A posição hierárquica dos tratados internacionais e da lei complementar no ordenamento jurídico brasileiro

Resumo: O presente trabalho tem por objetivo fazer um estudo acerca da questão hierárquica dos tratados internacionais que no caso do direito brasileiro, é adotada a teoria monista nacionalista. Também é abordada a questão da polêmica acerca da superioridade hierárquica da lei complementar em relação à lei ordinária o que, no entendimento aqui consubstanciado é no sentido de acatar a tese da superioridade. Por fim, é analisado o assunto da posição hierárquica do CTN, que quando fora elaborado era uma lei ordinária e com o advento da Constituição Federal de 1988 fora recepcionado como lei complementar.


Palavras-chave: Tratados internacionais. Lei complementar.  Superioridade hierárquica. 


Abstract: This paper aims to do a study on the issue of hierarchical international treaties in the case of brazilian law is adopted the monist theory of nationalism. The paper also addresses the issue of controversy about the hierarchical superiority of the law is complementary to the common law which, on the understanding here is embodied in the sense of accepting the claim of superiority. Finally, we analyze the issue of the hierarchical position of the CTN, which was drawn out when a statute, and with the advent of the Constitution of 1988 was approved as a supplementary law.


Keywords: International treaties. Complementary law. Hierarchical superiority.


INTRODUÇÃO


A relação entre os tratados internacionais e o direito brasileiro, mesmo antes do advento da Constituição Federal de 1988 sempre foi uma questão de cunho tanto teórico quanto prático.


A partir do julgamento, no caso concreto, acerca da prisão civil do depositário infiel, o Supremo Tribunal Federal decidiu que tal forma civil de cerceamento da liberdade do indivíduo deveria ser abolida, observando, nesse diapasão, o que já disciplinava o Pacto de São José da Costa Rica. O direito brasileiro passou a ter três graus hierarquias no que tange aos tratados internacionais: lei ordinária, supralegalidade e status de emenda constitucional.


Questão de intensa celeuma é a discussão acerca da existência ou não de superioridade hierárquica entre a lei complementar e a lei ordinária. Os defensores da existência da superioridade, e aqui se inclui o nosso entendimento, o fazem considerando os aspectos formais. Os que negam se valem principalmente do argumento consistente no fato de que nem sempre uma lei ordinária retira seu fundamento de validade da lei complementar sendo que no final, apenas a Constituição Federal é que possuiria superioridade normativa.


Em que pesem os defensores da segunda corrente, data máxima vênia não lhes assiste razão. Isto porque o simples fato de uma norma não retirar se fundamento de validade em outra não exclui, no nosso entendimento a supremacia hierárquica.


Além disso, a Constituição não estabeleceu limites acerca da matéria que pode ser tratada em sede de lei complementar o que na nossa compreensão impede que o intérprete do direito possa conceber que as leis complementares possam tratar somente de matéria disposta de maneira prévia na CRFB. Esse fato também não retira a característica da superioridade hierárquica da lei complementar sobre a lei ordinária.


O Código Tributário Nacional, quando entrou em vigor em 1966, possuía o status de lei ordinária. Com a CRFB/88, foi recepcionada como lei complementar e, portanto superior hierarquicamente às leis ordinárias que tratam de matéria tributária.


1 O POSICIONAMENTO HIERÁRQUICO DOS TRATADOS INTERNACIONAIS NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO


Antes de adentrar no cerne da formação dos tratados internacionais, faz-se necessário a exposição de algumas considerações, no que tange a posição do direito internacional perante o direito interno. Isto devido o fato de que pela extrema importância do tema, este suscita calorosos debates.


No que pertine a relação entre os tratados internacionais e o ordenamento jurídico interno, existem duas teorias quais sejam: a teoria dualista e a monista. Para os que adotam a teoria dualista, “o direito internacional e o direito interno de cada Estado são sistemas rigorosamente independentes e distintos, de tal modo que a validade jurídica de uma norma interna não se condiciona à sua sintonia com a ordem internacional”. [1]


Quanto à concepção monista, esta se divide em monismo kelseniano, que em linhas gerais defende que um dia seja instaurada a ordem única e o monismo da linha nacionalista, que “dão relevo especial à soberania de cada Estado e à descentralização da sociedade internacional”,[2] sempre invocando a supremacia constitucional sobre toda e qualquer norma.


Cada uma dessas concepções é passível tanto de críticas quanto de aplausos. A posição que reputamos mais condizente é a que preconiza os direitos humanos como unidade indivisível e interdependente, pelo qual preponderam os valores atinentes à igualdade e a liberdade.  [3]


O art. 5º, §2º da CRFB/88 adotou o sistema da incorporação automática dos tratados internacionais de direitos humanos, de acordo com abalizada doutrina, o que reflete, nesse aspecto, a concepção monista. [4] Contudo, a tese da hierarquia dos tratados internacionais somente fora finalmente aceita pelo Supremo Tribunal Federal quando o Pretório Excelso se deparou com um Recurso Extraordinário envolvendo a prisão civil do depositário infiel. [5]


Essa decisão foi bastante inovadora, diante do fato de que a CRFB/88 dispunha de forma expressa duas maneiras em que caberia a prisão civil por dívidas: 1) em caso de o indivíduo ser devedor de pensão alimentícia e 2) no caso do depositário infiel. Nesse comento ouve a prevalência do Pacto de São José da Costa Rica, tendo em vista que dispunha nesse caso, sobre um direito humano fundamental basilar qual seja o de liberdade.


Importante não olvidar que o instrumento internacional que serviu de paradigma para o julgamento supramencionado trata-se do Pacto de São José da Costa Rica, que veda qualquer prisão civil por dívidas, salvo a do devedor de alimentos. Na ocasião, fora defendida uma hierarquia de supralegalidade para os tratados internacionais sobre direitos humanos aprovados pelo procedimento ordinário. [6]


Nesse comento, o efeito mais relevante desse julgado que cabe destacar, é que o ordenamento jurídico brasileiro passou a admitir somente uma forma de prisão civil por dívidas qual seja a do devedor de pensão alimentícia.


Sob esse prisma, os tratados internacionais no ordenamento jurídico brasileiro passaram a ter três hierarquias que cumprem ser diferenciadas: a) os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos, que forem aprovados em ambas as Casas do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais. [7] Já os tratados internacionais de direitos humanos aprovados pelo procedimento ordinário terão o status de supralegal. [8] No que tange aos tratados internacionais que não versarem sobre direitos humanos serão equivalentes às leis ordinárias.


Uma conseqüência de ordem prática e de importância salutar consiste no fato de que os tratados internacionais sobre direitos humanos que tenham sido aprovados por esse quórum dificultoso, servirão de parâmetro de controle de constitucionalidade. Isso significa que, caso uma lei ordinária divirja desse tratado internacional a mesma será reputada como inconstitucional.


Mas a grande questão que se mostra de extrema importância consiste no seguinte questionamento: caso um tratado internacional que verse sobre direitos humanos seja colidente com uma cláusula pétrea da Constituição, de qual norma deverá haver prevalência?


Uma resposta a esse questionamento reside na análise acerca da possibilidade ou não da tangibilidade do dispositivo. No entendimento aqui consubstanciado, caso a norma estabelecida no tratado internacional seja tendente a abolir uma cláusula pétrea, tal diploma internacional não deverá jamais prevalecer.


Contudo, se a norma constante no tratado seja no sentido de ampliar a proteção a um direito individual, deve prevalecer a mesma, em razão do princípio da máxima efetividade, ou princípio da interpretação efetiva ou da eficiência, significando que aos direitos fundamentais deve ser conferida a mais ampla efetividade, para que haja a realização concreta de sua função social. [9]


Os direitos fundamentais, devido a sua alta eficácia axiológica, devem ser aplicados no caso concreto, de maneira a que os objetivos almejados na Magna Carta sejam por fim atingidos de forma plena.


A legitimidade material da Constituição não consiste somente na constituição de órgãos; exige também uma fundamentação dos atos dos poderes públicos. Tal fundamentação é dada pelo rol de direitos e garantias fundamentais, sempre observando o princípio da concordância prática. [10]


Decerto, que a norma constitucional em apreço indica que a Constituição brasileira ao elencar os direitos e garantias fundamentais não o fez de forma taxativa. Ao contrário, a própria Carta Magna admitiu expressamente a coexistência com outros direitos decorrentes do regime e dos princípios adotados por ela. [11]


Sobre esse prisma, cumpre destacar a ampliação do que sejam consideradas normas materialmente constitucionais, diante do fato de que, tradicionalmente o que sempre foi considerado materialmente constitucional foi à divisão de poderes e o rol de direitos e garantias fundamentais.


Trata-se, nesse prisma, de um tema bastante polêmico no direito constitucional a aferição do que seja formalmente ou materialmente constitucional. Valores que antes eram colocados em segundo plano podem vir a fazer parte da Carta Magna, pois a evolução da sociedade bem como os anseios desta varia no tempo e no espaço, refletindo de maneira decisiva no texto constitucional. [12]


Essa mudança do paradigma constitucional é decorrente da cultura e do momento histórico e político de um país. Isso só demonstra a tese de que o direito é parte do emaranhado social, que deve se adequar aos anseios da sociedade, muito embora, ele próprio também seja fator de mudança social.


1.1 A hierarquia dos tratados internacionais em matéria tributária à luz da decisão do Supremo Tribunal Federal: RE n. 229.096-0/2007 Rio Grande do Sul


Quando a questão da hierarquia dos tratados internacionais parecia finalmente estar pacificada, eis que um Recurso Extraordinário (RE n. 229.096-0/2007 Rio Grande do Sul) faz com que seja retomada a discussão acerca da posição hierárquica dos tratados internacionais. [13]


Nesse recurso extraordinário, o STF em uma decisão inovadora, reconheceu que não caracteriza hipótese de isenção heterônoma, a isenção de tributo estadual prevista em tratado internacional firmado pela República Federativa do Brasil. Dessa importante decisão, cabe o seguinte questionamento: ainda se pode dizer que o tratado tem hierarquia de lei ordinária à luz da decisão supra?


Um dos argumentos utilizados, foi o fato de que o Chefe do Poder Executivo ao firmar tratados, estaria exercendo o papel de chefe de Estado e não de chefe do Poder Executivo, o que descaracterizaria a hipótese de isenção heterônoma, que por sua vez é vedada de maneira expressa pela CRFB/88 no art. 151, inciso III, que veda à União “instituir isenções de tributos da competência dos Estados, Do Distrito Federal ou dos Municípios”. [14]


De fato, a proibição contida no art. 151, inc. III da Carta Magna diz respeito apenas ao Estado brasileiro como ente interno: União, Estados, Distrito Federal e Municípios. Não atinge, portanto, a República Federativa do Brasil, ou seja, o ente externo, que é dotado de soberania.


Ainda, sob esse aspecto, o artigo 98 do Código Tributário Nacional afirma expressamente a superioridade hierárquica dos tratados internacionais, não estabelecendo ressalvas no tocante ao conteúdo do tratado. Disso de depreende que pouco importa o conteúdo do tratado em matéria tributária. Ainda que não se trate de tratados sobre direitos humanos, os tratados internacionais que versem sobre matéria tributária sempre serão superiores hierarquicamente à lei ordinária. [15]


Sob esse enfoque, não poderia, por exemplo, uma lei ordinária revogar um tratado internacional que versasse sobre matéria tributária, devido a superioridade hierárquica já por nós abordada.


A conclusão que se chega é a de que, em se tratando de um tratado internacional que disponha sobre isenção tributária, não há que se dizer que o tratado internacional está no perfil de lei ordinária e sim no status da supralegalidade.


1.2 Processo de formação dos tratados internacionais


Feitas essas considerações iniciais, passemos nesse momento para a análise do processo de formação dos tratados propriamente dito, conceituando-se tratado como “todo acordo formal concluído entre pessoas jurídicas de direito internacional público, e destinado a produzir efeitos jurídicos”. [16]


A partir dessa definição, cabe fazer uma complementação, a título de esclarecimento. A produção de efeitos jurídicos, diz respeito aos efeitos do tratado no plano do direito interno dos países signatários do tratado.


Inicialmente, faz-se mister esclarecer que qualquer Estado que seja detentor de soberania tem capacidade para a celebração de tratados internacionais. Trata-se da denominada competência negocial. [17]


Logo, se pode afirmar que todo Estado que não é soberano, não possui a competência negocial para a celebração de tratados. No caso do Brasil, quem possui soberania não é um ente específico da Federação como os Estados, os Municípios, o Distrito Federal e a União e sim a República Federativa do Brasil. Aqueles são detentores de autonomia.


Além da negociação, mais dois atos compõe o início da formação dos tratados: a conclusão e a assinatura do tratado. Tais atos são privativos do Chefe do Poder Executivo Federal, ou seja, do Presidente da República, conforme disposto no art. 84, inciso VIII da Constituição Federal de 1988:  “Art. 84. Compete privativamente ao Presidente da República: VIII-celebrar tratados, convenções e atos internacionais, sujeitos a referendo do Congresso Nacional”. [18]


Desse dispositivo se depreende que a competência para a celebração de tratados internacionais é privativa do Presidente da República. Sobre competência privativa insta fazer alguns esclarecimentos: não se pode confundir competência privativa com competência exclusiva. Privativa é a competência que pode ser delegada a outrem. Já no caso da competência exclusiva, não pode haver delegação.


No tocante ao ato de assinatura do tratado, insta esclarecer que esse ato, si só não produz efeitos jurídicos vinculantes. Trata-se de um mero aceite do Estado no que pertine à forma e conteúdo definitivo do tratado. [19]


Essa assertiva reforça a prevalência da soberania do Estado no tocante ao ato de incorporação  do tratado no direito interno do Estado. Até porque o ordenamento jurídico é a expressão máxima da soberania de um país.


Após a assinatura do tratado pelo Presidente da República, o próximo passo é a apreciação e aprovação, que são de competência do Poder Legislativo. [20]


A próxima etapa é ratificação, que consiste no “ato unilateral com que a pessoa jurídica de direito internacional, signatária de um tratado, exprime definitivamente, no plano internacional, sua vontade de obrigar-se”. [21]


Portanto, somente através da ratificação do tratado é que um Estado se obriga perante o outro no plano internacional. Porém, mesmo o Estado tendo se obrigado no plano internacional por meio da ratificação, não se pode obrigá-lo efetivamente a cumprir o tratado. Contudo, pode o país que se sentiu prejudicado, fazer uso das sanções comerciais.


Nesse comento, cabe pontuar as características da ratificação dos tratados internacionais, quais sejam: a) competência- a cada Estado soberano cumpri determinar a competência de seus órgãos para a ratificação de tratados; b) discricionariedade, que decorre da soberania do Estado e por fim a irretratabilidade, ainda que o acordo ainda não tenha entrado em vigor. [22]


No que pertine a irretratabilidade, cabe fazer uma observação. É que, caso um determinado Estado que tenha ratificado um tratado internacional descumpra os termos do mesmo, existem determinados mecanismos de coerção de que se valem os países signatários como, por exemplo, a sanção consistente em majorar exacerbadamente o imposto de importação e o de exportação dificultando, nessa monta, a entrada de um determinado produto em um país que não cumpriu ao acordado nos termos do tratado internacional.


2 A POSIÇÃO HIERÁRQUICA DA LEI COMPLEMENTAR E DO CÓDIGO TRIBUTÁRIO NACIONAL


A lei complementar pode ser conceituada como um “tertium genus de leis, que não ostentam a rigidez dos preceitos constitucionais, nem tampouco devem comportar a revogação (perda da vigência) por força de qualquer lei ordinária superveniente”. [23]


Contudo, necessário não olvidar que essa definição supracitada é datada do ano de 1962, sendo que a essa época a lei complementar ainda não existia de maneira autônoma. Porém, isso não retira o caráter de atualidade do citado conceito na compreensão aqui perfilhada.


Dessa definição se pode constatar que as leis complementares estão em uma zona intermediária entre as normas preconizadas pela Constituição Federal e as leis ordinárias. Importante esclarecer que como o próprio nome já supõe, as leis complementares são um complemento das normas constitucionais.


A lei complementar surgiu em razão da necessidade de regulação específica de determinadas matérias, sob pena de que fossem impossibilitadas alterações posteriores. Entretanto não poderia tais matérias a um só tempo, comportar diversas modificações através de legislação ordinária.


Antes de adentrar no tema da posição hierárquica da lei complementar, importante frisar o escalonamento das normas no âmbito do ordenamento jurídico brasileiro.


Sob esse aspecto, Kelsen leciona que “a ordem jurídica não é um sistema de normas jurídicas ordenadas no mesmo plano, situadas umas ao lado das outras, mas é uma construção escalonada de diferentes camadas ou níveis de normas jurídicas”. [24]


Em última análise, toda norma de um ordenamento que tenha uma Constituição rígida, como no caso brasileiro, deve obediência à Constituição Federal, diante do fato de que a validade das normas infraconstitucionais está sujeita a observância do princípio da compatibilidade vertical. [25]


Não cabe, nesse breve ensaio, tecer minúcias acerca do escalonamento das normas no ordenamento jurídico de uma maneira genérica. Passemos agora a tratar da posição hierárquica da lei complementar de maneira específica.


Em primeiro lugar, tratasse de um tema que de há muito tempo vem provocando intensas celeumas doutrinárias, tendo em vista que existem fortes argumentos tanto no tocante a tese que nega a superioridade hierárquica da lei complementar, como na que afirma. Trataremos neste trabalho das duas.


Um dos argumentos utilizados pela doutrina que nega a superioridade hierárquica da lei complementar, reside no fato de que nem sempre as leis ordinárias retiram seu fundamento de validade na lei complementar. Entretanto, conforme será demonstrado, o fato de uma norma não retirar seu fundamento de validade na outra não indica que não haja concretamente hierarquia. “É diante de uma situação fática de confronto que a sua superioridade hierárquica se revelará, como todo e qualquer fenômeno jurídico, já que esta é uma realidade em movimento, compondo uma estrutura dinâmica chamada de sistema jurídico”. [26]


Decerto, somente no caso concreto é que pode ser auferido se ocorre ou não a superioridade hierárquica, tendo em vista que tal conceito não é dinâmico, mas é reflexo da realidade sócio-jurídica. A aferição da hierarquia é uma tarefa essencial dos aplicadores do direito, com o desiderato da resolução de dilemas que encontram no campo da lógica. [27]


Um dos principais doutrinadores que tratam desse assunto, e que modificou o entendimento no que tange a superioridade hierárquica da lei complementar é Geraldo Ataliba. Segundo ele “a lei complementar fora de seu campo específico-que é aquele expressamente estabelecido pelo constituinte– nada mais é que lei ordinária.” [28]


Este entendimento, ao que nos parece, com a devida vênia, não merece prosperar. Isto porque além de desprestigiar a lei complementar, reduz a esfera de supremacia dessa espécie normativa à lei ordinária. [29]


Isto pode ser justificado devido o fato de que o legislador constituinte não estabeleceu limites acerca do conteúdo que pode ser tratado por meio de lei complementar. Sendo assim, não há que se sustentar o argumento de que pelo fato de eventualmente uma lei complementar tratar de matéria estranha ao texto constitucional ela seja despida de superioridade hierárquica.


Entretanto, o doutrinador supramencionado ainda não negava a hierarquia da lei complementar, tendo em vista que o mesmo preconizava que “a hierarquia ideal corresponde a esta gradação. A principal consequência jurídica desta circunstância reside na superioridade da lei complementar sobre a ordinária”. [30]


Importante observar, nesse prisma, que o Supremo Tribunal Federal sempre negou que houvesse qualquer espécie de hierarquia normativa entre as espécies normativas em comento. E o faz principalmente invocando o fato de que nem sempre a lei ordinária retira seu fundamento de validade na lei complementar. Com a devida vênia, não merece guarida tal concepção da Suprema Corte, pois a título de comparação, o regimento interno de uma empresa nem sempre retira seu fundamento em uma lei ordinária o que não descaracteriza a superioridade dessa espécie normativa em relação aquela.


Importante ponderar que a autonomia normativa e a superioridade hierárquica da lei complementar não existem pelo simples fato de a mesma estar inserida no art. 59 da CRFB, logo abaixo das emendas constitucionais. [31]


A título de comparação, na CRFB DE 1967/69, o art. 46, que dispunha das espécies normativas, era o correspondente do atual art. 59 da CRFB/88. E não se podia naquela, tal qual nesta, concluir-se pela hierarquia unicamente pelo critério topológico. [32]


Sob esse aspecto foi extremamente feliz o posicionamento supra. Isto porque, a aferição de hierarquia de uma espécie normativa, não pode ser conduzida dessa maneira tão simplória. A aferição da hierarquia se dá com o trinômio autonomia legislativa-quórum qualificado para aprovação e possibilidade de revogação da lei ordinária pela lei complementar.


Nessa esteira de raciocínio, faz-se necessário que se estabeleça a distinção entre lei ordinária e lei complementar. A principal diferença reside basicamente nos aspectos formais, ou seja, no fato de que a lei complementar exige quorum de maioria absoluta para sua aprovação, ao contrário da lei ordinária, que exige o quorum de maioria simples. Essa representa a diferença formal entre essas duas espécies normativas.


Contudo, há também uma diferença de cunho material. Tal diferença reside no fato de que as leis complementares dizem respeito a certas matérias dispostas de maneira prévia na Constituição via de regra. Disso se aduz que as leis ordinárias têm por objetos matérias de caráter residual. Entretanto nada impede que as leis complementares disciplinem matérias estranhas ao texto constitucional.


Acerca dessa assertiva, o seguinte questionamento poderá vir a surgir: É possível editar lei complementar sobre matéria cuja previsão originária não dispunha sobre essa possibilidade? Entendemos que sim. Isto porque, se o legislador constituinte não estabeleceu uma limitação acerca do que pode ser tratado em sede de lei complementar, não caberia uma interpretação no sentido de restringir.


Todavia, em que pese os diversos entendimentos em sentido contrário, o único elemento a ser considerado, no que toca à aferição da hierarquia de uma norma em relação à outra é somente o aspecto formal, não importando o aspecto material. [33]


Isto porque, conforme foi aqui asseverado, não importa o fato de a matéria tratada na lei complementar não esteja disciplinada previamente na CRFB. Isto não retira o fato de esta espécie normativa ser superior hierarquicamente às leis ordinárias.


Como a Constituição Federal não dispôs de forma expressa quais as matérias que poderiam ser tratadas por meio de lei complementar, aplicam-se as disposições que dizem respeito à lei ordinária. Todavia, não se pode olvidar que a própria CRFB dispôs expressamente sobre algumas matérias que somente podem ser tratadas através de lei complementar (à guiza de exemplo, o art. 169 da CRFB/88). [34]


Se o próprio legislador constituinte não estabeleceu qualquer limitação no que tange ao conteúdo das leis complementares, não cabe ao intérprete do direito estabelecer tais limites.


Uma característica da lei complementar que reforça a tese de sua superioridade hierárquica reside no fato de que uma lei complementar não pode ser revogada por uma lei ordinária, mas apenas por outra lei complementar. Em contrapartida, uma lei complementar possui a prerrogativa de revogar uma lei ordinária.


2.1 Lei Complementar e autonomia normativa: corolário do princípio da segurança jurídica


Antes de analisar a questão da autonomia normativa da lei complementar, necessário que se faça alguns comentários pertinentes acerca do princípio da segurança jurídica, para que se possa melhor compreender como a característica da autonomia normativa da lei complementar é decorrência do aludido princípio.


Inicialmente, insta frisar que o princípio da segurança jurídica possui estreita relação com os direitos fundamentais e com os princípios constitucionais do direito adquirido, do devido processo legal dentre outros.


O princípio da segurança jurídica decorre do próprio valor justiça, tendo em vista que “se a lei é garantia de estabilidade das relações jurídicas, a segurança se destina a estas e às pessoas em relação; é um conceito objetivo, a priori, conceito finalístico da lei”. [35]


Feitas essas ponderações iniciais, façamos a correlação entre o princípio da segurança jurídica e a autonomia normativa da lei complementar.


Os elementos que caracterizam a ideia de um direito coerente com a realidade social vivenciada em uma determinada época histórica são “a justiça e a segurança. São relativos não somente a ideia do fim, mas também a própria determinação da hierarquia ou das relações de primazia a serem estabelecidas entre esses três elementos”. [36] Sob esse aspecto leciona com  percuciência ATALIBA, para quem “o direito é por excelência, acima de tudo, instrumento de segurança”. [37]


De fato, na nova ordem constitucional em que se vive, não basta que os direitos fundamentais estejam disciplinados de maneira expressa, até porque desde a Carta Magna Imperial de 1824, tais direitos já haviam sido disciplinados. O que se almeja hodiernamente é a efetivação de tais direitos.


Via de regra, os ordenamentos jurídicos não disciplinam, de maneira expressa, o princípio da segurança jurídica. Entretanto, a esse respeito, a Lei nº 9.868/99, que trata da ação direta de inconstitucionalidade (ADI) e da ação declaratória de constitucionalidade (ADC), dispôs de maneira expressa em seu art. 27, inclusive invocando motivos pautados no interesse social e na segurança jurídica.  [38]


Sob esse enfoque, o princípio da segurança jurídica serve de parâmetro para o controle de constitucionalidade brasileiro, ou seja, ao se aferir se uma norma está conforme ou desconforme com a CRFB, deve ser observado o princípio da segurança jurídica.


Nesse comento, a tese que defende que a lei complementar possa vir a ser revogada ou modificada por outra lei que não possua a mesma forma (como por exemplo, a lei ordinária), representa um afronta a essência da Constituição Federal, em virtude de uma hermenêutica que prima facie deve obedecer a uma interpretação sistemática do direito, sempre observando aos preceitos da Lei Maior. Daí a relação que se estabelece entre a autonomia normativa da lei complementar e o princípio da segurança jurídica.


2.2 Nosso posicionamento acerca da existência ou não de superioridade hierárquica entre a lei complementar e a lei ordinária


Diante do foi exposto, o entendimento aqui perfilhado será no sentido de acatar a tese doutrinária que pugna a existência de uma hierarquia normativa entre a lei complementar e a lei ordinária. Os aspectos formais são os únicos que devem servir de paradigma para a constatação desse entendimento, aspectos esses que estão consubstanciados no trinômio quórum qualificado para aprovação, possibilidade de revogação da lei ordinária pela lei complementar, mas não o contrário e a autonomia legislativa da lei complementar.


2.3 A posição Hierárquica do Código Tributário Nacional


Questão igualmente controvertida, diz respeito à posição hierárquica do CTN. As controvérsias, nesse comento, residem no fato de que, se tem observado o crescimento em demasia de práticas arbitrárias em matéria tributária.


Entretanto, é imperativo não olvidar que tais práticas não são um fato novo, muito pelo contrário. Sempre existiram, quer seja em maior ou menor grau de intensidade. O que aconteceu foi a ampliação dos atores sociais que procedem com ditas práticas que antes eram adstritas somente aos governantes.  [39]


Á guiza de exemplo, pode ser elencado o uso indiscriminado de medidas provisórias em matéria tributária, que de maneira alguma cumprem os requisitos constitucionais estabelecidos pela Carta Magna quais sejam, a relevância e a urgência.


Nesse contexto, a discussão acerca do tema ganha contornos de extrema importância. Isto porque, a CRFB possui inúmeros dispositivos concernentes à tributação, sendo uma clara manifestação de garantia do contribuinte contra esses arbítrios. [40]


Importante não olvidar que o Código Tributário Nacional, que é de 1966, foi recepcionado pela CRFB/88 com status de lei complementar, embora, formalmente, seja uma lei ordinária, razão pelo qual, pelos mesmos motivos expostos no que tange à hierarquia da lei complementar em geral, do mesmo modo há essa hierarquia no âmbito do CTN.


Um dispositivo do CTN que reforça a superioridade deste em relação à lei ordinária, é o já mencionado art. 98, que expressamente estabeleceu a superioridade hierárquica dos tratados internacionais em matéria tributária, independentemente do conteúdo do tratado, ainda que não trate sobre direitos humanos.


CONSIDERAÇÕES FINAIS


Em conclusão, se pôde observar que a expansão dos tratados internacionais ocasionou uma mudança de paradigma do Supremo Tribunal Federal no que tange a utilização desses instrumentos normativos internacionais.


Á partir do julgamento de um caso concreto de prisão civil de depositário infiel, o direito brasileiro passou a ter três graus hierárquicos no que pertine aos tratados internacionais: lei ordinária, supralegalidade e no caso de tratados sobre direitos humanos que tenham observado aos requisitos formais terão o status de emendas constitucionais.


No tocante à questão da hierarquia entre as leis complementares e as leis ordinárias, acatamos a tese que sustenta que existe hierarquia entre as primeiras sobre as últimas devido a três elementos básicos: autonomia normativa da lei complementar, quórum qualificado para aprovação e possibilidade de revogação de uma lei complementar sobre uma lei ordinária.


Também concluímos que não há que se limitar o que pode vir a ser matéria de lei complementar. Isto porque, se o legislador constituinte não dispôs sobre qualquer limite, nem abriu margem para qualquer interpretação nesse sentido, não há que se considerar que as leis complementares somente possam tratar de conteúdo previsto de maneira prévia no texto constitucional.


E por fim, reputamos que o Código Tributário Nacional, que quando entrou em vigor possuía o status de Lei ordinária e com o advento da CRFB/88 foi recepcionado como lei complementar e, portanto prevalece sobre a legislação ordinária.


 


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Notas:

[1] REZEK, Francisco. Direito internacional público: curso elementar.  10. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 4.

[2] Ibidem, p. 5.

[3] PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 11. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 13.

[4] STF- ADI 1.480/DF, rel. Min. Celso de Mello (08.08.2001): “Os tratados internacionais, uma vez regularmente incorporados ao direito interno, situam-se, no sistema jurídico brasileiro, nos mesmos planos de validade, de eficácia e de autoridade em que se posicionam as leis ordinárias, havendo, em consequencia, entre estas e os atos de direito internacional público, mera relação de paridade normativa. Precedentes […] No sistema jurídico brasileiro, os tratados ou convenções internacionais estão hierarquicamente subordinados à autoridade normativa da Constituição da República. Em consequencia, nenhum valor jurídico terão os tratados internacionais, que, incorporados ao sistema de direito positivo interno, transgredirem, formal ou materialmente, o texto da Carta Política’’.

[5] STF- RE 466.343/SP, rel. Min. Cezar Peluso (22.11.2006). A partir do julgamento deste RE, a Suprema Corte revogou a Súmula n. 619, que disciplinava que “a prisão do depositário judicial poderia ser decretada no próprio processo em que se constituiu o encargo, independentemente da propositura da ação de depósito”.

[6] O status supralegal dos tratados internacionais sobre direitos humanos significa que são inaplicáveis a legislação infraconstitucional com ele em conflito, ainda que anterior a ratificação.

[7] BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Promulgada em 5/10/1988, art. 5.º, § 3º.

[8] CRFB/88, art. 47.

[9] BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição: fundamentos de uma dogmática transformadora. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 220.

[10] CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional. 6. ed. ver. Coimbra: Livraria Almedina, 1993, p. 74.

[11] FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Comentários à Constituição brasileira de 1988. v. 1. São Paulo: Saraiva, 1990, p. 88.

[12] CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional, p. 68.

[13] Supremo Tribunal Federal. Recurso extraordinário nº 229.096-0 Rio Grande do Sul. Relator originário: Min. Ilmar Galvão. Relatora para o acórdão: Min. Cármem Lúcia. Recorrente: Central Riograndense de Agroinsumos LTDA. Recorrido: Estado do Rio Grande do Sul. EMENTA: DIREITO TRIBUTÁRIO. RECEPÇÃO PELA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA DE 1988 DO ACORDO GERAL DE TARIFAS E COMÉRCIO. ISENÇÃO DE TRIBUTO ESTADUAL PREVISTA EM TRATADO INTERNACIONAL FIRMADO PELA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL. ARTIGO 151, INCISO III, DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA. ARTIGO 98 DO CÓDIGO TRIBUTÁRIO NACIONAL. NÃO CARACTERIZAÇÃO DE ISENÇÃO HETERÔNOMA. RECURSO EXTRAORDINÁRIO CONHECIDO E PROVIDO.

[14] CRFB/88, art. 151, III.

[15] XAVIER, Alberto. Direito tributário internacional do Brasil. 5ª ed., reform. e atual. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 117.

[16] REZEK, Francisco. Direito internacional público, p. 14.

[17] PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional, p. 33.

[18] CRFB/88, art. 84.

[19] PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional, p. 47.

[20] Ibidem, p. 47.

[21] REZEK, Francisco. Direito internacional público, p. 50.

[22] Ibidem, p. 51-53.

[23] REALE, Miguel. Parlamentarismo brasileiro. São Paulo: Saraiva, 1962. p.110.

[24] KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 5. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1996, p. 247.

[25] SILVA, José Afonso da. A aplicabilidade das normas constitucionais. São Paulo: Malheiros, 1998, p. 244.

[26]OLIVEIRA, Maria Alessandra Brasileiro de. A lei complementar: hierarquia e importância na ordem jurídico-tributária. 2002. 190 f; Dissertação (mestrado)- Universidade Federal do Ceará, Faculdade de Direito, Fortaleza-CE, 2002.

[27] BASTOS, Celso Ribeiro.  Lei complementar: teoria e comentários. 2. ed. revista e ampl. São Paulo: Celso Ribeiro Bastos-Instituto Brasileiro de Direito Constitucional, 1999, p. 62.

[28] ATALIBA, Geraldo. Lei complementar na Constituição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1971, p. 36. Anteriormente, o mencionado doutrinador defendia que havia a hierarquia entre lei complementar sobre a lei ordinária. Posteriormente o aludido autor preconizava que não há hierarquia.

[29] MACHADO, Hugo de Brito. Posição hierárquica da lei complementar. Panorama da Justiça. Ano 4, nº 23. São Paulo, 2000, p. 20.

[30] ATALIBA, Geraldo. Ob. cit, p. 29.

[31] OLIVEIRA, Maria Alessandra Brasileiro de. A lei complementar, 2002, p. 84.

[32] BORGES, José Souto Maior. Lei complementar tributária. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1975, p. 23.

[33] MACHADO, Hugo de Brito. Posição hierárquica da lei complementar, in: Revista Thémis-Revista da ESMEC nº1, Fortaleza: ESMEC, 1997, p. 103.

[34] CRFB/88, art. 169 “caput” dispõe que: “A despesa com pessoal ativo e inativo da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios não poderá exceder os limites estabelecidos em lei complementar”.

[35] SOUZA, Carlos Aurélio Mota de. Segurança jurídica e jurisprudência: um enfoque filosófico-jurídico. São Paulo : LTr, 1996, p. 128.

[36] RADBRUCH apud MACHADO, Hugo de Brito. Uma introdução ao estudo do direito. São Paulo: Dialética, 2000, p. 104.

[37]  ATALIBA, Geraldo. República e Constituição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1985, p. 29.

[38] BRASIL. Lei nº 9.868/99. Dispõe sobre o processo e julgamento da ação direta de inconstitucionalidade e da ação declaratória de constitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal, art. 27.

[39]  OLIVEIRA, Maria Alessandra Brasileiro de. A lei complementar, 2002, p. 11.

[40]  Ob. cit. p. 12.


Informações Sobre o Autor

Felipe Bruno Santabaya de Carvalho

Mestre em Ordem Jurídica Constitucional pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Ceará. Especialista em Direito e Processo do Trabalho pela Universidade de Fortaleza. Pós-graduando em Direito e Processo Eleitoral pela Universidade de Fortaleza. Advogado


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