(Palestra
proferida no Curso Superior de Medicina Legal da Universidade de Coimbra, em 10
de maio de 2002)
Resumo:
O autor além de conceituar a tortura à
luz da legislação brasileira vigente, fala da violência institucional no
Brasil, faz uma série de recomendações quando do exame das vítimas de alegada
tortura chamando a atenção para o exame clínico e as necropsias em casos de
morte por maus tratos sob a tutela policial ou judiciária
Preliminares
Toda e qualquer ação que tenha como destino as pessoas e o seu modo de
viver, implica necessariamente no reconhecimento de certos valores. Qualquer
que seja a maneira de abordar esta questão vamos chegar a um entendimento que o
mais significativo desses valores é sempre o próprio ser humano, no conjunto de
seus atributos materiais, físicos e morais. Se não for assim, cada um de nós
nada mais representa senão um simples objeto, sem identidade e sem nenhum
destino.
1. A vida humana como valor ético.
O valor da vida é de tal magnitude que, até mesmo nos momentos mais graves,
quando tudo parece perdido, dadas as condições mais excepcionais e precárias –
como nos conflitos internacionais, na hora em que o direito da força se instala
negando o próprio Direito, e quando tudo é paradoxal e inconcebível -, ainda
assim a intuição humana tenta protegê-la contra a insânia coletiva, criando
regras que impeçam a prática de crueldades inúteis.
Quando a paz passa a ser apenas um instante entre dois tumultos, o homem
tenta encontrar nos céus do amanhã uma aurora de salvação. A ciência, de forma
desesperada, convoca os cientistas a se debruçarem sobre as mesas de seus
laboratórios, na procura de meios salvadores da vida. Nas mesas das
conversações internacionais, mesmo entre intrigas e astúcias, os líderes do
mundo inteiro tentam se reencontrar com a mais irrecusável de suas normas: o
respeito pela vida humana.
Assim, no âmago de todos os valores está o mais indeclinável de todos
eles: a vida humana. Sem ela, não existe a pessoa humana. Não existe a base de
sua identidade. Mesmo diante da proletária tragédia de cada homem e de cada
mulher, quase naufragados na luta desesperada pela sobrevivência do dia a dia,
ninguém abre mão dos seus direitos de sobrevivência. Essa consciência é que faz
a vida mais que um bem: um valor
A partir dessa concepção, hoje, mais ainda, a vida passa a ser
respeitada e protegida não só como um bem afetivo ou patrimonial, mas pelo que
ela se reveste de valor ético. Não se constitui apenas de um meio de
continuidade biológica, mas de uma qualidade e de uma dignidade que faz com que
cada um realize seu destino de criatura humana.
2. A vida humana como valor
jurídico. Vivemos sob a égide de uma Constituição que orienta o Estado no
sentido da “dignidade da pessoa humana”, tendo como normas a promoção do bem
comum, a garantia da integridade física e moral do cidadão e a proteção
incondicional do direito à vida. Tal proteção é de tal forma solene que o
atentado a essa integridade eleva-se a condição de ato de lesa-Humanidade: um
atentado contra todos os homens.
Afirma-se que a Constituição do Brasil protege a vida e que tudo aquilo
que soa diferente é contrário ao Direito e por isso não pode realizar-se.
Todavia, dizer que a vida depende da proteção da Carta Maior é superfetação
porque a vida está acima das normas e compõe todos os artigos, parágrafos,
incisos e alíneas de todas as Constituintes.
Cada dia que passa, a consciência atual, despertada e aturdida pela
insensibilidade e pela indiferença do mundo tecnicista, começa a se reencontrar
com a mais lógica de suas normas: a tutela da vida.
Essa consciência de que a vida humana necessita de um imperiosa proteção
vai criando uma série de regras que vai se ajustando mais e mais com cada
agressão sofrida, não apenas no sentido de se criar dispositivos legais, mas
como maneira de estabelecer formas mais fraternas de convivência. Este sim,
seria o melhor caminho.
Tudo isso vai sedimentando uma idéia de que a vida de todo ser humano é
ornada de especial dignidade e que isto deve ser colocado de forma clara em
defesa da proteção das necessidades e da sobrevivência de cada um. Esses
direitos fundamentais e irrecusáveis da pessoa humana devem ser definidos por
um conjunto de normas possibilitando que cada um tenha condições de desenvolver
suas aptidões e suas possibilidades.
3. A defesa da pessoa e da vida e
os direitos humanos. O mais efetivo marco em favor da defesa da pessoa
humana e conseqüentemente da sua vida vem da vitória da Revolução Francesa, com
a edição da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão em 1789, onde já no seu
artigo primeiro se lê: “todos os homens nascem e permanecem livres e iguais em
direitos”. E no artigo 5º é mais enfática quando diz: “ninguém será submetido à
tortura, nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante”.
Mesmo que o mundo tenha assistido dois grandes conflitos internacionais
neste século e que algumas pessoas continuem mais e mais em busca de
privilégios e vantagens individuais, não se pode negar que algo vem sendo feito
em favor dos valores humanos. O que nos faz pensar assim é o crescimento de uma
significativa parcela da sociedade que já se conscientizou, de forma isolada ou
em grupos, que a defesa dos direitos humanos não é apenas algo emblemático, mas
um argumento muito forte em favor da sobrevivência do homem. Isto não quer dizer
que não haja por parte de alguns a alegação de que a defesa dos direitos
humanos seja um risco para a sociedade, uma subversão da ordem pública, um jogo
de interesses ideológicos ou uma ameaça aos direitos patrimoniais. Outros, por
ingenuidade ou má-fé, admitem que a luta em favor dos direitos humanos é uma
apologia ao crime e um endosso ao criminoso.
A partir da edição da Declaração Universal dos Direitos Humanos pela
Assembléia Geral da Organização das Nações Unidas em 1948, embora sem eficácia
jurídica, pode-se dizer que ela representa um momento importante na história
das liberdades humanas, não apenas pelo que ali se lê em termos do ideal de uma
convivência humana, mas pelas declaradas adesões dos países membros desta
Organização.
Espera-se que passo a passo a humanidade vá construindo um ideário onde
fique evidente a importância da valorização da pessoa e o reconhecimento
irrecusável dos direitos humanos. Não adianta todo esse encantamento com o
progresso da técnica e da ciência se não for em favor do homem. Se não, esse
progresso será uma coisa pobre e mesquinha.
Violência institucional no Brasil
Os aparelhos do poder organizado em nosso país que disciplinam as
relações sociais e que administram a repressão (polícia), que julgam e aplicam
as sanções (justiça) e que executam a punição (prisão) não deixam, de certo
modo, de exercer ou tolerar a violência. O Estado constitui-se sem dúvida na
mais grave forma de arbítrio porque ela flui de um órgão de proteção e contra a
qual dificilmente se tem remédio.
Parte da estrutura policial tornou-se viciada pelo arbítrio e pela
corrupção, imbuída de uma mentalidade repressiva, reacionária e preconceituosa,
na mais absoluta fidelidade que o Sistema lhe impôs desde os anos de repressão.
Hoje tal fração desta estrutura não somente perdeu a credibilidade da
população, como lhe causa medo.
O aparelho policial mostra-se cada vez mais violento a partir da
organização dos movimentos coletivos de reivindicação e protesto. Dessa forma,
com o surgimento mais constante desses movimentos populares, o poder passou a
prevenir e controlar de forma agressiva o que ele chamou de “desordens
públicas”. Esse aparelho de poder autorizado legalmente a usar a violência
contra os trabalhadores sem terra e sem emprego, deixa claro que a garantia da
“ordem social” tem suas razões ditadas pelas classes dominantes que se sentem
ameaçadas. Esse modo de atuar do aparelho policial não deixa de ser uma fonte
permanente de conflitos, fazendo que essa corporação se constitua numa forma de
violência institucional.
De certa forma pode-se dizer que o aparelho judicial também constitui
numa modalidade de violência institucional, a partir do instante em que suas
decisões se inclinam obstinadamente para o lado do legalismo insensível,
deixando de agir pela equidade. Não é outro senão o próprio Presidente do
Supremo Tribunal Federal que diz: “necessitamos de um sistema que seja
processualmente célere, politicamente independente, socialmente eficaz e
tecnicamente eficiente” (Revista Veja, ano 32, n.º 12, 22/mar./1999, pag. 36).
O princípio da legalidade é o eixo da lógica da justiça criminal, mas se
olharmos para os presídios não é difícil entender que essa ideologia, pelo
menos na prática, favorece os interesses e as pessoas das classes dominantes.
Estes indivíduos, pertencentes a certa casta social, exageram o limite da
liberdade real, enquanto os outros, marginalizados pelo processo de produção,
estão submetidos às regras de sua categoria e, por isso, têm suas liberdades
condicionadas. Até porque as leis que são seguidas fielmente pelo aparelho
judicial são elaboradas a partir dos interesses que os legisladores defendem e
representam. E estes não têm nenhuma intimidade com aspirações da população que
mais necessita e anseia por justiça.
A violência do aparelho carcerário é certamente a mais impiedosa e
humilhante porque o presidiário, principalmente o de crimes comuns, representa
para o poder e para uma fração da sociedade, uma escória. Não passa pelos
critérios dessas pessoas que a pena seja uma medida de recuperação e de
ressocialização, mas tão-só um instrumento de vindita e de reparação. O próprio
sentido de intimidação e de excessivo rigor punitivo não deixam de constituir
uma modalidade de terrorismo oficial.
A forma como essas instituições são administradas e o perfil dos seus
administradores não deixam dúvidas do verdadeiro sentido dessas prisões. Não é
nenhuma novidade afirmar que essas casas de custódia funcionam como desestímulo
arrasador aos programas de recuperação. E é nesse ambiente de trabalhos
inúteis, de degradação e coação disciplinar, de prática sistemática de torturas
e maus tratos que o regime carcerário propõe recuperar seus presos.
Tudo que existe de sórdido no sistema carcerário: a prepotência, a falta
de disciplina e a brutalidade gratuita de alguns agentes do poder e o seu
desdém pelas entidades que promovem a defesa e a proteção dos direitos humanos,
é com certeza a manifestação mais abjeta da intolerância, da irreverência e do
arbítrio. Esta “justiça paralela”, amparada pela mesma inspiração de violência
instituída, só serve para desmoralizar a Justiça e aviltar a dignidade humana.
Desvinculação dos IMLs
da área da segurança
Dentro deste quadro, um dos fatos mais graves e desalentadores, tem sido
a inserção dos Institutos Médico-Legais nos organismos de repressão, quando
deviam estar entre aqueles que são os verdadeiros arautos na defesa dos
direitos humanos. Isso infelizmente pode comprometer os interesses mais
legítimos da sociedade. Muitos desses Institutos estão subordinados diretamente
a Delegados de Polícia.
Por isso, pela incidência quase generalizada da violência e do arbítrio
dos órgãos de repressão, sempre defendemos a idéia da imediata desvinculação
dos Institutos de Medicina Legal da área de Segurança, não só pela possibilidade
de se estabelecer pressões, mas pela oportunidade de se levantar dúvidas na
credibilidade do ato pericial. A polícia que prende, espanca e mata é a mesma
que conduz o processo.
Como sempre, mas hoje muito mais, os órgãos de perícia são de
importância significativa na prevenção, repressão e reparação dos delitos,
porque a prova técnico-científica prevalece sobre as demais provas ditas
racionais, notadamente nas questões criminais.
Por isso a Medicina Legal não pode deixar de ser vista como um núcleo de
ciência a serviço da Justiça, e o médico nestas condições é sempre um analista
do Juiz, e não um preposto da autoridade policial. Desse modo, sente-se a
necessidade cada vez mais premente de transformar esses Institutos em órgãos
auxiliares do Poder Judiciário, e sempre com a denominação de Institutos
Médico-Legais, como a tradição os consagrou pelo seu mais alto destino.
Atualmente há uma tendência da tecnocracia estatal chamar esses departamentos
de Institutos de Polícia Científica ou de Polícia Técnica. Nem se pode admitir
Polícia como ciência nem Medicina Legal como polícia.
Lamentavelmente, por distorção de origem, quando as repartições
médico-legais nada mais representavam senão simples apêndices das Centrais de
Polícia e os legistas meros auxiliares subordinados à autoridade policial,
permanece o desagradável engano, ficando até hoje a idéia entre muitos que a
legisperícia é parte integrante e inerente da atividade policial. E o mais
grave: isso fez que se criasse, num bom número de legistas brasileiros, uma
postura nitidamente policialesca que se satisfaz com a exibição de carteiras de
polícia ou de portes de arma.
A Medicina Legal tem outra missão, mais ampla e mais decisiva dentro da
esfera do judiciário, no sentido de estabelecer a verdade dos fatos, na mais
justa aspiração do direito.
Foi com esse pensamento que a Comissão de Estudos do Crime e da
Violência, criada pelo Ministério da Justiça, propôs ao Governo a desvinculação
dos Institutos Médico-Legais e da própria Perícia Criminal, dos órgãos de
polícia repressiva. O objetivo era “evitar a imagem do comprometimento
sempre presente, quando, por interesse da Justiça, são convocados para
participar de investigações sobre autoria de crimes atribuídos à Polícia”.
A solução apresentada pela Comissão, tendo como presidente o Professor
Viana de Moraes, era “que estes serviços técnicos hoje sujeitos à Secretaria de
Segurança Pública, passem a integrar o quadro administrativo das Secretarias de
Justiça”. Pessoalmente acho que pouco mudaria se os órgãos de perícias fossem
para tais Secretarias, ou mesmo para o Ministério da Justiça. O local mais
adequado seria o Ministério Público Estadual, a quem constitucionalmente cabe o
ônus da prova.
A justificativa era baseada em trabalhos do juiz João de Deus Mena Barreto
e do criminalista Serrano Neves, documentado por vários crimes atribuídos aos
policiais, onde os laudos elaborados por peritos oficiais subordinados às
Secretarias de Segurança, segundo aqueles autores contestavam e negavam a
autoria, entre eles o da morte do operário Aézio da Silva Fonseca, servente do
Itanhangá Golf Clube do Rio de Janeiro e do operário Manoel Fiel Filho, este
último dado como suicida por estrangulamento, o que teoricamente e naquelas
circunstâncias era inaceitável.
Ninguém de bom-senso pode assegurar que dessa vinculação possa existir
sempre qualquer forma de coação. Mas, dificilmente se poderia deixar de aceitar
a idéia de que em algumas ocasiões possa existir pressão, quando se sabe que os
órgãos de repressão no Brasil estiveram ou estão seriamente envolvidos no
arbítrio e na violência. Pelo menos, suprimiria esse grave fator de suspeição,
criado pela dependência e pela subordinação funcional.
Enquanto o aparelho policial permanecer vinculado a esses lamentáveis
episódios, e os cargos de direção das repartições médico-legais forem
distribuídos entre indivíduos da confiança e da intimidade do partido oficial,
haverá, pelo menos, dúvidas em alguns resultados. Pelo menos foi assim que
decidiu o juiz Márcio José de Moraes sobre o laudo pericial do Jornalista
Vlademir Herzog.
Tortura
A Lei n.º 9.455, de 7 de abril de 1997, que regulamenta o inciso XLIII
do artigo 5º da Constituição do Brasil de 1988, define tortura como o
sofrimento físico ou mental causado a alguém com emprego de violência ou grave
ameaça, com o fim de obter informação, declaração ou confissão de vítima ou de
terceira pessoa, outrossim, para provocar ação ou omissão de natureza criminosa
ou então em razão de discriminação racial ou religiosa. Por sua vez, a
Declaração de Tóquio, aprovada pela Assembléia Geral da Associação Médica
Mundial, em 10 de outubro de 1975, define como: “a imposição deliberada,
sistemática e desconsiderada de sofrimento físico ou mental por parte de uma ou
mais pessoas, atuando por própria conta ou seguindo ordens de qualquer tipo de
poder, com o fim de forçar uma outra pessoa a dar informações, confessar, ou
por outra razão qualquer”.
A Convenção da Organização das Nações Unidas contra a Tortura a define
como “um ato pelo qual são infligidos, intencionalmente, a uma pessoa, dores ou
sofrimentos graves, sejam eles físicos ou mentais, com o fim de obter
informações ou uma confissão, de castiga-la por um ato cometido ou que se
suspeita que tenha cometido, de intimida-la ou coagi-la, ou por qualquer razão
baseada em qualquer tipo de discriminação”.
A Convenção Interamericana para Prevenir e Sancionar a Tortura dá
definição mais avançada que esta da Convenção da ONU quando define a tortura
como “a aplicação, em uma pessoa, de métodos que tendem a anular a personalidade
da vítima ou diminuir sua capacidade física ou mental, embora não causem dor
física ou angústia psíquica”.
A verdade é que o fato de o ser humano sofrer de forma deliberada de
tratamento desumano, degradante e cruel, com a finalidade de produzir
sofrimentos físicos ou morais, é tão antigo quando a história da própria
Humanidade. Houve uma época, não tão distante, que a Igreja e o Estado usavam a
tortura como formas legais de expiação de culpa ou como forma legal de pena. A
Inquisição e a Doutrina de Segurança Nacional não são diferentes em seus
métodos, princípios e objetivos.
Na atualidade, malgrado um ou outro esforço, muitos são os países que
ainda praticam, ou toleram a tortura em pessoas indefesas, sem nenhuma
justificativa ou qualquer fundamento de ordem normativa. Muitas dessas práticas
têm por finalidade punir tendências ideológicas ou reprovar e inibir os
movimentos libertários ou as manifestações políticas de protesto. Muitas dessas
práticas cruéis e degradantes nada tem que ver com a chamada “obtenção da
verdade”, mas uma estratégia do sistema repressivo que dispõe o Estado, contra
os direitos e as liberdades dos seus opositores, como estratégia de manutenção
no poder. Não é por outra razão que sua metodologia e seus princípios estão nos
currículos, como matéria teórica e prática das corporações militares e
policiais. Não quer dizer que não exista também a banalização do instinto
violento como maneira torpe de dobrar o espírito das pessoas para o torturado
admitir o que quer o torturador. No fundo mesmo o que se procura com a tortura
é o sofrimento corporal insuportável, levando a uma fragmentação do corpo e da
mente. Tais procedimentos, por razões muito óbvias, são desconhecidas na
maioria das vezes, pois sua divulgação, mesmo em países ditos democráticos, é
evitada de maneira disfarçada, e assim os organismos internacionais que cuidam
dos direitos humanos não têm informações nem acesso aos torturados. Por outro
lado, as próprias autoridades locais do setor de saúde não incluem essas vítimas
dentro de um programa capaz de resgatá-las de suas graves seqüelas.
Recomendações em
perícias de casos de tortura
1 – valorizar o exame esquelético-tegumentar.
2 – descrever detalhadamente a sede e as características dos ferimentos.
3 – registrar em esquemas corporais todas as lesões encontradas.
4 – fotografar as lesões e alterações existentes nos exames interno e
externo.
5 – detalhar em todas as lesões, independente do seu vulto, a forma,
idade, dimensões, localização e particularidades.
6 – radiografar, quando possível, todos os segmentos e regiões agredidos
ou suspeitos de violência.
7 – examinar a vítima de tortura sem a presença dos agentes do poder.
8 – trabalhar sempre em equipe.
9 – examinar à luz do dia.
10 – usar os meios subsidiários disponíveis.
Exame clínico em casos
de tortura
Além das lesões esquelético-tegumentares e de suas características que
serão descritas mais adiante para o exame externo do cadáver em casos de morte
por tortura, existe uma série de perturbações psíquicas que devem ser
registradas com certo cuidado, pois elas podem ser confundidas com sintomas de
outras manifestações.
Essas perturbações psíquicas, conhecidas como síndrome pós-tortura, são
caracterizadas por transtornos mentais e de conduta, apresnetand0o desordens psicossomáticas
(cefaléia, pesadelos, insônia, tremores, desmaios, sudorese e diarréia),
desordens afetivas (depressão, ansiedade, medos e fobias) e desordens
comportamentais (isolamento, irritabilidade, impulsividade, disfunções sexuais
e tentativas de suicídio). O mais grave desta síndrome é a permanente
recordação das torturas, os pesadelos e a recusa fóbica de estímulos que possam
trazer a lembrança dos maus tratos praticados.
Necropsia em morte por
tortura
Todas as mortes ocorridas em presídios, notadamente de indivíduos que
faleceram sem assistência médica, no curso de um processo clínico de evolução
atípica ou de morte súbita ou inesperada, devem ser consideradas a priori como
“mortes suspeitas”. Com certeza essas mortes, especialmente quando súbitas, são
as de maior complexidade na determinação da causa e do mecanismo da morte.
Quando da perícia em casos de morte súbita, onde se evidenciam lesões
orgânicas significativas e incompatibilidade com a continuidade da vida, além
da ausência de lesões ou alterações produzidas por ação externa, não há o que
duvidar de morte natural, melhor chamada de “morte com antecedentes
patológicos” ou de “morte orgânica natural”.
No entanto, se são diagnosticadas lesões orgânicas mas se essas
alterações morfopatológicas não se mostram totalmente suficiente para explicar
a morte, então com certeza estamos diante da situação mais complexa e difícil
da perícia médico-legal, ainda mais quando não existe qualquer manifestação
exógena que se possa atribuir como causa do óbito.
Pode excepcionalmente ocorrer uma situação em que o indivíduo é vítima
de morte súbita, não tem registro de antecedentes patológicos, nem lesões
orgânicas evidentes na necropsia, além, de não apresentar manifestações de
agressão violenta, registrada por aquilo que se chamou de “necropsia branca”.
Desde que se afaste definitivamente a causa violenta de morte, tenha-se tomado
os cuidados necessários na pesquisa anatomopatológica, não há o que fugir da
morte por causa indeterminada. Ainda mais se existe os fatores não violentos de
inibição sobre regiões reflexógenas, predisposição constitucional e estados
psíquicos inibidores.
Como última hipótese aquelas situações de morte inesperada onde se
evidenciam lesões e alterações típicas que justificam a morte violenta.
No primeiro caso, quando da chamada “morte súbita lesional”, onde o
óbito é diagnosticado e explicado de forma segura pela presença de antecedentes
patológicos, isso deve ficar confirmado de maneira clara, pois dificilmente tal
evento deixa de apresentar alguns constrangimentos pelas insinuações de dúvida
e desconfiança.
As causas das chamadas mortes naturais mais comuns são:
cardiocirculatórias (cardiopatias isquêmicas, alterações valvulares,
cardiomiopatias, miocardites, endocardites, alterações congênitas, anomalias no
sistema de condução, roturas de aneurismas, etc.), respiratórias
(broncopneumonias, tuberculose, pneumoconioses, etc.), digestivas (processos
hemorrágicos, enfarte intestinal, pancreatite, cirrose, etc.), uro-genitais
(afecções renais, lesões decorrentes da gravidez e do parto); encefalomeníngeas
(processos hemorrágicos, tromboembólicos e infecciosos), endócrinas (diabetes),
obstétricas (aborto, gravidez ectópica, infecção puerperal, etc.), entre
outras.
Nas situações de morte súbita sem registro de antecedentes patológicos,
com alterações orgânicas de menor importância e ausência de manifestações
violentas, o caso é ainda mais complexo e pode ser explicada como “morte súbita
funcional com base patológica”. Exemplo: arritmia cardíaca. Quando isso
ocorrer, é importante que se examine cuidadosamente o local dos fatos, se
analise as informações do serviço médico do presídio ou do médico assistente e
se use os meios subsidiários mais adequados a cada caso, com destaque para o
exame toxicológico.
Mais cuidado ainda se deve ter quando não existe qualquer alteração
orgânica que justifique a morte, nem se encontram manifestações de ação
violenta, mas o indivíduo é portador de alguma perturbação funcional. Em alguns
casos pode-se justificar como “morte súbita funcional”. Exemplo: a morte
pós-crise convulsiva. Nesses casos deve-se usar de todos os meios
complementares disponíveis no sentido de afastar a morte violenta e, se
possível, confirmar a morte natural a partir da confirmação daquelas perturbações.
Por fim, os casos de morte violenta cuja perícia não deve apenas se
restringir ao diagnóstico da causa da morte e da ação ou do meio causador, mas
também ao estudo do mecanismo e das circunstâncias em que esse óbito ocorreu,
no sentido de se determinar sua causa jurídica
Recomenda-se que em tais situações a necropsia seja realizada de forma
completa, metódica, sem pressa, sistemática e ilustrativa, com a anotação de
todos os dados e com a participação de no mínimo outro legista. Além disso,
deve-se usar fotografias, gráficos e esquemas, assim como os exames
complementares necessários.
A. Exame externo do cadáver.
Nos casos de morte violenta, em geral, o exame externo tem muita importância
não só para o desfecho do diagnóstico da causa da morte, como também para se
considerar seu mecanismo, sua etiologia jurídica e as circunstâncias que
antecederam o óbito. Essa é a regra, embora possa em determinada situação soar
diferente. Nas mortes em que se evidencia tortura, sevícias ou outros meios
degradantes, desumanos ou cruéis, os achados analisados no hábito externo do
cadáver são de muita relevância. Os elementos mais significativos nessa
inspeção são:
A.1 –Sinais relativos à identificação do morto. Todos os elementos
antropológicos e antropométricos, como estigmas pessoais e profissionais,
estatura, malformações congênitas e adquiridas, além da descrição de
cicatrizes, tatuagens e das vestes, assim como a coleta de impressões digitais
e de sangue, registro da presença, alteração e ausência dos dentes e do estudo
fotográfico.
A.2 – Sinais relativos às condições do estado de nutrição, conservação e
da compleição física. Tal cuidado tem o sentido não só de determinar as
condições de maus tratos por falta de higiene corporal higiênicas, mas ainda de
constatar a privação de alimentação e cuidados. Essas manifestações encontradas
no detento podem confirmar a privação de alimentos.
A.3 – Sinais relativos aos fenômenos cadavéricos. Devem ser anotados
todos os fenômenos cadavéricos abióticos consecutivos e transformativos, como
rigidez cadavérica, livores hipostáticos, temperatura retal e as manifestações
imediatas ou tardias da putrefação.
A.4 – Sinais relativos
ao tempo aproximado de morte. Todos os sinais acima referidos devem ser
registrados num contexto que possam orientar a perícia para uma avaliação do
tempo aproximado de morte, pois tal interesse pode resultar útil diante de
certas circunstâncias de morte.
A.5 – Sinais relativos ao meio ou às condições onde o cadáver se
encontrava. Estes são elementos muito importantes quando presentes, pois assim
é possível saber se o indivíduo foi levado em vida para outro local e depois
transportado para a cela onde foi achado, como por exemplo, presidiários que
morreram em “sessões de afogamento” fora da cela carcerária.
A.6 – Sinais relativos à causa da morte. Mesmo que se considere ser o
diagnóstico da causa da morte o resultado do estudo externo e interno da
necropsia, podemos afirmar que no caso das mortes por tortura o exame externo
do cadáver apresenta um significado especial pela evidência das lesões sofridas
de forma violenta. Assim, devemos considerar:
A.6.1 – Lesões traumáticas. É muito importante que as lesões
esquelético-tegumentares, que são as mais freqüentes e mais visíveis, sejam
valorizadas e descritas de forma correta, pois na maioria das vezes, em casos
dessa espécie, elas contribuem de forma eloqüente para o diagnóstico da morte e
as circunstâncias em que ela ocorreu.
No estudo das lesões externas do cadáver em casos de morte por tortura
deve-se valorizar as seguintes características: multiplicidade, diversidade,
diversidade de idade, forma, natureza etiológica, falta de cuidados e local de
predileção.
Quanto a sua natureza, as lesões podem se apresentar com as seguintes
características:
a) Equimoses e hematomas são as lesões mais comuns, localizando-se mais
comumente na face, tronco, extremidades e bolsa escrotal, apresentando
processos evolutivos de cronologia diferente, pelas as agressões repetidas em
épocas diversas;
b) Escoriações generalizadas, também de idades diferentes, mais
encontradas na face, nos cotovelos, joelhos, tornozelos e demais partes
proeminentes do corpo;
c) Edemas por constrição nos punhos e tornozelos, por compressão
vascular, em face da ectasia sangüínea e linfática;
d) Feridas, na maioria contusas, nas diversas regiões, com predileção
pelo rosto (supercílios e lábios)¸ também de evolução distinta pelas épocas
diferentes de sua produção, e quase sempre infectadas pela falta de higiene e
assistência;
e) Queimaduras, principalmente de cigarros acesos no dorso, no tórax e
no ventre, ou outras formas de queimaduras, as quais quando bilaterais têm
maior evidência de mau trato, sendo quase sempre infectadas pela falta de
cuidados. As lesões produzidas por substâncias cáusticas são muito raras devido
seu aspecto denunciador;
f) Fraturas dos ossos próprios do nariz que, após sucessivos traumas,
podem produzir o chamado “nariz de boxeador”, quase sempre acompanhado de
fratura do tabique nasal, com hematoma bilateral ao nível do espaço subcondral,
além das fraturas de costelas e de alguns ossos longos das extremidades, sendo
mais rara a fratura dos ossos da coluna e da pélvis;
g) Alopécias com zonas hemorrágicas difusas do couro cabeludo pelo
arrancamento de tufos de cabelo;
h) Edemas e ferimentos das regiões palmares e fraturas dos dedos pelo
uso de palmatória;
i) Lesões oculares que vão desde as retinopatias e cristalinopatias até
as roturas oculares com esvaziamento do humor vítreo e cegueira consecutiva;
j) Lesões otológicas como rotura dos tímpanos e otorragia provocadas por
uma agressão de nome “telefone”;
l) Fraturas e avulsões dentárias por traumatismos faciais;
m) Sinais de abuso sexual de outros presidiários como manobra de tortura
e humilhação da própria administração carcerária;
n) Lesões eletroespecíficas produzidas pela eletricidade industrial,
como técnica de tortura utilizada para obtenção de confissões, sempre em
regiões ou órgãos sensíveis, como os genitais, o reto e a boca; ou pelo uso de
uma cadeira com assento de zinco ou alumínio conhecida como “cadeira do
dragão”. Aquelas lesões são reconhecidas como “marca elétrica de Jellineck”, na
maioria das vezes macroscopicamente insignificante e podendo ter como
características a forma do condutor causador da lesão, tonalidade branco-amarelada,
forma circular, elítica ou estrelada, consistência endurecida, bordas altas,
leito deprimido, fixa, indolor, asséptica e de fácil cicatrização. Tudo faz
crer que esta lesão é acompanhada de um processo de desidratação, podendo se
apresentar nas seguintes configurações: estado poroso (inúmeros alvéolos
irregulares, juntos uns aos outros, com uma imagem de favo de mel), estado
anfractuoso (tem um aspecto parecido com o anterior, mas com alvéolos maiores e
tabiques rotos) e estado cavitário (em forma de cratera com apreciável
quantidade de tecido carbonizado). As lesões eletroespecíficas (marca elétrica
de Jellinek) não são muito diferentes das lesões produzidas em “sessões de
choque elétrico”, a não ser o fato destas últimas não apresentarem os depósitos
metálicos face os cuidados de não se deixar vestígios. Todas essas lesões são
de difíceis diagnóstico quanto à idade, podendo-se dizer apenas se são recentes
ou antigas, mesmo através de estudo histo-patológico;
o) Lesões produzidas em ambientes de baixíssima temperatura conhecidos
como “geladeira”, podendo ocorrer inclusive gangrena das extremidades ;
p) Lesões decorrentes de avitaminoses e desnutrição em face de omissão
de alimentos e por falta de cuidados adequados e de higiene corporal;
q) Lesões produzidas por insetos e roedores.
A.6.2 – Processos patológicos naturais. Embora aparentemente de
interesse mais anatomopatológico, esses achados podem oferecer respostas para o
diagnóstico de causa mortis e de algumas circunstâncias, como também ajudar a
compreender algumas manifestações quando do exame interno do cadáver, como:
desnutrição, edemas, escaras de decúbito, conjuntivas ictéricas, processos
infecciosos agudos ou crônicos, lesões dos órgãos genitais, entre tantos.
B. Exame interno do cadáver.
Alguns chamam essa fase da perícia como a necropsia propriamente dita, mas já
dissemos que há ocasiões ou tipos de morte onde o exame externo tem uma
contribuição muito valiosa.
Aqui também o exame deve ser metódico, sistemático, sem pressa, com o
registro de todos os achados e, como se opera em cavidade, deve-se trabalhar à
luz do dia, sem as inconveniências da luz artificial. Todos os segmentos e
cavidades devem ser explorados: cabeça, pescoço, tórax e abdome, coluna e
extremidades, com destaque em alguns casos para os genitais.
As lesões internas mais comuns em casos de morte por tortura são:
B.1 – lesões cranianas: a) hematomas sub ou extradural não são raros em
sevícias com traumatismos de cabeça; b) hemorragias meningeas; c) meningite;
lesões encefálicas; micro-hemorragia cerebral.
B.2 – Lesões cervicais: a) infiltração hemorrágica da tela subcutânea e
da musculatura; b) lesões internas e externas dos vasos do pescoço; c) fraturas
do osso hióide, da traquéia e das cartilagens tireóide e cricóide; d) lesões
crônicas da laringe e da traquéia por tentativas de esganadura e
estrangulamento.
B.3 – lesões tóraco-abdominais: a) hemo e pneumotórax traumático; b)
manifestações de afogamento como presença de líquido na árvore respiratória,
nos pulmões, no estômago e primeira porção do duodeno, além dos sinais
clássicos como enfisema aquoso subpleural e as manchas de Paltauf, em face de
imersão do indivíduo algemado em tanques de água em processo chamado “banho
chinês” ou introdução de tubos de borracha na boca com jato de água de pressão,
devendo-se valorizar o conteúdo do estômago e dos intestinos; c) manifestações
de asfixia, micro-hemorragias do assoalho do 3º e 4º ventrículo, edema dos
pulmões, cavidades cardíacas distendidas e cheias de sangue, presença de lesões
eletroespecíficas e ausência de outras lesões, falam em favor de morte por
eletricidade industrial, mesmo que se diga não existir um quadro
anatomopatológico típico de morte por eletricidade; d) roturas do fígado, do
baço, do pâncreas, dos rins, estômago e dos intestinos; e) desgarramento dos
ligamentos suspensores do fígado; f) hemo e pneumoperitônio; g) rotura do
mesentério.
B.4 – lesões raquimedulares: a) fraturas e luxações de vértebras; b)
lesões medulares.
C. Respostas aos quesitos: No
que diz respeito ao quesito “Se a morte foi produzida por meio de veneno, fogo,
explosivo, asfixia, tortura ou por outro meio insidioso ou cruel” deve, nos
casos positivos, ser respondido de forma especificada, ficando na descrição do
laudo bem claras as razões de tal confirmação.
Nos casos de tortura a base da informação é um dos tipos de lesões
descritas acima, seja nos seus resultados, seja na sua forma de produzi-las. O
meio insidioso seria aquele que se
manifesta pela forma de dissimulação capaz de encobrir a prática criminosa e
impedir a defesa da vítima. O uso do veneno é um exemplo desta ação
dissimulada. E meio cruel aquele em que o autor procura muito mais provocar o
sofrimento físico ou psíquico da vítima do que propriamente sua morte. Existe
na crueldade um ritual, um cronograma articulado de procedimentos cujo fim é o
sofrimento. A normal penal aponta como manifestação da crueldade o emprego
deliberado do fogo, do explosivo, da asfixia e da tortura. Neste particular
devem-se considerar muito mais as regiões atingidas, as características e o
meio ou instrumento causador das lesões. A gravidade das lesões e sua multiplicidade, por si sós, não
caracterizam o meio cruel.
O
exame externo do cadáver tem um significado muito especial no diagnóstico pela
evidência das lesões sofridas nestas formas de morte violenta. Acrescente-se
ainda a contribuição bioquímica e histológica (docimásias hepáticas e
supra-renais).
Nos casos em que não estejam evidentes tais manifestações (tortura e meio insidioso
ou cruel), temos recomendado o cuidado de responder àquele quesito usando as
expressões “prejudicado” ou “sem elementos de convicção” ou “sem meios para afirmar ou negar”,
deixando-se para outros exames complementares, inclusive o laudo da perícia
criminalística, uma definição mais exata. Ainda mais quando a morte se deu de
forma suspeita ou duvidosa. Enfim, só responder afirmativamente quando se tiver
a plena certeza de que há lesões tipicamente produzidas por aqueles meios.
Mesmo numa morte natural, melhor chamada de “morte por precedentes
patológicos”, pode existir tortura ou
meio insidioso ou cruel. Basta deixar que o indivíduo agonize sem assistência.
Informações Sobre o Autor
Genival Veloso de Franca
Professor Convidado dos Cursos de Graduação e Pós-graduação do Instituto de Medicina Legal de Coimbra (Portugal).
Membro Titular da Academia Internacional de Medicina Legal e Medicina Social.
Trabalho publicado em SAÚDE, ÉTICA & JUSTIÇA, 1 (2):17-28, 1998.