Resumo: o presente trabalho tem por objetivo delinear os parâmetros democráticos da pena, tendo como base o ordenamento jurídico brasileiro. Para tanto, analisaremos sua definição doutrinária, os princípios penais-constitucionais aplicáveis e, por fim, os fins que lhe são atribuídos.[1]
Palavras-chave: pena. Princípios. Estado Democrático de Direito.
Abstract: this paper aims to outline the democratic parameters of penalty, basis of the Brazilian legal order. For both, we’ll review your doctrinal definition, constitutional principles applicable criminal-and finally the purpose attributed.
Keywords: penalty. Principles. Democratic State of Right.
Sumário: 1. Introdução. 2. Conceito. 3. Princípios. 3.1 Princípio da legalidade. 3.2 Princípio da responsabilidade penal pessoal. 3.3 Princípio da humanidade. 3.4 Princípio da proporcionalidade. 3.5 Princípio da individualização da pena. 3.6 Princípio da culpabilidade. 4. Finalidades da pena. 4.1 Teorias absolutas ou retributivas. 4.2 Teorias relativas ou preventivas. 4.2.1 Prevenção geral. 4.2.2 Prevenção especial. 4.3 Teorias mistas. 5 Conclusão.
1. Introdução
A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 instituiu, em seu art. 1º, o Estado Democrático de Direito e, a pena, por ser uma manifestação do direito de punir estatal, deve observar os seus fundamentos e princípios decorrentes. No presente trabalho, a partir de fontes normativas e doutrinárias, será feita uma breve análise conceitual acerca da pena, com ênfase nos princípios constitucionais que lhe são aplicáveis e, também, sem desprezar os fins atribuídos a tal instituto, com vistas a compatibilizar a intervenção penal com a ordem constitucional.
2. Conceito
A pena é uma das espécies de sanção penal, assim como a medida de segurança, consistente em uma manifestação do direito de punir do Estado. Isso porque quando é imposta uma pena, restringe-se a esfera jurídica do autor de um fato definido legalmente como crime, após o trâmite do devido processo legal.
Desse modo, uma vez transgredida uma norma de direito penal objetivo, surge para o Estado o direito subjetivo de punir[2], o qual culmina com a aplicação/execução de uma pena cominada no preceito secundário do fato delituoso cometido.
Aníbal Bruno[3] explica que a pena, em seu sentido propriamente jurídico, é uma resposta que uma comunidade organizada politicamente dá a um fato transgressor de normas fundamentais à sua estrutura e, portanto, tais fatos são definidos pela lei como delituosos. Segundo o autor, essa reação “aparece com os primeiros agregados humanos. Violenta e impulsiva nos primeiros tempos, exprimindo o sentimento natural de vingança do ofendido ou a revolta de toda a comunidade social, ela se vai disciplinando com o progresso da cultura, abandonando os seus apoios extrajurídicos e tomando o sentido de uma instituição de Direito posta nas mãos do poder público para a manutenção da ordem e segurança social.”
De acordo com Luiz Regis Prado[4], a pena, ao lado da medida de segurança, é uma das consequências jurídico-penais do delito e “consiste na privação ou restrição de bens jurídicos, com lastro na lei, imposta pelos órgãos jurisdicionais competentes ao agente de uma infração penal.”[5] Uma observação: desse conceito, visualiza-se os seguintes princípios constitucionais: legalidade, juiz natural, devido processo legal, os quais guardam estreita relação com o direito penal e processual penal como um todo.
Portanto, tem-se que a pena é uma consequência natural (e jurídica) do delito, imposta pelo Estado, quando do cometimento de um fato típico, antijurídico e culpável, após a devida persecução criminal, devendo esta, num Estado Democrático de Direito, se dar de acordo com os ditames da Constituição da República Federativa do Brasil, conforme explica Rogério Greco[6]
No Brasil, assim como na maioria dos países subdesenvolvidos, a pena foi eleita como o principal instrumento de controle social do crime e da criminalidade, ou seja, conforme explica Juarez Cirino dos Santos, a Política Criminal não se orienta por “[…] políticas públicas de emprego, salário digno, escolarização, moradia, saúde e outras medidas complementares, como programas oficiais capazes de alterar ou reduzir condições sociais adversas da população marginalizada do mercado de trabalho e dos direitos da cidadania, definíveis como determinações estruturais do crime e da criminalidade; por isso, o que deveria ser a política criminal do Estado, existe, de fato, como simples Política Penal instituída pelo Código Penal e leis complementares […]”[7]
Esse autor ainda continua tal raciocínio, com o qual concordamos, explicando que essa política penal realizada pelo Direito Penal brasileiro legitima-se pela teoria da pena, a qual se sustenta como uma retribuição do crime e prevenção da criminalidade.
Destarte, pode ser afirmado que a pena é uma consequência jurídica do delito, imposta pelo Estado, no exercício de seu direito de punir, ao autor de fato típico, ilícito e culpável, após o trâmite do devido processo legal, com todas as suas garantias que lhe são inerentes.
3. Princípios
O art. 1º da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 consagrou expressamente o Estado Democrático de Direito e arrolou, como fundamentos, a soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e o pluralismo político.
Na concepção de Estado Democrático de Direito estão inclusas as noções de Estado Liberal e Estado Social, as quais se complementam, formando um novo conteúdo, “não como simples reunião formal dos respectivos elementos, porque, em verdade, revela um conceito novo que os supera, na medida em que incorpora um componente revolucionário de transformação do status quo.”[8].
Nessa vertente, o Estado Liberal, oriundo de movimentos burgueses e de independência, está relacionado ao Estado de Direito, este se baseia na submissão do Estado à lei, na divisão dos poderes e em garantias dos direitos individuais. Assim, seria possível proteger os cidadãos contra as arbitrariedades estatais. De acordo com Sérgio Salomão Shecaira e Alceu Corrêa Júnior[9]: “o conceito de Estado Liberal tem como corolário a busca de garantias formais ao indivíduo pelo Estado de Direito. No campo do Direito Penal, portanto, importa ressaltar que os princípios do Estado Liberal implicam programas de descriminalização e redução da intervenção punitiva estatal.”
Em outro norte, o Estado Social, que surgiu como uma resposta ao individualismo do Estado Liberal, se baseia na necessidade de conceder aos cidadãos bens materiais, de modo que sejam diminuídas as desigualdades sociais existentes, ou seja, é almejada uma justiça social. Nesse modelo de Estado, o Direito Penal deve se voltar à criminalização de condutas transgressoras de bens jurídicos sociais e coletivos, conforme se segue: “O Direito Penal democrático, influenciado por princípios inerentes ao Estado Social, por outro lado, deve considerar tais desigualdades, procedendo a uma criminalização de condutas de forma mais igualitária e coerente com os objetivos sociais pretendidos […]” [10]
Desse quadro, denota-se que se acaso o sistema penal se constitui de proibições, ou seja, se, com vistas a garantir a liberdade dos cidadãos, são previstas condutas das quais terão de se abster, resta configurado o Estado Liberal. Por outro lado, se o sistema também prevê prestações positivas, as quais defendem os direitos sociais, está configurado o Estado Social.[11]
A partir disso, percebe-se que o Direito Penal do Estado Democrático de Direito, além de estar consoante à CRFB, deve se constituir em um sistema de garantias, de modo a harmonizar a liberdade (Estado Liberal) e o poder estatal (Estado Social) e, assim, banir as arbitrariedades. Nesse sentido: “O castigo penal apenas pode surgir da aplicação de um modelo que exclua a arbitrariedade tanto do legislador no processo de criação da norma, como a do juiz em sua aplicação. Por isso os processos de criminalização, isto é, de criação e aplicação da norma penal, devem cumprir condições de validade democrática”.[12]
Decorre de tal concepção o movimento do garantismo penal, o qual se resume em um sistema fundado no “máximo grau de tutela dos direitos e na fiabilidade do juízo e da legislação, limitando o poder punitivo e garantindo a(s) pessoa(s) contra qualquer tipo de violência arbitrária, pública ou privada.” [13]
Nesse mesmo sentido, Antônio Luís Chaves Camargo[14] afirma que “há uma relação estreita entre o Direito Penal e a Constituição Federal, pois nesta se encontram os princípios fundamentais que devem ser levados em consideração por todo o sistema jurídico-penal. As normas penais são criadas como garantidoras da ordem social, e, por limitar o direito à liberdade e ao desenvolvimento da personalidade das pessoas, têm, nos direitos fundamentais, os limites desta intervenção do Estado.”
Esse sistema penal capaz de harmonizar liberdade e poder é constituído por princípios constitucionais de Direito Penal, os quais serão analisados a seguir, com ênfase nos princípios aplicáveis à pena. O ponto de partida do modelo garantista é o princípio da legalidade.
3.1 Princípio da legalidade
O princípio da legalidade está previsto expressamente na CRFB/88, em seu art. 5º, inciso II: “Ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”.
O Código Penal brasileiro, em seu art. 1º, reafirma a norma constitucional: “Não há crime sem lei anterior que o defina. Não há pena sem prévia cominação legal.”
Isso significa que, ainda que a conduta do agente seja reprovável socialmente, se não existir um tipo penal que a proíba e comine uma pena, o autor poderá praticá-la livremente, sem que lhe seja aplicada qualquer sanção penal[15].
Segundo Jescheck[16], esse princípio fundamenta-se na teoria do contrato social do Iluminismo. Este movimento almejava limitar o poder estatal, concedendo ao cidadão uma maior liberdade de atuação e, a partir disso, aquilo que não for expressamente proibido pela lei é permitido.[17]
Nesse contexto do Século das Luzes, surge Cesare Beccaria[18], diretamente influenciado por Jean-Jacques Rousseau, teórico contratualista, na defesa da legalidade penal.
Diante desse contexto em que se originou, constata-se que o princípio da legalidade nasce dotado de conotação política, cujo objetivo era a preservação da liberdade individual.
Posteriormente, surge a noção jurídico-política do princípio da legalidade. E para tal concepção, que pode ser atribuída a Karl Binding, o princípio da legalidade é uma instituição destinada a garantir, precipuamente, a segurança jurídica, por meio do “conhecimento que os cidadãos podiam e deviam ter e extrair da lei”.[19]
Nessa lógica, a segurança jurídica consiste na possibilidade de prever a reação estatal. Além disso, nessa concepção está incluso o anseio por uma definição democrática dos delitos. Nesse sentido: “O princípio da legalidade responde ao pensamento fundamental de que, face ao caráter sumamente intenso da reação penal sobre a esfera de direitos do indivíduo, devido ao fato de ser a sanção penal o ápice do arsenal punitivo do Estado, sua imposição deverá estar legitimada democraticamente, não fundada apenas uma lei, mas construída sobre um alicerce de sua aceitação popular.”[20]
Essa legitimação democrática do delito deve ser entendida nos aspectos formal e material, ou seja, o delito deve, respectivamente, estar previsto em lei e ter aceitação popular.
Assim, dessume-se que o princípio da legalidade deve ser visto como uma garantia constitucional, tendo em vista que não protege exclusivamente um bem da vida, mas “assegura ao particular a prerrogativa de repelir as injunções que lhe são impostas por outra via que não seja a lei”.[21]
Nessa linha, cumpre mencionar Muñoz Conde[22], que, ao ressaltar que o princípio da legalidade (ou da intervenção legalizada) surge com o Estado de Direito, explica que ele se constitui em um modo de repelir uma reação estatal excessivamente pragmática que “decida a acabar a todo custo com a criminalidade e movida por razões defensistas ou ressocializadoras demasiado radicais, sacrifique as garantias mínimas dos cidadãos, impondo-lhes sanções não previstas nem reguladas em lei alguma”.
A noção jurídico-penal do princípio da legalidade é atribuída a Paul Joan Anselm Ritter von Feuerbach. Para ele, esse princípio estaria vinculado à sua teoria da coação psicológica: “as transgressões serão impedidas se cada cidadão souber com certeza que a transgressão será seguida de um mal maior que aquele que corresponderia à não satisfação da necessidade mediante a ação”.[23]
Para Guilherme de Souza Nucci[24] o princípio da legalidade possui três significados: a) político; b) jurídico em sentido amplo; e c) jurídico em sentido estrito ou penal.
Em sua acepção política, manifesta-se como “garantia constitucional dos direitos fundamentais do homem”. Por outro lado, a noção jurídica em sentido amplo se traduz no inciso II do art. 5º da CRFB/88, ou seja, ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei. Por fim, a legalidade jurídica em sentido estrito se traduz na reserva legal, ou seja, “os tipos penais incriminadores somente podem ser criados por lei em sentido estrito, emanada do Legislativo, de acordo com o processo previsto na Constituição Federal”.[25]
O princípio da legalidade também é conhecido pelas seguintes formulações: nullum crimem sine lege e nulla poena sine lege[26], ou seja, o princípio da legalidade se refere à previsão expressa e prévia do fato típico e, também, da pena, conforme ressalta Enrique Bacigalupo[27] que afirma: “A conseqüência prática desse princípio é a seguinte: nenhuma sentença condenatória pode ser elaborada aplicando uma pena que não está fundada em lei prévia, ou seja, uma lei na qual o fato imputado ao autor seja ameaçado com pena. Em outras palavras, o arrazoado judicial deve começar com a lei, pois somente desta maneira a condenação poderá se fundar em uma lei penal.”
Segundo Sérgio Salomão Shecaira e Alceu Corrêa Júnior, o princípio da legalidade, no âmbito do direito penal, pode ser visto sob três aspectos, os quais formam o seu conteúdo: princípio da reserva legal, princípio da taxatividade e princípio da anterioridade.[28]
O princípio da reserva legal “deve ser entendido como exigência de lei para criminalizar condutas ou impor penas, excluindo-se os costumes e os princípios gerais de Direito como fontes do Direito Penal, ao menos no que concerne às normas incriminadoras”.[29] Essa lei exigida deve ser entendida em sentido estrito, ou seja, deve ser geral, abstrata, escrita e aprovada pelo Poder Legislativo.
Já o princípio da taxatividade se traduziria na ideia de que “as normas penais devem ser claras e objetivas, a fim de evitar formulações vagas e imprecisas”.[30] E, se acaso fosse rigorosamente considerada, essa formulação poderia acarretar a inconstitucionalidade de tipos penais abertos. A taxatividade, como um princípio, também se contrapõe à indeterminação das penas que, no sistema penal brasileiro é relativa, ou seja, é previsto um limite mínimo e um limite máximo de pena a ser aplicada no caso concreto.
Por fim, Sérgio Salomão Shecaira e Alceu Corrêa Júnior explicam que o princípio da anterioridade ou da irretroatividade da norma penal incriminadora consiste em uma garantia ao jurisdicionado de que “apenas será punido pela lei que estiver em vigor na data da conduta prevista como delituosa, bem como não poderá ser aplicada pena diferente ou mais severa que aquela cominada na mesma época.” [31]
Juarez Cirino dos Santos[32] aduz que o “princípio da legalidade é o mais importante instrumento de proteção individual no moderno Estado Democrático de Direito” e, ainda, resume as vedações que dele decorrem: “(a) retroatividade como criminalização ou agravação da pena de fato anterior, (b) o costume como fundamento ou agravação de crimes e penas, (c) a analogia como método de criminalização ou de punição de condutas e (d) a indeterminação dos tipos legais e das sanções penais.”
Do exposto, conclui-se que o princípio da legalidade possui origens no Iluminismo, inicialmente, como garantia dos direitos fundamentais do homem, sobretudo a liberdade individual contra o arbítrio estatal. Posteriormente, ganha conotação jurídica, a qual culmina nas noções de nullum crimem sine lege e nulla poena sine lege, ou seja, para que haja condenação válida, deve haver determinação prévia do crime e da pena que lhe é aplicável (coincide com o princípio da reserva legal). De seu conteúdo decorrem outros princípios garantidores dos direitos dos cidadãos: anterioridade, taxatividade, irretroatividade (e retroatividade da lei penal benéfica), exigibilidade de lei escrita e proibição de analogia.
Outro princípio relativo à pena previsto expressamente na CRFB/88 é o da responsabilidade penal pessoal, que será analisado a seguir.
3.2 Princípio da responsabilidade penal pessoal
Assim como o princípio da legalidade, o princípio da responsabilidade penal pessoal origina-se no Iluminismo e esteve positivado em todas as Constituições do Brasil, com exceção da Carta de 1937. E sua importância reside na constatação de que em tempos passados “as penas corporais, pecuniárias ou infamantes poderiam atingir todo o grupo social, ou ainda os familiares do condenado.” [33]
O princípio da responsabilidade penal pessoal (também conhecido por princípio da personalidade, da pessoalidade ou, ainda, da intranscendência) encontra-se previsto expressamente no inciso XLV do art. 5º da CRFB/88: “nenhuma pena passará da pessoa do condenado, podendo a obrigação de reparar o dano e a decretação do perdimento de bens ser, nos termos da lei, estendidas aos sucessores e contra eles executadas, até o limite do valor do patrimônio transferido”.
Do dispositivo constitucional infere-se que a pena não será imposta àqueles que não concorreram para a prática criminosa, ao menos culposamente e, é claro, que tenham sido processados e julgados de acordo com o devido processo legal. Isso porque a pena é uma consequência jurídica do delito cometido pelo autor e, portanto, apenas em face deste deve incidir a sanção.[34]
Juarez Cirino dos Santos[35] explica que, uma vez definido o delito como tipo de injusto e culpabilidade, consagram-se duas garantias fundamentais, quais sejam, a limitação da responsabilidade penal aos autores e partícipes do delito (art. 5º, XLV da CRFB/88) e a limitação da responsabilidade penal às pessoas naturais. Essas garantias são os limites negativos da responsabilidade penal pessoal. Por outro lado, os limites positivos estão em seu objeto (relaciona-se ao princípio da legalidade) e no fundamento (relaciona-se à presunção de inocência), conforme explica: “a) o objeto da responsabilidade penal pessoal é o tipo de injusto como realização concreta do princípio nullum crimem, nulla poena sine lege (art. 5º, XXXIX, CR, que define o princípio da legalidade), atribuído aos autores e partícipes do fato punível, segundo as regras de imputação objetiva e subjetiva definidas pela ciência do Direito Penal: somente o tipo de injusto pode ser objeto de responsabilidade penal; b) o fundamento da responsabilidade penal pessoal é a culpabilidade, como expressão do princípio nulla poena sine culpa (derivado do art. 5º, LVII, CR, que institui a presunção de inocência), indicada pelas condições pessoais de saber o que faz (imputabilidade), de conhecimento real do que faz (consciência da antijuridicidade) e do poder concreto de não fazer o que faz (exigibilidade de comportamento diverso), que estruturam o juízo de reprovação do conceito normativo de culpabilidade: somente a culpabilidade pode fundamentar a responsabilidade penal pela realização do tipo de injusto.”
Nessa perspectiva, constata-se que não importa qual a natureza da pena aplicada, pois ainda que seja de multa, somente o condenado estará sujeito ao seu cumprimento, uma vez que se trata dos fins aos quais a pena se destina, e de seu caráter personalíssimo, consoante ressalta Rogério Greco[36] que aponta o seguinte: “Todavia, se estivermos diante de uma responsabilidade não penal, como, v.g.,a obrigação de reparar o dano, nada impede que, no caso de morte do condenado, tendo havido a transferência de seus bens aos seus sucessores, estes respondam até as forças da herança, conforme preceituam o inciso XLV do art. 5º da Constituição Federal e o art. 1.997, caput, do Código Civil”.
Realmente, pena e efeitos da condenação são institutos jurídicos diversos e, por isso, aquela não ultrapassará a pessoa do condenado, essa, por outro lado, poderá obrigar seus sucessores.
A pena, ainda que de caráter pecuniário e falecido o condenado, não poderá atingir seus herdeiros, até mesmo porque, a morte extingue a punibilidade do agente.
Ao contrário, os efeitos da condenação, por “não possuírem natureza de pena criminal, e por visarem a finalidades diversas (reparação da vítima e apreensão de objetos ilícitos) das finalidades atribuídas às penas, podem atingir o patrimônio transferido aos herdeiros do condenado”[37].
Na doutrina, costuma-se afirmar que apesar de, diretamente, a pena não atingir terceiros (com exceção da pecuniária, conforme a ressalva acima de que terceiros poderão cumpri-la espontaneamente em favor do sentenciado), indiretamente isso se mostra inevitável, nesse sentido: “essa transcendência do poder punitivo na direção de terceiros é, de fato, inevitável: a comunicação, o conhecimento, a estigmatização, a queda dos rendimentos etc., são todos efeitos que inevitavelmente alcançam a família do simples acusado e mesmo outras pessoas”.[38]
Finda essa rápida análise acerca do princípio da intranscendência, passa-se a estudar o princípio da humanidade, derivado de um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito.
3.3 Princípio da humanidade
O princípio da humanidade também remonta suas origens ao Iluminismo, período no qual, conforme já visto, consagraram-se diversas garantias ao cidadão em face do Poder Público.
Nesse sentido, Oswaldo Henrique Duek Marques aduz que “com as novas conquistas liberais, ocorreu, no campo penal, o fim gradativo dos suplícios impostos pela vingança pública. A partir de então, deveria a sociedade encontrar uma forma humana e justa de punir os criminosos, com proporção entre a transgressão e o castigo, o que ocasionou a mitigação das penas. Com o fim do absolutismo, as sanções, por via de conseqüência, perderam a função de reafirmar o poder do rei e passaram a constituir uma represália em nome da própria sociedade.”[39]
O significado do vocábulo humanidade, segundo o Houaiss Dicionário da Língua Portuguesa[40], é o seguinte: “1 Conjunto de características específicas à natureza humana. 2 Sentimento de bondade, benevolência, em relação aos semelhantes, ou de compaixão, piedade, em relação aos desfavorecidos; […]”
Ou seja, consoante Guilherme de Souza Nucci, “significa que o direito penal deve pautar-se pela benevolência, garantindo o bem-estar da coletividade, incluindo-se os condenados. Estes não devem ser excluídos da sociedade, somente porque infringiram a norma penal, […]”.[41]
O princípio da humanidade origina-se da dignidade da pessoa humana, que constitui um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito instituído pela Carta Magna de 1988 em seu art. 1º.
José Afonso da Silva vai além disso e afirma que a “dignidade da pessoa humana é um valor supremo que atrai o conteúdo de todos os direitos fundamentais do homem, desde o direito à vida.”[42]
Devido à eleição da dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito, “a pessoa humana deve ser a medida primeira para a tutela do Estado, alcançando ainda maior destaque no Direito Penal”. Isso porque o condenado, assim como qualquer pessoa, é um sujeito de direitos, os quais não poderão ser restringidos se não atingidos pela sentença criminal.[43]
René Ariel Dotti aduz que o princípio da humanidade da pena, além de ser dotado de raiz constitucional, “deve compreender os fins preventivos da sanção penal, particularmente o fim da prevenção social que alguns sistemas elevam à dignidade constitucional ao proclamarem que a pena deve ter o sendo de humanidade e tender à reeducação do condenado”. [44]
A previsão constitucional desse princípio se dá de forma expressa, mas esparsa. O art. 5º, III prevê que “ninguém será submetido a tratamento desumano ou degradante”. O inciso XLVII do mesmo artigo veda a cominação, aplicação e execução de penas de morte (salvo em caso de guerra declarada, nos termos do art. 84, XIX), perpétuas, de trabalhos forçados, de banimento e cruéis. Além disso, o inciso XLIX do art. 5º assegura aos presos o respeito à dignidade física e moral. Às presidiárias também é assegurada a permanência com seus filhos no período de amamentação (art. 5º, L).
Nessa ótica, tem-se que “é através da forma de punir que se verifica o avanço moral e espiritual de uma sociedade, não se admitindo pois, nos tempos atuais, qualquer castigo que fira a dignidade e a própria condição do Homem, sujeito de direitos fundamentais invioláveis. Também não se transige com a observação deste princípio do momento da elaboração da norma instituidora da sanção penal.”[45]
Do exposto, é possível constatar que, uma vez que o sistema penal brasileiro está inserido, por força constitucional, em um Estado Democrático de Direito, e que todo ser humano é sujeito de direitos, independentemente de ter infringido uma norma penal, não são admitidas a cominação, a aplicação e a execução de penas desumanas ou que restrinjam direitos fundamentais do condenado não afetados pela condenação criminal.
Neste momento, visto que as penas e o sistema penal como um todo devem respeitar o princípio da humanidade, passa-se à questão da proporcionalidade.
3.4 Princípio da proporcionalidade
Historicamente, o princípio da proporcionalidade surgiu com a ideia de limitação do poder estatal proposta pelo Iluminismo, apesar de existirem sinais de que em períodos anteriores já havia essa noção, como a Lei do Talião.[46]
Segundo Luigi Ferrajoli[47], este princípio apenas consegue se firmar no Século das Luzes, “quando amadurecem os demais pressupostos do direito penal moderno: a legalidade, a certeza, a igualdade e, sobretudo, a mensurabilidade e a preocupação com o cálculo das penas”.
Nessa vertente, convém citar Cesare Beccaria: “Se os cálculos exatos pudessem ser aplicados a todas as combinações obscuras que levam os homens a agir, seria necessário buscar e estabelecer uma progressão de penas que corresponda à progressão de delitos. O quadro dessas duas progressões seria a medida da liberdade ou da escravidão da humanidade ou da maldade de cada país. Bastará, pois, que o legislador sábio estabeleça divisões principais na distribuição das penas proporcionadas aos crimes e, principalmente, não aplique os menores castigos aos maiores delitos.” [48]
O princípio da proporcionalidade, da maneira como é entendido atualmente, foi desenvolvido pela teoria constitucional germânica e constitui-se de três princípios parciais: adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito (ou da avaliação), os quais são de aplicação sucessiva e complementar.[49]
Nessa sistemática proposta, os princípios da adequação e da necessidade “têm por objeto a otimização das possibilidades da realidade”, enquanto o princípio da proporcionalidade em sentido estrito “tem por objeto a otimização das possibilidades jurídicas”.[50]
E, ainda, no tocante à otimização das possibilidades da realidade deve ser verificado, primeiramente, se a pena criminal é um meio adequado entre os demais para proteger um bem jurídico e, posteriormente, se, além de ser um meio adequado, é também um meio necessário para proteger um bem jurídico.
Quanto à otimização das possibilidades jurídicas, deve ser aferido se a pena cominada e/ou aplicada é, além de adequada e necessária, proporcional à “natureza e extensão da lesão abstrata e/ou concreta do bem jurídico”[51].
Nessa diretriz, o princípio da proporcionalidade (em sentido amplo) se subdivide em duas dimensões, uma concreta e outra abstrata: “O princípio da proporcionalidade abstrata limita a criminalização primária às hipóteses de grave violação dos direitos humanos […] e delimita a cominação de penas criminais conforme a natureza e extensão do dano social produzido pelo crime. […] Por outro lado, o princípio da proporcionalidade concreta permite equacionar os custos individuais e sociais da criminalização secundária, em relação à aplicação e execução da pena criminal. […]”[52]
Em síntese, portanto, a pena para ser considerada proporcional deve ser: adequada para proteger determinado bem jurídico; além de adequada, deve ser necessária para proteger o bem jurídico; e, por fim, se adequada e necessária, a pena também deve ser proporcional à natureza e extensão da lesão ao bem jurídico.
O princípio da proporcionalidade não está previsto expressamente pela CRFB/88, no entanto, “A Constituição, ao estabelecer as modalidades de penas que a lei ordinária deve adotar consagra a proporcionalidade de maneira implícita, corolário natural da aplicação de justiça, que é dar a cada um o que é seu, por merecimento”, conforme Guilherme de Souza Nucci.[53]
Por fim, cumpre ressaltar que o princípio da proporcionalidade deve ser observado nas fases de cominação, aplicação e execução da pena, de modo que possa ser aplicada uma pena correspondente à gravidade do delito praticado.[54]
3.5 Princípio da individualização da pena
A origem do princípio da individualização da pena também remete ao Iluminismo, ao passo que, na Antiguidade, prevalecia o princípio da flexibilidade da pena, de modo que ao magistrado era lícito impor qualquer sanção àquele houvesse cometido um delito.[55]
Da maneira como surgiu, ou seja, no contexto iluminista, o princípio da individualização da pena não concedia ao Juiz a possibilidade de adequar a pena em relação ao fato e ao crime, o que se tinha era um “sistema rígido e inflexível segundo o qual a cada delito praticado deveria corresponder uma pena certa, fixa e predeterminada em lei”.[56]
Desse modo, por força da separação dos poderes, o magistrado era apenas reproduzia a letra da lei no caso concreto.
Progressivamente, “o princípio da separação dos poderes foi mitigado em vários aspectos, com efeitos no Direito Penal, possibilitando-se o reconhecimento do princípio da individualização da pena, desde que em consonância com o princípio da legalidade”.
A CRFB/88 prevê, em seu art. 5º, XLVI o seguinte: “a lei regulará a individualização da pena e adotará, entre outras, as seguintes: a) privação ou restrição da liberdade; b) perda de bens; c) multa; d) prestação social alternativa; e) suspensão ou interdição de direitos;” [57]
Por outro lado, o inciso XLVIII do mesmo artigo assegura que: “a pena será cumprida em estabelecimentos distintos, de acordo com a natureza do delito, a idade e o sexo do apenado;”.
A partir disso, conclui-se que a pena deverá ser individualizada em três momentos: na legislativa, na judicial e na executiva.
O primeiro momento de individualização, ou seja, o da cominação, destina-se ao legislador infraconstitucional, que ao determinar as penas para certos delitos, deverá observar o disposto na CRFB/88, principalmente o inciso XLVI do art. 5º, tendo em vista que, apesar de se tratar de rol exemplificativo, o legislador só poderá cominar outras penas se compatíveis com seus fins e com o Estado Democrático de Direito.[58]
Rogério Greco[59] explica que, nessa fase, o legislador seleciona algumas condutas para fazer parte do âmbito do Direito Penal, aquelas que, comissivas ou omissivas, transgridem os bens jurídicos mais importantes para a sociedade. E, uma vez selecionadas, o legislador cominará as penas, as quais variam de acordo com a importância do bem jurídico protegido.
A fase judicial, ou de aplicação, está contemplada no art. 59 do Código Penal que determina o que se segue: “art. 59 – O juiz, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e conseqüências do crime, bem como ao comportamento da vítima, estabelecerá, conforme seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime: I – as penas aplicáveis dentre as cominadas; II – a quantidade de pena aplicável, dentro dos limites previstos; III – o regime inicial de cumprimento da pena privativa de liberdade; IV – a substituição da pena privativa de liberdade aplicada, por outras espécies de sanção penal, se cabível;”
Nessa fase, o magistrado, diante da constatação de que o acusado, após o devido processo legal, praticou fato típico, ilícito e culpável, indicará qual o crime cometido e, assim, dará início à individualização.
Primeiro, fixará a pena-base, de acordo com o disposto no artigo supramencionado e, atendendo ao disposto no art. 68 do CP, analisará as circunstâncias atenuantes e agravantes e, por último, as causas de aumento e de diminuição. Esta é a fase de aplicação da pena, que será mais bem estudada em capítulo específico.
Nessa perspectiva, “Para que ocorra uma efetiva individualização, é mister que o quantum da pena não seja fixo, ou seja, deve variar entre um mínimo e um máximo que permitirá ao juiz, analisando as condições e circunstâncias do crime, assim como a culpabilidade do agente (art. 59, caput do CP), determinar a quantidade e a qualidade da pena a ser aplicada”.[60]
O terceiro momento da individualização é o da execução da pena, na qual o condenado deverá receber tratamento “de acordo com a natureza do delito, a idade e o sexo do apenado”, consoante o inciso XLVIII do art. 5º da CRFB/88.
O art. 5º da Lei de Execução Penal também garante que “Os condenados serão classificados, segundo os seus antecedentes e personalidade, para orientar a individualização da execução penal”.
Essa individualização na fase executiva também se dá por meio de instrumentos como a progressão de regime de cumprimento de pena privativa de liberdade e o livramento condicional, conforme explicam Sérgio Salomão Shecaira e Alceu Corrêa Júnior, que concluem o seguinte: “a finalidade do princípio constitucional em comento é a de buscar uma adequação da pena ao delito, garantindo também a eficácia da sanção penal aplicada, utilizando-se de um método individualizador para que o condenado não sofra mais do que o prescrito em lei e possa exercer os direitos que não foram atingidos pela pena. A individualização da pena, mormente em sua fase executiva, a qual deve estar jurisdicionalizada, visa também não coibir uma eventual reinserção social do apenado.” [61]
Portanto, são cinco finalidades desse princípio: a) adequar a pena ao delito; b) garantir a eficácia da sanção penal; c) garantir que não seja ultrapassada a medida de pena necessária; d) garantir os direitos não atingidos pela condenação; e) colaborar com a futura reinserção social do apenado. Finalidades estas em consonância com o Estado Democrático de Direito e seus fundamentos.
Estabelecidas as diretrizes da individualização da pena, será estudado outro princípio norteador da pena e do direito penal, o da culpabilidade.
3.6 Princípio da culpabilidade
O princípio da culpabilidade não está previsto expressamente na CRFB/88, entretanto, a doutrina costuma afirmar que ele se encontra implícito na noção de dignidade da pessoa humana.[62]
Segundo Rogério Greco, “culpabilidade diz respeito ao juízo de censura, ao juízo de reprovabilidade que se faz sobre a conduta típica e ilícita praticada pelo agente. Reprovável e censurável é aquela conduta levada a efeito pelo agente que, nas condições em que se encontrava, podia agir de outro modo”.[63]
O princípio da culpabilidade possui três sentidos fundamentais: a) elemento integrante do conceito analítico de delito; b) princípio medidor da pena; c) impedidor da responsabilidade penal objetiva.[64]
De acordo com a orientação finalista, a culpabilidade seria o terceiro elemento do conceito analítico de delito. Nessa ótica, uma vez constatado que o agente praticou fato típico e ilícito, proceder-se-á ao exame da culpabilidade, do juízo de reprovação. Se a conclusão obtida for positiva, configurado está o delito. Por outro lado, se a resposta do juízo de reprovação for negativa, não se estará diante de um crime.
Uma vez configurado, analiticamente, o delito, o que já possibilitaria uma sentença condenatória, o magistrado deverá proceder à aplicação da pena e, para tanto, deverá ter em mente a culpabilidade (juízo de censura) do autor do fato punível, como medida da pena a ser imposta.
Por fim, pelo princípio da culpabilidade, impõe-se que, para atribuir um resultado a alguém, deve haver a constatação de dolo ou culpa por parte do agente, se assim não fosse, restaria configurada a responsabilização penal objetiva.
Sobre esse terceiro aspecto, Luiz Regis Prado[65] afirma o seguinte: “a conseqüência jurídica deve ser proporcional ou adequada à gravidade do desvalor da ação representado pelo dolo ou culpa, que integra na verdade, o tipo de injusto e não a culpabilidade. Com isso, afasta-se a responsabilidade penal objetiva ou pelo resultado fortuito decorrente de atividade lícita ou ilícita.”
Feita essa abordagem sobre os princípios inerentes à pena no Estado Democrático de Direito, a próxima etapa do presente trabalho consiste na análise das finalidades que costumam ser atribuídas à pena.
4. Finalidades da pena
Os princípios constitucionais de Direito penal impõem limites ao direito de punir estatal, com vistas a garantir a segurança jurídica formal e material, consagradas pelo Estado Democrático de Direito.[66]
Conforme dito anteriormente, quando um sujeito transgride a o tipo penal incriminador (direito objetivo) nasce para o Estado o direito/dever de aplicar a pena (direito público subjetivo do Estado).[67]E, na tentativa de legitimar essa intervenção penal, surgiram dois grupos teóricos acerca dos fins da pena, “seja com fundamentos na justiça da punição (teoria absoluta ou retributiva), seja atribuindo à punição uma finalidade socialmente útil (teoria relativa ou preventiva)”[68]
“Os fins da pena, desde a primeira tentativa de sistematização do Direito Penal, que remonta à Beccaria, sempre foi preocupação dos filósofos e penalistas. Assim, o estudo das teorias das penas, no correr da história, até nossos dias, se faz conveniente e necessário para sua compreensão na atualidade.” [69]
4.1 Teorias absolutas ou retributivas
Neste contexto, a característica mais marcante arrolada pelos defensores da teoria absoluta é o caráter retributivo do qual a pena é dotada: por meio da imposição de um mal (restrição a um bem jurídico daquele que violou a norma), a sanção penal restaura a ordem atingida pelo delito. Nessa noção de retribuição, residiria a legitimidade (justificativa) da pena.[70]
Os defensores dessa teoria não conferem à pena qualquer fim diverso da sanção como um castigo, o qual consiste em uma consequência da prática de uma conduta delituosa. Há a noção de punir aquele que pecou (punitur quia peccatum est).[71]
Seguindo a sistematização de Antônio Luís Chaves de Camargo, essa digressão deve ser iniciada pelo pensamento de Cesare Beccaria, cuja obra Dos delitos e das penas figura como um ponto de partida da preocupação com o objeto de estudo do Direito Penal.
Nessa obra, consagrou-se a limitação à imposição da pena a uma relação de proporcionalidade entre o crime e a sanção a ser aplicada. Além disso, para Beccaria, a origem das penas remonta ao contrato social, “mas a sanção do direito de punir que cada um atribui ao Estado determina a aplicação das sanções proporcionalmente aos delitos” e, também, útil.[72] Diante disso, nítido é o caráter racional e humanitário de sua concepção que, desse modo, impõe limites ao jus puniendi do Estado.
Immanuel Kant afasta-se do caráter utilitário da pena propugnado pelo Marquês de Beccaria e, assim, não há qualquer fim a ser atribuído a ela. Para Kant, a pena constitui-se em uma retribuição moral pelo descumprimento de um dever; não há preocupação com qualquer efeito futuro que a pena poderá ensejar. Em seus discursos também se faz presente a noção de proporcionalidade, porquanto vincular a pena ao dano causado pelo delito seria um modo de alcançar a justiça: “uma proporcionalidade, entretanto, sem um referencial adequado, mas valorativo, pois o criminoso deve sentir os mesmos efeitos do seu ato”.[73]
Para Georg Wilhelm Friedrich Hegel, a pena seria uma retribuição jurídica e deve ser analisada como parte de um processo dialético, ou seja, é a negação da negação do direito: o autor de um crime, em seu agir delituoso, nega o ordenamento jurídico e, com a aplicação de uma pena, é restabelecido o ordenamento jurídico. Esse autor também alude à ideia de proporcionalidade, haja vista que a pena deve ser capaz de anular o crime.[74]
Convém mencionar algumas críticas feitas à teoria absoluta. A primeira delas é a de que não podem ser admitidas tais justificativas para imposição de uma pena, uma vez que não se coadunam com o Estado Democrático de Direito, que consagra o princípio da dignidade humana como um de seus fundamentos, “pois é impensável que alguém possa pagar um mal cometido com um segundo mal, que é a expiação através da pena”.[75]–[76]
Ao criticar tal teoria, Antônio Luís Chaves de Camargo afirma que “A pena como retribuição justa, baseada no livre-arbítrio e na culpabilidade, tendo neste o conteúdo do dolo e da culpa, numa relação psicológica entre a conduta e seu autor, não apresentava os parâmetros que determinavam sua quantidade. A compensação do mal do crime pelo mal da pena, de acordo com a gravidade daquele, sem qualquer outra finalidade, era um ato de fé, entendendo-se como justa uma pena que punia condutas semelhantes com a mesma quantidade, sem levar em conta outras características do fato.”[77]
Nesse mesmo sentido é a crítica de Juarez Cirino dos Santos[78]. Para ele, a pena dotada de caráter retributivo, como meio de expiar ou compensar o mal do trazido pelo crime, constitui um ato de fé e não é democrática e nem científica: “não é democrático porque no Estado Democrático de Direito o poder é exercido em nome do povo – e não em nome de Deus – e, além disso, o Direito Penal não tem por objetivo realizar vinganças, mas proteger bens jurídicos. Por outro lado, não é científico porque a retribuição do crime pressupõe um dado indemonstrável: a liberdade de vontade do ser humano, pressuposta no juízo de culpabilidade […].”
Concordamos com essas críticas, tendo em vista que a pena não deve ser utilizada como um meio de imposição de um mal, haja vista que a CRFB/88 consagrou diversas garantias aos cidadãos, conquistadas ao longo dos tempos e que não podem ficar adstritas à mera previsão constitucional. A lei infraconstitucional e o magistrado devem respeitá-las, devendo ser observados critérios racionais quando da cominação, aplicação e execução da pena, de modo que possam ser evitados novos crimes, perpetrados pelo autor e por outros cidadãos.
Por fim, cumpre ressaltar que essa função retributiva da pena foi possibilitada pelo Estado Liberal e, com o advento do Estado Social e o consequente aumento da intervenção estatal na sociedade, a pena deixa de ser dotada de caráter exclusivamente retributivo, até mesmo porque o Poder Público necessitava enfrentar os avanços da criminalidade daquele período de desenvolvimento industrial e econômico, cedendo espaço a uma noção de utilidade e, assim, nascem as teorias preventiva (ou relativas) que serão estudas a seguir.[79]
4.2 Teorias relativas ou preventivas
As teorias relativas (ou preventivas) são dotadas de uma concepção utilitária da pena, ou seja, por meio desta seria possível evitar a prática de crimes futuros (punitur ut ne peccetur – pune-se para que não se peque).[80] Portanto, a pena não só é necessária, como útil para a coletividade, “pois, além de servir de exemplo, atua, diretamente, sobre a pessoa do condenado, possibilitando sua volta ao convívio social.”[81]
A origem desse grupo de teorias é devida a Paul Joan Anselm Ritter von Feuerbach, criador da teoria da coação psicológica que, basicamente, a aplicação de uma pena demonstra a seriedade da ameaça para a sociedade e, assim, a prática delitiva pode ser coibida, uma vez que os indivíduos se sentiram intimidados[82]
Segundo Antônio Luís Chaves de Camargo[83], a principal diferença que existe entre as teorias absolutas e relativas consiste na base de legitimação da pena: “naquelas visava-se a obtenção de uma justiça absoluta (punitur quia peccatum est), enquanto nas relativas, além da retribuição pelo mal causado, havia uma utilidade preventiva, no sentido de evitar que o condenado voltasse a deliqüir (punitur quia peccatum est, ne peccetur).”
As teorias relativas ou preventivas subdividem-se em dois grupos principais: prevenção geral e prevenção especial, que serão estudados neste momento.
4.2.1 Prevenção geral
Na noção de prevenção geral, a pena direciona-se à sociedade como um todo, com vistas a impedir o cometimento de crimes no futuro, “seja pela intimidação, seja pela reafirmação do direito perante a comunidade”.[84]
A prevenção geral pode ser negativa ou positiva, conforme se verá a seguir.
A teoria da prevenção geral negativa tem origem na “teoria da coação psicológica” de Paul Joan Anselm Ritter von Feuerbach, dotada de cunho intimidativo, é “baseada em um modelo utilitarista de cunho antropológico racionalista da Ilustração do século XVIII, o qual pressupõe o homem como ser capaz de calcular de forma racional as vantagens e desvantagens de sua atuação em cada situação fática concreta”.[85]
Nessa perspectiva, o Estado, por meio da pena, espera desestimular os cidadãos a praticarem crimes, tendo em vista que se sentirão ameaçados por ela.[86]
Essa teoria é bastante criticada porque carece de critério limitador da pena, criando uma situação de terror e tendente ao Direito Penal máximo; sua natureza exemplar se contrapõe à dignidade da pessoa humana, um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito, uma vez que se incrementa a punição dos autores de delitos para que os criminosos em potencial se sintam desestimulados a pratica de condutas delituosas.[87] Ademais, o efeito dissuasor, haja vista que atua desacompanhado de outros mecanismos, não combate as causas da criminalidade.[88]
A prevenção geral positiva consiste em uma resposta à falibilidade da teoria anterior, que se mostrou ineficaz no combate à criminalidade da sociedade de risco e, baseada em noções inerentes às ciências sociais, almeja, além de garantir as normas, influenciar outros processos de controle social, alheios ao Direito Penal, tendo em vista o caráter fragmentário e subsidiário desse último.[89]
Essa teoria possui grande aceitação na doutrina contemporânea, e encontra diversas variações, mas, basicamente, trata a pena como “um instrumento destinado a estabilização normativa, justifica-se pela produção de efeitos positivos consubstanciados no fortalecimento geral da confiança normativa (‘estabilização da consciência do direito’)”.[90]
Nesse sentido, leciona Oswaldo Henrique Duek Marques, que acrescenta o seguinte: “Consoante a prevenção positiva, mesmo após a prática da infração de uma norma, esta continua a vigorar, caso contrário estaria abalada a confiança nas relações sociais. Daí a necessidade da pena, pelo seu aspecto positivo de reafirmar tal vigência.” [91]
Winfried Hassemer, cuja proposta possui bases sociológicas, atesta que a pena, por ser o meio de controle social mais violento, deve ter o fim de assegurar as normas. Ou seja, as normas devem ter a capacidade de convencer os cidadãos de que são idôneas e necessárias a uma melhor convivência em sociedade e, para tanto, não podem demasiadamente severas e, simultaneamente, proteger os bens jurídicos e a liberdade humana.[92]
Para Claus Roxin há três fins propugnados pela prevenção geral positiva: a) de aprendizagem; b) de confiança no Direito; c) de pacificação ou prevenção integradora. Sua proposta relaciona esses três fins e, assim, forma uma teoria unificadora dialética: “que tem por objetivo evitar os exageros, dirigindo os fins da pena para caminhos socialmente construtivos, e, com base nos princípios, estabelecer restrições recíprocas […]”.[93]
A teoria de Roxin que, conforme visto, visa a fins socialmente construtivos, ou seja, que possibilitem o desenvolvimento da personalidade dos cidadãos, também é conhecida como limitadora, assim denominada em razão de seu ponto de partida de medição da pena ser a culpabilidade do agente, almeja “limitar a intervenção penal por parte do Estado, em consideração aos direitos individuais”[94], sem descartar os efeitos da prevenção fundamentadora (que fundamenta a intervenção penal, de Günther Jakobs).
Para Günther Jakobs, baseado em elementos da teoria dos sistemas de Niklas Luhmann, a pena tem por fim a demonstração da vigência da norma a todos os cidadãos e, assim, estabilizará o ordenamento jurídico. A pena, portanto, é um exercício de confiança na norma. Não há a finalidade de proteger bens jurídicos, mas tão-somente a proteção das normas.[95]
No mesmo sentido, “Assim, a imposição da pena tem somente o poder de demonstrar que o agente, com seu comportamento, não se organizou corretamente, para manter-se nos moldes traçados pelas normas de conduta. Sua missão é reafirmar o reconhecimento da validade da norma, no qual está implícita a consciência de que foi infligida e de que deve seguir como modelo idôneo de orientação. Assim, cumpre o papel de orientar os cidadãos para o cumprimento das normas inseridas no contrato social.”[96]
Finalmente, cumpre mencionar as críticas que são dirigidas às teorias preventivas positivas. A primeira delas consiste na admissão da presunção absoluta da capacidade motivadora das normas, por acreditar que o corpo social se constitui de cidadãos igualmente racionais, cujas condutas são passíveis de serem dirigidas pela norma. A segunda diz respeito à manipulação a qual é submetido o homem em tais concepções, sendo utilizado como um meio para atingir fins.[97]
4.2.2 Prevenção especial
A teoria da prevenção especial surgiu no século XIX como fruto da necessidade de uma maior intervenção do Estado nos processos de controle da criminalidade. Essas teorias justificam a pena a partir da noção de que sua atuação sobre a pessoa do condenado garantirá que ele não volte a delinquir.
Subdivide-se em dois segmentos, um positivo e outro negativo. O primeiro visa, em linhas gerais, à reinserção social do condenado e o segundo, por sua vez, a neutralizar o deliquente, por meio da prisão.[98]
Ou seja, a prevenção especial positiva atribui à pena o objetivo da reintegração (ou ressocialização) do condenado ao corpo social, enquanto que para prevenção especial negativa a pena tem o fim de segregar o condenado da coletividade.
Portanto, para tais teorias, por serem preventivas, a pena se direciona ao futuro, a fim de evitar a prática de novos delitos, mas atua diretamente sobre a pessoa do condenado e não sobre todo o grupo social, ao contrário das preventivas gerais que visam à sociedade como um todo.
Para Juarez Cirino dos Santos, é óbvio que a pena, como fruto de teoria preventiva especial negativa, gera segurança social, diante da segregação prisional a qual os sentenciados são submetidos. Esse fenômeno, para ele, denomina-se incapacidade seletiva de indivíduos, consistente em uma neutralização dos delinquentes que são, portanto, impedidos de praticar crimes fora dos limites da prisão.[99]
Já a pena sob um aspecto de prevenção especial positiva, almeja à reeducação, reinserção ou ressocialização do condenado. E esse fim pode ser alcançado por meio de acompanhamento de profissionais da psicologia, sociologia, assistência social e demais servidores do estabelecimento prisional (“ortopedistas da moral”).[100]
A prevenção especial positiva é alvo de diversas críticas, entre elas: a) tendo em vista seu critério reintegração social, a pena carece de limitação, pois “deve ser retido o condenado até que seja ressocializado, impondo-lhe uma pena indeterminada”;[101] b) a obscuridade que se faz presente quando o criminoso não necessitar de ressocialização como, por exemplo, nos casos de crimes culposos ou de crimes passionais;[102]–[103] c) a ressocialização se manifestaria como uma arbitrariedade estatal porquanto desrespeita a autonomia do preso, que somente pode ser submetido àqueles programas que lhe são inerentes se assim desejar;[104]
Já a teoria da prevenção especial negativa, que visa à segregação do indivíduo para que não pratique crimes, diante da obviedade de seu caráter arbitrário, não recebe tanta atenção da doutrina: é certo que essa teoria se contrapõe aos princípios consagrados pelo Estado Democrático de Direito e, sobretudo, o fundamento da dignidade da pessoa humana.
4.3 Teorias mistas
As teorias mistas (também conhecidas por ecléticas ou unificadoras) surgiram da combinação das teorias retributivas e preventivas. Essa concepção foi adotada pelo art. 59 do Código Penal brasileiro.
Luiz Regis Prado esclarece que, nesse contexto, a noção de retribuição adquire novo conteúdo: “[…] e a pena justa é provavelmente aquela que assegura melhores condições de prevenção geral e especial, enquanto potencialmente compreendida e aceita pelos cidadãos e pelo autor do delito, que só encontra nela (pena justa) a possibilidade de sua expiação e de reconciliação com a sociedade. Dessa forma, a retribuição jurídica torna-se um instrumento de prevenção, e a prevenção encontra na retribuição uma barreira que impede sua degeneração.” [105]
Nessa concepção, a pena deve ser proporcional ao injusto e à culpabilidade, justa e adequada, e os critérios preventivos impõem limites à aplicação da pena justa: “Pode assim dar lugar à redução da pena aplicada ou, inclusive, levar à abstenção de sua aplicação, quando não seja considerada necessária do ponto de vista preventivo.” [106]
A principal crítica sofrida por esse grupo de teorias é a de que constituiria, simplesmente, uma justaposição das teorias absolutas e relativas, que romperia com a noção de direito penal de ultima ratio, “destruindo a lógica imanente de cada concepção, como também aumentando o âmbito de aplicação da pena, convertendo a reação penal estatal em meio utilizável para sanar qualquer infração à norma”.[107]
No que tange às finalidades das penas, acreditamos que devam ser orientadas por critérios preventivos gerais e especiais, mas positivos, porquanto estes são os que melhor se harmonizam com os princípios constitucionais.
5 Conclusão
Ante todo o exposto, constata-se que a pena, como uma manifestação do jus puniendi estatal, deve ter como fins a proteção da confiança nas normas, a proteção subsidiária de bens jurídicos e a ressocialização do condenado, e orientar-se conforme os princípios da legalidade, da pessoalidade, da proporcionalidade, da humanidade, da individualização e da culpabilidade e, assim, estará consoante ao Estado Democrático de Direito instituído pela CRFB/88.
Informações Sobre o Autor
Shymene Silva Queiroz
Advogada.