A polícia como protagonista midiática da banalização da violência

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Um antecedente histórico


O fascínio exercido pela violência sobre o imaginário popular é fenômeno há muito objeto de estudo da psicanálise. Desde os tempos imemoriais de sacrifícios humanos no altar de deuses pagãos, passando pelos dantescos espetáculos de morte e humilhação dos cristãos no coliseu da Roma antiga, até os dias atuais de programas televisivos, onde se explora e se divulga à saciedade a agressividade humana, a visão da selvageria tem despertado nas pessoas atavismos adormecidos no lado mais obscuro e primevo das mentes, e que dão origem a uma paradoxal relação entre o prazer e a violência.


Mídia e violência


À indústria cinematográfica não passou desapercebido este profundo e significativo interesse das massas, e o cinema tornou-se ferramenta de catarse coletiva que consagrou símbolos e personagens como, por exemplo, mais recentemente no país, a emblemática figura do Capitão Nascimento. Nesta esteira, programas os mais variados e em diversas emissoras, disputam  audiência na divulgação de crimes e criminosos. Sob o falacioso argumento de que a mídia limita-se a noticiar os fatos, ocultam-se objetivos financeiros e econômicos de meios de comunicação e programas interessados apenas e tão somente no lucro fácil e questionável advindo dos patrocinadores e dos espaços publicitários.


É notória a influência negativa sob a psique social exercitada pela repetição exaustiva de episódios criminosos na televisão, jornais e revistas, insensibilizando os telespectadores e buscando detalhes cada vez mais mórbidos na exclusividade do furo seguinte. A carência diária de fatos novos que superem a curiosidade da notícia anterior, torna a cobertura pseudojornalística um ambiente onde paixões, ódios e rancores são retroalimentados de forma impiedosa. Parte desta imprensa não se restringe a cumprir seu papel constitucional de noticiar e informar, mas o extrapola, ao transformar a tragédia em fenômeno de entretenimento hipnotizante.


A participação da Polícia na mídia


A Polícia, por sua vez, instituição fundamental no Sistema de Justiça, à qual incumbe parte importante do controle social formal na prevenção, repressão e investigação dos crimes, ocupa papel de destaque nos rituais midiáticos diários de banalização da violência, na medida em que, em sua maioria, os delitos, de uma forma ou de outra, tangenciam a rotina policial, seja em um primeiro momento no combate direto a suas causas e conseqüências, seja em um segundo momento, na sua investigação e desvendamento.


A imprensa, na busca legítima pela informação, sobretudo no denominado jornalismo investigativo, aproximou-se da polícia, interessada em dados cada vez mais disputados em uma competição desigual pelo mercado de comunicação. Todavia, com o tempo, estabeleceram-se relações espúrias de ambos os lados. A polícia descobriu no marketing institucional facilitado pela mídia, o gozo fácil da autopromoção. O conteúdo da notícia passou a ser elemento secundário na interface dialógica entre jornalista e policial, todos perseguindo vaidosamente o prestígio, o estrelato e a fama profissional conferidos pelo estrépito público da crônica criminal.


A figura do agente de segurança pública sempre simbolizou na sociedade, sob influência dos enlatados do cinema norte americano, a personificação do bem em luta perene contra o mal. O sucesso “hollywoodiano” de filmes e séries policiais reforçou, no inconsciente coletivo, a imagem lúdica do herói oprimido pelo sistema e que procura fazer justiça a qualquer preço, ainda que com as próprias mãos. Os limites entre ficção e realidade, para muitos, já não se encontram bem definidos, como demonstra a cobertura da recente operação policial no Rio de Janeiro (cujo título “Guerra ao tráfico”) e a sua indevida comparação com a película “Tropa de Elite”. Aumenta-se o risco de se justificar condutas criminosas nesta confusão de conceitos e de valores.


A promiscuidade destes policiais e jornalistas não contribui em absoluto para a informação isenta, imparcial e séria da população. Muitos profissionais da imprensa mantêm uma postura que beira o servilismo e a dependência na cobertura de operações e investigações policiais que, em tese, deveriam se desenvolver de forma sigilosa para o sucesso das diligências. Entretanto não é o que se vê, mas sim uma luta encarniçada e sem trincheiras pela exposição diante de holofotes, microfones e flashes.


Todo administrador público tem o dever de informar a população sobre sua atuação na busca incansável pela realização do interesse público, os policiais inclusive. Todavia, a publicidade do desempenho do trabalho policial deve se circunscrever aos aspectos de atividade fim da instituição e nos limites autorizados pelo ordenamento jurídico, e não como replicadora de enfoques dramatizados da barbárie.


Controle institucional


Em um contexto um tanto diverso na história recente do país, o trabalho da Polícia Federal, no combate aos crimes de colarinho branco em torno de políticos, autoridades de primeiro escalão do governo e empresários de nomeada, gerou uma discussão a respeito  do controle da denominada “espetacularização” das operações da PF. Em que pese à existência da defesa de interesses secundários menos confessáveis nas entrelinhas das críticas lançadas sobre os procedimentos investigativos do DPF em suas operações, pode-se extrair lição positiva da polêmica.


Os investigados, insatisfeitos com uma pretensa exposição indevida da imagem, perceberam que seria pouco inteligente retaliar a imprensa, o que lhes valeria a pecha de censores, e decidiram, com estratégia, voltar-se contra a atuação da Polícia Federal. Resultado por todos percebido, as operações da PF tiveram coarctado seu espaço televisivo. Aos delinqüentes e vítimas menos poderosos, por outro lado, selecionados nas periferias, não coube melhor sorte, e continuam sendo alvo de menosprezo e exibidos como troféus nas manchetes.


Chama a atenção e gera perplexidade a dimensão desta experiência de controle institucional sobre as relações entre a PF e a imprensa, porquanto não suscitou o mesmo debate e clamor por parte das autoridades quanto à preservação da imagem de vítimas e autores com envolvimento em “crimes menos nobres”, por assim dizer.


Dias melhores


Não se trata, por óbvio, de defesa pelo retorno da odiosa censura e, menos ainda, de se pretender tutelar ou encabrestar o desejo popular por notícias desta natureza, mas apenas de preocupação com a forma como esta informação é tratada pelos meios de comunicação de massa e pela polícia, do exercício abusivo do direito de informar.


Chegará o dia, com certeza, em que a consciência dos profissionais, tanto da imprensa quanto da polícia, lhes demonstrará que a maneira com que tem sido encarada a temática da violência nos meios de comunicação é deletéria para toda a sociedade, e não contribui para a pacificação e amadurecimento social, mas sim na perpetuação, quando não, no acirramento do comportamento agressivo. A divulgação de imagens deploráveis de homens, mulheres e até crianças com corpos retalhados, a entrevista cotidiana de “comentaristas na área de segurança pública” com discursos maniqueístas, o estímulo de operações policiais em favelas para ilustração de programas policiais, e outras tantas matérias veiculadas como de conteúdo jornalístico, representam apenas sensacionalismo barato e ultrajante.


Até o alvorecer deste dia, no entanto, quando os caprichos e idiossincrasias de muitos restarão por fim superados, deve-se, imperativamente, desenvolver filtros de controle sobre a polícia para impedir que a balbúrdia mascarada de liberdade de expressão continue a combalir nossa democracia e os valores por ela representados. Os fatos anti-sociais, notadamente aqueles de cores violentas e degradantes, devem ser divulgados com ética, bom senso e responsabilidade, acima de tudo prezando a dignidade humana.


 



Informações Sobre o Autor

Douglas Roberto Ribeiro de Magalhães Chegury

Delegado de Polícia Civil no DF


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