A pessoa jurídica como autora de crimes

Em dois momentos, a Constituição de 1988, rompendo com a tradição da doutrina penal, considera a pessoa jurídica, sem distinguir se pública ou privada, como ente capaz de cometer crime. A primeira previsão está situada no capítulo que trata dos princípios gerais da atividade econômica; a segunda, no que disciplina o meio ambiente. Quer dizer, no concernente às relações econômicas ou de natureza ambiental a Lei Maior entendeu que pode haver conduta da pessoa jurídica a se tipificar como crime.

Na primeira situação, diz a Constituição: “A  lei, sem prejuízo da responsabilidade individual dos dirigentes da pessoa jurídica, estabelecerá a responsabilidade desta, sujeitando-a às punições compatíveis com a sua natureza nos atos praticados contra a ordem econômica e financeira e contra a economia popular.” (art. 173, § 5º). Por sua vez, na outra hipótese, preceitua: “as condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados.” (art. 225, § 3º).

Historicamente, o princípio Societas delinquire non potesta, que ainda é adotado no ordenamento jurídico da maioria das nações, foi quebrado após o fim da II Guerra  Mundial, quando o Tribunal Militar de Nuremberg admitiu a responsabilidade criminal de corporações ou agrupamentos nazistas, como, por exemplo, a Gestapo, ao condená-la pelos denominados crimes de guerra contra a humanidade.

O Brasil, ao lado da França, Portugal e Espanha, foram pioneiros em admitir a responsabilidade penal da pessoa jurídica. Pelo Código Penal Francês de 1994, que substituiu o ultrapassado de 1810, à exceção do Estado, o ente jurídico responde penalmente por vários tipos de delitos. Os Códigos Penais de Portugal, reformado em 1995, e o da Espanha, revisto em 1996, embora prevejam a possibilidade de cometimentos de crimes pela pessoa jurídica de direito privado, não apresentam em seus textos disposições objetivas a respeito dos tipos penais a ela atribuídos.

Mesmo antes da Constituição de 1988, na legislação brasileira, mas não no Código Penal, há, em diversas passagens, a referência ao cometimento de crime pela pessoa jurídica, notadamente se essa for de direito privado. A propósito, leia-se o contido no art. 1º da Lei 7.492/86, o art. 14 c/c o parágrafo único do art. 18 da Lei 6.938/81, todos recepcionados pela nova Carta Magna, e após a edição desta, têm-se, agora,  as disposições contidas nos arts. 1º, 2º e 4º da Lei 8.137/90, no art. 15 da Lei 8.884/94 e, de forma mais clara e ampla, o que estabelece o art. 3º da 9.605/98 – a Lei de Crimes Ambientais -, ao prescrever que “As pessoas jurídicas serão responsabilizadas administrativa, civil e penalmente, conforme o disposto nesta Lei, nos casos em que a infração seja cometida por decisão de seu representante legal ou contratual, ou de seu órgão colegiado, no interesse ou benefício de sua entidade.” Diz ainda, no parágrafo único deste artigo que “A responsabilidade das pessoas jurídicas não exclui a das pessoas físicas, autoras, co-autoras ou partícipes do mesmo fato.” E indo além,  adotando a teoria contemporânea da desconsideração da pessoa jurídica, preceitua em seu art. 4º, que essa personalidade poderá ser desprezada, caso ela seja obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados à qualidade de vida do meio-ambiente.

Diz a Lei 8.884, de 11.06.94, ao dispor  sobre a prevenção e a repressão às infrações contra a ordem econômica, em seu art. 15, que ela se aplica às pessoas físicas ou jurídicas de direito público ou privado, bem como a quaisquer associações de entidades ou pessoas, constituídas de fato ou de direito, ainda que temporariamente, com ou sem personalidade jurídica, mesmo que exerçam atividade sob regime de monopólio legal.

Em resumo, a legislação brasileira e de alguns países europeus, para certas situações, vêm incorporando ao direito penal, em contraponto à velha teoria da culpabilidade pessoal, a responsabilidade penal da pessoa jurídica, mesmo que agregada ao poder público, mormente nos casos relativos aos delitos contra o meio-ambiente, às relações de consumo, à ordem financeira e tributária, objetivando coibir a impunidade que pode decorrer de sua complexidade organizacional.

A lei é filha do tempo e o seu fim é o Bem Comum. E no sentir de Isidoro, em suas Etimologias, “Não é em vista de um interesse privado, mas da comum utilidade dos cidadãos que uma lei deve ser escrita”. Hoje, num mundo globalizado, crivado pelo materialismo consumista, pela força econômica e financeira de grupos econômicos, as pessoas humanas vão, infelizmente, se tornando inferiorizadas em relação às pessoas jurídicas, notadamente as de cunho multinacional, que, por vezes, ensejam delitos complexos, acobertados na fraude e na ânsia do lucro desmedido, sem falar nos crimes cometidos contra a Natureza, em detrimento dos direitos elementares dos cidadãos e dos interesses mais legítimos da sociedade.

É claro que não se vai colocar num presídio uma pessoa jurídica, até mesmo porque segundo Savigny, esta não passa de uma ficção criada pelo sistema legal. Contudo, não resta dúvida que ela é um pólo em torno do qual se estabelece, hoje, a maioria das relações jurídicas. Porém, como se sabe, ao lado da velha pena da restrição da liberdade, o Direito Penal moderno criou outras formas de penalização, como, à guisa de exemplificação, a multa, a dissolução, a interdição, a suspensão da atividade, o confisco, a perda de benefícios fiscais, entre outros, plenamente em condições reais de serem aplicadas à pessoa jurídica.

Andou bem o legislador pátrio em atribuir responsabilidade penal  à pessoa jurídica, seja privada ou vinculada ao poder público, caso esta venha praticar condutas lesivas a direitos de interesse maior da sociedade, onde não basta tão-somente a responsabilização civil. Não se pode esquecer que, por vezes,  muitos indivíduos, sob o manto de uma pretendida impunidade e com suporte em teorias carcomidas pelo tempo, aglomeram-se para cometer crimes, notadamente os que dizem respeito às relações de consumo ou que atentam contra a ordem econômica, financeira ou tributária. Já os delitos de natureza ambiental são mais praticados em razão da própria atividade da entidade empresarial, que cada vez mais carece de maior reprimenda, a fim de que todos possam viver com sadia qualidade de vida, conforme preceitua o art. 225 da Constituição da República.

 


 

Informações Sobre o Autor

 

Miguel Sales

 

Promotor de Justiça em Pernambuco, professor de Direito

 


 

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