INTRODUÇÃO
Diante da indisfarçada impotência que o Poder Judiciário tem demonstrado em promover a entrega da tutela jurisdicional no menor tempo possível, a despeito das inúmeras alterações legislativas já levadas a efeito, deve-se reconhecer, sobremaneira, a força e importância que os contratos desempenham nas relações sociais.
Com efeito, as origens históricas demonstram, de forma irretorquível, que o escopo precípuo desta modalidade de ato jurídico visa justamente conferir harmonia e estabilidade às relações sociais, sendo ainda uma maneira de se fomentar a economia, promover o avanço das relações jurídicas e também a circulação de riquezas.
Portanto, sendo o contrato o ato de manifestação de vontade com o fito de criar, extinguir, modificar ou resguardar direitos, conforme definição fornecida por CLÓVIS BEVILÁQUA, sempre houve, com justo motivo, uma aplicação quase que irresistível do princípio da força vinculante das obrigações, que decorre, certamente, da autonomia da vontade.
MARIA HELENA DINIZ define os contratos como “o acordo de duas ou mais vontades, na conformidade da ordem jurídica, destinado a estabelecer uma regulamentação de interesses entre as partes com o escopo de adquirir, modificar ou extinguir relações jurídicas de natureza patrimonial.” (Curso de Direito Civil Brasileiro, Volume III, 10ª Edição, São Paulo, 1995, p. 22)
Todavia, não raras vezes os contratos deixam de alcançar esse desiderato, tornando a situação de um dos contraentes por demais onerosa, seja porque são celebrados na modalidade de adesão (onde a impossibilidade de discussão torna a obrigação demasiadamente onerosa), seja porque a verificação de determinados acontecimentos torna impossível o cumprimento da obrigação tal qual pactuada.
De fato, a partir do momento em que se aceita que o contrato é uma forma de se garantir o equilíbrio das relações sociais, bem como incentivar a realização de negócios, deve-se entender que aquilo que está pactuado deve, na medida do possível, tornar-se imutável, como ocorre com a coisa julgada, de modo a conferir-se a necessária segurança aos contraentes de que seus direitos serão respeitados.
Em última instância, a imutabilidade das convenções pressupõe o respeito ao princípio da segurança jurídica, pois, do contrário, o credor de determinada obrigação jamais encontraria naquele instrumento jurídico o respaldo necessário a efetivação de seus direitos.
Daí decorre o princípio pacta sunt servanda, largamente utilizado na esfera do direito contratual, donde deverão ser observados os termos da convenção, sendo induvidoso que a sua aplicação indiscriminada, na forma preconizada pelos ordenamentos antigos e defendida até há pouco por doutrinadores de escol como WASHINGTON DE BARROS MONTEIRO e CARVALHO SANTOS, coloca em patamar elevado o patrimônio, muitas vezes em detrimento da pessoa humana.
Neste sentido, com a evolução das sociedades e da economia como um todo, em especial com o fenômeno implacável da globalização, não se pode negar que, a contrario sensu do que ocorreu por ocasião da elaboração do Código de Napoleão (período da Escola da Exegese), não mais é possível que os diplomas legais possam prever toda a sorte de relações jurídicas, bem como a solução a ser aplicada em cada caso.
Assim, concluiu-se que não é possível a concepção de um instrumento legislativo capaz de prever todos os negócios jurídicos decorrentes das relações travadas entre os indivíduos de uma sociedade, o que se mostrou particularmente verdadeiro em situações onde acontecimentos imprevisíveis e irresistíveis tornavam a obrigação demasiadamente onerosa para uma das partes.
Portanto, tendência que não pôde ser evitada foi da mitigação ou relativização do princípio da força obrigatória dos contratos, tendo em vista que a sua aplicação irrestrita acaba por prejudicar interesses outros que desfrutam do mesmo prestígio na sociedade, como é o caso da dignidade da pessoa humana.
Neste ponto ganha importância a aplicação da teoria da imprevisão, como forma de justificar a atividade do Poder Judiciário no sentido de rever relações jurídicas que, devido a situações extraordinárias, tenham se tornado excessivas para as partes.
Deve-se destacar que esse entendimento não foi aceito de forma pacífica na doutrina e jurisprudência sem algumas reticências, tendo em vista o forte enraizamento do princípio pacta sunt servanda, onde a força vinculante das obrigações exercia inegável preponderância, sendo que se tratou de um progresso paulatino de desenvolvimento a possibilidade de admitir-se a revisão contratual de maneira a restabelecer o equilíbrio da relação jurídica.
O Código de Defesa do Consumidor prevê a possibilidade de revisão de contratos, desde que a obrigação, por qualquer motivo, tenha se tornado onerosa para a parte mais fraca – o consumidor – sendo que o conceito previsto pelo artigo 2º deste diploma legal ganhou elastério que muitas vezes não é compatível com o desejo do legislador.
Todavia, a teoria da imprevisão já vinha sendo aceita de modo pacífico, tanto pela doutrina quanto pela jurisprudência mais autorizada e atualizada.
O Novo Código Civil, em atendimento aos anseios cada vez mais relevantes sobre a necessidade de regulamentação do tema, inseriu alguns dispositivos esparsos, assim como um capítulo específico para tratar da possibilidade de revisão dos contratos em caso de onerosidade excessiva.
Nesta seara, o objetivo deste estudo é demonstrar a aceitação da teoria da imprevisão na sistemática atual, e de igual forma traçar os limites a que deve obedecer a atividade jurisdicional quando provocada a readequar a relação jurídica, e ainda, a necessidade de revisão do conceito de consumidor, previsto na Lei 8078/90, diante da promulgação do novo Código Civil.
EVOLUÇÃO DO DIREITO CONTRATUAL
O Código de Napoleão é um dos monumentos ao direito, sendo de se ressaltar a importância do trabalho realizado, que serve de base e parâmetro não somente para ordenamentos jurídicos que já se encontram em vigor, mas também para aqueles que ainda virão a fazer parte do mundo do direito.
De outro tanto, não se pode negar que a França sempre exerceu influência na elaboração dos diplomas legislativos em nosso país, notadamente aqueles relativos a questões afetas ao direito civil, o que se verifica de maneira insofismável quando se analisa a Codificação de 1916.
Diante da importância desempenhada pelo diploma alienígena referido, não se pode deixar de analisar o contexto histórico em que se elaborou o Código de Napoleão, como forma de se buscar um entendimento mais explícito das razões pelas quais determinados princípios foram adotados, bem como da maneira como interferiram na elaboração legislativa no Brasil.
Com efeito, o Código de Napoleão tinha como objetivo indisfarçado evitar a ocorrência de fatores como aqueles verificados antes da Revolução Francesa, onde o Poder Judiciário transformou-se não somente em palco de vergonhosa corrupção, mas sobremodo em campo fértil para o exercício do abuso de poder, que em outras palavras significa promover a injustiça e a insatisfação social.
De outro tanto, a experiência demonstra sempre que períodos de um entendimento radical em determinado norte são precedidos de outros, da mesma forma intransigentes, em sentido diverso.
Neste sentido, RENATO JOSÉ DE MORAES pondera que “O ponto de vista do jurista em relação aos institutos com que trabalha é devedor da sua concepção de mundo. Assim sendo, é natural que as diversas fases do pensamento humano acabem por influenciar a visão que os juristas têm do mundo jurídico e seus elementos, levando a que uma postura determinada seja predominante em certa época.” (Cláusula Rebus Sic Standibus, Editora Saraiva, São Paulo, 2001, p. 01)
Assim, a tendência do Código Civil Francês, dado o contexto histórico (pós Revolução Francesa – tendo sido publicado em 1804) em que está inserido, demonstra de forma cabal o receio em se conceder exacerbado poder ao julgador, razão pela qual tentou-se, na medida do possível, esgotar as possibilidades de relações jurídicas que existiam e eventualmente viessem a surgir, limitando dessarte o processo hermenêutico.
Não se pode olvidar, da mesma forma, que Revolução Francesa marcou a ascensão da burguesia como classe social detentora do poder econômico, sendo-lhe reconhecida a importância que desempenhava na sociedade da época.
Diante dessa situação, o diploma em referência concedeu notável importância ao patrimônio, relegando a segundo plano o indivíduo enquanto sujeito de direitos decorrentes das relações jurídicas entabuladas.
Neste contexto, o princípio da força vinculante das obrigações – pacta sunt servanda – desempenha papel de inegável preponderância, tendo em vista que conferia a necessária segurança às relações jurídicas firmadas entre os particulares, em especial no que concerne à satisfação de direitos.
Essa força e prestígio do pacta sunt servanda foi transportada de forma indelével para o direito pátrio, tendo sido acolhida na integralidade pela maioria expressiva dos juristas e julgadores.
Também analisando o contexto histórico de nosso país pode-se entender o motivo pelo qual sempre foi privilegiado referido princípio, sob a justificativa de se conferir segurança jurídica às relações negociais, em detrimento de valores outros, como a dignidade humana.
Essa situação perdurou e encontrava justificativa constitucional, inclusive no Texto Político de 1967, bem como na Emenda Constitucional de 1969, em especial porque estava o país em um regime ditatorial, onde valores referentes à pessoa humana não poderiam ser aceitos em sua integralidade, ainda que mínima, dada a contradição daí imanente.
Referido panorama ganhou novos nortes a partir da promulgação da Constituição Federal de 1988, que já em seu preâmbulo prestigia valores inerentes ao Estado Democrático de Direito, como os direitos sociais e individuais (em especial), a liberdade, segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade, harmonia social, dentre outros.
Da mesma forma, o Texto Político alça a dignidade humana como fundamento do Estado Democrático de Direito naquele ato representado, conforme previsto no artigo 1º, inciso III.
Ora, não se pode negar que a Constituição Federal de 1988, além das inovações em termos de garantias que trouxe ao cidadão de um modo geral, bem como da importância histórica desempenhada, deu início a uma nova fase de interpretação das relações jurídicas, em especial aquelas decorrentes dos contratos.
Outrossim, o patrimônio, representado pelo direito de propriedade, inatingível em vários ordenamentos jurídicos antigos, acaba por encontrar limitações a seu exercício, ao autorizar o artigo 184 do Texto Político, que o Poder Público proceda à desapropriação das propriedades que não estejam desenvolvendo sua função social.
Este, certamente é o exemplo típico do valor maior que foi conferido ao indivíduo neste diploma legal, e que irradia seus efeitos por todo o ordenamento jurídico, pois reconhece que o direito de propriedade, outrora inatingível, deve ser interpretado em consonância com sua função social.
Também o artigo 186 da Constituição Federal, em seu inciso IV, ao determinar sobre a propriedade que a “exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores”, deixa clara a conotação de que função social é justamente proporcionar empregos, gerar desenvolvimento, ampliar divisas, e alcançar, na medida do possível, a minimização das diferenças sociais, ou seja, atingir aqueles escopos previstos no preâmbulo e artigo 1º.
Diante dessas observações, perfeitamente factíveis da análise dos dispositivos citados, não se pode negar, por conseguinte, que com o advento da Constituição Federal de 1988, o ser humano acabou por suplantar a diferença até então existente em sua relação com o patrimônio.
Portanto, não mais se tornou possível e satisfatória a aplicação ampla e irrestrita de determinados valores e princípios, como por exemplo a força obrigatória dos contratos, dado que não mais atingia-se o fim precípuo previsto no ordenamento jurídico para a atividade jurisdicional, bem como para assegurar a harmonia das relações sociais.
Aliado a este fato, a velocidade atingida pelo desenvolvimento das relações sociais, bem como da interferência cada vez mais crescente de fatores externos nas economias de países em desenvolvimento (nova denominação para países do Terceiro Mundo) fez com que os operadores do direito buscassem formas de se autorizar o Judiciário, quando provocado a tanto, proceder a revisão de determinadas relações jurídicas, de modo a restabelecer o equilíbrio originariamente existente entre as partes.
Neste quadro, a antiga concepção interpretativa dos contratos, em especial no que diz respeito à sua força vinculante, teve de ser revista, sendo que a mudança foi acolhida pela doutrina e jurisprudência de forma pacífica, sendo necessária somente a regulamentação da matéria, de modo a conferir maior segurança na solução dos casos concretos.
A TEORIA DA IMPREVISÃO
A teoria da imprevisão encontra raízes no antigo direito romano, na então denominada cláusula rebus sic standibus, valendo ressaltar que, apesar de algum dissenso doutrinário em torno do assunto, pode-se dizer que existe um certo consenso a respeito de que as primeiras manifestações no sentido de revisão contratual foram verificadas no direito romano.
Ainda em sede de escorço histórico, importante mencionar que a I Guerra Mundial teve papel preponderante para autorizar a aplicação da teoria da imprevisão. Com efeito, em decorrência das catastróficas conseqüências trazidas aos países envolvidos no conflito, especialmente àqueles que restaram vencidos, ocorreu o colapso financeiro, tornando obrigações anteriormente assumidas, em outro panorama econômico, impossíveis de serem adimplidas.
Assim, o Poder Judiciário, mormente na Alemanha, viu-se na contingência de autorizar a revisão de negócios jurídicos, por absoluta impossibilidade prática de cumprimento das obrigações, dada a imprevisibilidade dos acontecimentos posteriores à celebração do oblato, em inevitável mitigação do princípio da força vinculante das avenças.
Também na França, em decorrência da Primeira Grande Guerra foi necessária a normatização a respeito da possibilidade de revisão de contratos, em decorrência da imprevisibilidade das situações, o que veio a ocorrer efetivamente em 1918, através da Lei Failliot.
O Código Italiano de 1942, por seu turno, apesar de prever a força obrigatória das convenções, não se desvinculou da teoria da imprevisão, o que se percebe da leitura do artigo 1467, in verbis:
“Nei contratti a esecuzione continuata o periodica ovvero a esecuzione differita, se la prestazione de una delle parti à divenuta eccesivamente onerosa per il verificarsi di avvenimenti straordinari e imprevidibili, la parte che deve tale prestazione può domandare la risoluzione del contratto, com gli effetti stabiliti dall’art. 1458.”
Note-se que também no diploma italiano para que se possa argumentar em favor da onerosidade excessiva, mister que se tratem de contratos de execução diferida no tempo, e que se esteja diante de acontecimentos supervenientes e imprevisíveis, de maneira a tornar a obrigação demasiadamente onerosa, ou mesmo impossível de ser adimplida, requisitos esses que, em linha geral, foram seguidos no direito brasileiro.
No Brasil, desde o ano de 1930 existem julgados que enfrentaram a matéria, aceitando a invocação da teoria em comento, sendo que em 1938 houve a primeira manifestação acerca do instituto pelo Supremo Tribunal Federal (RT 116/224), em sentido de acolhimento da possibilidade da revisão contratual.
Como dito na introdução deste estudo, não foi assente e livre de embates o firmamento sobre a possibilidade de revisão dos contratos – dada a importância desempenhada pela força vinculante das convenções – ainda que fatores exógenos e alheios à vontade das partes o tenham tornado iníquo, com obrigações desproporcionais.
No entanto, além dos fatores históricos noticiados, o desenvolvimento das relações sociais, a massificação dos contratos, extremamente necessária para o avanço tecnológico então experimentado, trazendo como conseqüência o surgimento de situações imprevisíveis até mesmo para o homem médio, ocasionando o desequilíbrio de situações antes pautadas na equivalência de obrigações, deflagrou a necessidade da atividade jurisdicional no sentido de readequar a relação jurídica.
A teoria da imprevisão encontra fundamento, portanto, em princípios como da justiça, da eqüidade, do devido processo legal, do amplo acesso ao Judiciário, que, diga-se, estão previstos de forma explícita no ordenamento pátrio, sendo alçados ao status de garantia fundamental na Constituição Federal.
RENATO JOSÉ DE MORAES, em excelente monografia sobre o tema, traça um panorama interessante a respeito da cláusula rebus sic standibus em nosso direito:
“Efetivamente, a revisão judicial dos contratos, ou de outros atos jurídicos, é um elemento instigante no direito contemporâneo, e teve defensores convictos, bem como adversários acérrimos.
O porquê desse interesse está, em nossa opinião, no fato de a cláusula rebus sic standibus referir-se a vários pontos fundamentais da teoria do direito, obrigando a que se tome uma posição a respeito deles. A importância da vontade nos atos jurídicos; a relação entre segurança e justiça no direito; os limites da visão sistemática do ordenamento jurídico; a interdependência entre os conceitos jurídicos e a realidade dos fatos; a aplicação da lei de forma flexível ou estrita; tudo isso é levantado quando se trata de examinar com maior profundidade e cuidado a possibilidade de revisão dos contratos e outros atos jurídicos.”
(ob. cit., p. XIX)
Portanto, a necessidade de revisão dos contratos, em face de situações imprevisíveis, que tornem a obrigação por demais onerosa para uma das partes, fez com que valores outros, até então relegados a plano secundário, emergissem como relevantes no ordenamento jurídico, de forma a propiciar a atividade do Poder Judiciário no sentido de readequar a relação jurídica.
CARLOS ALBERTO BITTAR FILHO, ressaltando a importância desempenhada pela doutrina e jurisprudência no sentido de fazer valer a revisão dos contratos, e como que antevendo os requisitos a serem traçados por ocasião da promulgação do novo Código Civil, traça importante esquema a respeito dos requisitos para o acolhimento da teoria da imprevisão:
“Graças ao lavor constante da doutrina e da jurisprudência, cristalizaram-se, em nosso sistema, alguns pressupostos de admissibilidade da teoria da imprevisão, a saber:
a) o contrato não deve ter sido totalmente executado (uma prestação, pelo menos, tem de estar ainda pendente);
b) o acontecimento deve ser imprevisível, anormal e exogeno (incomum, anormal e estranho à vontade das partes);
c) deve haver onerosidade excessiva para um dos contraentes e benefício exagerado para o outro;
d) tem que ocorrer alteração radical das condições econômicas no momento da execução do contrato, em confronto com as do instante de sua formação;
e) deve inexistir mora antes do acontecimento;
f) a alegação da teoria não deve dizer respeito à inflação, que é fato previsível, pois nossa economia é inflacionária.”
(Teoria da Imprevisão, Dos Poderes do Juiz, Editora Revista dos Tribunais São Paulo, 1993, p. 17/18)
Note-se que diante dessas situações, os princípios que justificavam a imutabilidade dos contratos, fundados eminentemente na segurança jurídica, tiveram de ceder espaço a outros, como o que prescreve a proibição do enriquecimento sem causa, da dignidade da pessoa humana, da eqüidade, que após o devido sopesamento verificaram-se como sendo mais importantes.
Como é cediço, o conflito de princípios não tem o condão de anulá-los, por entender-se que algum deles é inaplicável ao caso, sendo necessário somente haver a efetiva análise da situação concreta para que se possa aferir em cada caso qual deles deverá prevalecer, segundo o autorizado ensinamento de RONALD DWORKIN.
Sobremais, pode-se dizer que a contingência de determinadas realidades sociais acabou por tornar fundamental uma regulamentação a respeito da teoria da imprevisão, tendo em vista que o modelo clássico liberal de contrato não mais atendia aos anseios sociais. Cita-se, por importante, o ensinamento de ROGÉRIO FERRAZ DONNINI:
“Independentemente da análise da evolução do contrato, pode-se afirmar que o modelo liberal, que continua a existir na relação entre particulares, não mais atende às aspirações da sociedade atual, visto que não se pode mais admitir que uma relação contratual iníqua, celebrada com ausência de boa-fé e com prestações desproporcionais suportada por uma das partes, seja considerada válida, sob o argumento de que existe a autonomia privada a as partes são livres para contratar.”
(A Revisão dos Contratos no Código de Defesa do Consumidor, Editora Saraiva, São Paulo, 2001, p. 06)
Diante dessas situações e ante a ausência de normatização do instituto, foi o trabalho da doutrina e jurisprudência, como oportunamente mencionado por CARLOS ALBERTO BITTAR FILHO, que tornou possível o acolhimento da teoria no direito brasileiro, sob o fundamento muitas vezes utilizado de que, se o Código Civil de 1916 não continha dispositivos que regulassem a revisão contratual, certamente não vedava a sua possibilidade.
Embora a corrente liberal a respeito do contrato tivesse a igualdade entre os contraentes o fundamento para a obrigatoriedade das convenções, isso não foi elemento suficiente para repelir questionamentos quanto a situações que reclamavam a intervenção do Poder Estatal, para reequilibrar as posições. Neste sentido, utiliza-se novamente do escólio de ROGÉRIO FERRAZ DONNINI:
“O contrato, nesse modelo liberal, faz lei entre as partes, e sua força é reconhecida no brocardo pacta sunt servanda. Destarte, se os contratantes são livres para celebrar um pacto e o fazem, passavam a assumir todas as obrigações convencionadas, segundo a vontade manifestada, devendo, pois, ser cumprido o que foi acordado.”
(ob. cit., p. 03-04)
Contudo, arremata o autor em enfoque, dizendo que “O liberalismo marcante do século passado fez do contrato o mais importante dos negócios jurídicos realizados entre as pessoas, vinculando as partes juridicamente, mas nem sempre de forma ética.” (ob. cit., p. 04)
A despeito do trabalho realizado pela doutrina e jurisprudência, no sentido de acolher, paulatinamente, casos em que se fizesse necessária a revisão judicial dos contratos, deve-se reconhecer que foi o Código de Defesa do Consumidor quem primeiramente tratou do tema, permitindo a modificação de cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais ou sua revisão em razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas;” (art. 6º, V)
Consoante se depreende do dispositivo em comento, o requisito para que se possa requerer a intervenção estatal em contrato regido pelo direito do consumidor, reside tão somente na verificação de fato superveniente que torne a obrigação demasiadamente onerosa ou excessiva, sendo dispensável, a questão da imprevisivilidade e extraordinariedade, que, como será vista, fazem parte dos requisitos constantes do artigo 478 do novo Código Civil.
De toda sorte, o Código de Defesa do Consumidor veio trazer significativo avanço ao direito contratual, porquanto restrito às relações jurídicas com características específicas, não se pode negar que irradiou seus efeitos pela jurisprudência e doutrina pátria, o que se mostra particularmente correto dizer quando da análise da nova Lei Civil.
A única observação que deve ser feita reside no fato de que antes do advento do Código Civil de 2002, a jurisprudência exigia como requisitos para que se autorizasse a revisão contratual, a existência de fatos imprevisíveis e irresistíveis, sendo que sem a presença destes deveria fazer prevalecer a força obrigatória dos contratos.
Como o objetivo deste estudo é demonstrar que o direito brasileiro não mais comporta o conceito ampliado que tem sido dado à figura do consumidor, em especial pela conotação que pode atingir a expressão destinatário final (art. 2º, CDC), mister se faz tecer considerações a respeito das inovações trazidas pelo novo Código Civil, no que tange a conceder uma proteção mais eficaz aos jurisdicionados de modo geral.
O NOVO CÓDIGO CIVIL E O ACOLHIMENTO DA TEORIA DA IMPREVISÃO
O Código Civil de 2002 trouxe em seu bojo significativas alterações, a despeito de ter pecado pela excessiva timidez em alguns casos, que contudo não lhe retira o mérito pelos avanços obtidos, em especial no que diz respeito ao direito contratual e no campo da responsabilidade civil.
Denota-se fundamentalmente a preocupação do legislador com a questão da finalidade a que se destina o contrato, como meio de circulação de riquezas e fomento da economia, mas principalmente, atingindo seu fim social, em detrimento do pensamento eminentemente patrimonialista existente no Código Civil de 1916.
Exemplo disso reside no artigo 421, ao estabelecer que “A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato”.
É o que se pode denominar de socialização dos contratos, sendo importante o pensamento de CLÁUDIA LIMA MARQUES, invocando a lição de EMILIO BETTI, a respeito do assunto:
“Para o grande mestre italiano, Betti, a autonomia da vontade não seria a fonte única da obrigação. Na sua famosa definição, a autonomia da vontade deveria ser entendida como auto-regulamentação de interesse de particulares. O contrato seria um ato de auto-regulamentação de interesse das partes, e, portanto, por excelência, um ato de autonomia privada, mas este ato deveria ser realizado nas condições permitidas pelo direito, pois só assim a lei dotaria de eficácia jurídica o contrato. A posição dominante, portanto, é da lei.”
(Contratos no Código de Defesa do Consumidor, Editora Revista dos Tribunais, São Paulo, 2002, p. 177)
Ao depois, arremata a jurista em comento aduzindo que sobre referido fator “O direito dos contratos socializado redescobre o papel da lei, que não será mais meramente interpretativa ou supletiva, mas cogente (veja art. 1º do CDC). A lei protegerá determinados interesses sociais e servirá como instrumento limitador do poder da vontade.(…). Como resultado desta mudança de estilo de pensamento, as leis passam a ser mais concretas, mais funcionais e menos conceituais. É o novo ideal de concretude das leis, que para alcançar a solução dos novos problemas propostos pela nova realidade social (título 2.2), opta por soluções abertas, as quais deixam a larga margem de ação ao juiz e à doutrina, usando freqüentemente noções-chaves, valores básicos, princípios como os de boa fé, eqüidade, equilíbrio, equivalência de prestações e outros.” (ob. cit., p. 178-179)
Portanto, a visão do legislador, no que deve ser observada pelos demais operadores do direito, necessariamente será direcionada para a atenção a certos valores na análise do caso concreto.
Por função social entende-se o desiderato que a parte na relação jurídica deverá atingir, pautada na conduta proba e de boa fé dos contraentes (art. 422), bem como na indispensável proteção que deve ser conferida ao mais fraco no negócio, inclusive possibilitando a intervenção do Poder Judiciário em casos específicos.
Da leitura do artigo 422 do Código Civil chega-se à inolvidável conclusão de que o princípio da boa fé objetiva veio a ingressar definitivamente à sistemática dos contratos, valendo citar novamente o indispensável escólio de CLÁUDIA LIMA MARQUES:
“Boa-fé objetiva significa, portanto, atuação “refletida”, uma atuação refletindo, pensando no outro, no parceiro contratual, respeitndo-o, respeitando seus interesses legítimos, suas expectativas razoáveis, seus direitos, agindo com lealdade, sem abuso, sem obstrução, sem causar lesão ou desvantagem excessiva, cooperando para atingir o bom fim das obrigações: o cumprimento do objetivo contratual e a realização dos interesses das partes.”
(ob. cit., p. 181-182)
Neste contexto é que ganha importância o acolhimento da teoria da imprevisão na sistemática nacional, tratada nas linhas do direito civil geral, em consonância com os princípios que embasam a moderna teoria do direito contratual, sendo de relevo que isso se verifique no Código Civil, diploma geral, e não somente naqueles de natureza específica, como de fato ocorria no Código de Defesa do Consumidor.
A experiência brasileira, pode-se dizer, assemelha-se à verificada na Alemanha, onde o BGB trata das relações negociais em sua parte geral, inclusive da possibilidade de alteração das relações jurídicas contratuais, desde que se verifiquem determinadas situações, o que antes somente ocorria em legislações esparsas.
Deve-se frisar que existem vários aspectos positivos na posição adotada pelo novo Código Civil brasileiro, no sentido de conferir ao jurisdicionado de um modo geral, e não somente àqueles que podem ser considerados como consumidores, a proteção necessária em casos de desequilíbrio da relação contratual.
Pois bem, o Código Civil, em seu artigo 317, faz uma primeira alusão à possibilidade de alteração das relações jurídicas em caso de manifesta desproporcionalidade, ao preceituar que:
“Art. 317. Quando, por motivos imprevisíveis, sobrevier desproporção manifesta entre o valor da prestação devida e o do momento de sua execução, poderá o juiz corrigi-lo, a pedido da parte, de modo que assegure, quanto possível, o valor real da prestação.”
Ora, esse dispositivo, por si só, já seria bastante para afirmar que a teoria da imprevisão veio a ser definitivamente aceita no ordenamento jurídico pátrio, tendo em vista sua clareza ao dispor sobre a alteração da relação jurídica firmada entre as partes, desde que presentes determinados requisitos.
De toda sorte, o legislador fez questão de dedicar seção específica para a teoria da imprevisão, denominada Resolução por Onerosidade Excessiva, que em seus artigos 478 a 480 prevê as hipóteses onde será admitida a revisão ou mesmo solução dos contratos em que se verifique a alteração radical da situação fática que ensejou a celebração do negócio.
O Código Civil, ao prever a possibilidade de revisão da relação jurídica nos artigos mencionados, e considerando-se ainda a excepcionalidade da hipótese, faz menção a certos pressupostos que deverão ser observados, a saber: a) tratar-se de contrato de execução continuada ou diferida; b) ocorrer situação de extrema onerosidade para uma das partes, ao mesmo tempo ensejando manifesta vantagem para a outra; c) a ocorrência de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis.
A primeira observação a ser feita reside na análise de quais contratos admitem a revisão sob o argumento da onerosidade excessiva. Parece estreme de dúvidas, consoante a leitura do artigo 478 do Código Civil, que somente os contratos comutativos de execução diferida no tempo podem verificar a necessidade de interferência do Judiciário.
De fato, não se pode deixar de concluir que os contratos aleatórios não se prestam a revisão judicial por desproporcionalidade da obrigação, especialmente porque o risco e a incerteza são traços característicos de sua formação, onde os contraentes assumem posições de dúvida quanto à exata extensão de sua prestação. A propósito, cita-se o entendimento de CARLOS ALBERTO BITTAR FILHO:
“Não é a todos os contratos que se aplica a teoria da imprevisão – seu campo de incidência não é ilimitado. Pode ser invocada essa teoria, com efeito, somente em se tratando de certas espécies contratuais, de acordo com os lindes traçados pela doutrina e pela jurisprudência.
Assim, é plenamente possível a utilização da teoria em apreço em se tratando de contratos comutativos de execução diferida, continuada ou periódica, não se podendo dela cogitar para a resolução de contratos aleatórios, ou unilaterais.”
(ob. cit., p. 23)
Por certo, aceitar a invocação da teoria da imprevisão em contratos aleatórios, que têm como principal característica o risco assumido pelas partes no que toca à extensão das obrigações, seria o mesmo que negar a existência dessa modalidade contratual.
Requisito que também deverá ser observado para que se possa invocar a teoria da imprevisão é a onerosidade excessiva decorrente da extraordinariedade e imprevisibilidade de certos acontecimentos como fator condicionante da possibilidade de alteração do contrato.
Por fatos extraordinários e imprevisíveis deve-se entender aqueles que não eram pretendidos pelas partes no momento da contratação, nem mesmo passíveis de previsão. Importante, nesse sentir, transcrever o ensinamento de SÍLVIO RODRIGUES:
“A idéia é evitar que nos contratos comutativos em que, por definição, há uma presumível equivalência das prestações, o tempo desequilibre a antiga igualdade, tornando a prestação de uma das partes excessivamente onerosa em relação à da outra. Se isso ocorrer e inspirado no preceito que evita o enriquecimento sem causa (…), permite o legislador que, a pedido do interessado, o juiz determine a rescisão do contrato.
Note-se que o desequilíbrio das prestações deve derivar de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, pois a fonte inspiradora do codificador de 2002 foi a conhecida teoria da imprevisão.”
(Direito Civil, Volume III, Editora Saraiva, 28ª Edição, São Paulo, 2002, p. 132)
Dessarte, resta inescondível o intuito do legislador brasileiro em conferir maior proteção ao jurisdicionado em geral, com intento de manter o equilíbrio nas relações contratuais.
Deve-se ressaltar que o objetivo e principal vantagem do reconhecimento explícito da teoria da imprevisão no sistema normativo pátrio reside justamente no fato de que existe um norte para o operador do direito seguir na solução do caso concreto, o que, em última análise, aumenta a segurança jurídica das partes envolvidas na questão.
Outrossim, como conseqüência das inovações trazidas a respeito da resolução dos contratos por onerosidade excessiva, que atingem os jurisdicionados de um modo geral, sendo indiferente a posição por eles ocupada na relação negocial, não se pode negar que tornou-se necessária uma revisão do conceito de consumidor, ou melhor dizendo, da teoria a ser aplicada para delimitar qual categoria de pessoas gozaria da proteção concedida pelo Código de Defesa do Consumidor.
DAS INOVAÇÕES NO ÂMBITO DA RESPONSABILIDADE CIVIL
Diante das inovações trazidas pelo Código Civil de 2002 no tocante à responsabilidade civil, como forma de se alcançar de forma satisfatória a reparabilidade plena, inegável que houve uma tendência do legislador, independente da qualidade de consumidor da pessoa física ou jurídica que esteja envolvida em determinado litígio, em aproximar-se dos ideais modernos de justiça e do processo civil, como instrumento de pacificação social.
A inclusão do parágrafo único ao artigo 927 do Código Civil traz a inafastável conclusão de que a responsabilidade objetiva veio a ser definitivamente abraçada pelo direito pátrio, não mais como foros de excepcionalidade, mas como regra geral a ser buscada no intento de se conceder a devida indenização pelos danos causados a outrem. A respeito, transcreve-se o dispositivo em enfoque:
“Art. 927. (…)
Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem.”
Com efeito, não se pode negar que a expressão utilizada pelo legislador, no sentido de mencionar que responderá objetivamente pelos danos causados a outrem aquele que pratique atividade que cause risco a terceiros é ampliar por demais os casos de responsabilidade objetiva, quase que tornando geral essa regra.
Assim, o jurisdicionado, ainda que não seja encarado como consumidor, poderá valer-se de todos os meios protetivos necessários, ainda que a relação não seja efetivamente regida pelo CDC, para fazer valer seus direitos, dado que o Código Civil ampliou consideravelmente as possibilidades de indenização ao utilizar-se da expressão risco para os direitos de outrem. Neste sentido, importante transcrever o ensinamento de CARLOS ROBERTO GONÇALVES:
“Trata-se da mais relevante inovação introduzida no atual Código Civil, no que tange à responsabilidade civil. Antes, a responsabilidade independentemente de culpa somente existia nos casos especificados em leis especiais. Atualmente, mesmo inexistindo lei que regulamente o fato, pode o juiz aplicar o princípio da responsabilidade objetiva (independente de culpa), baseando-se no dispositivo legal mencionado, “quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem.”
(Comentários ao Código Civil, Volume XI, Editora Saraiva, São Paulo, 2003, p. 313)
Este também é o posicionamento de SÍLVIO RODRIGUES, ao comentar o parágrafo único do artigo 927 do Código Civil, ao ponderar que “A segunda hipótese é de considerável interesse, pois se inspira diretamente na teoria do risco em sua maior pureza. Segundo esta, como vimos, se alguém (o empresário, por exemplo), na busca de seu interesse, cria um risco de causar dano a terceiros, deve repará-lo, mesmo se agir sem culpa, se tal dano adveio. (…) Muito aplauso merece o legislador de 2002 pela inovação por ele consagrada. Em conclusão, poder-se-ia dizer que o preceito do novo Código representa um passo à frente na legislação sobre a responsabilidade civil, pois abre uma porte para ampliar os casos de responsabilidade civil, confiando no prudente arbítrio do Poder Judiciário o exame do caso concreto, para decidi-lo não só de acordo com o direito estrito, mas também, indiretamente, por eqüidade.” (Direito Civil, Volume IV, Editora Saraiva, 19ª Edição, São Paulo, 2002, p. 162)
Ainda no tocante à responsabilidade civil, merece destaque o artigo 931 do Código Civil, ao preceituar que “Ressalvados outros casos previstos em lei especial, os empresários individuais e as empresas respondem independentemente de culpa pelos danos causados pelos produtos postos em circulação.”
O dispositivo citado, ao determinar que os empresários, sejam individuais, ou constituídos sob a forma de sociedade, responderão ainda que sem culpa, pelos danos decorrentes dos produtos (devendo-se entender serviços também) colocados em circulação, torna inconcussa a conclusão de que nem todas as relações de consumo podem ser enquadradas na Lei 8.078/90.
Com efeito, partindo-se de uma interpretação ampla (teoria maximalista) quase que a totalidade das relações comerciais atualmente podem ser consideradas como se de consumo fossem, dado que existe sempre a aquisição de produtos ou serviços, muitos deles a serem retirados da cadeia produtiva.
Todavia, o que resta indisfarçável no artigo 931 do Código Civil é justamente que não se pode mais conceber, à luz das inovações trazidas pelo novo diploma, uma conceituação ampla e irrestrita da expressão de consumidor, como vinha ocorrendo antes de seu advento, porquanto existe agora um diploma geral que confere a mesma proteção aos jurisdicionados de um modo geral, sem que seja necessário o recurso à legislação específica.
Vale ainda menção aos artigos 936 a 940, que tratam da responsabilidade objetiva dos detentores de animais, proprietários de imóveis ou construções, bem como do credor que demandar por cobrança de dívida já paga, denotam a tendência que já se mostrava anteriormente irreversível, em se aumentar as hipóteses de indenização sem culpa.
DA NECESSIDADE DE REVISÃO DO CONCEITO DE CONSUMIDOR EM VIRTUDE DO ADVENTO DO CÓDIGO CIVIL DE 2002
a) Teorias sobre o conceito de consumidor:
Para que se possa compreender a necessidade de revisão da interpretação que vem sendo dada ao artigo 2º, da Lei 8078/90, importante se torna a análise das teorias que fundamentam o conceito de consumidor, de modo a conferir a proteção especial característica desse diploma legislativo a uma categoria determinada de pessoas.
As normas relativas ao direito do consumidor sempre tiveram como fim precípuo, tanto no direito pátrio, como no alienígena, conferir proteção a uma classe de pessoas que, diante das contingências negociais tornavam-se por demais vulneráveis, não podendo fazer valer seus direitos da melhor forma.
Com efeito, a necessidade de conferir-se uma maior proteção aos consumidores adveio da evolução da economia de forma geral, sendo importante a transcrição do ensinamento de NEWTON DE LUCCA:
“De outro lado, a chamada economia de mercado engendrara uma idéia absolutamente falsa – e, também, muito provavelmente cínica – de que o consumidor, favorecido pelo sistema da livre concorrência entre as empresas e pela multiplicação de bens e dos serviços colocados à sua disposição, iria tornar-se uma espécie de monarca do mercado, embora alguns espíritos mais argutos já denunciassem a falácia de tal dicção, tal como se pode ver em Zola e Charles Gide.”
(Direito do Consumidor, Editora Revista dos Tribunais, São Paulo, 1995, p. 14)
Não se pode esquecer que o avanço tecnológico dos grandes conglomerados financeiros, tornou o consumidor como que um refém de práticas desleais, respaldadas em um sistema jurídico que não conferia ampla proteção a situações como essas, razão pela qual mostrou-se veemente a necessidade de se buscarem meios efetivos de coibir estas práticas.
É importante frisar, contudo, que o direito do consumidor não pode ser encarado com um fato isolado, pois a evolução por que passou o direito contratual nas últimas décadas foi também de fundamental importância para a criação de um novo conceito sobre a existência de determinada categoria de pessoas que se encontravam em situação de hipossuficiência na relação jurídica e que necessitavam da devida proteção.
Como exemplo dessas situações pode-se citar a necessidade de revisão de contratos em determinadas situações, conforme mencionado no tópico anterior, com a necessária relativização da força obrigatória dos contratos, dentre outros.
O direito comparado, como é o caso da Alemanha e Bélgica, por exemplo, têm preferido uma interpretação restritiva do conceito de consumidor, por motivos que, conforme será neste estudo demonstrado, aproximam-se mais dos princípios que inspiram essa ramificação do direito, mormente após a promulgação do novo Código Civil. Neste sentido, transcreve-se o escólio de ANTÔNIO CARLOS EFING:
“A doutrina européia, embora admitindo expressamente que de forma lata as pessoas jurídicas sejam realmente consumidores e como tais atuem como consumidores no mercado de consumo, em sua maioria, prefere entender que a legislação protetiva deva alcançar somente as pessoas naturais (físicas) e morais (entidades assistenciais, de beneficência, etc.)”
(Contratos e Procedimentos Bancários à Luz do Código de Defesa do Consumidor, Editora Revista dos Tribunais, 1ª Edição, São Paulo, 2000, p. 41)
A justificativa para esse entendimento reside no fato de que deve ser considerado como consumidor aquela pessoa física, não profissional, que adquire bens para uso próprio, particular, familiar, concedendo a proteção legal às partes que são fracas na relação negocial.
Pode-se delimitar, portanto, a existência de duas correntes que discutem sobre o campo de abrangência que deve conter o conceito de consumidor, quais sejam a finalista e a maximalista.
A corrente finalista é a precursora do direito consumerista, buscando efetivamente conceder a tutela protetiva especial àquela categoria de pessoas que efetivamente sejam vulneráveis na relação jurídica, sendo interessante a lição de ANTÔNIO CARLOS EFING a respeito do tema:
“Esta corrente (finalistas) restringe a figura do consumidor àquele que adquire (utiliza) um produto para uso próprio e de sua família, consumidor seria o não-profissional, pois o fim do CDC é tutelar de maneira especial um grupo da sociedade que é mais vulnerável.”
(ob. cit., p. 46)
Continua o autor referenciado, mencionando as vantagens atribuídas a essa teoria, dizendo que “Consideram que, restringindo o campo de aplicação do CDC àqueles que necessitam de proteção, ficará assegurado um nível mais alto de proteção para estes, pois a jurisprudência será construída sobre casos em que o consumidor era realmente a parte mais fraca da relação de consumo, e não sobre casos em que profissionais-consumidores reclamam mais benesses do que o direito comercial já lhes concede.” (ob. cit., p. 46)
Portanto, conforme preconiza a teoria finalista, não se pode conceber um conceito lato de consumidor, especialmente para que não haja um desvirtuamento do instituto, conferindo a pessoas que não necessariamente se encontrem em posição de estrita vulnerabilidade, uma proteção especial.
Busca-se, dessarte, um afunilamento de características, de sorte a direcionar o Código de Defesa do Consumidor somente para uma determinada categoria de pessoas, sob o forte argumento de conferir uma proteção jurisdicional não só mais eficaz, mas também mais justa.
A teoria maximalista, por sua vez, confere maior extensão ao conceito de consumidor, posto entender ser o CDC uma legislação que trata das relações de consumo em si, e não somente dos direitos do consumidor.
Consoante este entendimento será consumidor toda a pessoa, física ou jurídica (art. 2º, CDC), que vier a adquirir produtos ou serviços, bastando somente que os retire da cadeia produtiva.
À primeira vista, pode-se afirmar que o legislador pátrio, ao utilizar-se da expressão destinatário final, referindo-se ainda às pessoas físicas e jurídicas, pretendeu conferir maior elastério de interpretação, de modo que um maior número de pessoas, seja qual for a sua personalidade jurídica, possa buscar a tutela de seus direitos nesse diploma legal.
Deve-se ressaltar que inclusive aqueles países que adotaram um conceito estrito de consumidor, com é o caso da França (entendendo que somente as pessoas físicas, não-profissionais poderiam ser consideradas como tais), encontraram dificuldades diante de situações onde pessoas jurídicas, pequenas empresas ou microempresários, desprovidos de conhecimentos técnicos específicos a respeito de determinado produto ou serviço, viam-se em situações onde era flagrante a necessidade de se conferir uma maior proteção.
Solução que parece a mais correta, e que mostra-se como rumo a ser seguido pelo direito brasileiro, foi a adotada pela Alemanha, que trata de relações negociais em geral, em um diploma legal geral, de modo a propiciar uma maior segurança para os negócios jurídicos em si, estreitando as hipóteses em que será conferida a especial proteção ao consumidor.
Todavia, para o que se aborda nesta etapa cumpre dizer que, salvo melhor juízo, existia, até o advento do Código Civil de 2002, uma tendência de alargamento do conceito de consumidor, até mesmo porque faltava na legislação pátria um diploma legal que conferisse uma proteção maior às pessoas que eventualmente estão em posição de fraqueza em determinada relação jurídica.
Diz-se isso porque a tendência do direito brasileiro, em vários pontos, sempre foi tímida quanto a questões referentes a proteção do indivíduo quando lesionado em seu direito, a teor do que ocorre na responsabilidade civil, onde a culpa era considerada como o principal elemento para a verificação da obrigação de indenizar, conforme estabelecia o artigo 159 do Código Civil de 1916.
b) Necessidade de aceitação da teoria finalista em virtude das alterações do Código Civil;
Não se pode deixar de reconhecer que no estágio em que se encontra o direito civil brasileiro impõe-se a necessidade de revisão do conceito de consumidor, com a adoção da teoria finalista em seus termos originais, posto existirem atualmente meios próprios e eficazes para a defesa do interesse do jurisdicionado de um modo geral, não sendo necessário recorrer-se a diplomas específicos, como vem ocorrendo com o CDC, utilizando-se de formas ampliativas de conceituação de consumidor.
O argumento de que a teoria finalista seria a melhor opção para se conferir proteção ao consumidor efetivamente considerado como a pessoa física que adquire produto ou serviço para uso próprio, familiar ou doméstico encontra fortes bases de sustentação.
À luz do que foi exposto, não se pode deixar de concluir que a ampliação do conceito de consumidor (teoria maximalista), como tem ocorrido em diversos precedentes jurisprudenciais, bem como preconizado por vários doutrinadores, buscava fundamento na ausência, no direito brasileiro, de diploma legal geral que conferisse a tutela pretendida pelas partes quando da solução do caso concreto, em especial no que diz respeito à responsabilidade civil, que sempre pautou-se na necessidade de demonstração de culpa para a existência do direito à indenização, e na alteração dos vínculos contratuais por situações que o tornem desproporcionais.
De outra sorte, a teoria maximalista encontrou campo fértil de atuação no artigo 2º do próprio Código de Defesa do Consumidor, que inclui também as pessoas jurídicas como consumidoras, bem como pela ampla extensão conceitual que se pode conferir ao termo destinatário final.
Ocorre que o novo Código Civil teve o inegável mérito de disciplinar melhor uma série de situações que reclamavam solução mais consentânea com os ideais modernos do direito, em especial no anseio de justiça na entrega da tutela jurisdicional.
Os exemplos dessa assertiva encontram-se devidamente fundamentados nas novidades do novo Código Civil em matéria de direito contratual e responsabilidade civil, como forma de se ampliar a atividade jurisdicional, de forma mais justa e equânime.
Em vista desses fatores, que certamente produzirão reflexo direto nos futuros precedentes jurisprudenciais, não mais existe motivo para que se conceda um conceito ampliativo de consumidor, conforme defendido pelos adeptos da teoria maximalista, inclusive quanto a pessoa jurídica, posto que as inovações recentes são a prova clara de que o diploma legal geral, qual seja o Código Civil de 2002, tem âmbito de abrangência suficiente para açambarcar um número indiscutivelmente maior de relações jurídicas, o que significa dizer, tutelar melhor os direitos individuais e coletivos.
Outro fato que justifica a necessidade de mudança quando ao conceito de consumidor é de que não se pode negar que o reconhecimento de que determinada pessoa tem o direito de ver regulamentados seus direitos pelo CDC, traz relevantes conseqüências no âmbito processual, pois ser-lhe-ão conferidas uma série de prerrogativas, como por exemplo a faculdade de demandar em seu próprio domicílio, possibilidade de inversão do ônus da prova, revisão de contratos por fatos supervenientes, ainda que previsíveis¸ bem como a adoção da teoria da responsabilidade objetiva como regra geral, dentre outros. Novamente utiliza-se da lição de ANTÔNIO CARLOS EFING:
“O direito do consumidor seus a tendência atual na adoção de microssistemas reguladores de determinadas situações jurídicas, imunes às desconexas influências de outros ramos do direito que se situam à margem das relações regradas pelos microssistemas. O direito do consumidor não se afasta dessa inclinação, pois a situação que rege é a relação de consumo, composta de particularidades desta decorrentes. Portanto, as normas do Código Civil, Código Comercial, Código de Processo Civil, etc. somente incidirão no contexto do direito do consumidor para suprirem lacunas do CDC.”
(ob. cit., p. 29)
Somente a título exemplificativo, vale especial destaque para a situação da inversão do ônus da prova no direito do consumidor, tal qual previsto no artigo 6º, inciso VIII, a seguir transcrito:
“Art. 6º. São direitos básicos do consumidor:
(…);
VIII – a facilitação da defesa de seus direitos, inclusive com a inversão do ônus da prova, a seu favor, no processo civil, quando, a critério do juiz, for verossímil a alegação ou quando for ele hipossuficiente, segundo as regras ordinárias da experiência;”
O dispositivo citado fornece elementos claros a respeito das situações em que deverá ser determinada a inversão do onus probandi, quando for a alegação verossímil ou se o consumidor for hipossuficiente na relação jurídica, o que deverá ser analisado pelo julgador do caso, podendo-se se realçar o caráter de excepcionalidade que deve ser conferido ao mandamento nele contido.
Nada obstante a clareza do texto da lei, verifica-se que, mormente nos juizados que se regulam pela Lei 9099/95, a decisão de inversão do ônus da prova geralmente é anunciada à parte demandada quando da prolação da sentença, o que traz inegáveis prejuízos no que diz respeito ao exercício do direito de defesa.
Essa singela abordagem é necessária e pertinente para demonstrar que o reconhecimento pelo Poder Judiciário da qualidade de consumidor a determinada pessoa, seja física ou jurídica, acarreta uma série de conseqüências na esfera processual dos litigantes, o que, conforme os princípios que norteiam o instituto, somente deveria atingir aqueles que efetivamente desempenhassem esse papel de vulnerabilidade na relação negocial.
Ora, a partir do momento em que o Código Civil, em vários de seus dispositivos, concede uma ampla e eficaz proteção ao jurisdicionado, sendo irrelevante a natureza da relação jurídica envolvida, através das inovações referidas (arts. 421 a 424, 927, 933, 953, por exemplo), não se pode deixar de reconhecer que o alargamento do conceito de consumidor não mais é justificável em nosso direito. Neste sentido, cumpre transcrever o ensinamento de CLÁDIA LIMA MARQUES, a respeito do tema:
“Efetivamente, se a todos considerarmos “consumidores”, a nenhum trataremos diferentemente, e o direito especial de proteção imposto pelo CDC passaria a ser um direito comum, que já não mais serve para reequilibrar o desequilibrado e proteger o não-igual. E mais, passa a ser um direito comum, nem civil, mas sim comercial, nacional e internacional, o que não nos parece correto.”
(ob. cit., p. 278)
A autora em comento defende a tese de que não seria correto o entendimento maximalista a respeito da definição de consumidor, tampouco a finalista como originariamente concebida.
Segundo o pensamento da doutrinadora, deveria haver a adoção da teoria finalista sim, mas com alguns temperamentos, considerando-se como consumidor, via de regra, a pessoa física que adquire produtos para uso próprio, familiar ou doméstico, e somente admitindo-se as pessoas jurídicas em casos excepcionais, onde restasse demonstrada a situação de fragilidade na relação jurídica que justificasse a invocação da tutela protetiva prevista no Código do Consumidor. Neste sentido, transcreve-se seus ensinamentos:
“Particularmente considero que é necessário analisar do CDC como sistema, como um todo o construído, codificado, organizado justamente tendo como base a identificação do sujeito beneficiado. (…). O CDC brasileiro concentra-se diversamente no sujeito de direitos, visa proteger este sujeito, sistematiza suas normas a partir desta idéia básica de proteção de apenas um sujeito “diferente” da sociedade de consumo: o consumidor. (…)
Eis porque identificar este sujeito protegido, sujeito de direitos especiais, agente escolhido para receber um microsistema tutelar legal é pedra de toque do CDC.”
(Contratos no Código de Defesa do Consumidor, Editora Revista dos Tribunais, 4ª Edição, São Paulo, 2002, p. 307)
De fato, o Código Civil de 2002 trouxe significativas inovações no sentido de tratar de forma igualitária os iguais, bem como diferenciar aquelas pessoas que se encontram em situação diversa.
Como já sustentado neste trabalho, não resta dúvida que a interpretação maximalista a respeito do conceito de consumidor era fruto da inexistência de um diploma legal que pudesse satisfazer a ânsia social por um processo mais justo, que efetivamente tutelasse os direitos das partes que se encontravam vulneráveis na relação contratual.
Assim, o Código de Defesa do Consumidor, com a amplitude que se pode extrair do texto do artigo 2º, foi a tábua de salvação, tanto para doutrina quanto para jurisprudência, no sentido de se conferir uma interpretação lata ao conceito nele previsto, englobando pessoas que não podem ser consideradas como consumidoras.
Outrossim, a partir do momento em que se reconhecem os avanços trazidos pela nova sistemática, no sentido de se conferir uma tutela mais efetiva aos jurisdicionados, com mudanças significativas no que diz respeito ao direito contratual, bem como à responsabilidade civil, parece que o direito brasileiro experimenta a mesma mudança verificada no direito alemão, onde existe uma legislação geral para as relações negociais, e outra, mais especial e de campo de atuação restrito, para as pessoas que efetivamente necessitam da proteção.
É lícito afirmar ainda mais: conforme o pragmatismo que é traço característico do povo alemão, não seria demais, muito menos injusto, conceber que somente as pessoas físicas poderiam ser consideradas como consumidores, relegando as pessoas jurídicas ao tratamento dispensado pelo Código Civil, que, diga-se de passagem, atende bem às expectativas de uma tutela efetivamente justa.
Deve-se mencionar o relevo das considerações de CLÁUDIA LIMA MARQUES, ao entender que, a princípio, somente as pessoas físicas poderiam ser consideradas como consumidores, aceitando o pensamento original sobre o conceito de consumidor, a despeito de aceitar, em determinadas situações, que a pessoa jurídica possa ser englobada pela legislação consumerista.
Todavia, neste passo cumpre, data venia, discordar do posicionamento em referência, mais por aspectos práticos do que jurídicos. Com efeito, a entender-se que as pessoas jurídicas podem ser consideradas como consumidores, ainda que excepcionalmente, volverá o mesmo problema de interpretação extensiva que vem ocorrendo na jurisprudência pátria, no sentido de enquadrar-se um número cada mais crescente de relações como se de consumo fossem.
A justificativa é óbvia, pois, como dito, o reconhecimento de que alguém seja consumidor (pessoa física ou jurídica) traz inegáveis benefícios, especialmente no campo do direito processual, razão pela qual deixa de ser interessante conferir espaço para interpretações ampliativas, o que certamente redundaria no desvirtuamento do instituto, tal qual vem ocorrendo hodiernamente.
Deve-se frisar que o Código Civil tem o grande mérito de conferir um tratamento mais justo ao jurisdicionado, com a ampliação dos casos de responsabilidade objetiva e a possibilidade de revisão de contratos que tenham se tornado excessivamente onerosos. Assim, a extensão do conceito de consumidor acabaria por esvaziar todo o campo de aplicação que pode ser abrangido de forma igualmente eficaz pela novel Codificação.
Dada a importância da obra, não se pode deixar de mencionar novamente o pensamento de CLÁUDIA LIMA MARQUES:
“O tema ganhará importância com a entrada em vigor do novo Código Civil Brasileiro. Este sim é um código para “iguais” e, mais, traz normas unificadas sobre contratação civil e comercial, regula o direito da empresa e todos os antes chamados “atos negociais” interempresários ou intercivis, somente não regula o direito do consumidor. Suas normas são para os “iguais”, mas seus princípios são os mesmos do CDC: boa-fé objetiva nos contratos, combate ao abuso de direito, à lesão enorme, à onerosidade excessiva, e possibilidade de desconsideração da personalidade jurídica. Aqui também o Direito Civil quer ter função social e efeito ético na sociedade e no mercado (de produção e comecialização), mas se a todos aplicarmos o CDC qual será o campo de aplicação contratual do novo Código Civil?”
(ob. cit., p. 314)
Continua a autora em referência alertando que “Se continuarmos a seguir a corrente maximalista, a grande maioria das relações interfornecedores (onde estes adquirem insumos, produtos ou serviços para usarem em sua profissão) continuarão a ser reguladas pelo CDC. Em outras palavras, repensar a definição de consumidor, distinguindo suas características principais e usando todos os métodos de interpretação à disposição do aplicador da lei, pode ser – talvez – a única maneira de reservar algum campo de aplicação para este Código Civil, que unificou as obrigações civis e comerciais e que, apesar de seguir os mesmos princípios do CDC, os traz em versões amenizadas, típicas para bem regular situações entre iguais e mais equilibradas que as de consumo.”
(ob. cit., p. 314)
Pode-se concluir, assim, que o conceito de consumidor previsto no artigo 2º do CDC, não é o que melhor se coaduna com o instituto, mormente em vista das inovações trazidas pelo novo Código Civil, onde existe um tratamento mais efetivo para a proteção que se pretende conferir ao jurisdicionado, um reconhecimento explícito de situações de desigualdade entre as partes e que justamente por isso devem ser encaradas de forma diferenciada pelo julgador.
Em havendo disposições expressas no Código Civil sobre a proteção contratual, e a responsabilidade civil, tal como mencionados neste estudo, a própria atividade jurisprudencial mostrará que acertado seria o acolhimento da teoria finalista, tal como originariamente concebida, no que tange ao consumidor, para reconhecer que somente a pessoa física, não-profissional, que adquire produtos para uso pessoal, doméstico e familiar pode ser abrangida pelas benesses conferidas na Lei 8.078/90.
CONCLUSÃO
Diante do que foi exposto, é possível extrair a conclusão de que a extensão que tem sido dada ao conceito de consumidor, até mesmo por causa da impropriedade legislativa contida no artigo 2º do Código de Defesa do Consumidor, não mais se coaduna com o panorama visualizado no direito brasileiro.
Com efeito, não se pode descurar que o Código Civil de 2002 trouxe significativas mudanças no intuito de fornecer uma tutela mais justa e eficaz aos direitos materiais dos indivíduos, o que se mostra particularmente verdadeiro, ante a análise dos dispositivos concernentes à possibilidade de revisão de contratos e do instituto da responsabilidade civil.
Ora, as legislações específicas existem justamente para atenderem a certas particularidades que envolvem determinadas relações jurídicas, como ocorre no caso do consumidor.
De outro tanto, como demonstrado, o escopo precípuo da legislação consumerista, seja no direito brasileiro, seja no alienígena, sempre foi conferir proteção à parte que era hipossuficiente na relação jurídica, em manifesta vulnerabilidade.
Assim, justificava-se a interpretação extensiva do artigo 2º do CDC justamente porque faltava em nosso sistema um diploma legal geral que conferisse a necessária tutela a relações negociais de extrema importância, em que uma das partes era inferiorizada, como é o caso típico do contrato de adesão, por exemplo.
Logo, a partir do momento em que o atual Código Civil trata com clareza extrema temas como a responsabilidade civil pelo simples risco imanente do exercício de determinada atividade econômica, ou ainda da onerosidade excessiva, não se pode negar que a adoção da teoria maximalista do conceito de consumidor não mais se compatibiliza com o panorama empreendido.
Portanto, pode-se dizer que frente aos elementos fornecidos pela novel Codificação, o conceito de consumidor deverá ser restringido aos casos de pessoas físicas, não-profissionais, que adquirem produtos ou serviços para uso próprio, familiar ou doméstico tão somente, tal como previsto na teoria finalista, porquanto nossa legislação geral fornece a proteção necessária àqueles que não podem ser enquadrados na legislação consumerista e gozar do benefícios nela previstos.
Informações Sobre o Autor
Gustavo Passarelli da Silva
Advogado e Professor dos cursos de graduação e pós-graduação de Direito Civil e Direito Processual Civil na Universidade Católica Dom Bosco – UCDB e da Universidade para o Desenvolvimento da Região do Pantanal – UNIDERP, em Campo Grande, MS e professor de Direito Civil da Escola da Magistratura do Estado de Mato Grosso do Sul e da Escola Superior do Ministério Público do Estado de Mato Grosso do Sul. Especialista em Direito Processual Civil e Mestre em Direito e Economia pela Universidade Gama Filho do Rio de Janeiro – UGF/RJ.