na Constituição muito antes da Emenda Constitucional 45, haja vista que o art. 7º dos Atos das Disposições Constitucionais e Transitórias[2] estabelecia que o Brasil lutaria em defesa da formação de um tribunal internacional dos direitos humanos.
Nessa perspectiva, o Brasil assinou o aludido estatuto em 07/02/2000 e o Congresso Nacional o aprovou, através do Decreto Legislativo nº 112, tendo sido promulgado pelo Decreto presidencial nº 4.388 e depositado a carta de ratificação em 20/06/2002 e, nos termos do seu art. 126, passou a vigorar internacionalmente para o nosso país em 1º de setembro de 2002.
Entretanto, a adesão do Brasil ao Tribunal Penal Internacional não foi tão tranqüila como possa parecer. As inúmeras questões complexas de constitucionalidade do tratado impuseram discussões mais sérias sobre o tema, como bem salientou Saulo José Casali Bahia, que analisando o seu contexto afirmou:
“No caso do Tribunal Penal Internacional, a assinatura do plenipotenciário brasileiro ao Tratado de Roma, formulada em 07/02/00, não foi suficiente para que o tratado entrasse em vigor para o Brasil. E não bastava encaminhar ao Presidente da República o texto do tratado assinado para que este pudesse, de logo, ratificá-lo, ou conferir referendo à assinatura, pois o tratado é do tipo que cria encargos ou compromissos gravosos ao país, devendo, por esta razão, ser submetido à apreciação do Congresso Nacional, que, analisando a conveniência e a constitucionalidade da sua ratificação, poderá autorizar, através da edição de um Decreto Legislativo, que o chefe do Executivo federal promova a manifestação definitiva da intenção brasileira de assumir as obrigações resultantes do pacto (ou seja, proceda à ratificação do mesmo). Daí a importância da discussão acerca da constitucionalidade do Tratado de Roma, pois as dúvidas que ainda permeiam a sua constitucionalidade vêm inibindo o Executivo pátrio de encaminhar o texto, através de mensagem presidencial, ao Congresso Nacional, e, ainda que o Presidente da República promova o referido encaminhamento, o problema da constitucionalidade do tratado será reavivado no âmbito das duas Casas Legislativas, com soluções imprevisíveis, inclusive com a eventual rejeição do projeto de Decreto Legislativo, selando, assim, a sorte da vinculação do Brasil à iniciativa de participação nesta Corte internacional inovadora”.[3]
O Estatuto de Roma que criou o Tribunal Penal Internacional é um tratado do tipo que cria encargos ou compromissos gravosos ao país que repercutem sobremaneira em diversos temas constitucionais e especialmente por envolver questões de relacionamento entre as jurisdições internas e internacional, dentre as quais a previsão no art. 77, I, “b”, do referido estatuto, de aplicação da prisão perpetua em determinados casos, que, dentro do nosso ordenamento constitucional, é expressamente proibida, podendo afetar, assim, a soberania nacional.
II – A PRISÃO PERPETUA NO TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL E A CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA
Historicamente já é uma tradição no Direito brasileiro a vedação à pena de caráter perpétuo. Por isso, no momento em que se cria uma possibilidade de sua aplicação faz-se necessário um cuidado a fim de que não haja um retrocesso em toda evolução humanitária conquistada pelo direito no decorrer da história. Nestes termos relata Luiz Vicente Cernicchiaro:
“Não poderemos jamais analisar um instituto do ponto de vista material, não exclusivamente formal, sem analisar o que seja o próprio Direito, o que seja a expressão moderna, atual das normas jurídicas. O Direito, como tudo que acontece, tende a um desenvolvimento, a um progresso, a um aperfeiçoamento e, na hipótese, vinculados a determinados princípios axiológicos, que não podem – penso eu – ser desprotegidos ou esquecidos, sob pena de haver um retrocesso.”[4]
Verifica-se que o direito de punir, como regra, evoluiu no sentido de cada vez mais atender aos princípios democráticos balizadores do Estado Democrático de Direito, ou seja, visando proteger o pleno exercício do direito de liberdade e demais direitos e garantias fundamentais asseguradas pela Carta Magna.
No tocante ao Tribunal Penal Internacional, a adoção da pena de prisão perpétua representou uma tentativa de conciliar duas correntes opostas representadas na Conferência de Plenipotenciários, uma encabeçada pelos Estados Unidos, representando os Estados da common law, que defendiam a pena de morte por darem ênfase ao caráter retributivo da pena; e a segunda corrente composta pelas nações da civil law, favoráveis à pena máxima de 30 anos por acreditarem no cunho utilitário da pena. Acerca dessa discussão explica Artur de Brito Gueiros Souza:
“Com efeito, o anteprojeto da Comissão de Direito Internacional (CDI) não previa a pena de morte, mas incluía a pena perpétua. No Comitê Preparatório, que antecedeu a Conferência de Roma, as discussões foram acirradas, já que diversas delegações insistiam na inclusão da pena de morte, ao argumento de que, sem a possibilidade de haver essa pena, o objetivo intimidatório da Corte seria diminuído, bem como sua credibilidade reduzida. Outros, contrários à pena capital, como os países ibero-americanos, acenavam com a incompatibilidade entre tal pena e disposições expressas em Convenções de Direitos Humanos, o que tornaria inviável a ratificação do Estatuto. Contudo, verificou-se que a preocupação maior das delegações que insistiam na previsão de pena de morte era no sentido de que sua exclusão pudesse ser entendida como uma revogação implícita dessa espécie de penas no seu direito interno, caso viessem a ratificar o Estatuto.”[5]
A pena de prisão perpétua pode ser traduzida pela a idéia de privação do direito de liberdade até a morte do condenado. Entende-se que a pena de prisão perpétua, por ser uma punição que afasta o condenado da sociedade e retira toda sua esperança de rever seu direito fundamental de viver em liberdade, é considerada uma sanção desumana e degradante, conforme expõe com propriedade Aníbal Bruno:
“A prisão perpétua é uma pena de segurança. A sociedade defende-se, afastando definitivamente do seu seio o homem que gravemente delinqüiu. Mas é uma pena cruel e injusta. Priva o condenado não só da liberdade, mas da esperança da liberdade, que poderia encorajá-lo e tornar-lhe suportável a servidão penal. Torna impossível quer graduação segundo a natureza e circunstâncias do crime e as condições do criminoso, e retira todo objetivo à função atribuída primordialmente à pena, que é o reajustamento social do condenado. É, em geral, excessiva e não atende à necessária determinação no tempo, porque não findará em uma data fiada na sentença, mas durará enquanto o homem exista.”[6]
Por não atender a função reeducadora e socializante da pena, a prisão perpétua tem sido proibida em diversos textos constitucionais. A Constituição de Portugal de 1982, em seu art. 30, dispõe que não pode haver penas nem medidas de segurança, privativas ou restritivas de liberdade com caráter perpétuo, ou de duração ilimitada ou indefinida.
A atual Constituição da Costa Rica, em seu art. 40, estipula que ninguém será submetido a tratamentos cruéis ou degradantes, nem a penas perpétuas, nem a pena de confisco. O texto constitucional da Nicarágua de 1987, em seu art. 37, também dispõe que não se imporá pena ou penas que, isoladamente ou em conjunto, durem mais de 30 anos. Bem como a Constituição da Venezuela de 1961 prevê, em seu art. 65, que ninguém poderá ser condenado a penas perpétuas ou infamantes. Também a Constituição espanhola não admite a pena de prisão perpétua em seu ordenamento jurídico.
No Brasil, a proibição das penas perpétuas esteve presente em diversos textos constitucionais. A primeira Constituição a vedar a prisão perpétua foi a de 1934 ao dispor no inc. XXIV, do art. 113, que não haverá penas de banimento, morte, confisco, ou de caráter perpétuo, ressalvadas quanto à pena de morte, as disposições da legislação militar em tempo de guerra com País estrangeiro.
A Constituição de 1937, no inc. XIII, do art. 122, também expressamente ordenava que não haveria penas perpétuas. A Constituição de 1946, no art. 141, repete a Constituição de 1934. O texto da Constituição Federal de 1967 dispôs, no § 11 do art. 150, que não haverá pena de morte, de prisão perpétua, de banimento, nem de confisco, com as exceções relativas à pena de morte em tempo de guerra nos casos previstos na legislação penal militar.
O dispositivo presente no § 11 do art. 153 da Emenda Constitucional de 17 de outubro de 1969 também diz que não haverá pena de morte, de prisão perpétua, banimento ou confisco, salvo em caso de guerra externa, psicológica adversa, ou revolucionária ou subversiva nos termos que a lei determinar.
Na Carta Magna atualmente em vigor é o dispositivo previsto na alínea b do inc. XLVII do art. 5º que proíbe a aplicação da pena de caráter perpétuo. Assim, pelo ordenamento jurídico pátrio, qualquer pena imposta a um agente do delito deve ser aplicada de forma temporária, não se admitindo que o autor do crime permaneça no cárcere durante toda sua existência.
Entretanto, estabelece-se que – com a aprovação da Emenda Constitucional n.º 45 de 2004, que submete o Brasil à jurisdição do Tribunal Penal Internacional, trazendo consigo a previsão da aplicação, sem ressalva, da prisão perpétua em determinados casos – suscitou-se uma discussão acerca de como resolver o conflito latente entre esses dois institutos constitucionais.
A doutrina, em sua maioria, entende que a submissão do Brasil ao Estatuto de Roma não acarretaria em inconstitucionalidade da Emenda Constitucional n.º 45, pois defende-se que a ordem constitucional pátria encontra-se voltada para o direito interno, não podendo, nesse sentido, ser projetada para a ordem internacional. Esse é o entendimento consubstanciado nas palavras de Sylvia Helena Steiner:
“O Tribunal Penal Internacional cuida de crimes diversos dos previstos nas Leis Penais ordinárias, e de danosidade que transcende o território nacional. Assim, a vedação constitucional não poderia estender-se para o tipo de crime submetido à jurisdição da Corte. Ademais, se a própria Constituição prevê como princípio da República reger-se o País, nas suas relações internacionais, pela prevalência dos direitos fundamentais, é certo que nas suas relações com a comunidade internacional não poderia contrapor normas que dizem exclusivamente com a disciplina de suas instituições internas.”[7]
Dessa forma, teríamos apenas um conflito aparente entre esses dispositivos, pois o Estatuto de Roma e a Constituição Brasileira atuariam em esferas diferentes de competência: o Tribunal Penal Internacional punindo os autores de crimes de relevância mundial; e as Constituição Federais, restringindo a esfera de poder punitivo estatal no âmbito interno.
Os adeptos dessa teoria sustentam seus argumentos no entendimento do Supremo Tribunal Federal, fundado na premissa de que nada impede a concessão da extradição passiva quando há possibilidade de o extraditado vir a sofrer, no Estado requerente, pena de prisão perpétua. Acontece que esse entendimento foi reformado. A atual jurisprudência da Suprema Corte, retratada no voto do ministro do Supremo Celso de Melo, assenta:
“A extradição somente será deferida pelo Supremo Tribunal Federal, tratando-se de fatos delituosos puníveis com prisão perpétua, se o Estado requerente assumir, formalmente, quanto a ela, perante o Governo brasileiro, o compromisso de comutá-la em pena não superior à duração máxima admitida na lei penal do Brasil (CP, art. 75), eis que os pedidos extradicionais – considerado o que dispõe o art. 5º, XLVII, “b” da Constituição da República, que veda as sanções penais de caráter perpétuo – estão necessariamente sujeitos à autoridade hierárquico-normativa da Lei Fundamental brasileira. Doutrina. Novo entendimento derivado da revisão, pelo Supremo Tribunal Federal, de sua jurisprudência em tema de extradição passiva.”[8]
Ratificando a mesma linha de pensamento o Ministro Carlos Ayres Brito em seu julgado, afirma que:
“Finalmente, importa considerar que, na legislação estadunidense, a pena máxima pelo cometimento do crime de conspiração é a de prisão perpétua. Em face dessa possibilidade cominatória, é de se ver que a jurisprudência desta Suprema Corte, a partir da Ext. 855, da relatoria do Min. Celso de Mello, mudou para exigir do Estado requerente o compromisso de não aplicar esse tipo de reprimenda, menos ainda a pena capital, em caso de condenação do réu. Pelo que, por ocasião do julgamento daquela extradição, votei pela necessidade de o Supremo Tribunal Federal, ao deferir pedido, condicionar a efetivação do ato de entrega do extraditando ao compromisso formal de o Estado estrangeiro comutar a prisão perpétua em pena privativa de liberdade não superior a trinta anos”.[9]
Nestes termos, o Supremo Tribunal Federal somente deferirá a extradição se o Estado requerente considerar o que dispõe o art. 5º, XLVII, “b” e se obrigar, perante o Estado brasileiro, em comutar a pena de prisão perpétua em pena não superior à duração máxima de 30 anos estabelecida no art. 75 do Código Penal Brasileiro, sujeitando à autoridade hierárquico-normativa da Constituição Brasileira.
Inaceitável, portanto, o argumento de que a ordem constitucional brasileira encontra-se voltada apenas para o direito interno, pois a norma constitucional, dentro da teoria do constitucionalismo global, além de disciplinar as relações no âmbito interno do País, é o instrumento que sustenta os princípios constitucionais fundamentais nas relações internacionais, dentre eles a dignidade da pessoa humana, permitindo ao Brasil intervir no âmbito internacional não apenas para defender tais princípios, mas também para, como visto, dar-lhe materialidade efetiva.
Na mesma linha doutrinária que defende a constitucionalidade da prisão perpétua prevista no Tribunal Penal Internacional, existem doutrinadores que pregam a adoção do princípio da ponderação dos interesses como a solução da presente questão, ao argumento de que a justiça e o combate à impunidade se sobrepujariam à aplicação da prisão perpétua, como argumenta Piovesan:
“É lógico que a grande maioria vai negar a prisão perpétua, ninguém pode ser simpatizante ou defender esse tipo de pena; no entanto, nessa balança, tenho de optar, e esse conflito de valores deve ser solucionado à luz da condição, é essa pauta valorativa que nos vai orientar a detectar a racionalidade abraçada pelo sistema e a racionalidade da dignidade humana, essa é a alma do constitucionalismo de 1988. Portanto, com toda a convicção, entendo que a balança deve pesar em prol do direito à justiça, do combate à impunidade, quando se trata de crimes que afrontam a humanidade.” [10]
Entretanto, a possibilidade de um ser humano vir a cumprir pena de prisão perpétua pela submissão do Brasil ao Tribunal Penal Internacional, transcende o simples binônimo combate à impunidade e a aplicação da pena de prisão perpétua, tornando-se um problema que envolve diversos aspectos constitucionais de imensurável relevância, atingindo princípios constitucionais caracterizados como clausulas pétreas da Constituição Federal.
O primeiro deles, diz respeito à ofensa ao princípio da humanização das penas, previsto em diversos dispositivos constitucionais e na Declaração Universal dos Direitos Humanos, ao preconizar que ninguém será submetido à tortura nem a tratamentos ou punições cruéis, desumanos ou degradantes.
O presente princípio, como foi visto no decorrer do presente trabalho, é fruto de uma longa evolução histórica para não se admitir qualquer punição cruel, desumana ou degradante como a prisão perpétua. A Constituição Federal, também seguindo essa linha evolutiva, prevê esse princípio expressamente no seu art. 3º, inciso III, como bem explica Shecaria e Corrêa Junior:
“O Estado Democrático de Direito, constituído pela Carta de 1988, possui como um de seus fundamentos a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da CF). Portanto, a pessoa humana deve ser a medida primeira para a tutela do Estado, alcançando ainda maior destaque no Direito Penal, pois o condenado deverá ser encarado como sujeito de direitos e deverá manter todos os seus direitos fundamentais que não forem atingidos pela condenação. Note-se que a pena de prisão, por exemplo, é privativa de liberdade, e não da dignidade, respeito e outros direitos inerentes ao ser humano.”[11]
O segundo aspecto a ser atentado é que a Constituição Federal no inc. XLVI do art. 5º consagra o princípio da individualização da pena, que consiste, de maneira geral, em aplicar a pena de acordo com o caso concreto, sendo que a pena deverá ser prevista de modo certo e específico. O presente princípio desenvolve-se em três momentos: o legislativo, o judicial e o executório ou administrativo.
Na primeira etapa, por meio da lei, fixa-se para cada tipo penal uma ou mais penas proporcionais à importância do bem tutelado e à gravidade da ofensa. O juiz, no segundo momento da individualização da pena, já tem predeterminada, para cada crime, a espécie da pena, e limitada a sua quantificação entre um mínimo e um máximo.
Importante ressaltar que, pelo princípio da individualização das penas, o legislador deve atentar para as vedações constitucionais do art. 5º, inciso XLVII da Carta Magna, dentre elas a aplicação da pena de prisão perpétua para qualquer delito. Além disso, para ocorrer a individualização da pena, é mister que seja fixado o mínimo e o máximo de tempo de cumprimento da sanção criminal. Ocorre que não foi essa a fórmula adotada pelo Estatuto do Tribunal Penal Internacional, conforme preceitua Luisi:
“No caso brasileiro, os empecilhos à ratificação não se restringem ao problema da disposição que no Estatuto prevê a reclusão perpétua. O conflito também se verifica por não ter o Estatuto individualizado a pena para cada um dos tipos penais nele previstos. Preferiu a fórmula indeterminada do art. 77, na qual se noticia apenas o mínimo e o máximo da pena aplicáveis genericamente e indistintamente a todos os delitos. Não leva em conta a especificidade de cada tipo penal e a maior ou menor relevância do bem jurídico tutelado. Não considera a maior ou menor gravidade da ofensa que especificamente cada um dos diferenciados fatos descritos como delitos acarreta aos diferentes bens jurídicos protegidos nos arts. 6º, 7º e 8º do Estatuto.” [12]
Finalmente, o ultimo e principal aspecto a ser ressaltado é que a própria previsão que proíbe a prisão perpétua é também uma cláusula pétrea da Magna Carta, nos termos do § 4º do artigo 60 da Lei Maior, que dispõe não ser objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir a forma federativa de Estado, o voto direto, secreto, universal e periódico, a separação dos Poderes, os direitos e garantias individuais.
As cláusulas pétreas, no dizer de Alexandre Câmara, formam o núcleo intangível da Constituição Federal que limita o poder do constituinte reformador. Desta maneira, a proibição da pena de prisão perpétua só poderia ser relativizada pela Emenda Constitucional 45 se houvesse uma ruptura da ordem constitucional vigente, pois se trata de uma garantia do condenado de caráter imutável, expressamente prevista no rol do artigo 5º ao tratar dos direitos e garantias individuais. Nesse diapasão, afirma Luiz Flávio Gomes:
“A via da emenda constitucional que viabilizaria no nosso país a prisão perpétua (ou a pena de morte) acha-se bloqueada pelo que está previsto no art. 60, § 4.º, IV, da CF, que cuida de uma das chamadas cláusulas pétreas (normas supraconstitucionais). Referida norma constitucional proíbe a deliberação de qualquer proposta de emenda tendente a abolir “os direitos e garantias individuais”. A vida e a liberdade, indiscutivelmente, constituem direitos individuais (CF, art. 5.º, caput), razão pela qual não podem ser afetados por nenhuma emenda constitucional.
Particularmente no que diz respeito à prisão perpétua, semelhante iniciativa legislativa também encontraria o obstáculo do princípio da individualização da pena prevista no art. 5.º, XLVI, da CF. Como sabemos, este princípio exige que a pena seja individualizada em vários níveis: da cominação penal, da aplicação e especialmente da execução. Na medida em que a prisão perpétua impede qualquer progressão de regime prisional, assim como o livramento condicional, colidiria frontalmente com o mencionado princípio. Caso fosse aprovada uma emenda criando a pena de morte ou a prisão perpétua ela poderia ser taxada de inconstitucional? A questão foi enfrentada há muito tempo por Bachof, na Alemanha, e hoje ninguém discute a possibilidade da existência de norma constitucional inconstitucional. O que deve predominar é a vontade do legislador constituinte. O legislador com poder derivado, que é o agente das Reformas, não pode violar as limitações criadas pelo legislador ordinário.” [13]
Importante salientar que nada obsta que a Emenda Constitucional 45, ao criar uma possibilidade de aplicação da prisão perpétua, seja taxada de inconstitucional, pois o que deve preponderar é a vontade do legislador constituinte originário, a qual não pode ser lesada pelo legislador reformador.
Desta forma, todos esses aspectos constituem verdadeiras restrições constitucionais à possibilidade da aplicação da pena de prisão perpétua prevista no Estatuto de Roma, sendo latente, portanto, a inconstitucionalidade do § 4º do art. 5º da Constituição Federal, introduzido pela Emenda Constitucional 45, e, por conseqüência, inadmissível constitucionalmente a submissão, sem ressalvas nem restrições, do Brasil ao Tribunal Penal Internacional.
Não há dúvida de que a criação do Tribunal Penal Internacional é um avanço no tocante à proteção dos direitos humanos. Entretanto, ao instituir a possibilidade de aplicação da pena de prisão perpétua, o Estatuto de Roma foi de encontro a toda evolução histórica do Direito Penal humanitário que preconiza a aplicação das penas estritas e evidentemente necessárias, consagradas às garantias individuais, em que não se permite nenhuma forma de desrespeito à dignidade da pessoa humana.
Informações Sobre o Autor
Fabio Victor de Aguiar Menezes
Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Sergipe; Pós-Graduando em Direito Penal pela Escola da Magistratura do Estado de Sergipe; Pós-Graduando em Direito do Estado pela Unisul/LFG, Técnico Judiciário do Tribunal de Justiça do Estado de Sergipe.