Resumo: O presente trabalho tem como foco o estudo da possibilidade jurídica da adoção de crianças e adolescentes por pares homoafetivos. Tendo em vista que a família brasileira sofreu várias transformações ao longo dos anos, dando origem a novas entidades familiares, dentre elas a família formada por pessoas de mesmo sexo, é muito importante que o Direito acompanhe e tutele essa evolução. O estudo foi desenvolvido com o intuito de tratar sobre uma polêmica atual, a adoção de crianças e adolescentes por pares homoafetivos, que por não estar prevista em nosso ordenamento jurídico, impossibilita que crianças que estão nos abrigos tenham a chance de ter uma família, bem como que pessoas de orientação homossexual possam exercer a paternidade / maternidade [1]
Palavras-chave: adoção, família, criança, adolescente, pares homoafetivos.
Sumário: Introdução. 1. A adoção através dos tempos. 1.1. Conceito. 1.2. Natureza jurídica. 1.3. Evolução através dos tempos. 1.4. A adoção no Brasil. 1.5. A adoção no Estatuto da Criança e do Adolescente. 2. A evolução da família. 2.1. Conceito de família. 2.2. A origem e a evolução da família através dos tempos. 2.3. A família nas Constituições brasileiras. 2.4. A família brasileira na Constituição de 1988. 2.4.1. As famílias constituídas pelo casamento. 2.4.2. As famílias constituídas pela união estável. 2.4.3. As famílias monoparentais. 2.4.4. As famílias “unipessoais”. 2.4.5. A união de pessoas do mesmo sexo – uma nova entidade familiar? 3. A adoção por pares homoafetivos. 3.1. Contexto histórico da homossexualidade. 3.2. Conceitos e evolução terminológica. 3.3. A homossexualidade e o preconceito. 3.4. A adoção de crianças por pares homoafetivos. 3.4.1. Fundamentos constitucionais. 3.4.2. A institucionalização de crianças no Brasil. 3.4.3. A possibilidade jurídica do pedido. 3.5. Legislação sobre o tema. 3.6. Decisões judiciais. 3.7. A questão do registro civil. Considerações finais. Referências bibliográficas. Notas.
INTRODUÇÃO
Sabe-se que a família brasileira evoluiu muito nos últimos tempos, antigamente era constituída exclusivamente pelo casamento, o poder familiar era exercido pelo pai, que era o chefe da sociedade conjugal.
Dentre as várias transformações ocorridas, pode-se destacar o surgimento e o reconhecimento de novas entidades familiares, como as famílias formadas a partir da união estável, as famílias monoparentais e a família unipessoal[2], a divisão do poder familiar e a igualdade entre os cônjuges.
De todas estas transformações, talvez a que gera maior polêmica seja a união entre pessoas do mesmo sexo e, conseqüentemente, as relações jurídicas a ela atreladas, como, por exemplo, a partilha de bens, o direito à pensão alimentícia e o direito à adoção, pois embora a homossexualidade esteja presente desde os primórdios da história da humanidade, o largo período de domínio cultural da Igreja fez com que fosse vista como uma doença, arraigando um enorme preconceito em nossa sociedade, presente até os dias atuais.
O presente trabalho de conclusão de curso terá por objetivo discutir acerca da possibilidade jurídica da adoção de crianças e adolescentes por pares homoafetivos, um tema atual e polêmico que por não estar previsto em nosso ordenamento jurídico traz restrições à vida dessas pessoas e é objeto de discussão pela sociedade e pelo direito.
De um lado, há muitas crianças e adolescentes à espera de um lar, de outro, pessoas dispostas a recebê-las como filho (a), dar-lhes amor, carinho, educação e uma vida digna, mas que por apresentarem orientação sexual diversa daquela eleita como padrão pela sociedade, são privadas do direito à paternidade.
A organização do trabalho dar-se-á da seguinte forma:
No primeiro capítulo será abordado o instituto da adoção apresentando-se seu conceito, natureza jurídica e evolução através dos tempos. Será abordada também a adoção no Brasil e sua regulamentação no ordenamento jurídico: do Código Civil de 1916 ao Estatuto da Criança e do Adolescente.
O segundo capítulo tratará da família, tendo como enfoque a família brasileira e sua evolução no direito. Será apresentado um breve estudo sobre os novos modelos de família, reconhecidos após a promulgação da Constituição Federal de 1988. A união entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar também será abordada nesse capítulo.
O terceiro capítulo estudará a possibilidade jurídica da adoção de crianças por pares homoafetivos, partindo-se dos princípios fundamentais estabelecidos pela Constituição Federal e da legislação pertinente ao assunto. Tratará também sobre a homossexualidade, a institucionalização de crianças e adolescentes no país, bem como apresentará decisões judiciais referentes ao tema.
Para a elaboração do presente trabalho utilizar-se-á da pesquisa bibliográfica, consulta a artigos, pesquisas, publicações, legislação e decisões dos tribunais pertinentes ao tema proposto.
1. A ADOÇÃO ATRAVÉS DOS TEMPOS
De acordo com Eunice Ferreira Granato, a adoção é instituto dos mais antigos que integra os costumes de quase todos os povos.[3]
Para analisá-la faz-se necessário, primeiramente, discorrer acerca de sua conceituação e natureza jurídica.
1.1. Conceito
Etimologicamente, segundo o Novo Dicionário Aurélio Século XXI, a palavra adoção é originária do latim adoptione e significa: 1) ação ou efeito de adotar, 2) aceitação voluntária e legal de uma criança como filho, perfilhação, perfilhamento.
Juridicamente, há várias definições para o termo, que variam de acordo com a época e as tradições.
O Direito Romano conceitua adoção da seguinte maneira:
“adoptio est actus solemnis quo in loco filii vel nepotis adscicitur qui natura talis non est, ou seja, adoção é o ato solene pelo qual se admite em lugar de filho aquele que pela natureza não é.” [4]
No Direito Civil Brasileiro, destacam-se os seguintes conceitos:
Para Maria Helena Diniz,
“adoção é o ato jurídico solene pelo qual, observados os requisitos legais, alguém estabelece, independentemente de qualquer relação de parentesco consangüíneo ou afim, um vínculo fictício de filiação, trazendo para sua família na condição de filho, pessoa, que, geralmente, lhe é estranha.” [5]
Caio Mário da Silva Pereira define adoção como
“o ato jurídico pelo qual uma pessoa recebe outra como filho, independentemente de existir entre elas qualquer parentesco consangüíneo ou afim.” [6]
Segundo Pontes de Miranda,
“adoção é o ato solene pelo qual se cria entre o adotante e o adotado relação fictícia de paternidade e filiação.” [7]
Na visão de Orlando Gomes,
“adoção vem a ser o ato jurídico pelo qual se estabelece, independentemente de procriação, o vínculo da filiação. Trata-se de ficção legal, que permite a constituição, entre duas pessoas, do laço de parentesco do 1º grau na linha reta.” [8]
Os conceitos acima apresentados são adequados à concepção de adoção do Código Civil de 1916 e de leis posteriores que regularam esse instituto. Com o advento do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/90), que será abordado posteriormente, observar-se-á que a adoção passou a ter finalidade mais abrangente.
Segundo João Seabra Diniz, atualmente, pode-se definir a adoção como
“a inserção num ambiente familiar, de forma definitiva e com aquisição de vínculo jurídico próprio da filiação, segundo as normas legais em vigor, de uma criança cujos pais morreram ou são desconhecidos, ou, não sendo esse o caso, não podem ou não querem assumir o desempenho de suas funções parentais, ou são pela autoridade competente, considerados indignos para tal.” [9]
Nos dias atuais, pode-se notar que a finalidade moderna da adoção é oferecer um ambiente familiar favorável ao desenvolvimento de uma criança, que, por algum motivo, ficou privada de sua família biológica, atendendo suas necessidades, dando-lhe uma família, onde ela se sinta acolhida, protegida e amada.
1.2. Natureza Jurídica
Há divergências doutrinárias sobre a natureza jurídica da adoção, alguns autores a consideram contrato; outros, ato solene, ou então filiação criada pela lei, ou ainda instituto de ordem pública.
Há ainda os que a consideram figura híbrida, um misto de contrato e de instituição ou instituto de ordem pública.
De acordo com Maria Helena Diniz, a adoção é uma ficção legal que possibilita que se constitua entre o adotante e o adotado um laço de parentesco de 1º grau na linha reta.[10]
Para Sílvio Rodrigues, trata-se de negócio unilateral e solene, muito embora, comenta, a uniteralidade seja discutível, uma vez que a lei reclama o consentimento dos pais ou do representante legal do adotado. [11]
De acordo com Paulo Nader,
“predomina o entendimento de que a adoção é negócio jurídico bilateral. É ato complexo, que exige a declaração de vontade do adotante e do adotado, este diretamente ou por seu representante legal, além de homologação pelo juiz.” [12]
Para Sílvio Venosa, considerando-se as duas modalidades de adoção, de acordo com o Código Civil de 1916 e de acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente, cada uma delas tem natureza jurídica própria:
“Havendo duas modalidades distintas de adoção no Direito brasileiro, de acordo com o Código Civil de 1916 e de acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente, cada uma delas apresenta nitidamente natureza jurídica própria. A adoção do Código Civil de 1916 realçava a natureza negocial do instituto, como contrato de Direito de Família, tendo em vista a singela solenidade da escritura pública que a lei exigia (art. 375). Por outro lado, na adoção no Estatuto da Criança e do Adolescente, não podemos considerar somente a existência de simples bilateralidade na manifestação de vontade, porque o Estado participa necessária e ativamente do ato, exigindo-se uma sentença judicial, tal como também faz o Código Civil de 2002. Sem esta, não haverá adoção. A adoção moderna, da forma na qual nossa legislação não foge à regra, é direcionada primordialmente aos menores de 18 anos, não estando mais circunscrita a mero ajuste de vontades, mas subordinada à inafastável intervenção do Estado. Desse modo, na adoção estatutária há ato jurídico com marcante interesse público que afasta a noção contratual. Ademais, a ação de adoção é ação de estado, de caráter constitutivo, conferindo a posição de filho ao adotado.” [13]
De acordo com Carlos Roberto Gonçalves, no Código Civil de 1916 era nítido o caráter contratual do instituto, pois se tratava de negócio jurídico bilateral e solene, uma vez que se realizava por escritura pública, mediante o consentimento das duas partes: se o adotado era maior e capaz, comparecia em pessoa; se incapaz, era representado pelo pai, ou tutor, ou curador. [14]
Nos dizeres da Professora Maria Alice Lotufo,
“a adoção apresenta-se como figura de natureza híbrida, ou seja, um misto de contrato e de instituição, onde a vontade das partes, bem como o exercício de seus direitos estão regulamentados pelos princípios de ordem pública.” [15]
Conforme afirma Marco Aurélio Viana:
“Assim, em que pesem as divergências, adotamos a concepção daqueles que vêem no instituto um ato complexo, que se desenvolve em duas etapas, sendo que, na primeira, temos uma emissão volitiva, que não é bastante, e que se concretiza na segunda, quando, após processo regular, a pretensão é acolhida e o Juiz exara sentença constitutiva.” [16]
Na adoção regulada pelo Estatuto da Criança e do Adolescente há exigência de várias declarações de vontade: a dos pais biológicos, a dos pais pretendentes à adoção, a da criança, se já tiver completado doze anos e finalmente a manifestação judicial, através de sentença. [17]
Verifica-se, assim, o misto do caráter contratual e de instituição de ordem pública do instituto.
1.3. Evolução através dos tempos
De acordo com Caio Mário da Silva Pereira, o instituto da adoção, assim como o Direito de Família, surgiu na mais remota Antigüidade, com motivações distintas das que apresenta hoje. [18]
Na Índia antiga, a adoção visava assegurar a perpetuidade da família por varonia, pois ao varão cabia celebrar os cultos religiosos. Por isto, as Leis de Manú permitiam a adoção, mas somente entre um homem e um rapaz da mesma classe. Nessa codificação (Sec. II a.C. a II d.C.), a adoção era apresentada como ato solene e com ritual próprio. [19]
Outro exemplo de remoticidade do instituto nos dá o Código de Hamurabi, considerado a primeira a codificação jurídica que se tem notícia. Escrito por Hamurabi (1750-1685 a.C.), rei da Babilônia, esse código traz uma visão da sociedade da época: as classes sociais, as profissões, a situação da mulher e os crimes que eram cometidos. Apresentava duzentos e oitenta dois dispositivos e nove deles eram referentes à adoção (arts. 185 a 193). [20]
A Bíblia traz algumas indicações da existência da adoção entre os hebreus: Moisés, quando salvo das águas do Nilo, foi adotado por Térmulus, a filha do faraó. Ester foi adotada por Mardoqueu. Sara adotou os filhos de sua serva Agar. [21]
Sabe-se que o instituto também era conhecido no Egito, onde jovens eram escolhidos na “Escola da Vida” para serem adotados pelo faraó e, posteriormente, um deles poderia sucedê-lo no trono. [22]
Em Atenas também havia a regulamentação da adoção, e sua finalidade era, como quase na totalidade das civilizações antigas, de cunho religioso, visando garantir a continuidade do culto doméstico e evitar a extinção da família. [23]
De acordo com Eunice Ferreira, foi em Roma que a adoção mais se desenvolveu e onde mais foi utilizada. Além da necessidade de perpetuar o culto doméstico e dar continuidade à família, ali a adoção atingiu também a finalidade política, permitindo que plebeus se transformassem em patrícios e vice-versa, como Tibério e Nero, que foram adotados por Augusto e Cláudio, ingressando no tribunado. [24]
Conforme nos ensina Caio Mário da Silva Pereira, o Direito Romano conheceu três tipos de adoção: [25]
“1º) como ato de última vontade – “adoptio per testamentum” – destinava-se a produzir efeitos “post mortem” do testador, condicionada, todavia, à confirmação da cúria (“oblatio curiae”). Ato complexo e solene, não se usava com freqüência, embora tenha sido empregado em condições de profunda repercussão política, como se deu com a adoção de Otávio Augusto, que mais tarde seria imperador, efetuada por Júlio César. 2º) A adoção diretamente realizada entre os interessados com a denominação especial de ad rogatio, pela qual o adotado capaz (“sui iuris”) se desligava de sua família e se tornava um herdeiro de culto (“heres sacronum”) do adotante. Este ato não fundava-se na dupla emissão volitiva, do adotante e do adotado, e se completava pela formalidade de aprovação na abertura dos comícios. 3º) A entrega de um incapaz (“alieni iuris”) em adoção – “datio in adoptionem” – em virtude da qual o adotante o recebia por vontade própria e anuência do representante do adotado, iniciando-o desde cedo nas práticas propiciatórias dos deuses domésticos, efetuava-se mediante a emancipação que por três vezes o pai lhe concedia em presença do adotante, que simultaneamente o recebia “in potestate”.”
Ainda de acordo com Caio Mário da Silva Pereira, a princípio, só o varão tinha a faculdade de adotar. Mas à medida que se enfraquecia o fundamento religioso, foi-se abalando esta exclusividade, até que, já no século VI, o direito “justinianeu” franqueou-o à mulher que houvesse perdido os filhos – “ad solatium liberorum amissorum” – como uma razão de consolo (Justiniano, Institutas, Liv. I, Tít. XI, § 10: “feminae quoque adoptare non possunt, quia, nec naturales liberos in sua potestate habent; sed ex indulgentia Principis, ad solatium liberorum amissorum, adoptare possunt”). [26]
Na Idade Média, o instituto caiu em desuso. Para isto muito contribuiu a Igreja, que via a adoção como “adversária” do casamento, pois se pessoas podiam ter filhos não naturais para imitação da natureza e amparo delas na velhice, podiam dispensar o matrimônio, desestimulando-se para este. [27]
Na Idade Moderna, é a Dinamarca, no ano de 1863, que registra a primeira referência ao instituto da adoção no Código promulgado por Christian V. Surgiu ainda na Alemanha, no projeto do Código Prussiano, conhecido também como Código de Frederico e no Codex Maximilianus da Bavaria em 1756. [28]
No direito português, com o nome de perfilhamento, praticou-se a adoção, com a finalidade de conceder ao perfilhado a condição de herdeiro. Era feito por documento privado, escrito e devia ser confirmado pelo Príncipe. Consistia num título de filiação, que servia apenas para pedir alimentos e ter outras distinções. [29]
Neste caminho, a adoção sofreu transformações em sua finalidade. Concebida, originariamente, no interesse do adotante, para assegurar a perpetuidade da família e dos cultos domésticos, passou à transmissão do nome e do patrimônio. Modernamente, está ordenada no melhor interesse do menor, tendo por fim protegê-lo, mediante inserção em uma família que lhe dê amor, educação e assegure seu bem-estar e desenvolvimento integral.
1.4. A adoção no Brasil
A princípio, a adoção surgiu somente para suprir a necessidade do casal infértil. Não se pensava em dar uma família a uma criança abandonada.
Quem introduziu no Brasil o ato de expor seus filhos foram os brancos europeus, pois os índios brasileiros não abandonavam seus filhos. Eles trouxeram o que era usado na Europa naquela época para as crianças enjeitadas pelos pais: a “Roda dos Expostos” [30], que era uma maneira de abandonar o filho em Orfanatos e Mosteiros de forma anônima. [31]
De acordo com Eunice Granato, a primeira lei referente à adoção no Brasil data de 22/09/1828, que transferia da Mesa de Desembargo do Paço para os juízes de primeira instância, a competência para a expedição de carta de perfilhamento. [32]
Conforme relata Caio Mário da Silva Pereira, no Brasil a adoção foi sistematizada pelo Código Civil de 1916 (arts. 368 a 378) e deu nascimento a uma relação jurídica de parentesco civil entre adotante e adotado, com a finalidade de proporcionar a filiação a quem não a tivesse de seu próprio sangue. Estabelecia como pressuposto a ausência de filhos legítimos ou legitimados, só os maiores de cinqüenta anos podiam adotar e a diferença mínima de idade entre adotante e adotado era de dezoito anos. [33]
Em 08 de maio de 1957, foi publicada a Lei nº 3.133/57 que reduziu a idade do adotante para 30 anos e a diferença de idade entre adotantes e adotados para 16 anos. Também estabeleceu o qüinqüênio de casamento para adotar, eliminou a exigência de não ter o adotante prole legítima ou legitimada e dispôs sobre o consentimento do adotando, o direito ao nome e sobre a sucessão hereditária. [34]
Em 1965, a Lei nº 4.655 instituiu a legitimação adotiva, forma mais ampla de adoção, pela qual o adotado ficava quase equiparado nos direitos e deveres do filho legítimo, salvo nos casos de sucessão hereditária. Essa lei estabelecia a possibilidade de ser conferido ao menor o nome do legitimante, como também a mudança de prenome. Assim os pais adotivos podiam dar ao menor o prenome que escolhessem, acrescentando os apelidos de família que eles próprios ostentavam. [35]
A Lei nº 6.697, de 10 de outubro de 1969, instituiu o chamado Código de Menores, que introduziu a adoção plena, substituindo a legitimação adotiva da Lei 4.655/65, que foi expressamente revogada, e também admitiu a adoção simples. Essa lei destinava-se à proteção dos menores até dezoito anos de idade que se encontrassem em situação irregular. [36]
A Constituição Federal de 1988 igualou os direitos de todos os filhos, ao tratar da Ordem Social, no Título VIII, Capítulo VII, Da Família, da Criança, do Adolescente e do Idoso (arts. 226 a 230), estabelecendo no § 6º do art. 227: “Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação”. (grifo nosso)
Neste sentido, pode-se citar alguns precedentes:
“APELAÇÃO. PREVIDENCIÁRIO. IPERGS. RESTABELECIMENTO DE PENSÃO. BENEFICIÁRIA PORTADORA DE NECESSIDADES ESPECIAIS. FILHA ADOTIVA. PRINCÍPIO DA IGUALDADE. COMPENSAÇÃO DOS VALORES PAGOS ÀS DEMAIS PENSIONISTAS. COMPENSAÇÃO DE HONORÁRIOS. INVIABILIDADE. 1. A lei é clara ao elencar os beneficiários do falecido segurado. A filha inválida está amparada pelos arts. 9º, inc. I, da Lei Estadual nº 6.617/73 e, 9º e 14, da nº 7.672/82. 2. Afronta à Constituição à discriminação de se conferirem aos filhos com guarda, direitos não estendidos aos filhos sem guarda. Além disso, a Carta Constitucional ainda prevê no art. 227, §6º a igualdade de direitos entre os filhos. 3. O valor da pensão deve ser calculado de forma a reincluir definitivamente a apelada como pensionista, devendo o IPERGS efetuar o pagamento das diferenças que não foram pagas. 4. Os juros moratórios são devidos desde a citação válida (Súmula 204 do STJ), e esta se deu sob a égide do atual Código Civil, devendo ser aplicados 12% ao ano a partir de 10/01/03, em razão da entrada em vigor do novo Código Civil. 5. Impossibilidade de compensação de verba honorária. Exegese dos artigos 23 e 24, do EOAB Lei nº 8.906/94. 6. Não conheço do reexame necessário, com base no disposto no art. 475, §§ 2º e 3º, do CPC. CONHEÇO DO RECURSO E DOU-LHE PARCIAL PROVIMENTO, NÃO CONHECENDO DO REEXAME NECESSÁRIO.” (Apelação e Reexame Necessário Nº 70009323098, Vigésima Primeira Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Sergio Luiz Grassi Beck, Julgado em 11/05/2005). (grifo nosso)
“FILHO ADOTIVO. SUCESSÃO HEREDITÁRIA, IGUALDADE CONSTITUCIONAL. ADOÇÃO ANTERIOR A CONSTITUIÇÃO. APLICAÇÃO IMEDIATA. LEI DA ABERTURA DA SUCESSÃO. HABILITAÇÃO. A Constituição vigente estabeleceu a igualdade de direitos sucessórios entre os filhos, não fazendo qualquer distinção entre legítimos ou adotivos. Por outro lado, não restringiu sua aplicação apenas a adoção de menores, pois se trata de dispositivos com abrangência múltipla, com eficácia imediata, atingindo os atos anteriores a sua vigência. a igualdade, entretanto, somente incide em sucessões abertas apos o advento da carta, pois a transmissão hereditária rege-se pela lei da época. subsídios doutrinários e jurisprudenciais. Exegese do art. 227, par.6º, CF e art. 1577, CC. Agravo provido, em parte.” (Agravo de Instrumento nº 593127806, Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Des. José Carlos Teixeira Giorgis, julgado em 15/06/1994). (grifo nosso)
A seguir, em 13 de julho de 1990, foi publicada a Lei nº 8.069/90, conhecida como Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que teve origem no art. 227 da Constituição Federal, revogou expressamente o Código de Menores (lei 6.697/79) e dispõe que a adoção de criança ou adolescente menor de 18 anos será por ela regida (art. 39).
Após a promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente, a visão do instituto mudou de ângulo e passou-se a enxergar a adoção como uma forma de proteger a criança que por algum motivo estivesse sem a proteção de seus pais biológicos.
1.5. A adoção no Estatuto da Criança e do Adolescente
O objetivo do Estatuto da Criança e do Adolescente é a proteção integral da criança e do adolescente, conforme declara seu artigo 1º, sendo inovação a colocação sob a égide dessa lei, de todo menor de 18 anos e não apenas aqueles que estivessem em situação irregular, como ocorria com o Código de Menores.
Dentre os diversos direitos nele elencados, dispõe que a criança ou adolescente tem o direito fundamental de ser criado no seio de uma família, seja esta natural ou substituta. [37]
Entre as modalidades de colocação em família substituta, está a adoção, medida de caráter excepcional, mas irrevogável, que atribui a condição de filho ao adotado, impondo-lhe todos os direitos e deveres, inclusive sucessórios, inerentes à filiação, desligando-o de qualquer vínculo com os pais e parentes. [38]
Os dispositivos relacionados à adoção, encontram-se elencados nos artigos 39 ao 52 da Lei 8.069/90, dentre os quais deve-se destacar:
a) o adotando deve contar com, no máximo, dezoito anos à data do pedido, salvo se já estiver sob a guarda ou tutela dos adotantes (art. 40);
b) o adotante deve ter no mínimo 21 anos, independente de estado civil, e ser pelo menos 16 anos mais velho que o adotando. Se for casado ou conviver em união estável, um dos membros do casal deve ter a idade de 21 anos. (art. 42 “caput” e §§ 2º e 3º);
c) não podem adotar os ascendentes e irmãos do adotando (art. 42, § 1º); [39]
d) a adoção poderá ser decretada se ocorrer a morte do adotante no curso do procedimento e antes da sentença (art. 42, § 5º); [40]
e) a adoção depende do consentimento dos pais ou do representante legal do adotando, sendo dispensável se os pais forem desconhecidos ou tenham sido destituídos do pátrio poder. Se o adotando for maio de 12 anos, será necessário também o seu consentimento (art. 45);
f) o vínculo da adoção constitui-se por sentença judicial que será inscrita no registro civil e passará a produzir efeitos após o trânsito em julgado da sentença (art. 47);
g) a adoção é irrevogável (art. 48). [41]
Após as considerações apresentadas sobre o instituto da adoção, faz-se necessário falar sobre a família, elemento indispensável para a formação e desenvolvimento da criança e do adolescente.
No capítulo seguinte será apresentado um estudo sobre a família, discorrendo sobre sua origem e transformação através dos tempos. Esse capítulo tratará também sobre a família brasileira e sua evolução no ordenamento jurídico, abordando os grupos familiares atualmente reconhecidos e também a união entre pessoas do mesmo sexo.
2. A EVOLUÇÃO DA FAMÍLIA
Como ocorre com a adoção, o conceito de família também apresenta variações através dos tempos.
2.1. Conceito de família
De acordo com Rodrigo da Cunha Pereira, o conceito de família atravessa o tempo e o espaço, sempre tentando clarear e demarcar o seu limite, especialmente para fins de direito. [42]
Etimologicamente, família advém do latim famulia, que deriva de famulus (escravo), vocábulo originado do osco famel, servo, e do sânscrito vama, lugar ou habitação. [43]
A Declaração Universal dos Direitos do Homem, em seu artigo 16, III, estabeleceu:
“A família é o núcleo natural e fundamental da sociedade e tem direito à proteção da sociedade e do Estado.”
Em 1969, a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, assinada em São José da Costa Rica, em seu artigo 17, conceituou:
“A família é o elemento natural e fundamental da sociedade e deve ser protegida pela Sociedade e pelo Estado.”
Clóvis Bevilácqua define família como
“um conjunto de pessoas ligadas pelo vínculo da consangüinidade, cuja eficácia se estende ora mais larga, ora mais restritamente, segundo as várias legislações. Outras vezes, porém, designam-se por família, somente os cônjuges e a respectiva progênie.” [44]
Para Paulo Nader,
“família é uma instituição social, composta por mais de uma pessoa física, que se irmanam no propósito de desenvolver, entre si, a solidariedade nos planos assistencial e da convivência ou simplesmente descendem uma da outra de um tronco comum.” [45]
De acordo com Maria Helena Diniz, na seara jurídica encontram-se três acepções do vocábulo família: a amplíssima, a lata e a restrita:
a) No sentido amplíssimo o termo abrange todos os indivíduos que estiverem ligados pelo vínculo da consangüinidade ou da afinidade, chegando a incluir estranhos, como no caso do artigo 1412 § 2º do Código Civil, em que as necessidades do usuário compreendem também as das pessoas do seu serviço doméstico.
b) Na acepção lata, além dos cônjuges ou companheiros, e de seus filhos, abrange os parentes de linha reta ou colateral, bem como os afins (os parentes do outro cônjuge ou companheiro), como a concebem os artigos 1591 e s. do Código civil, o Decreto-lei nº 3200/41 e a Lei 883/49.
c) Na significação restrita é a família (CF, art. 226 §§ 1º e 2º) o conjunto de pessoas unidas pelos laços do matrimônio e da filiação, ou seja, unicamente os cônjuges e a prole (CC, arts, 1567 e 1716) e entidade familiar a comunidade formada pelos pais, que vivem em união estável, ou por qualquer dos pais e descendentes, como prescreve o art. 226, §§ 3º e 4º, da Constituição Federal, independente de existir o vínculo conjugal que a originou. [46]
A Constituição Federal, em seu artigo 226 caput, preceitua que a família é a base da sociedade e tem especial proteção do Estado. Define ainda três espécies de entidades familiares [47]:
– a constituída pelo casamento civil ou religioso com efeitos civis (CF, art. 226, §§ 1º e 2º);
– a constituída pela união estável entre o homem e a mulher devendo a lei facilitar sua conversão em casamento (CF, art. 226, § 3º);
– a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes (CF, art. 226, § 4º).
A lei 11.340/06, conhecida como Lei Maria da Penha, criada com o objetivo de coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, ampliou o conceito de família quando considerou em seu artigo 5º, inciso II, que
“a família é compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa”.
De acordo com a definição do IBGE:
“Família é o conjunto de pessoas ligadas por laços de parentesco, dependência doméstica ou normas de convivência, residente na mesma unidade domiciliar, ou pessoa que mora só em uma unidade domiciliar. Entende-se por dependência doméstica a relação estabelecida entre a pessoa de referência e os empregados domésticos e agregados da família, e por normas de convivência as regras estabelecidas para o convívio de pessoas que moram juntas, sem estarem ligadas por laços de parentesco ou dependência doméstica. Consideram-se como famílias conviventes as constituídas de, no mínimo, duas pessoas cada uma, que residam na mesma unidade domiciliar.” [48]
A partir das definições acima apresentadas, pode-se observar que o conceito de família sofreu uma ampliação em seu conteúdo: no passado eram considerados como seus membros apenas pessoas ligadas pelo vínculo da consangüinidade, atualmente são considerados como familiares pessoas que convivem entre si, não sendo necessária a presença de laços naturais.
2.2. A origem e a evolução da família através dos tempos
A origem da família ou a formação dos primeiros grupos familiares primitivos é tema que não encontra consenso nas teorias sociológicas desenvolvidas com esse objeto.
Conforme descrição feita por Friedrich Engels, no estado primitivo das civilizações o grupo familiar não se assentava nas relações individuais. As relações sexuais ocorriam entre todos os membros que integravam a tribo (endogamia). Disso decorria sempre que a mãe era conhecida, mas se desconhecia o pai, o que permite afirmar que a família teve origem matriarcal, porque a criança ficava sempre junto à mãe, que a alimentava e educava.[49]
Posteriormente, na vida primitiva, as guerras, a carência de mulheres e talvez uma inclinação natural levaram os homens a buscar relações com mulheres de outras tribos, antes do que em seu próprio grupo. Os historiadores fixam neste fenômeno a primeira manifestação contra o incesto no meio social (exogamia). Nesse diapasão, no curso da história o homem marcha para relações individuais, com caráter de exclusividade, embora algumas civilizações mantivessem concomitantemente situações de poligamia, como ocorre até o presente. Desse modo, atinge-se a organização atual de inspiração monogâmica.[50]
Caio Mário da Silva Pereira aponta que essa posição antropológica que sustenta a promiscuidade não é isenta de dúvidas, entendendo ser pouco provável que essa estrutura fosse homogênea em todos os povos. [51]
Para ele, levando-se em consideração as referências literárias, as contribuições de historiadores e outros documentos, pode-se retratar a família romana como padrão institucional no ocidente, principalmente tendo em vista que a família brasileira no século XIX a ela muito se assemelhava. [52]
Em Roma, a família era organizada sobre o princípio da autoridade, exercido pelo pater família, que abrangia quantos a ela estavam submetidos. O pater era, ao mesmo tempo, chefe político, sacerdote e juiz. Comandava, oficiava o culto aos deuses domésticos e distribuía justiça. [53]
O poder do pater exercido sobre a mulher, os filhos e os escravos é quase absoluto. A família como grupo é essencial para a perpetuação do culto familiar. No Direito Romano, assim como no grego, o afeto natural, embora pudesse existir, não era o elo entre os membros da família. Nem o nascimento nem a afeição foram fundamentos da família romana. Os membros da família antiga eram unidos por vínculo mais poderoso que o nascimento: a religião doméstica e o culto dos antepassados. Por esse largo período da Antiguidade, família era um grupo de pessoas sob o mesmo lar, que invocava os mesmos antepassados. [54]
Sobre a evolução da família e sua estrutura nos dias atuais, nos ensina Sílvio Venosa:
“A passagem da economia agrária à economia industrial atingiu irremediavelmente a família. A industrialização transforma drasticamente a composição da família, restringindo o número de nascimentos nos países mais desenvolvidos. A família deixa de ser uma unidade de produção na qual todos trabalhavam sob a autoridade de um chefe. O homem vai para a fábrica e a mulher lança-se para o mercado de trabalho. No século XX, o papel da mulher transforma-se profundamente, com sensíveis efeitos no meio familiar. Na maioria das legislações, a mulher, não sem superar enormes resistências, alcança os mesmos direitos do marido. Com isso transfigura-se a convivência entre pais e filhos.
As uniões sem casamento, apesar de serem muito comuns em muitas civilizações do passado, passam a ser regularmente aceitas pela sociedade e pela legislação. A unidade familiar, sob o prisma social e jurídico, não mais tem como baluarte exclusivo o matrimônio. A nova família estrutura-se independente de núpcias.” [55]
2.3. A família nas Constituições brasileiras
Para que se possa entender a evolução da família no direito brasileiro, faz-se necessário um estudo de sua abordagem nas Constituições e legislação brasileiras.
A primeira Constituição do Brasil, outorgada em 1824 pelo Imperador D. Pedro I, não fez nenhuma menção à família ou ao casamento. Tratou apenas em seu capítulo III (arts. 105 a 115) da família imperial e seu aspecto de dotação.[56]
Segundo Luciana Nahas, isso não significa que não havia regulamentação jurídica a respeito da família. Não se pode esquecer que a religião católica era a religião oficial do Brasil, nos moldes do artigo 5º do texto constitucional. Desta forma, incumbia ao direito Canônico regulamentar as questões referentes ao casamento e suas conseqüências. [57]
A segunda Constituição do Brasil e primeira da República, promulgada em 1891, também não dedicou capítulo especial à família. Entretanto em seu artigo 72, § 4º, dizia: “A República só reconhece o casamento civil, cuja celebração será gratuita.” Esse artigo ficou inserido nesta constituição em razão da separação Igreja/Estado. A partir do regime republicano, o catolicismo deixou de ser a religião oficial e, com isso, tornou-se necessário mencionar o casamento civil como o vínculo constituinte da família brasileira. Até então era dispensável, pois as famílias constituíam-se pelo vínculo do casamento religioso, que tinha automaticamente efeitos civis, já que não havia a separação dos poderes da Igreja / Estado. [58]
Sob a regência desta Constituição, foi elaborado o Código Civil de 1916, Lei nº 3.701 de 01/01/1916, regulamentado as questões familiares da época. [59]
A família, de acordo com o Código Civil de 1916, caracterizava-se por ser entidade formada exclusivamente pelo matrimônio civil. O patriarcado é uma das principais características do modelo vigente, com a subordinação da mulher e dos filhos ao comando do pai. Havia uma distinção no tocante aos filhos havidos durante o casamento – os chamados filhos legítimos – e os havidos fora do casamento, ou filhos ilegítimos. [60]
A segunda Constituição da República (1934) dedicou um capítulo à família, onde em quatro artigos (144 a 147) estabelecia as regras do casamento indissolúvel. Foi, portanto, a partir dessa Constituição que, seguindo uma tendência internacional e com as modificações sociais, as Constituições passaram a dedicar capítulos à família e a tratá-la separadamente, dando-lhe maior importância. [61]
A Constituição de 1934 manteve o modelo familiar adotado pelo Código Civil de 1916, com a elevação da proteção jurídica ao patamar constitucional. A família, reconhecida e amparada pelo direito, era a entidade constituída através do casamento e dos filhos oriundos deste. Não houve a preocupação do legislador em apresentar um conceito do que seria uma família, apenas especificou o ato pelo qual se constituía e que era indissolúvel. [62]
A Constituição de 1937, apesar de alterar importantes conceitos políticos e administrativos da organização do Estado e reduzir alguns dos direitos individuais e políticos, manteve o direito de proteção à família, com pequenas alterações, em um capítulo específico. [63]
Da mesma forma que a anterior, a Constituição de 1937 também não apresentou um conceito de família, apesar de impor algumas alterações ao tratar da necessidade de educação da prole, a colaboração estatal para as famílias necessitadas e a igualdade entre os filhos naturais e legítimos. [64]
A Constituição de 1946 não trouxe mudanças significativas no tratamento da família, em relação às anteriores. Continuou atrelada ao casamento civil com vínculo indissolúvel, e retornou a possibilidade, já prevista na Constituição de 1934 e suprimida na de 1937, de registro civil do casamento religioso. [65]
As Constituições de 1967 e 1969 (Emenda nº 1/69), seguindo a mesma linha de pensamento traziam em seu texto um sentido único de que o casamento indissolúvel era a única forma de se constituir uma família.[66]
A edição da Emenda Constitucional nº 9, de 29/06/1977, que tornou possível a dissolução do vínculo conjugal através do divórcio, trouxe uma mudança significativa à estrutura da família brasileira. Logo após a Emenda, foi editada a Lei 6.515 de 26/12/1977, a Lei do Divórcio, regulamentando então as causas, prazos e procedimentos para a dissolução da sociedade conjugal e do casamento. [67]
Mesmo com esse avanço legislativo, ainda não eram reconhecidas outras formas de constituição da entidade familiar, não vinculadas ao matrimônio civil ou religioso.
De acordo com João Roberto Salazar Júnior,
“o panorama histórico familiar na esfera constitucional, desde a Constituição de 1891 até a de 1969, revela extrema rigidez do legislador constitucional, e, conseqüentemente, descompasso com as evoluções sociais, na medida em que as diversas Constituições apenas contemplaram expressamente a família oriunda do casamento indissolúvel. As demais entidades familiares eram relegadas à condição de sociedades de fato, cuja proteção do Estado era defendida somente por alguns autores, a partir de uma interpretação aberta do texto constitucional.” [68]
2.4. A família brasileira na Constituição de 1988
A Constituição de 1988 representou uma profunda ruptura em relação ao conceito de família estabelecido pelas Constituições anteriores.
De acordo com Rodrigo da Cunha Pereira, a Constituição de 1988 ampliou a idéia de família anteriormente concebida pelo direito brasileiro:
“…a idéia de família para o Direito brasileiro sempre foi a de que ela é constituída de pais e filhos unidos a partir de um casamento regulado e regulamentado pelo Estado. Com a Constituição de 1988 esse conceito ampliou-se, uma vez que o Estado começou a reconhecer ‘como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes, bem como a união estável entre homem e mulher’. Isto significa uma evolução do conceito de família. Até então, a expressão da lei jurídica só reconhecia como família aquela entidade constituída pelo casamento. Em outras palavras, o conceito de família se abriu, indo em direção a um conceito mais real, impulsionado pela própria realidade.” [69]
A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 226, abriu e ampliou as formas de constituição de família.
Da leitura do referido artigo, pode-se observar que além da família constituída pelo casamento (art. 226 §§ 1º e 2º), a Carta Magna reconhece explicitamente a família constituída pela união estável (art. 226, § 3º) e a família monoparental, compreendida como “a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes” (art. 226, § 4º), conforme já abordado no item 2.1 do presente estudo.
Como nos ensina Luciana Faísca Nahas, houve um alargamento conceitual de família trazido pela Constituição Federal de 1988, voltado muito mais à proteção da dignidade do ser humano, que deixou de ser mero partícipe da entidade, mas sim o objetivo geral de sua formação. O paradigma do casamento, sexo e procriação não serve mais para identificar um vínculo interpessoal digno de proteção. A família passou a ser vivenciada como um espaço de afetividade destinado a realizar os anseios de felicidade de cada um.[70]
Pode-se observar, porém, que o legislador não apresentou um conceito do que seria família, apenas, expressamente, ampliou a abrangência da proteção do Estado ao instituto.
Adiante, serão abordadas, de forma sucinta, as famílias atualmente reconhecidas pela Constituição Federal.
2.4.1. As famílias constituídas pelo casamento
A primeira entidade familiar protegida pela Constituição Federal é a formada pelo casamento, porém sem a exclusividade a ele antes reservada.
Estabelece que no Brasil o casamento é civil (art. 226, § 1º), mas reconhece que o casamento religioso tem efeitos civis na forma da lei (art. 226, § 2º) e iguala os direitos e deveres entre os cônjuges na constância da sociedade conjugal (art. 226, § 5º).
O casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio, após prévia separação judicial (art. 226, § 6º).
Muito embora o casamento não seja mais o único instituto formador da família, ainda é considerado por muitos doutrinadores como a mais importante instituição do direito de família. [71]
2.4.2. As famílias constituídas pela união estável
De acordo com parágrafo 3º do artigo 226 da Constituição Federal, “é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.”
Como já abordado anteriormente, antes da Constituição Federal de 1988 não eram reconhecidas outras formas de constituição da entidade familiar que não fossem vinculadas ao matrimônio civil ou religioso.
Desta forma as relações estabelecidas fora do casamento, que existem desde o início da nossa colonização [72], eram tidas como ilegítimas e consideradas como sociedades de fato, portanto não tuteladas pelo direito.
O instituto é regulamentado pela Lei 8.971/94, que trata sobre o direito dos companheiros a alimentos e à sucessão e pela Lei 9.278/96, que regula o § 3º do artigo 226 da Constituição Federal.
O Código Civil trata da união estável nos artigos 1723 a 1727 e não trouxe inovação ao ordenamento jurídico, visto que esta já era regulamentada pelas leis 8.971/94 e 9.278/96. [73]
2.4.3. As famílias monoparentais
A família monoparental, reconhecida constitucionalmente como entidade familiar é conceituada como, “a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes”. [74]
O reconhecimento e a definição da família monoparental como família natural também é extraído do artigo 25 do Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei nº 8.069/90, que dispõe que “entende-se por família natural a comunidade formada pelos pais ou qualquer deles e seus descendentes”.
Para Eduardo de Oliveira Leite,
“uma família é monoparental quando a pessoa considerada (homem ou mulher) encontra-se sem cônjuge, ou companheiro, e vive com uma ou várias crianças”. [75]
De acordo com levantamento feito pelo IBGE, no período 1997/2007, no conjunto de famílias que têm todos os filhos menores de 16 anos, houve um crescimento da proporção daquelas que são do tipo monoparental: passando de 19,2% para 21,8%, o que está de acordo com os dados do registro civil sobre o aumento das separações conjugais. [76]
Eduardo de Oliveira Leite nos ensina que a monoparentalidade sempre existiu, se levarmos em consideração a ocorrência de mães solteiras, mulheres e crianças abandonadas, porém só se impôs como fenômeno social nas três últimas décadas, com maior intensidade nos últimos 20 anos, período em que se constata o maior número de divórcios (uma das causas geradoras do fenômeno).[77]
O reconhecimento da existência das famílias monoparentais e sua especial proteção pelo Estado podem ser considerados como a manifestação de uma política familiar que não mais se limita aos padrões tradicionais, mas que quebra preconceitos e se estende à realidade fática da sociedade brasileira.
2.4.4. As “famílias unipessoais”
Além das entidades familiares citadas acima, já se reconhece como entidade familiar a pessoa que vive sozinha.
Como já abordado no item 2.1, o IBGE define como família o conjunto de pessoas ligadas por laços de parentesco, dependência doméstica ou normas de convivência, residente na mesma unidade domiciliar, ou pessoa que mora só em uma unidade domiciliar.
Conforme pesquisa realizada pelo IBGE em 2008, houve grande crescimento da proporção de pessoas que vivem sozinhas (8,3% em 1997 para 11,1% em 2007), uma tendência que vem sendo verificada nos últimos anos, fruto da redução das taxas de mortalidade e do aumento da esperança de vida, especialmente para as mulheres. Em 2007, os arranjos familiares unipessoais correspondiam a cerca de 6,7 milhões, sendo que 40,8% eram constituídos por pessoas de 60 anos ou mais de idade. [78]
De acordo com Euclides de Oliveira, geralmente se entende como entidade familiar o agrupamento formado por um casal, com ou sem filhos. Mas bem pode ocorrer que alguém, por mudança de seu estado civil ou por preferir a vida celibatária, resida sozinha em seu imóvel. Nem por isso perde a qualidade de uma pessoa humana integrada em comunidade familiar, conquanto seus parentes residem em outro local.[79]
Em 15 de outubro de 2008, foi aprovada pelo Supremo Tribunal de Justiça a Súmula 364, que amplia os casos em que se pode usar a proteção do bem de família: “O conceito de impenhorabilidade de bem de família abrange também o imóvel pertencente a pessoas solteiras, separadas e viúvas”.
O bem de família foi criado pela Lei 8.009/90 e é definido como o imóvel residencial próprio do casal, ou da entidade familiar, que se torna impenhorável para pagamento de dívida.
O projeto que deu origem à nova súmula foi relatado pela ministra Eliana Calmon e teve como precedentes os julgamentos nos Recursos Especiais (Resp) 139.012, 450.989, 57.606 e 159.851, consagrando a interpretação extensiva da entidade familiar.[80]
Destaca-se a seguir decisão proferida pelo supremo Tribunal de Justiça que estende o conceito de família à pessoa que vive sozinha, ou seja, a “família unipessoal”:
“CIVIL – IMÓVEL – IMPENHORABILIDADE – “A Lei nº 8.009/90. O art. 1º precisa ser interpretado consoante o sentido social do texto. Estabelece limitação à regra draconiana de o patrimônio do devedor responder por suas obrigações patrimoniais. O incentivo à casa própria busca proteger as pessoas, garantido-lhes o lugar para morar. Família, no contexto, significa instituição social de pessoas que se agrupam, normalmente por laços de casamento, união estável, ou descendência. Não se olvidem ainda os ascendentes. Seja o parentesco civil, ou natural. Compreende ainda a família substitutiva. Nessa linha, conservada a teleologia da norma, o solteiro deve receber o mesmo tratamento. Também o celibatário é digno dessa proteção. E mais. Também o viúvo, ainda que seus descendentes hajam constituído outras famílias, e como, normalmente acontece, passam a residir em outras casas. “Data venia”, a Lei nº 8.009/90 não está dirigida a número de pessoas. Ao contrário – à pessoa. Solteira, casada, viúva, desquitada, divorciada, pouco importa. O sentido social da norma busca garantir um teto para cada pessoa. Só essa finalidade, “data venia”, põe sobre a mesa a exata extensão da lei. Caso contrário, sacrificar-se-á a interpretação teleológica para prevalecer a insuficiente interpretação literal.” (STJ – 6ª T. – REsp 182.223 / SP – Rel. Min. Luiz Vicente Cernicchiaro, Diário da Justiça, Seção I, 10 maio 1999, p. 234). (grifo nosso)
2.5. A união entre pessoas do mesmo sexo – uma nova entidade familiar?
Os modelos de família biparental, com ou sem casamento, e o monoparental têm expressa previsão legal. Mas há, atualmente, outro tipo de família não regulada pelo ordenamento pátrio.
A união entre pessoas de mesmo sexo pode ser considerada como entidade familiar?
Esta pergunta tem gerado polêmica na doutrina e na jurisprudência, pois para respondê-la é necessário saber se as entidades familiares previstas textualmente na Constituição Federal constituem numerus clausus, ou se é possível estender o conceito de família, e conseqüentemente a proteção do Estado (art. 226, caput, CF) para outros agrupamentos, como por exemplo, as uniões homoafetivas.
De acordo com João Roberto Salazar Júnior, parte da doutrina entende que somente as três espécies de família previstas na Constituição Federal são reconhecidas para fins de proteção jurídica. Dentre os principais doutrinadores que partilham desse entendimento, destacam-se José Cretella Júnior, Sérgio Gischkow Pereira, Sílvio Luís Ferreira da Rocha e Manoel Gonçalves Pereira Filho. [81]
Por outro lado há uma corrente que sustenta que a norma da Constituição Federal não é taxativa quanto à enumeração das entidades familiares que merecem proteção do Estado.
Um dos principais defensores dessa corrente é Paulo Luiz Netto Lôbo que defende que as entidades familiares indicadas na Constituição assim o foram por serem mais conhecidas; daí não sendo possível afirmar que se trata de rol taxativo, pois família é um conceito indeterminado, cuja concretização deve ser feita pelo intérprete. [82]
Maria Berenice Dias também se destaca entre os doutrinadores que conferem interpretação ampliativa à norma constitucional. Segundo ela,
“o Código Civil ignorou o alargamento conceitual que ocorreu na estrutura familiar, passando a albergar todas as formas de convívio que, tendo origem em um olhar, acabam levando a comunhão de vidas, ao comprometimento mútuo e a responsabilidades recíprocas. Defende assim, que todas as formas familiares estão contempladas no artigo 226, merecendo a devida proteção do Estado, pois o que este visa a albergar, em última instância, não é a família em si, mas os indivíduos que a integram, de modo a proporcionar-lhes o desenvolvimento pessoal.” [83]
Partindo-se do princípio de que a norma da Constituição Federal não é taxativa quanto à enumeração das entidades familiares que merecem proteção do Estado, a qual entidade familiar estaria comparada a união homoafetiva?
No âmbito específico do Direto de Família, existem divergências sobre a possibilidade de reconhecimento de uniões de pessoa do mesmo sexo como entidades familiares. A ausência de previsão legal expressa é o principal motivo para a negativa desta possibilidade. [84]
De acordo com Maria Berenice Dias, existem duas Propostas de Emenda
Constitucional que buscam afastar a discriminação por orientação sexual e proteger as uniões homoafetivas, porém estão arquivadas: a PEC 66/2003 dá nova redação aos artigos 3º e 7º da Constituição Federal, incluindo entre os objetivos fundantes do Estado a promoção do bem de todos, sem preconceitos de orientação sexual. Já a PEC 70/2003 pretende a alteração do § 3º do artigo 226 da CF, para afastar a expressão “entre um homem e uma mulher” do dispositivo que prevê a união estável. [85]
Na Câmara dos Deputados, o mais antigo e popular dos Projetos de Lei que regula a “união civil entre pessoas do mesmo sexo” é o de número 1.151, de 1995, de autoria da ex-deputada Marta Suplicy, porém foi retirado da pauta de votação em 31/05/2001. [86]
A Lei Maria da Penha (11.340/06) reconhece de forma explícita, no parágrafo único de seu artigo 5º, a união entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar, senão vejamos:
Art.5º: Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e de dano moral ou patrimonial:
I – (…)
II – no âmbito familiar, compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa;
III – (…)
Parágrafo único. As relações enunciadas neste artigo independem de orientação sexual.
Como não há previsão jurídica para a união entre pessoas do mesmo sexo, os tribunais têm aplicado, por analogia, as regras da união estável, conforme podemos observar nas decisões destacadas a seguir.
A primeira decisão aqui destacada é relatada pela Desembargadora Maria Berenice Dias, que aplicando a analogia, reconheceu efeitos de união estável a relacionamento afetivo de nove anos entre dois homens, fundamentando seu posicionamento nos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e no princípio da igualdade, justificando ainda que a ausência de lei específica não significa ausência de direito. Segue o teor da ementa:
“APELAÇÃO CÍVEL. UNIÃO HOMOAFETIVA. RECONHECIMENTO. PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E DA IGUALDADE.
É de ser reconhecida judicialmente a união homoafetiva mantida entre dois homens de forma pública e ininterrupta pelo período de nove anos. A homossexualidade é um fato social que se perpetuou através dos séculos, não podendo o judiciário se olvidar de prestar a tutela jurisdicional a uniões que, enlaçadas pelo afeto, assumem feição de família. A união pelo amor é que caracteriza a entidade familiar e não apenas a diversidade de gêneros. E, antes disso, é o afeto a mais pura exteriorização do ser e do viver, de forma que a marginalização das relações mantidas entre pessoas do mesmo sexo constitui forma de privação do direito à vida, bem como viola os princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade. Ausência de regramento específico. Utilização de analogia e dos princípios gerais de direito. A ausência de lei específica sobre o tema não implica ausência de direito, pois existem mecanismos para suprir as lacunas legais, aplicando-se aos casos concretos a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito, em consonância com os preceitos constitucionais (art. 4º da LICC). Negado provimento ao apelo, vencido o Des. Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves.” (Ap. Cív. 70009550070 – 7ª Câmara Cível – TJRS – Relª. Des. Maria Berenice Dias – j. em 17.11.2004). (grifo nosso)
O Tribunal de Justiça de Minas Gerais também manifesta entendimento de que a união homoafetiva deve ser equiparada a entidade familiar:
“AÇÃO ORDINÁRIA – UNIÃO HOMOAFETIVA – ANALOGIA COM A UNIÃO ESTÁVEL PROTEGIDA PELA CONSTITUIÇÃO FEDERAL – PRINCÍPIO DA IGUALDADE (NÃO-DISCRIMINAÇÃO) E DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA – RECONHECIMENTO DA RELAÇÃO DE DEPENDÊNCIA DE UM PARCEIRO EM RELAÇÃO AO OUTRO, PARA TODOS OS FINS DE DIREITO – REQUISITOS PREENCHIDOS – PEDIDO PROCEDENTE. – À união homoafetiva, que preenche os requisitos da união estável entre casais heterossexuais, deve ser conferido o caráter de entidade familiar, impondo-se reconhecer os direitos decorrentes desse vínculo, sob pena de ofensa aos princípios da igualdade e da dignidade da pessoa humana. – O art. 226, da Constituição Federal não pode ser analisado isoladamente, restritivamente, devendo observar-se os princípios constitucionais da igualdade e da dignidade da pessoa humana. Referido dispositivo, ao declarar a proteção do Estado à união estável entre o homem e a mulher, não pretendeu excluir dessa proteção a união homoafetiva, até porque, à época em que entrou em vigor a atual Carta Política, há quase 20 anos, não teve o legislador essa preocupação, o que cede espaço para a aplicação analógica da norma a situações atuais, antes não pensadas. – A lacuna existente na legislação não pode servir como obstáculo para o reconhecimento de um direito.” (Ap. Cível 1.0024.06.930324-6/001 – 7ª Câmara Cível – TJMG – Relª. Des. Heloísa Combat – j. em 22.05.2007). (grifo nosso)
O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, também tem admitido a hipótese da pensão por morte devida a companheiros de mesmo sexo na constância união homoafetiva, levando em conta o princípio constitucional da igualdade:
“PREVIDÊNCIA SOCIAL – Pensão. – A pensão por morte é devida a companheiros de mesmo sexo na constância da união homoafetiva em face do princípio constitucional da igualdade (art. 5º, caput, I, CF). – O benefício da pensão por morte deve corresponder à totalidade dos vencimentos ou proventos do servidor falecido. – Inteligência do art. 40, § 5º, CF. 2. Os juros de mora incidem a partir da citação (art. 405 CC e art. 219 CPC) à razão de 6º ao ano, pois se trata de verba de caráter remuneratório (art. 1º-F da Lei nº 9.494/97). – Precedentes do STF. – Sentença reformada. – Recurso provido.” (Ap. Cível. 726.939.5/7-00. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Apelante: Antônio de Pádua Carneiro. Apelado: IPESP. Rel. Rebouças de Carvalho. Julgamento: 17.12.2008). (grifo nosso)
O próprio STF reconheceu a possibilidade de união estável nas famílias homoafetivas, quando do julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade ADI 3300:
“(..) o magistério da doutrina, apoiando-se em valiosa hermenêutica construtiva, utilizando-se da analogia e invocando princípios fundamentais (como os da dignidade da pessoa humana, da liberdade, da autodeterminação, da igualdade, do pluralismo, da intimidade, da não-discriminação e da busca da felicidade), tem revelado admirável percepção do alto significado de que se revestem tanto o reconhecimento do direito personalíssimo à orientação sexual, de um lado, quanto a proclamação da legitimidade ético-jurídica da união homoafetiva como entidade familiar, de outro, em ordem a permitir que se extraiam, em favor de parceiros homossexuais, relevantes conseqüências no plano do Direito e na esfera das relações sociais. (…): ‘A Constituição outorgou especial proteção à família, independentemente da celebração do casamento, bem como às famílias monoparentais. Mas a família não se define exclusivamente em razão do vínculo entre um homem e uma mulher ou da convivência dos ascendentes com seus descendentes. Também o convívio de pessoas do mesmo sexo ou de sexos diferentes, ligadas por laços afetivos, sem conotação sexual, cabe ser reconhecido como entidade familiar. A prole ou a capacidade procriativa não são essenciais para que a convivência de duas pessoas mereça a proteção legal, descabendo deixar fora do conceito de família as relações homoafetivas. Presentes os requisitos de vida em comum, coabitação, mútua assistência, é de se concederem os mesmos direitos e se imporem iguais obrigações a todos os vínculos de afeto que tenham idênticas características. Enquanto a lei não acompanha a evolução da sociedade, a mudança de mentalidade, a evolução do conceito de moralidade, ninguém, muito menos os juízes, pode fechar os olhos a essas novas realidades. Posturas preconceituosas ou discriminatórias geram grandes injustiças. Descabe confundir questões jurídicas com questões de caráter moral ou de conteúdo meramente religioso. Essa responsabilidade de ver o novo assumiu a Justiça ao emprestar juridicidade às uniões extraconjugais. Deve, agora, mostrar igual independência e coragem quanto às uniões de pessoas do mesmo sexo. Ambas são relações afetivas, vínculos em que há comprometimento amoroso. Assim, impositivo reconhecer a existência de um gênero de união estável que comporta mais de uma espécie: união estável heteroafetiva e união estável homoafetiva. Ambas merecem ser reconhecidas como entidade familiar. Havendo convivência duradoura, pública e contínua entre duas pessoas, estabelecida com o objetivo de constituição de família, mister reconhecer a existência de uma união estável. Independente do sexo dos parceiros, fazem jus à mesma proteção. (…)”. (ADI 3300, Tribunal Pleno do STF. Relator: Min. Celso de Mello. Julgamento: 03/02/2006). (grifo nosso).
Por outro lado, há também decisões contrárias que não reconhecem a união homoafetiva como entidade familiar, apresentando como justificativa a falta de previsão em nosso ordenamento jurídico. Destacam-se as que seguem abaixo:
“AGRAVO DE INSTRUMENTO – RECONHECIMENTO E DISSOLUÇÃO DE UNIÃO ESTÁVEL HOMOAFETIVA – PRELIMINAR – IMPOSSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO – ACOLHIMENTO – RECURSO PROVIDO PARA EXTINGUIR A AÇÃO SEM APRECIAÇÃO DO MÉRITO. Embora relevante a discussão concernente à união homossexual, sobretudo em razão dos efeitos que irradia na divisão do patrimônio adquirido com o esforço comum, nossa legislação não permite por ora seu reconhecimento como união estável.” (Agravo de instrumento nº 544.640-4/2-00, 3ª Câmara de Direito Privado, Tribunal de Justiça de São Paulo, Relator: Des. Jesus Lofrano, Julgado em 12/02/2008). (grifo nosso)
“AÇÃO DECLARATÓRIA DE RECONHECIMENTO DE UNIÃO HOMOAFETIVA. INDEFERIMENTO DA PETIÇÃO INICIAL POR IMPOSSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO. LEGISLAÇÃO EM VIGOR QUE NÃO AMPARA TAL PRETENSÃO. ART. 226, § 3º, CF, LEI 9.278/96 E ART. 1.723 DO CC. NORMAS QUE EXPRESSAMENTE ESTABELECEM COMO UM DOS REQUISITOS AO RECONHECIMENTO DA UNIÃO ESTÁVEL A DIVERSIDADE DE SEXOS. SENTENÇA CONFIRMADA. RECURSO DESPROVIDO. “O relacionamento homoafetivo entre pessoas do mesmo sexo não pode ser reconhecido como união estável, a ponto de merecer a proteção do Estado, porquanto o § 3º do art. 226 da Carta Magna e o art. 1.723 do Código Civil somente reconhece como entidade familiar aquela constituída entre homem e mulher.” (Ap. Cív. n. 2006.016597-1, Tribunal de Justiça de Santa Catarina, Relator: Des. Mazoni Ferreira. Julgamento 28/09/2006). (grifo nosso)
“ENTIDADE FAMILIAR. UNIÃO ESTÁVEL. PESSOAS DO MESMO SEXO. RECONHECIMENTO. VEDAÇÃO CONSTITUCIONAL. DEPENDÊNCIA PREVIDENCIÁRIA. PENSÃO POR MORTE. IMPOSSIBILIDADE. – A Constituição da República não considera como entidade familiar a união entre pessoas do mesmo sexo, sendo casuísticas as respectivas definições do art.226. – A consagração do companheirismo como forma de dependência previdenciária atende os princípios da entidade familiar, revelada por união estável, não se admitindo pensão para pessoa do mesmo sexo, em consideração de união homossexual.” (Ap. Cível. 1.0702.04.182123-3/001. Relator: Des. Ernane Fidélis. Julgamento 29/05/2008). (grifo nosso)
Analisando as decisões apresentadas, observa-se que o legislador parte dos princípios constitucionais da igualdade e da dignidade da pessoa humana para justificar a possibilidade do reconhecimento da união homoafetiva como entidade familiar.
A Constituição Federal, em seu Título I, que trata dos Princípios Fundamentais[87], estabelece como um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito, a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III), e entre os objetivos fundamentais da República, a construção de uma sociedade livre, justa e solidária (art. 3º, I), a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor idade e quaisquer outras formas de discriminação (art. 3º, IV).
Entende-se que o legislador, embora não tenha se referido expressamente, quando fala em quaisquer outras formas de discriminação, inclui a que tem por base a discriminação por orientação sexual. [88]
Para José Afonso da Silva, “dignidade da pessoa humana é um valor supremo que atrai o conteúdo de todos os direitos fundamentais do homem, desde o direito à vida.” [89]
A regulamentação do princípio da igualdade encontra-se disposta no caput do artigo 5º da Constituição Federal que afirma que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza.
Seriam os princípios expostos na Constituição Federal respeitados, quando se verifica o preconceito existente quanto ao reconhecimento da união homoafetiva como entidade familiar?
Para responder a esse questionamento, é importante apontar a reflexão de Maria Berenice Dias em artigo publicado na Revista Jurídica Areópago da Faculdade Unifaimi:
“(…) de nada adianta assegurar respeito à dignidade humana e à liberdade. Pouco vale afirmar a igualdade de todos perante a lei, (…), que não são admitidos preconceitos ou qualquer forma de discriminação. Enquanto houver segmentos alvos da exclusão social, tratamento desigualitário entre homens e mulheres, enquanto a homossexualidade for vista como crime, castigo ou pecado, não se está vivendo em um Estado Democrático de Direito.” [90]
É inadmissível que um país que estabeleceu em sua Constituição Federal o respeito à diversidade cultural e de pensamento, a proteção à intimidade e à vida privada e à liberdade de expressão omita-se na luta de brasileiros que seguem uma orientação sexual diferente da maioria e, que por esse motivo, não têm reconhecidos direitos fundamentais.
Partilhamos da opinião da desembargadora Dra. Maria Berenice Dias[91], de que a união entre pessoas do mesmo sexo pode ser considerada entidade familiar, merecendo a proteção do Estado, considerando-se que nela estão presentes alguns dos requisitos necessários à configuração da união estável, já explanados no item 2.4.2 do presente trabalho, quais sejam: a convivência pública, contínua e duradora e com o objetivo de constituir família.
Pelo exposto acima, observa-se que o reconhecimento jurídico da união homoafetiva como entidade familiar e, conseqüentemente, das relações a ela atreladas, como, por exemplo, a partilha de bens, o direito à pensão alimentícia e à adoção, ainda está longe de chegar a uma solução, porém nota-se que a sociedade está caminhando, mesmo que de forma tímida, nesta direção. [92]
Após o desenvolvimento do estudo acerca da família, observou-se as mudanças de paradigmas e a preocupação do Estado em protegê-la não apenas como instituição, mas ampliando essa proteção aos interesses individuais de cada um de seus membros.
No capítulo seguinte será abordada a possibilidade jurídica da adoção de crianças e adolescentes por pares homoafetivos, levando-se em consideração: (i) os princípios constitucionais relacionados aos direitos da criança e do adolescente, (ii) a institucionalização de crianças e adolescentes no Brasil, (iii) a legislação existente sobre o tema e (iv) as decisões dos tribunais a respeito do assunto.
3. A ADOÇÃO POR PARES HOMOAFETIVOS
Não é objetivo desse trabalho discutir acerca da homossexualidade, porém, para tratar sobre a possibilidade jurídica da adoção por pares homoafetivos, fazem-se necessários alguns esclarecimentos a respeito do tema, já que esta é uma forma de manifestação de afeto responsável pela formação de várias famílias.
3.1. Contexto histórico da homossexualidade
Conforme nos ensina Viviane Girardi, a homossexualidade tida como atração sexual e afetiva entre pessoas duas do mesmo sexo é um fato que percorre a história da humanidade, enaltecida e tolerada em algumas sociedades e culturas e repreendida e abominada por outras. [93]
Nas duas grandes civilizações antigas – cujo pensamento definiu a cultura ocidental – a homossexualidade era amplamente aceita e apresentava estágio de evolução da sexualidade, das funções definidas para os gêneros e para as classes. [94]
Na Grécia, o livre exercício da sexualidade fazia parte do cotidiano dos deuses, reis e heróis. A bissexualidade estava inserida no contexto social e a heterossexualidade aparecia como preferência de certo modo inferior e reservada à procriação. Vista como uma necessidade natural, a homossexualidade se restringia a ambientes cultos, como manifestação legítima da libido, verdadeiro privilégio entre os bens nascidos. Não era considerada como uma degradação moral, um acidente ou um vício. Todo indivíduo poderia ser ora homossexual ora heterossexual, dois termos, por sinal, desconhecidos na língua grega. [95]
Em Roma, a prática homossexual, com o nome de sodomia[96], não se ocultava. Era vista como de procedência natural, ou seja, no mesmo nível das relações entre casais, entre amantes, ou de senhor e escravo. O preconceito da sociedade romana existia somente contra quem assumia a condição de passividade. Era feita associação com impotência política. A censura recaía sobre quem desempenhava a posição passiva da relação, na medida em que implicava debilidade de caráter. Como que assumia o papel passivo eram rapazes, mulheres e escravos – todos excluídos do poder, clara a relação entre masculinidade-poder-político e passividade-feminilidade-carência de poder. [97]
Na Idade Média, a homossexualidade estava mais presente nos mosteiros e nos acampamentos militares. Mesmo assim, curiosamente, era a Igreja, por meio da Santa Inquisição, a maior perseguidora dos homossexuais. Para a Igreja, a sodomia era o maior dos crimes, pior até mesmo que o incesto entre mãe e filho. O III Concílio de Latrão, de 1179, tornou a homossexualidade crime. O primeiro código ocidental prescreveu a pena de morte à sua prática. As legislações dos séculos XII e XIII penalizavam a sodomia, sendo que inexistia o termo “homossexualismo”. [98]
A sacralização da união heterossexual aconteceu na idade média. O casamento foi transformado em sacramento e somente as uniões devidamente abençoadas pela Igreja eram válidas, firmes e indissolúveis. [99]
No Brasil, a Igreja Católica, que até a República imperou como religião oficial, só aprova as relações heterossexuais dentro do matrimônio, classificando a contracepção, o amor livre e a homossexualidade como condutas moralmente inaceitáveis, que distorcem “o profundo significado da sexualidade”. [100]
É nesse contexto que está inserida a homossexualidade em nossa sociedade, um comportamento imoral, anormal, inaceitável, que não merece o reconhecimento social nem jurídico.
3.2. Conceitos e evolução terminológica
De acordo com Luciana Nahas [101], as palavras homossexual, homoerótico e homoafetivo têm em comum o elemento grego homo ou homeo que significa semelhante, igual, análogo. [102]
Antes de tratar sobre cada um dos termos acima citados, que são utilizados para designar a orientação sexual dos indivíduos que se direcionam a parceiros do mesmo sexo, é conveniente apresentar a definição de orientação sexual.
Segundo o Programa Nacional, intitulado Brasil sem Homofobia:
“Orientação sexual é a atração afetiva e/ou sexual que uma pessoa sente pela outra. A orientação sexual existe “num continnum” que varia desde a homossexualidade até a heterossexualidade exclusiva, passando pelas diversas formas de bissexualidade. Embora tenhamos a possibilidade de escolher se vamos demonstrar, ou não, os nossos sentimentos, os psicólogos não consideram que a opção sexual possa ser uma opção consciente que possa ser modificada por um ato de vontade.” [103]
Atribui-se ao médico húngaro Karolly Benkert[104] o vocábulo homossexualidade, que foi introduzido na literatura técnica no ano de 1869. É formado pela raiz da palavra grega homo, que quer dizer “semelhante” e pela palavra latina sexus, passando a significar “sexualidade semelhante”. Exprime tanto a idéia de semelhança, igual, análogo, ou seja, homólogo ou semelhante ao sexo que a pessoa deseja ter, como também significa a sexualidade exercida com pessoa do mesmo sexo.[105]
De acordo com J. F. Costa, o termo homoerotismo foi criado por E. Harsh-Haack, em 1911, e utilizado no mesmo ano pelo psicanalista Sandor Ferenczi em um trabalho sobre esse tema. [106] No dizer de Adriana Nuan, o termo daria uma noção mais flexível e descreveria melhor a pluralidade das práticas ou desejos de determinados sujeitos. Assim, excluiria alusões a desvio, anormalidade ou perversão.[107]
O termo homoafetividade trata-se de neologismo, criado pela Desembargadora Maria Berenice Dias, com objetivo de afastar a conotação depreciativa de todas as expressões que identificam as relações afetivas entre pessoas do mesmo sexo, buscando evidenciar que essas uniões nada mais são do que vínculos de afetividade.[108]
Por partilharmos da opinião da Dra. Maria Berenice Dias, de que as uniões entre pessoas de mesmo sexo são constituídas por vínculos de afetividade e muitas vezes têm por objetivo a constituição de família, adotou-se no decorrer do presente trabalho as expressões homoafetividade e pares homoafetivos.
Já o termo homoparentalidade foi criado na França, em 1996, pela Associação de Pais e Futuros Pais Gays e Lésbicos (APGL) e, de acordo com Mariana de Oliveira Farias, diz respeito à capacidade de pessoas com orientação sexual homossexual exercerem a paternidade.[109]
Ana Paula Uziel questiona se é possível relacionar parentalidade com homossexualidade e discorre sobre o assunto:
“Homossexualidade refere-se ao exercício da sexualidade. Funções parentais não exigem o exercício da sexualidade. Seria o mesmo que usar esse critério para julgar a competência profissional de alguém, sua capacidade para gerenciar conflitos, seu gosto por comida, gênero de filme. São esferas distintas da vida, que se cruzam por uma contingência. A reprodução, muito atrelada à sexualidade, pode ser um dos fatores que dêem sentido à proximidade dessas duas esferas, bem como a conjugalidade, a afetividade. São aspectos comuns, como poderíamos encontrar se buscássemos qualquer outra relação.” [110]
De acordo com Mariana Farias e Ana Cláudia Maia, embora haja certa incoerência ao se falar de homoparentalidade no sentido de se associar à sexualidade a função parental, usa-se essa expressão uma vez que o tema da maternidade ou paternidade exercida por pessoas do mesmo sexo ainda gera muitas dúvidas, temores e polêmica. A sociedade em geral apresenta muita dificuldade em aceitar que uma pessoa homossexual cuide de uma criança. [111]
3.3. A homossexualidade e o preconceito
De acordo com Maria Berenice Dias, o maior preconceito contra a homossexualidade provém das religiões. Docilidade, cultura e religião sempre estiveram profundamente entrelaçadas, daí a censura aos pecados da carne. A Igreja Católica considera as relações de pessoas do mesmo sexo verdadeira perversão, uma aberração da natureza. [112]
Conforme narra Luciana Nahas, por muito tempo a homossexualidade foi tratada como uma forma de comportamento sexual anômalo. Ao não aceitar esse comportamento diferenciado, a sociedade patriarcal excluiu-o e recriminou-o através das mais diferenciadas justificativas médicas, psicológicas, morais, religiosas e biológicas. [113]
A Medicina e a Psiquiatria trataram por muito tempo a homossexualidade como doença. A Classificação Internacional de Doenças – CID identificava o homossexualismo como um desvio ou transtorno sexual. Em 1974, sob pressão dos movimentos de gays e lésbicas, a American Psychiatric Association – APA retirou a homossexualidade da lista das doenças mentais. [114]
Abandonada a idéia de ver a homossexualidade encarada como doença, ela passou a ser encarada como forma de ser diferente da maioria, diferenciando-se apenas no relacionamento amoroso sexual. Mas só em 1993, a OMS – Organização Mundial da saúde inseriu-a no capítulo Dos Sintomas Decorrentes de Circunstâncias Psicossociais e o sufixo “ismo” que significa doença foi substituído pelo sufixo “dade” que significa modo de ser. Assim, depois de quase 20 anos, a homossexualidade deixou de ser doença. [115]
Como resultado de todo esse preconceito, arraigado em nossa sociedade, surge outro preconceito, maior ainda, quanto à criação de crianças por uma pessoa ou por um casal homoafetivo.
3.4. A adoção de crianças e adolescentes por pares homoafetivos
Chegou-se finalmente ao ponto crucial do presente estudo, que tanta polêmica tem gerado, não só no Brasil, mas no mundo. Afinal, existe a possibilidade jurídica da adoção de crianças e adolescentes por pares homoafetivos?
Ao se tratar desse assunto, inúmeros questionamentos aparecem, as opiniões ficam divididas, os preconceitos afloram.
Para responder a essa pergunta, faz-se necessário falar, de maneira breve sobre os fundamentos constitucionais relacionados ao Direito da Criança e do Adolescente, com principal destaque para os princípios da proteção integral, do melhor interesse da criança e da convivência familiar, e também sobre a situação das crianças e adolescentes nos abrigos do Brasil, atualmente um grande problema social.
3.4.1. Fundamentos constitucionais
Pode-se afirmar que a possibilidade jurídica da adoção de crianças e adolescentes por pares homoafetivos está fundamentada não só nos princípios constitucionais da igualdade e da dignidade da pessoa humana[116], já explanados no item 2.5 do presente trabalho, como também nos princípios da proteção integral, do melhor interesse da criança e da convivência familiar.
A Constituição consagra, em seu artigo 227, o princípio da proteção integral, atribuindo ao Estado, à família e à sociedade o dever de assegurar a crianças e adolescentes, além de outros, o direito ao respeito, à dignidade, à liberdade, à igualdade. [117]
Decorre também do artigo acima citado, o princípio do melhor interesse da criança, reforçado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente em diversos dispositivos, destacando-se o artigo 43[118] no que tange ao instituto da adoção.
Há vários questionamentos no sentido de que a colocação uma criança ou adolescente numa família formada por pares homoafetivos poderá causar prejuízos psíquicos e, portanto, não atende ao princípio do melhor interesse.
De acordo com Mariana Farias e Ana Cláudia Maia, as maiores preocupações da sociedade em relação ao fato de um par homoafetivo criar uma criança são o medo de que este abuse sexualmente dela, que a orientação sexual desta criança seja influenciada pelo comportamento homossexual de seus pais ou que essas crianças corram maiores riscos de terem problemas no desenvolvimento psicossocial. [119]
Ainda de acordo com as autoras acima citadas, a primeira dúvida tem estrita ligação com o modelo patologizador religioso e médico dos séculos XIX e XX. Ressaltam, porém, que não há registros de que a orientação sexual do adulto influencie na incidência de abusos sexuais. [120]
Já com relação à segunda dúvida, estudiosos apontam que a orientação sexual da criança independe da orientação sexual dos pais, o importante para seu desenvolvimento global saudável são os valores que lhe são passados por ambos os sexos. Se a orientação sexual dos pais influenciasse diretamente a dos filhos, nenhum homossexual poderia ter sido concebido e educado dentro de um modelo heterossexual de família. [121]
Ressalte-se que as conclusões acima citadas são baseadas em pesquisas feitas em outros países, pois no Brasil não há qualquer pesquisa relacionada a esse assunto.
Note-se ainda que o Estatuto da Criança e do Adolescente dispõe que para a concessão da adoção é necessário o estágio de convivência [122], a realização de estudo social por equipe especializada [123] e ainda, que, a colocação de criança ou adolescente em família substituta só se dará a pessoa que revele condições para tanto[124].
Levando-se em conta as disposições legais acima apresentadas, acredita-se que uma criança ou adolescente não será colocada no seio de uma família que lhe cause prejuízos ou não lhe assegure um ambiente familiar adequado.
O princípio da convivência familiar está consagrado no artigo 19 do Estatuto da Criança e do Adolescente, que estabelece que toda criança ou adolescente tem o direito de ser criado no seio de sua família e, excepcionalmente, em família substituta. [125]
Esse princípio guarda estrita relação com o instituto da adoção, pois esta é uma das modalidades de colocação da criança ou do adolescente em família substituta.
De acordo com Tânia da Silva Pereira,
“A adoção destaca-se entre as medidas de colocação familiar. Dentro de uma nova perspectiva, o instituto se constitui na busca de uma família para uma criança, abandonando a concepção tradicional, civil, em que prevalecia sua natureza contratual e significava a busca de uma criança para uma família.” [126]
A lei deixa claro que na impossibilidade de a criança ou adolescente serem criados por sua família natural, deve haver a colocação em família substituta.
Não está se defendendo aqui a banalização do instituto da adoção, uma vez que partilhamos da idéia de que a família natural é o meio ideal para o desenvolvimento da criança e do adolescente, desde que apresente condições para esse desenvolvimento.
É cediço que os direitos elencados no artigo 227 da Constituição não poderão ser encontrados nas ruas, onde crianças são abandonadas à própria sorte, ou em alguma instituição de apoio.
Conforme expõe Vera Lúcia Sapko,
“dificultar, burocratizar ou impedir a adoção por homossexuais, na verdade é negar às crianças abandonadas pelos pais, ou que foram retiradas deles em razão de violência, o direito de serem colocadas em famílias substitutas, onde poderiam ter o carinho e o cuidado de que necessitam.” [127]
3.4.2. A institucionalização de crianças no Brasil
De acordo com pesquisa Percepção da Adoção Brasileira, realizada pela AMB – Associação dos Magistrados Brasileiros em maio de 2008, atualmente no Brasil cerca de 80 mil crianças vivem em instituições de apoio ou abrigos. Dessas crianças, cerca de 8 mil estão em condições de ser adotadas e 72 mil aguardam por algum apoio. [128]
Sobre a institucionalização de crianças, observemos a opinião de Lídia Weber, comparando as unidades de abrigo à Roda dos Expostos:
“Nos dias atuais não existem mais as “Rodas dos Expostos”, mas ainda temos muitas instituições de internamento de crianças, chamadas de “Unidades de Abrigo”, um modelo eufemista da Roda, na contramão do que reza o ECA: “Toda criança tem o direito à convivência familiar e comunitária”. Ainda temos um longo caminho a percorrer em todas as áreas que concernem ao desenvolvimento social da população de nosso país. Mas, a institucionalização de crianças, com certeza, não é uma solução. Apesar da institucionalização de crianças ter surgido como uma tentativa de solucionar o problema de crianças e adolescentes abandonados, esta tentativa mostra-se extremamente ineficaz no Brasil porque não ataca as verdadeiras causas do problema (a miséria social, a carência de apoio sócio-educativo, a ausência de prevenção em relação à violência doméstica, entre outros); não possibilita qualquer tipo de reabilitação para as famílias de origem e exclui as crianças de uma convivência familiar (em sua família de origem ou família substituta) e comunitária.” [129]
Em 29 de abril de 2008 foi criado pela Resolução nº 54 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), o Cadastro Nacional de Adoção (CNA), sistema destinado a unificar e compartilhar dados relacionados a crianças e adolescentes a serem adotados e às pessoas dispostas a adotar.
De acordo com a conselheira Andréa Pachá, coordenadora do Comitê Gestor do CNA, um dos objetivos da criação do Cadastro Nacional de Adoção é proporcionar menos burocracia e mais transparência aos processos de adoção e permitir um diagnóstico mais preciso sobre a situação. [130]
Em dezembro de 2008, após análise dos primeiros dados inseridos no cadastro, o Judiciário apresentou os seguintes números:
“Dos 11.125 pretendentes à adoção, 90% são casados ou vivem em união estável, 10% vivem sozinhos e, nesta condição, pretendem assumir a paternidade ou a maternidade. A maioria (50%) possui renda média entre 3 e 10 salários mínimos, e não tem filhos (76,5%). Quanto às preferências, 70% só aceitam crianças brancas. A grande maioria dos que querem adotar é também branca (70%). 80,7% exigem crianças com no máximo três anos; o sistema mostra que apenas 7% das disponíveis para adoção possuem esta idade. Além disso, 86% só aceitam adotar crianças ou adolescentes sozinhos, quando é grande o número dos que possuem irmãos, e separá-los constituiria um novo rompimento, o que deve ser evitado a todo custo. Todos esses pontos se apresentam como um grande fator de restrição.” [131]
A Dra. Cristiana de Faria Cordeiro, juíza de Direito no Rio de Janeiro e integrante do Comitê Gestor do CNA, traçou, no último mês de Maio, um comparativo entre os pretendentes e as crianças disponíveis para adoção:
“Enquanto escrevo, há 14.574 pretendentes (ou casais) inseridos no sistema, para 2060 crianças ou adolescentes cuja situação jurídica de disponibilidade para adoção é definitiva (pais destituídos do poder familiar, pais que entregaram voluntariamente ou crianças/adolescentes órfãos).
A maioria esmagadora de pretendentes é das regiões sul e sudeste, sendo São Paulo a unidade da federação que concentra mais pessoas inscritas para adotar.
38,97% dos habilitados só aceitam adotar uma criança branca. Se uma menina branca, sem irmãos, com até 12 meses de idade for disponibilizada para adoção no Rio de Janeiro, ela encontra hoje 5132 pretendentes em todo o Brasil.
Um menino do Rio de Janeiro, negro, de 8 anos, com um irmão ou irmã, encontra (em tese, já que são necessários contatos telefônicos, pois às vezes já houve adoção e o sistema não foi atualizado) 22 pretendentes no Brasil.
A faixa etária predominante para aqueles que esperam uma família é de 12 a 14 anos. Há crianças bem pequenas, mas aí entram outros dados que não as colocam dentro do perfil mais desejado: têm irmãos, ou têm doenças ou deficiências.
Há 319 grupos de irmãos cadastrados. Alguns destes, formados por 6, 7 e até 8 irmãos! Todavia, 84,17% dos pretendentes no Brasil se inscreveram para a adoção de apenas uma criança.” [132]
No último dia 17 de julho, foi publicada pelo Jornal O Estado de são Paulo matéria intitulada “Excesso de exigências inibe novas adoções”, que trouxe novos números sobre a institucionalização de crianças no país e a possibilidade de adoção, destacados abaixo:
“Dados do Cadastro Nacional de Adoção (CNA) confirmam que o principal obstáculo à adoção no País é o descompasso entre os candidatos à paternidade e o perfil das crianças e adolescentes que vivem nos abrigos. Cerca de 80% das pessoas dispostas a realizar uma adoção desejam uma criança com até três anos de idade, mas só 7% dos menores cadastrados estão nesta faixa etária. Apenas 1% das famílias aceita acolher uma criança com mais de dez anos.
Outros fatores dificultam ainda mais que uma criança deixe de viver em um abrigo. A maioria das famílias (86%) deseja adotar apenas uma criança. Mas 26,2% possuem irmãos. Cerca de 41% dos possíveis pais aceitam somente crianças brancas, um pré-requisito que exclui 63,5% das crianças presentes no cadastro.” [133]
De acordo com dados apresentados na reportagem “O lado B da adoção”, veiculada na Revista Época de 17/07/09:
“No Cadastro Nacional de Adoção há 22.390 pais potenciais, 78,75% só aceitam crianças entre 0 a 3 anos, 16,67% só aceitam crianças entre 4 a 7 anos e 1,58% só aceitam crianças entre 8 a 11 anos.
Nos abrigos há cerca de 80 mil crianças, onde 6,12% têm de 0 a 03 anos, 14,71% têm de 4 a 7 anos, 27,91% têm de 8 a 11 anos e 51,61% das crianças têm mais de 12 anos.
Mas que podem ser adotadas só há 3.277 crianças, 236 (7,20%) delas têm de 0 a 3 anos, 504 (15,38%) têm de 4 a 7 anos, 956 (29,17%) têm de 8 a 11 anos e 1.581 (48,25%) delas têm de 12 a 17 anos.” [134]
Analisando os dados apresentados, percebe-se que a maioria das crianças abrigadas não encontrará uma nova família e crescerá nos abrigos, por não corresponder ao perfil desejado pelos futuros pais: meninas brancas, com até 03 anos de idade, sem irmãos e que não apresentem doença ou deficiência.
Ora, é melhor que uma criança passe sua infância num abrigo a ter uma família que lhe dê afeto, amor e proteção, independentemente dessa família ser constituída por uma única pessoa, por um casal heterossexual ou por um par homoafetivo?
Na opinião do desembargador Siro Darlan, é 200.000 vezes melhor uma criança amada por um pai “gay” do que vivendo na melhor instituição ou abrigo do Estado.[135]
Conforme destaca Ana Paula Buchalla,
“ao contrário da maioria dos casais heterossexuais de classe média, que preferem adotar recém-nascidos brancos e absolutamente saudáveis, “gays” e lésbicas não fazem restrição alguma a cor, idade ou estado de saúde. Sabem como ninguém o que é ser vítima de exclusão e preconceito.” [136]
Sobre o preconceito relacionado à adoção, destacamos trecho do depoimento de Vasco Pedro da Gama Filho, cabeleireiro de Catanduva, pai da menina Theodora, cuja adoção foi deferida em favor dele e de seu parceiro em Outubro de 2006:
“…quando ela ficou disponível para adoção, eu era o nº 44 da fila. Tinha 43 casais heterossexuais que não quiseram adotá-la por ela ter acima de 2 anos de idade e ser da cor parda…” [137]
3.4.3. A possibilidade jurídica do pedido
Quanto à possibilidade jurídica da adoção por pares homoafetivos, a doutrina se divide: parcela majoritária mostra-se contrária e outra parte, minoritária, é a favor, pelos motivos que exporemos a seguir.
Eduardo Oliveira Leite admite a adoção de crianças e adolescentes por homossexuais que vivem sós e se opõe à adoção por pares homoafetivos, justificando que a primeira possibilidade tem sua base numa falha legislativa:
“Logo é bom que se diga, a adoção não é proibida aos homossexuais que vivem sós. Esta é uma licença legal comprometedora da coerência legislativa nacional, só justificável pela irresistível intenção do legislador em favorecer ao máximo o número de adoções no Brasil, com vistas a contornar ao máximo o problema do menor abandonado, que o Estado não conseguiu resolver.” [138]
Já a adoção por pares homoafetivos é defendida por um pequeno número de doutrinadores, dentre os quais merece posição de destaque Maria Berenice Dias. Ela fundamenta essa possibilidade no princípio da isonomia e na existência de vedação pela ordem jurídica infraconstitucional:
“O outro fundamento que faculta o deferimento da adoção por um casal é da esfera constitucional. Não é possível excluir o direito à paternidade e à maternidade em face da preferência sexual de alguém, sob pena de infringir-se não é possível excluir o direito à paternidade e à maternidade a “gays”, lésbicas, transexuais e travestis, sob pena de infringir-se o mais sagrado cânone do respeito à dignidade da pessoa humana, que se sintetiza no princípio da igualdade e na vedação de tratamento discriminatório de qualquer ordem. Assim não há como excluir o direito de guarda, tutela e adoção que é garantido a todo cidadão.” [139]
Antes de nos posicionarmos sobre a questão, apresentaremos breve explanação sobre a possibilidade jurídica do pedido, que se trata de uma das condições da ação[140].
De acordo com Arruda Alvim,
“A possibilidade jurídica do pedido é instituto processual e significa que ninguém pode intentar uma ação sem que peça uma providência que esteja, em tese (abstratamente), prevista no ordenamento jurídico, seja expressa, seja implicitamente.” [141]
De acordo com Luiz Rodrigues Wambier,
“Há na doutrina duas formas distintas de configurar tal condição da ação. Uma delas sustenta que se estará sempre de pedido juridicamente possível, quando o ordenamento jurídico contiver, ao menos em tese (em abstrato, portanto) previsão a respeito da providência do mérito requerida pelo autor. Outra sustenta que haverá pedido juridicamente possível sempre que inexistir vedação expressa àquilo que concretamente se está pedindo em juízo. No entanto, e ainda nessa linha de compreensão da questão, há autorizada doutrina mostrando que é necessário mesclar as duas posições para se concluir que, em matéria de direitos contidos na esfera do direito privado, é suficiente a inexistência de vedação expressa quanto à pretensão trazida a juízo pelo autor. Assim, ainda que inexista previsão expressa na lei (norma material) quanto ao tipo da providência requerida, se proibição não houver, estar-se-á diante de pedido juridicamente possível.” [142] (grifo nosso)
Analisando os artigos do Estatuto da Criança e do Adolescente que tratam sobre a adoção (art. 39 a 52) nota-se que não há, implícita ou explicitamente, nenhum impedimento legal à adoção por homossexual, seja solteiro ou que conviva com outra pessoa.
O Código Civil regulamenta a adoção nos artigos 1618 a 1629 e não faz qualquer menção à orientação sexual do adotante, porém, dispõe em seu artigo 1622:
“Art. 1622. Ninguém pode ser adotado por duas pessoas, salvo se forem marido e mulher, ou se viverem em união estável.”
Esse artigo, de forma implícita, coloca entraves legais à adoção por pares homoafetivos, pois a legislação brasileira não permite o casamento e tampouco reconhece a união estável entre pessoas do mesmo sexo, excluindo-os do direito assegurado aos casais heterossexuais, o de adotar em conjunto.
Essa é uma das justificativas apresentadas pelos doutrinadores e pelos magistrados para negar a possibilidade jurídica da adoção por pares homoafetivos.
A adoção de uma criança ou adolescente por uma pessoa de orientação homossexual é permitida pela lei brasileira, já que a opção sexual do adotante não é critério impeditivo.
É através dessa lacuna, que atualmente pares homoafetivos conseguem adotar, pois como veremos nas decisões judiciais apresentadas adiante, nesses casos a adoção é requerida por apenas um dos parceiros e após seu deferimento, o outro convivente ingressa com ação judicial pleiteando a adoção conjunta do menor.
Se essas adoções já acontecem na prática, por que o legislador insiste em não regulamentá-las?
Talvez por puro preconceito, pois levando-se em consideração que o ordenamento jurídico não apresenta proibição expressa e as reiteradas decisões do Poder Judiciário no sentido de reconhecer a união entre pares homoafetivos como entidade familiar, atribuindo-lhe os efeitos da união estável, entende-se que a adoção por esses pares é juridicamente possível.
Nesse sentido, destaca-se a decisão do Desembargador – Relator Dr. Luis Felipe Brasil Santos:
“Se o casal tem todas as características de uma união estável – vivem juntas com o intuito de constituir família, tem uma relação pública e duradoura – não importa o sexo das pessoas. Elas devem ser tratadas com todos os direitos de uma família. Podem adotar em conjunto”. [143]
Entende-se que a adoção não pode estar condicionada à preferência sexual do adotante, sob pena de se desrespeitar os princípios constitucionais anteriormente estudados: dignidade da pessoa humana, igualdade e vedação de tratamento discriminatório de qualquer ordem.
Deve-se considerar ainda que sua principal finalidade é proporcionar à criança ou adolescente uma família onde ela se sinta acolhida, protegida e amada, visando sempre o atendimento dos princípios da proteção integral, do melhor interesse e da convivência familiar.
Dessa forma, a homossexualidade dos pais não é motivo justificável para deixar uma criança fora de um lar. Se os adotantes, ainda que do mesmo sexo, constituem uma família, acreditamos ser legítima a possibilidade de adoção.
Sendo observados os requisitos exigidos pela Lei 8.090/90, dentre os quais destaca-se o estágio de convivência e o estudo social do perfil da futura família, devidamente acompanhado por profissionais qualificados, nada impede que um par homoafetivo receba por filho uma criança ou um adolescente.
3.5. Legislação sobre o tema
Conforme mencionado anteriormente, não há legislação tutelando a união homoafetiva como entidade familiar, e, conseqüentemente, a adoção por pares homoafetivos também não é regulada pelo nosso ordenamento jurídico. [144]
Na Câmara dos Deputados há projetos de lei favoráveis e desfavoráveis à possibilidade da adoção de crianças por pares homossexuais.
Está em trâmite o projeto de lei 2285/2007 [145], de autoria do deputado Sérgio Barradas Carneiro do PT/BA, intitulado como o “Estatuto das Famílias”, que propõe uma reforma do Livro de Direito de Família do Código Civil, alterando de forma ampla seus institutos, reconhecendo a união entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar e assegurando-lhe direitos nos aspectos que tangem à guarda e convivência com filhos, à adoção, ao direito previdenciário e direito à herança. [146]
Dentre os projetos que tem por objetivo vedar a adoção por homossexuais destacamos os abaixo:
O projeto de lei 3323/2008[147], de autoria do deputado Walter Brito Neto do PRB/PB, propõe acrescentar ao artigo 39 da Lei 8.069/90, o parágrafo 2º com a seguinte redação: “é vedada a adoção por casal do mesmo sexo.”
Segue trecho da justificativa desse projeto:
“Há de se observar também os dogmas religiosos. É sabido que o Estado é laico, mas não é ateu. Hoje, mais de 90% da população brasileira é Cristã, ou seja, além de garantir o direito da maioria temos o dever de respeitar o direito da maioria.”
O projeto de lei 4508/2008[148], de autoria do deputado Olavo Calheiros do PMDB/AL, propõe a alteração do parágrafo único do artigo 1618 do Código Civil, que passaria a vigorar com a seguinte redação:
“Parágrafo único. A adoção poderá ser formalizada, apenas por casal que tenha completado dezoito anos de idade, comprovado o casamento oficial e a estabilidade da família, sendo vedada a adoção por homossexual.”
O objetivo desse projeto, segundo seu autor, é resguardar a criança adotada, que não poderá ser exposta a situação que possa interferir na sua formação. Alega que a adoção por homossexual poderá expor ao a criança ou o adolescente a sérios constrangimentos e que é dever do Estado por a salvo a criança e o adolescente de qualquer situação que possa causar-lhe embaraços, vexames e constrangimentos.
Em síntese, esses projetos apresentam como justificativa a proteção à família, alegando que a Constituição Federal só reconhece como entidade familiar o casamento e a união estável entre homem e mulher, não existindo a possibilidade de duas pessoas homossexuais adotarem.
Analisando-os, nota-se que são preconceituosos e que não correspondem à realidade, pois: (i) ferem os princípios constitucionais da igualdade, dignidade da pessoa humana e não-discriminação; (ii) invocam dogmas religiosos, e, conforme abordado no item 2.3, a partir da Constituição de 1891, houve a separação entre a Igreja e o Estado, entende-se ser esta uma questão de direito; (iii) alegam que a criança não pode ser exposta a situação que possa interferir na sua formação, porém não há a menção de qualquer estudo realizado que comprove o alegado; (iv) alegam que a situação pode causar embaraços, vexame e constrangimentos, uma amostra clara de preconceito.
A Câmara dos Deputados aprovou em 20 de agosto de 2008, o Projeto da Lei Nacional da Adoção (PL 1756/2003[149]), de autoria do deputado João Matos do PMDB/SC, com a criação de um cadastro nacional para facilitar o encontro de crianças e adolescentes em condições de serem adotados por pessoas habilitadas à adoção, porém, na votação, foi retirado o ponto que permitia a adoção por pares homoafetivos.
No dia 15 de julho de 2009, foi aprovado pelo Plenário do Senado Federal o Substitutivo da Câmara dos Deputados a Projeto (Projeto de Lei do Senado 304/04), de autoria da senadora Patrícia Saboya, que institui uma nova Lei de Adoção. [150]
A proposta de lei, que seguirá para sanção presidencial, traz várias modificações dentre elas a exigência de preparação prévia dos pais adotivos, a redução do tempo de permanência de crianças nos abrigos; porém novamente se omitiu quanto à possibilidade de adoção por pares homoafetivos.
Entende-se que essa omissão do legislador não só deixa de garantir o direito à paternidade a uma parcela da população brasileira, como também impossibilita que crianças e adolescentes disponíveis para adoção tenham a oportunidade de conseguir um novo lar.
Não se pode esquecer que o direito decorre de um fato, ao qual deve ser atribuído um valor, para que possa surgir uma norma para regulamentar esse fato existente. [151]
A seguir seguem algumas decisões do nosso Poder Judiciário permitindo a adoção não só por homossexuais que vivem sozinhos como também para pares homoafetivos.
3.6. Decisões judiciais
Como tratado anteriormente, o legislador brasileiro resiste em emprestar juridicidade às relações homoafetivas, e, por esse motivo, cada vez mais pares homoafetivos recorrem ao Judiciário para resolver questões relacionadas ao assunto.
No que tange à adoção por pares homoafetivos, há reiteradas decisões favoráveis, levando-se em consideração a idoneidade dos adotantes, as reais vantagens para o adotando e apoiando-se ainda em pareceres psicológicos.
O desembargador Siro Darlan é um dos vanguardistas na concessão de adoções em favor de homossexuais. Destaca-se decisão que concedeu a adoção de M.S.P., que se encontrava abandonado em uma instituição de abrigo há 12 anos, a J.L.P.M., homossexual, por julgar ser esta a melhor solução para o adolescente:
“ADOÇÃO DE ADOLESCENTE COM DESTITUIÇÃO DO PÁTRIO PODER – O pedido inicial deve ser acolhido porque o Suplicante demonstrou reunir condições para o pleno exercício do encargo pleiteado, atestado esse fato, pela emissão de Declaração de Idoneidade para a Adoção com parecer favorável do Ministério Público contra o qual não se insurgiu no prazo legal devido, fundando-se em motivos legítimos, de acordo com o Estudo Social e parecer psicológico, e apresenta reais vantagens para o Adotando, que vivia há 12 anos em estado de abandono familiar em instituição coletiva e hoje tem a possibilidade de conviver em ambiente familiar, estuda em conceituado colégio de ensino religioso e freqüenta um psicanalista para que possa se adequar à nova realidade e poder exercitar o direito do convívio familiar que a CF assegura no art. 227. JULGADO PROCEDENTE O PEDIDO NA INICIAL.” (1ª Vara da Infância e da Juventude do Rio de Janeiro – Processo Nº 97/1/03710-8/ Juiz Siro Darlan de Oliveira. Julgado em 20 de agosto de 1998.) (grifo nosso).
O Ministério Público apelou da decisão (Apelação Cível n.º 14.332/98) e, em 23/03/1999, a 9ª Câmara Cível (Relator- Desembargador Jorge de Miranda Magalhães) manteve a decisão de primeiro grau, entendendo ser a melhor solução para o adolescente que estava bem adaptado ao pai adotivo, considerando a apelação fundada em puro preconceito, o que é vedado por lei. [152]
No tocante a possibilitar a adoção por pares homoafetivos, a Justiça Brasileira também tem evoluído. Há vários posicionamentos que reconhecem a união homoafetiva como união estável, sendo possível geradora de um núcleo familiar e, em conseqüência possibilitando a adoção.
Tais decisões apóiam-se nos princípios da dignidade e da igualdade, além de determinar a competência das Varas de Família para o julgamento dos litígios.
O Estado pioneiro no reconhecimento da adoção por pares homossexuais é o Rio Grande do Sul. Destacamos decisão a favor de um casal de lésbicas, uma delas havia adotado duas crianças, vindo posteriormente a outra a pleitear a adoção de ambas. A seguir o teor da ementa:
“APELAÇÃO CÍVEL. ADOÇÃO. CASAL FORMADO POR DUAS PESSOAS DE MESMO SEXO. POSSIBILIDADE. Reconhecida como entidade familiar, merecedora da proteção estatal, a união formada por pessoas do mesmo sexo, com características de duração, publicidade, continuidade e intenção de constituir família, decorrência inafastável é a possibilidade de que seus componentes possam adotar. Os estudos especializados não apontam qualquer inconveniente em que crianças sejam adotadas por casais homossexuais, mais importando a qualidade do vínculo e do afeto que permeia o meio familiar em que serão inseridas e que as liga aos seus cuidadores. É hora de abandonar de vez preconceitos e atitudes hipócritas desprovidas de base científica, adotando-se uma postura de firme defesa da absoluta prioridade que constitucionalmente é assegurada aos direitos das crianças e dos adolescentes (art. 227 da Constituição Federal). Caso em que o laudo especializado comprova o saudável vínculo existente entre as crianças e as adotantes.” (TJRS, AC 70013801592, 7ª Câm. Cív., j. 05.04.2006, rel. Des. Luiz Felipe Brasil Santos). (grifo nosso)
Em Catanduva, interior de São Paulo, há registro de outro caso, onde somente um dos parceiros havia se candidatado à adoção, mas, por determinação judicial, o processo de habilitação foi levado a efeito envolvendo também o parceiro, tendo sido deferida a adoção dos dois:
“O requerente postula a adoção da menor T., filha adotiva de V.P.G.F., com quem mantém um relacionamento aos moldes de entidade familiar, união estável, há mais de quatorze anos. (…) E sob esse aspecto é necessário que se verifique, neste caso concreto, sobre a conveniência do deferimento ou não da adoção, observando-se o disposto no art. 43 do Estatuto da Criança e do Adolescente. Em primeiro lugar, é preciso anotar que não existe nenhum estudo especializado que indique qualquer inconveniente em que crianças sejam adotadas por casais homossexuais, ao contrário, os estudos demonstram que o que efetivamente importa é a qualidade o vínculo e do afeto que permeia o meio familiar, os vínculos afetivos que ligam as crianças aos pais adotivos ou mães adotivas. (…) Tudo o que o requerente pretende é criar também um vínculo jurídico, assumir também a responsabilidade decorrente da paternidade, já que a menor vem sendo criada por ambos e reconhece-os como pais. De todo o exposto, visando atender ao comando constitucional de assegurar proteção integral a crianças e adolescentes, defiro o pedido. Posto isso julgo procedente o pedido de adoção e, em conseqüência, defiro a Dorival P.C.J. a adoção de Theodora R.G. e determino que conste no Registro de Nascimento da criança que é filha de Vasco P.G.F. e Dorival P.C.J., sem declinar condição de pai ou mãe e, da mesma forma, a relação dos avós sem explicitar a condição materna ou paterna. A menor passará a se chamar Theodora R.C.G.. Com o trânsito em julgado, expeça mandado de averbação ao Cartório de Registro Civil com a recomendação de que seja mantida a observação feita quando da primeira adoção. Sem custas, nos termos do art. 141, parágrafo segundo do Estatuto da Criança e do Adolescente.” (Comarca de Catanduva-SP, 2ª V. Infância e Juventude, Proc. n. 234/2006, Rel. Drª. Sueli Juarez Alonso, j. 30.10.2006). (grifo nosso)
Além das decisões acima citadas, já foram deferidas outras adoções nos Estados do Acre, Goiás e Pernambuco.
No dia 14 de maio de 2008, no Estado do Acre, a Juíza de Direito Luana Cláudia de Albuquerque Campos, Titular da Vara Cível da Comarca de Senador Guiomard, deferiu sentença favorável a casal homossexual envolvendo adoção de criança. No caso em tela, a criança, de um ano de idade, já havia sido adotada por um dos membros do casal, que vive uma relação homoafetiva estável há cerca de oito anos. Depois do prazo para recurso, na nova certidão de nascimento da criança, no quesito filiação, constarão os nomes do casal, sem a especificação “mãe” e “pai”, e os dos avós de cada lado. [153]
Merece destaque outra decisão, na qual o Ministério Público do Estado do Acre (MPE), através do promotor Almir Fernandes Branco, deu parecer favorável a ação que envolve um casal homoafetivo, em união estável. A criança em questão, já tinha sido adotada por uma das mulheres. No entanto, a companheira quer dividir as responsabilidades e assumir oficialmente os deveres. Se a juíza acatar o parecer do MPE, o filho receberá nova certidão de nascimento, na qual não constará qualquer indicativo de gênero, como mãe e pai, avós maternos e paternos. Francisco, 6 anos (o nome é fictício em respeito às leis de proteção ao menor)será filho de Ana Maria e Jurema (também nomes fictícios) e receberá um novo sobrenome. Na prática, ele terá duas mães. [154]
Em 10 de outubro de 2008, o Juizado da Infância e da Juventude de Recife (PE) deu parecer favorável ao pedido de adoção de duas irmãs, de cinco e sete anos, feito por um par homoafetivo masculino que vive em Natal. [155]
No dia 09 de junho de 2009, o Tribunal de Justiça de Goiás decidiu pela destituição da autoridade parental por abandono de A.C.A.A, cumulada com adoção por casal homoafetivo, que já havia adotado o irmão biológico da criança. [156]
Nessa adoção, a decisão judicial declara “A.C.A.A. filho (a) de: E.M.S. e de A.L.S.V., sem que se discrimine seja uma ou outra pai ou mãe, simplesmente filho(a) deles(as)”, sentença a ser inscrita junto ao registro civil da criança.
3.7 – A questão do registro civil
Note-se que nos casos citados acima, além do deferimento da adoção pelo par, foi determinado pelo Juízo que na Certidão de Nascimento conste os nomes dos pais, sem declinar condição de pai ou mãe, e também os nomes dos avós, sem explicitar a condição materna ou paterna.
A lei 6.015/73, que dispõe sobre os registros públicos, trata do assento de nascimento em seu artigo 54, do qual destacamos os parágrafos 7º e 8º:
“Art. 54. O assento do nascimento deverá conter: …
7º) Os nomes e prenomes, a naturalidade, a profissão dos pais, o lugar e cartório onde se casaram, a idade da genitora, do registrando em anos completos, na ocasião do parto, e o domicílio ou a residência do casal.
8º) os nomes e prenomes dos avós paternos e maternos;”
Embora empregue o termo “pais” de forma genérica, no parágrafo 8º é utilizada a expressão “avós paternos e maternos”, o que leva a entender que o assento de nascimento deverá conter os nomes do pai e da mãe.
Ressalte-se também que a referida lei foi publicada sob a égide do Código Civil de 1916, que só reconhecia como família, a constituída pelo casamento, tanto que se o artigo 54 for interpretado literalmente, sequer seria permitido o registro de criança filha de pai e mãe não casados, visto que a norma é clara ao exigir que conste o lugar e o cartório onde os pais se casaram.
Já o Estatuto da Criança e do Adolescente quando dispõe sobre o registro civil do adotando, no parágrafo 1º do artigo 47, não faz menção ao sexo dos adotantes:
“Art. 47. O vínculo da adoção constitui-se por sentença judicial, que será inscrita no registro civil mediante mandado do qual não se fornecerá certidão.
§ 1º A inscrição consignará o nome dos adotantes como pais, bem como o nome de seus ascendentes.”
Em 27 de abril de 2009 foi publicado o Decreto 6.828/09[157], que regulamenta os incisos I, II e III do artigo 29 da Lei 6.015/73, estabelecendo um modelo padrão para as certidões de nascimento, casamento e óbito, que deverá ser adotado em todo o território nacional, a partir de 01 de janeiro de 2010.
Analisando o modelo da Certidão de Nascimento, Anexo I do referido decreto, observa-se que no campo filiação constam os termos “pai”, “mãe”, “avós paternos” e “avós maternos”.
Isso pode ser considerado como um retrocesso na legislação, visto que mesmo diante das reiteradas decisões do Poder Judiciário, o legislador permanece insensível à realidade brasileira.
A inserção do nome de ambos os pais ou mães no registro civil da criança ou do adolescente não se limita apenas à questão de identificação familiar, sua principal importância está relacionada à garantia dos direitos patrimoniais e sucessórios, pois possibilita que a criança tenha direito a todas as prerrogativas pertinentes à filiação como guarda, alimentos, direitos sucessórios em relação a duas pessoas e não apenas em relação a uma delas.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Procurou-se no desenvolvimento do presente trabalho refletir acerca da possibilidade jurídica da adoção por pares homoafetivos, levando-se em consideração a evolução da sociedade e do direito.
Diante das considerações apresentadas, observou-se que, em tempos remotos, o instituto da adoção tinha por objetivos assegurar a perpetuidade da família e dos cultos domésticos, a mudança de classe social e a transmissão de patrimônio.
No Brasil, a adoção surgiu para atender exclusivamente os interesses do adotante, pois sua principal finalidade era proporcionar a filiação a quem não a tivesse de seu próprio sangue, tanto que estabelecia como pressuposto a ausência de filhos legítimos ou legitimados.
Nos dias atuais, sua finalidade é oferecer um ambiente familiar favorável ao desenvolvimento de uma criança, que, por algum motivo, ficou privada de sua família biológica, dando-lhe uma família onde ela se sinta acolhida, protegida e amada.
Ao estudar a família brasileira, notou-se que houve uma ampliação em seu conceito: no passado era reconhecida somente pela existência de vínculos consangüíneos entre seus membros, atualmente, são considerados também os laços de afinidade e convivência, ou seja, passou-se a visualizar os vínculos familiares pela ótica da afetividade.
Até o advento da Constituição Federal de 1988, o conceito jurídico de família era extremamente limitado e taxativo, pois o Código Civil de 1916 somente conferia o status de família aos agrupamentos originados do instituto do matrimônio.
Após 1988, paradigmas foram quebrados e outros grupos familiares, até então marginalizados pelo direito e pela sociedade, passaram a ser reconhecidos juridicamente, como é o caso das famílias constituídas pela união estável, e das famílias monoparentais.
Mas mesmo após tantas conquistas na esfera constitucional, parcela da população, por ter orientação sexual diferente daquela que foi estabelecida como padrão, ainda é vítima do preconceito e não tem reconhecidos direitos fundamentais, dentre eles o direito ao exercício da paternidade.
Conforme demonstrado no decorrer do trabalho nossa legislação é omissa, mas não veda a adoção por pares homoafetivos. Além disso, se adoção for realizada de acordo com os critérios estabelecidos pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, a opção sexual do adotante não pode ser requisito impeditivo.
Pelas razões apresentadas, conclui-se ser juridicamente possível a adoção por pares homoafetivos.
Ressalte-se que essas adoções devem ser regulamentadas, não como forma de banalizar o instituto ou de resolver o problema do abandono de crianças e adolescentes no país, mas como maneira de concretização de direitos constitucionais: de um lado assegura-se à criança o direito à convivência familiar (art. 227 da CF/88) e, de outro, confere-se aos adotantes o direito ao exercício da paternidade responsável (art. 226, § 7º da CF/88).
Entretanto, por se tratar de matéria controversa, para que esse direito seja positivado, faz-se necessário um estudo sobre o tema, deixando de lado posturas pessoais ou convicções de ordem moral, com a participação dos diversos setores da sociedade, órgãos governamentais, como o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA), o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), o Grupo de Apoio à Adoção (GAA), bem como dos grupos de defesa de direitos relacionados à diversidade sexual.
Talvez seja a hora de refletirmos sobre nossos preconceitos, exercitarmos nossa capacidade de aceitação do diferente, possibilitando, quem sabe, num futuro próximo, a mudança da legislação vigente e a legitimação da adoção por pares homoafetivos.
Informações Sobre o Autor
Sílvia Coutinho Pedroso
Acadêmica de Direito da Faculdade de Direito de Itu