Resumo: O presente trabalho tem em mira a análise da responsabilização criminal de crianças e adolescentes por meio da flexibilização do atual marco etário presuntivo e absoluto de incapacidade. Diante do tema, para identificar a capacidade de compreensão e discernimento que irá possibilitar a responsabilização do menor infrator, será imprescindível que se recorra à transdisciplinariedade, uma vez que somente através de conceitos da Filosofia da Mente, de ensinamentos freudianos e piagetianos e da neurobiologia, será possível tentar fundamentar um assunto tão polêmico e controvertido. Além disso, far-se-á uma confrontação sistemática do direito penal com outros ramos do direito, a fim de justificar a unilateralidade da flexibilização e demonstrar que os marcos etários, de uma forma geral, têm sido reduzidos, como forma de privilegiar o atual nível de desenvolvimento dos jovens modernos. Nesse ensejo, deve-se ressaltar que não mais adianta continuar com um sistema antigo, ultrapassado e que já se mostra totalmente descolado do meio social circundante. A dogmática penal não deve estar restrita a belas e brilhantes elucubrações teóricas abstratas, apartadas do meio em que estão insertas.
Palavras-chave: culpabilidade; consciência; imputabilidade; potencial consciência da ilicitude; discernimento.
Abstract: This paper aims at the analysis of the criminal responsibility of children and adolescents, admitting flexibility in the current presumptive and absolute age mark for incapacity. Dealing with this theme, to identify the capacity of understanding and discernment that shall allow that the minor is declared responsible for an infraction, it is indispensable to make use of transdisciplinary studies, given the fact that only through the study of concepts pertaining to Mind Philosophy, Freudian and Piagetian teachings, as well as neurobiology, one can make the basis of his points on such a polemic and controversial theme. Besides, a systematic confrontation between penal law and other branches of law is made, to justify the unilateralism of the proposed flexibility and demonstrate that the age limits, in general, have been reduced, considering the current development level of the youth of the contemporary age. In this opportunity, it is relevant to highlight that there is no use in continuing with an aged, outdated system, which is totally disengaged from the social medium around it. The penal dogma shall not be limited to beautiful and bright, but theoretical and impalpable lucubrations, separated from the medium in which they are inserted.
Keywords: culpability; conscience; imputability; potential consciousness of illicitness; discernment
Sumário: 1. Aspectos Introdutórios 2. Filosofia da Mente e Formação da Consciência 2.1. Conceituação 3. A consciência na psicanálise Freudiana 4. A Consciência para a Neurobiologia 5. A Consciência em Jean Piaget 6 Capacidade de Discernimento? 6.1. Confrontação Sistemática com demais Ramos do Direito e seus Institutos 7. Considerações Finais
1. ASPECTOS INTRODUTÓRIOS
Tem sido recorrente a discussão acerca da alteração da maioridade criminal, tentando-se buscar a responsabilização de adolescentes que ainda não tenham atingido o marco etário de imputabilidade penal. Contudo, é perceptível que a quase totalidade dos penalistas modernos não trabalha ou discute elementos para que se possa efetivar tamanha modificação com bases, ao menos, científicas. Nota-se facilmente que grassam divergentes posicionamentos, havendo um exacerbado sentimentalismo e vertentes que envolvem o tema. Além disso, é dificultada a discussão por conta de alegações míticas e infundadas de que o ordenamento jurídico pátrio atual não permitiria alterações que possibilitassem a responsabilização criminal de sujeitos delitivos que ainda não completaram os 18 (dezoito) anos, para que seja possibilitada a flexibilização do marco presuntivo e absoluto de irresponsabilidade criminal.
Assim, tem-se como foco precípuo da presente faina debater e tentar traçar balizamentos críticos para que se possa tentar a responsabilização criminal de jovens que ainda não completaram o marco de irresponsabilidade absoluta. Para tratar de tema tão complexo, delicado e controvertido, faz-se mister recorrer à ensinamentos da inovadora neurobiologia, trazer a lume entendimentos piagetianos e da psicanálise freudiana, atualmente em voga, além de traçar breves comentários utilizando-se de recentes estudos da filosofia da mente. Por fim, ter-se-á de fazer um confronto sistemático com demais ramos do direito e seus institutos jurídicos, para demonstrar as razões de implementar apenas uma flexibilização unilateral do marco punitivo.
Antes mesmo de ingressar, de fato, nas doutrinas e ensinamentos, faz-se mister ressaltar que não se pretende, apenas, reduzir a idade de responsabilização criminal, pois isto não se mostra como o mais consentâneo posicionamento a ser defendido. A presente pesquisa intenta possibilitar uma flexibilização tópica e casuística, ou seja, viabilizando-se a responsabilização dos jovens transgressores nos casos concretos a serem apresentados ao Poder Judiciário, contudo, a partir de determinados lineamentos aprioristicamente colocados à disposição do magistrado ou membro do Ministério Público que venham a discutir o caso posto.
Desta forma, não se pretende a mera redução da maioridade penal, e sim a flexibilização do marco punitivo, o que permitirá a perquirição casuística da potencial consciência da ilicitude e da capacidade de discernimento e autodeterminação que possibilitarão que o jovem, mesmo sem ter completado o marco etário atualmente posto, possa vir a responder perante um juízo que não seja a Vara de Infância e Juventude, com suas pífias e irrisórias respostas punitivas aos atos infracionais praticados por tais sujeitos.
Por conta disso, reiterando o que fora acima afirmado, o presente trabalho trata da possibilidade de flexibilização, e não apenas mera redução, do marco etário legalmente estabelecido que isenta crianças e adolescentes de serem devidamente apenados, submetendo-os a uma sistemática alternativa e bastante permissiva, presente no Estatuto da Criança e do Adolescente. Constata-se, pois, hodiernamente, a presença de um aparato de proteção, verdadeiro manto que termina por blindar a prática de condutas criminosas – batizadas de atos infracionais, até como forma de suavizar tais comportamentos –, por indivíduos que ainda não atingiram o marco etário da imputabilidade, criando uma zona de (quase) total permissibilidade. As levianas respostas estatais diante de condutas, muitas vezes hediondas, não têm recebido o proporcional e adequado tratamento penal.
Atualmente, além de toda a influência midiática televisa acerca da matéria, não são apenas os doutrinadores que têm apresentado posicionamentos antagônicos, como também os parlamentares possuem ideologias contrastantes. Isto leva a uma enorme polêmica derredor do tema da possível, ou não, redução da maioridade criminal e a sua suposta (in)constitucionalidade[1]. Contudo, conforme anteriormente levantado, a presente faina não se atém ao estabelecimento de um novo marco etário que possibilite a imposição de verdadeiras sanções a menores infratores, mas tem a pretensão de flexibilizar qualquer limite que seja adotado, perquirindo-se, no caso concreto, acerca da consciência e capacidade daquele que ainda não completou a idade requerida.
Acerca da referida flexibilização, é importantíssimo ressaltar que a responsabilização criminal do sujeito que já atingiu a idade preestabelecida continuará a ser efetuada respeitando-se o sistema biopsicológico atualmente adotado, ou qualquer outro limite etário que venha a ser imposto, decorrente de política criminal[2]. O que se mostra como relevante e inovador será a possibilidade de abranger, na seara penal, com imposição de penas stricto sensu, indivíduos que ainda não completaram tal marco, buscando-se alcançar uma “idade psicológica” que demonstre que a atuação, no caso concreto, foi realizada com consciência da ilicitude do fato ou capacidade de determinar-se com tal entendimento. Ou seja, possibilitar a incidência de responsabilidade criminal em jovens infratores que possuam discernimento, independentemente da “idade biológica” que apresentem.
Com a finalidade de respaldar tal posicionamento, é mister trazer à baila novos entendimentos doutrinários e filosóficos da recente Filosofia da Mente, a qual tem por foco precípuo a discussão acerca da formação do cérebro, e está interessada em compreender o que é a mente humana, abrangendo, por consequência, o processo de construção do que é denominado “consciência”. Além disso, é preciso trabalhar com pesquisas do tema também na seara da Psicologia (Freud e Piaget), socorrendo-se, sempre que preciso, aos estudos no campo da neurobiologia, com o fito não só de criar sustentação, mas de fundamentar a mudança do paradigma de criminalização, o qual vai muito além da simples redução da maioridade penal.
Diante de tantas mudanças históricas e alterações socioeconômicas ocorridas desde a publicação e vigência do Decreto-Lei 2.848, de 1940 (Código Penal), constata-se que se adota hoje uma sistemática que não mais supre as necessidades sociais impostas. Desta forma, a vetusta baliza etária posta carece de atualizações imediatas e imperiosas, para que se possa readequar o sistema punitivo penal a todas as transformações advindas. Neste diapasão, não se pode reputar como aceitável a manutenção de um marco legal presuntivo e absoluto de incapacidade criminal para menores de dezoito anos, o qual funciona mais como manto protetor, propiciando a ocorrência de inúmeros “crimes”, do que como garantia fundamental.
2. FILOSOFIA DA MENTE E FORMAÇÃO DA CONSCIÊNCIA
Não seria possível promover uma mudança paradigmática da criminalização do menor sem abordar aspectos da potencial consciência da ilicitude do fato praticado conjugados com o devido estudo das noções de mente e consciência sufragadas pelo novo ramo da Filosofia que tem trabalhado o tema: a Filosofia da Mente. Esta surge em meados do século XX[3], sendo uma disciplina filosófica voltada ao entendimento do que é a mente. Segundo alguns filósofos, seria uma forma de buscar a união da tradição filosófica de investigação, efetuando diálogo com novos modelos de ciência.
Dos dois grandes ramos que se formaram dentro da Filosofia da Mente, um ocupando-se da inteligência artificial, querendo produzir máquinas pensantes, e outro, a neurociência[4], preocupada com utilização de neuroimagem para fotografar a consciência, somente esta última vertente trará conceitos e ideias que irão ajudar a respaldar a tese flexibilizadora a ser defendida neste trabalho. Dentre os principais assuntos abordados por este ramo, a consciência e a intencionalidade são dois de grande importância para a presente pesquisa, uma vez que a imputabilidade e a potencial consciência da ilicitude são elementos que devem se fazer presentes para que se possa aferir a culpabilidade do sujeito ativo delitivo.
2.1. Conceituação
O termo “consciência” provém do latim consciencia, significando “saber em comum”, derivando do termo grego syneidesis, que designa o exame da pessoa por si mesma. Numa concepção moderna, pode-se trazer à baila um conceito mais próximo do conhecimento que um indivíduo tem de suas ações e sobre o que pensa, configurando o que já foi denominado de “consciência pessoal”. Numa descrição extremamente simplória, pode-se afirmar que a consciência é a percepção que um determinado organismo tem de si mesmo e daquilo que está ao redor.
Com um entendimento mais racionalista e buscando a exatidão, típica de um engenheiro, o professor da Escola Politécnica da USP, Zsolt L. Kóvacs[5] afirma:
“[…] acredito que uma proposta razoável é a de caracterizar, mas não definir, a consciência como um processo, cuja função fundamental é atribuir qualidade (ou quale, no plural qualia, a forma latina que alguns filósofos preferem utilizar) e significado às percepções e gerar uma compreensão da realidade assim percebida. Esses três atributos são, por enquanto conceitos tão indefinidos quanto a própria consciência […]” (grifos no original)
Para Stanley I. Greenspan[6]:
“Aqui, o termo “consciência” é sem dúvida mais amplo do que o empregado na emergência de um hospital, implicando uma complexa combinação de percepção, intencionalidade e selfhood[7] que permitem a reflexão e a compreensão. […]
Ela envolve a estrutura física do cérebro e experiências subjetivas como a autoconsciência e a contemplação de emoções e idéias específicas”. (grifos no original)
De forma menos sintética e mais literária[8], mostra-se o conceito apresentado pelo neurologista António R. Damásio[9], segundo o qual:
“A consciência, de fato, é a chave para que se coloque sob escrutínio uma vida, seja isso bom ou mau; é o bilhete de ingresso, nossa iniciação em saber tudo […]. Sem seu nível mais simples e mais elementar, a consciência permite-nos reconhecer um impulso irresistível para permanecermos vivos e cultivar o interesse pelo self[10]. Em seu nível mais complexo e elaborado, a consciência ajuda-nos a cultivar um interesse por outras pessoas e aperfeiçoar a arte de viver.” (grifos no original)
Dentro de uma ideia de “campo de consciência”, Sartre chega a postular uma “consciência impessoal imanente como campo transcendental de uma consciência subjetiva”[11]. Já Nietzsche, não apresenta uma noção tão voltada ao coletivo, com o que está à volta, preocupa-se mais com a função relacional e expressiva da consciência, tratando-a como distinta do pensamento, configurando apenas uma modalidade deste. Ele vai considerá-la como consequência da coerção, o que finda por moldar, domesticar o animal humano. Dessa forma, adotando tal concepção, pode-se afirmar que vai ocorrer a formação do que se chama de consciência por intermédio da comunicação.
Diante desta noção de coerção como forma de domesticar o animal humano, a flexibilização do marco etário de incapacidade criminal é necessária para que se possa, por meio do aparato punitivo estatal, continuar a moldar a conduta de jovens infratores. Isto não vem ocorrendo diante das leves, curtas e ineficientes medidas socioeducativas que lhes têm sido impostas. Esta concepção nietzschiana servirá, para fundamentar a necessidade imperiosa de modificação da legislação que atua na demasiada proteção de indivíduos que se encontram na infância e adolescência.
Criou-se, por meio da informação e comunicação, uma sensação de impunidade, sentindo-se tais indivíduos completamente acobertados por um manto de irresponsabilidade criminal, diante das infames penalidades que a eles são impostas. Isto termina por resultar em um (quase) total e completo desrespeito às normas presentes no ordenamento repressivo criminal pátrio, o que, indubitavelmente, tem colaborado para o aumento da criminalidade[12] e traz um enorme sentimento de impunidade no restante do corpo social.
Dessa forma, tem-se um fator que interfere na consciência de adolescentes e crianças, acerca dos fatos que estão sendo cometidos, não os moldando de forma adequada. A sociedade encontra-se refém de tais normas protetivas, pois é vedado recorrer à autotutela[13] para solver problemas que surjam ou para buscar a reparação, restando desamparada de satisfatória resposta estatal, a qual tem se mostrado franca e claramente ineficiente.
3. A Consciência na Psicanálise Freudiana[14]
A partir de uma análise psicanalítica baseada em ensinamentos freudianos[15], é possível abordar os aspectos topográfico e dinâmico do aparelho psíquico a partir da sua conformação pelo id, ego e superego, os quais contribuirão para o estudo e defesa da flexibilização do atual marco presuntivo de incapacidade criminal. A divisão do espírito em três partes foi efetuada por Freud, em 1923, na obra Ego e Id, considerando que o ego seria a organização e consciência, estando em contato com a realidade; o superego pode ser tido como uma espécie de consciência moral que acompanha o homem desde os seus primeiros anos de vida; e o id, composto por impulsos de libido, sexuais, voltado ao prazer.[16]
“Entre o consciente e o inconsciente há uma luta incessante. […] Desde o início, a sociedade impõe poderosos tabus, e o ego consciente reage reprimindo todas as manifestações do sexo, forçando-as para o interior do inconsciente como vergonhosas.”[17]
A presente passagem sintetiza com maestria o que pode ser considerado como o “modelamento” ou domesticação dos ímpetos animalescos do ser humano, numa tentativa de possibilitar o convívio em sociedade, por meio do qual se dá o fenômeno da repressão de impulsos. Assim, estes podem ser afastados por um presente e fortalecido superego, decorrente de normas sociais, morais e jurídicas que possuam considerável coercitividade. Malgrado aborde, especificamente, a temática sexual, a qual se faz recorrente nos escritos freudianos, pode-se interpretá-la e fazer uso com viés voltado para os malefícios da lassidão punitiva jacente no seio social. A presente certeza de leniente punibilidade finda por não reforçar, da forma que deveria, a eficácia coercitiva da normatividade pátria atual. Dessa forma, constata-se que os jovens[18] podem sentir-se menos reprimidos, estando ausente a mola propulsora que poderia criar um recalque modelador de condutas, resultando numa inábil tentativa de frustrar instintos e atitudes tidas como imanentes e naturais.
Assim, o que se pode perceber é que, por conta da leniência da atual legislação punitiva que abarca crianças e adolescentes, é cada vez menos repressora a ameaça de punição que poderia forçar o jovem a se afastar de condutas delituosas, permanecendo atrelado a um caminho afastado da criminalidade. É o que se pode constatar diante da atual frouxidão punitiva presente no ordenamento jurídico pátrio, para que não se fale na total ausência, no que tange aos infantes, pois não pode ser relegado a segundo plano que o “desenvolvimento moral pode ser bàsicamente considerado como um processo de interiorização de regras de ação social.”[19].
Aníbal Bruno[20], ao abordar a questão da psicanálise relacionada com a perigosidade criminal, traz uma breve conceituação desses elementos na visão freudiana, ao afirmar que:
“[…] o anímico compreende estruturas superpostas. No centro, o Ego, síntese dos atributos conscientes do indivíduo, acumulados pela educação e pela experiência; abaixo, o Sub-Ego, ou Id, zona do subconsciente e do inconsciente, onde subsistem as forças primitivas, coibidas e recalcadas pela censura; acima, o Super-Ego, núcleo dos valores morais do indivíduo, domador dos impulsos bravios, juiz implacável do Ego, que ele tortura muitas vezes: sentimento de culpa, desejo de punição.”
Desta forma, Freud, citado por Carlos F. Batista e Manoel M. Rezende[21], considera que “a consciência pode ser, não o atributo mais universal dos processos mentais, mas apenas uma função especial deles”. Entendida a consciência como uma das funções dos processos mentais, buscam os autores, no que tange à sua formação, deixar claro que ocorre uma constante dialética entre o consciente e o inconsciente, perpassando por:
“[…] uma força opositora impedindo certos conteúdos de terem acesso à consciência. O referido fenômeno pode nos confundir e nos levar a pensar que a consciência é a única instância de nossa mente, mas, […] existem outras instâncias com funções específicas”[22].
Dentro desta gama de instâncias, há uma determinada instância superior que seria a responsável pela formulação do que se denomina “recalque”[23], a qual é efetuada pelo ego ao id. Além disso, “o superego é a voz do id, […]. Tem como características as leis e as normas da cultura. Portanto, o superego é um sistema repressor e castrador.”[24]. Para o presente trabalho, vai ter relevância o papel efetuado pelo superego, sendo, pois, o que se chama “representante dos agentes normativos da sociedade”[25], um elemento conformador da conduta e comportamento humano. Ou seja, o superego proporcionará ao sujeito acesso a certo grau de consciência, pois a “punição representa, de tal modo, uma defesa e um reforço do superego”[26].
Para bem entender este complexo processo de formação do aparelho psíquico, faz-se mister que se compreenda que o ego utilizará da repressão, recalque e da resistência como mecanismos de defesa[27]. Assim, será possível considerar a consciência apenas como estrato superficial de todo o aparelho mental, uma primeira instância que é atingida por atividades e manifestações do mundo exterior ao sujeito, pois os “estímulos advindos do ambiente chegam ao sujeito e afetam, em certo grau, o aparelho psíquico”[28].
Isto será de grande valia para que se possa buscar as formas de atuação e influência desse fator externo ao sujeito na conformação do que denominamos consciência. Partindo-se desta primeira compreensão, pode-se alcançar a potencial consciência da ilicitude do menor, como sujeito delitivo, das circunstâncias e situações que o cercam e de que forma isto afetará o seu livre arbítrio e discernimento.
Sobre a abordagem das teorias psicanalíticas da criminalidade, Alessandro Baratta[29], interpretando o estudo desenvolvido por Freud, afirma que:
“[…] a repressão de instintos delituosos pela ação do superego, não destrói estes instintos, mas deixa que estes se sedimentem no inconsciente. Esses instintos são acompanhados, no inconsciente, por um sentimento de culpa, uma tendência a confessar. Precisamente com o seu comportamento delituoso, o indivíduo supera o sentimento de culpa e realiza a tendência a confessar. Deste ponto de vista, a teoria psicanalítica do comportamento criminoso representa uma radical negação do tradicional conceito de culpabilidade, e, portanto, também de todo o direito penal baseado no princípio da culpabilidade.”
É importante salientar que todo este trajeto é de grande complexidade e incertezas, não sendo possível a elaboração de fórmulas matemáticas que possibilitem alcançar o exato momento em que esta consciência estará formada e qual o seu grau de desenvolvimento, diante dos fatores externos conformadores. Esta é uma das maiores dificuldades presentes nas ciências tidas como não exatas, sociais, pois apresentam inúmeros elementos que podem ser modificados, o que distorce o que se gostaria de ter como certeza.
Diante disso, como forma de minorar possíveis dúvidas e imprecisões, será importantíssima a análise casuística, ou seja, de cada um dos indivíduos que estejam envolvidos na conduta criminosa praticada, nos casos práticos que venham a ser apreciados pelo Poder Judiciário, perquirindo-se, sempre, pela consciência e capacidade de determinação do menor infrator, pois “a apresentação do aparelho psíquico, nos mostra um sistema complexo e demonstra que seu funcionamento possui características peculiares, sendo determinantes na vida do sujeito e da sociedade”[30].
Neste mesmo sentido, como forma de reforçar a necessidade de trabalhar com as circunstâncias concretas de um caso prático a ser resolvido e afastando-se o presente sistema biológico da culpabilidade em que se presume, de forma juris et de jure, a incapacidade de entendimento e determinação de sujeitos delitivos que ainda não alcançaram o marco etário posto, é de fulcral importância trazer a lume os ensinamentos de Edna Heidbreder[31], trabalhando técnica e precisamente com alguns dos conceitos psicológicos de consciente, inconsciente, ego recalque, censura e pré-consciente, em suas vertentes de delimitação difícil e imprecisa:
“A vida psíquica dos seres humanos consiste de duas partes principais, o consciente e o inconsciente. O consciente é pequeno e relativamente insignificante. O que uma pessoa sabe sobre os seus próprios motivos e conduta dá apenas um aspecto superficial e fragmentário de sua personalidade. Por baixo do ego consciente está o vasto e poderoso inconsciente, fonte das grandes forças ocultas que constituem a verdadeira força propulsora das ações humanas. Entre o consciente e o inconsciente está o pré-consciente, que se funde gradualmente com ambos, mas que se parece mais com o consciente do que com o inconsciente em conteúdo e caráter e é acessível à consciência sem resistência emocional. O pré-consciente não é formado pelo material que foi fortemente rejeitado e recalcado; em consequência, os seus conteúdos podem ser evocados pelos processos comuns de associação. A censura localiza-se geralmente no pré-consciente.”
É por este motivo também que não é mais possível continuar a defender a manutenção do marco presuntivo absoluto de incapacidade criminal. Os indivíduos, com suas diferentes formações e desenvolvimentos psíquicos, deverão ter a responsabilização criminal atrelada ao seu grau de capacidade e discernimento, baseada em sua idade psicológica, e não mais a um marco etário estabelecido por política criminal.
Convém ressaltar que, por imperativos de segurança jurídica, não se pode ter uma ausência total de um marco a partir do qual se presuma, juris tantum, a capacidade criminal, abandonando-se o limite etário. O ideal, mesmo, seria que fosse adotado um marco flutuante, baseado única e exclusivamente na capacidade de compreensão e discernimento do indivíduo, mesmo para sujeitos delitivos que ultrapassem os 18 anos. Contudo, esta é uma previsão utópica que não gera a devida segurança jurídica. Portanto, a flexibilização que está a se defender é somente para os sujeitos que ainda não completaram o marco etário adotado por razões de política criminal. Os sujeitos que, no momento da ação ou omissão, já contarem com 18 anos, continuarão a ser regulados pelo sistema biopsicológico, atualmente em vigor, ou por qualquer ou marco legal que venha a ser determinado. O fato de a flexibilização do marco criminal, aqui defendida, ocorrer apenas unilateralmente será devidamente trabalhado em tópico seguinte.
No momento de identificar a capacidade de compreensão e discernimento que possibilitará a responsabilização criminal do menor infrator, os juristas precisarão buscar a solução para o problema da imputabilidade em outras disciplinas, sendo imprescindível recorrer à transdisciplinariedade, não mais se restringindo ao isolamento jurídico que ainda grassa neste meio acadêmico. Esta integração do saber jurídico com outros ramos será indispensável para que seja possível uma efetiva readequação das previsões normativas punitivas estatais à realidade social circundante.
4. A Consciência para a Neurobiologia
Do ponto de vista neurobiológico[32], a consciência pode ser encarada em duas acepções: uma interna e outra externa. Não convém, neste trabalho, ater-se ao âmbito interno, vez que está relacionado à mente, ao cérebro e à forma como o sujeito produz o conhecimento, de maneira extremamente pessoal e subjetiva, com caráter privado, personalíssimo (neurociência cognitiva). Isto não teria relevância, pois se faz necessário trabalhar com o viés que se expõe, que se externaliza. Esta, a vertente externa, engloba a atenção aos estímulos ambientais, o estado de prontidão, estando o sujeito desperto, e “apresentando um comportamento adequado ao contexto e ao que imaginamos ser o seu propósito”[33].
Tendo-se em vista as presentes conceituações, far-se-ia um ponto fulcral do trabalho determinar um momento, se é que isso seria possível, a partir do qual ocorreria a inserção do jovem infrator no mundo da capacidade criminal, possibilitando a criminalização das condutas típicas, antijurídicas e culpáveis que venham a ser por eles praticadas. Seria o momento de retirá-lo do protetivo aparato presente na legislação especial e submetê-lo ao tratamento ordinariamente concedido pelo Código Penal aos adultos, ou seja, àqueles que já demonstram consciência e capacidade de discernimento.
Um grande problema, ainda sem a devida solução na seara da neurobiologia, gira derredor do entendimento de como o cérebro “no organismo humano engendra padrões mentais que denominamos, por falta de um termo melhor, as imagens de um objeto”[34], o que pode vir a possibilitar que um indivíduo possua consciência. Numa tentativa de solucionar essa dúvida, ao se basear em um modelo pautado no desenvolvimento, com elementos materialistas (mente conformada estritamente em termos de fenômenos físicos) e experienciais (formada por elementos adquiridos com as experiências vividas) atuando de forma unida, sem que seja possível a sua separação, é relevante o ensinamento de Stanley Greenspan[35], segundo o qual:
“O ciclo evolutivo da experiência e categorização parece afetar a fisiologia do cérebro, e não apenas o contrário, num bailado amoroso entre natureza e ambiente. É ilusório tentar separar as contribuições de ambas, pois uma só pode ser definida no contexto da outra. A consciência se desenvolve a partir desta interação contínua, em que a biologia organiza a experiência e a experiência organiza a biologia.”
Sobre as teorias materialistas e experienciais, para que seja simplificada a temática e tornado mais palatável o entendimento, faz-se mister conhecer seus conceitos, que, segundo Paul M. Churchland[36], podem ser assim diferenciados:
“De um lado, existem as teorias materialistas da mente, teorias que afirmam que o que chamamos de processos e estados mentais são meramente processos e estados sofisticados de um complexo sistema físico: o cérebro. De outro, existem as teorias dualistas da mente, que afirmam que os processos e estados mentais não são apenas processos e estados de um sistema exclusivamente físico, mas constituem uma espécie distinta de fenômenos, de natureza essencialmente não-física.”
Assim, a inexata conformação de como e quando o cérebro engendra padrões mentais ainda se mostra como o mais grave obstáculo ao estabelecimento da específica e determinada ocasião em que se poderia vir a considerar um sujeito delitivo como consciente ou capaz de atuar de acordo com tal entendimento; o que fará com que seja perquirida tal condição nos casos concretos, sendo verdadeira farsa promover a delimitação abstratizada e apriorística deste momento. Desta forma, pode-se afirmar que:
“Da perspectiva da neurobiologia, resolver este primeiro problema seria descobrir como o cérebro produz padrões neurais em seus circuitos de células nervosas e como ele consegue converter esses padrões neurais nos padrões mentais explícitos que constituem o nível mais elevado de fenômeno biológico […]”[37].
Ao trazer a problemática para a responsabilização criminal de jovens infratores que ainda não alcançaram o marco etário escolhido, a busca da consciência seria perquirir, nos casos concretos, a partir de qual momento poder-se-ia considerá-los com o discernimento necessário para responsabilizá-los criminalmente por seus atos. A resolução desta questão redundará em uma grande possibilidade de atingir o patrimônio jurídico de jovens delinquentes, possibilitando atingi-los com o mais gravoso aparato punitivo estatal: o Direito Penal.
A intenção, ao abordar o tema do ponto de vista da neurobiologia e da ciência cognitiva, é tentar formular bases teóricas que possam fundamentar como a consciência, em termos mentais, constrói-se no cérebro humano. Tendo como base este marco, pode-se investigar os momentos a partir dos quais se poderia flexibilizar a atual presunção absoluta de incapacidade criminal que se encontra disposta nas normas, o que possibilitaria a punição de crianças e adolescentes infratores.
Neste momento, é importantíssimo traçar uma diferenciação entre a “consciência” que aqui se está a abordar da “potencial consciência da ilicitude”, elemento da culpabilidade imprescindível para que uma conduta seja considerada crime e lhe possa ser imposta a correlata punição prevista na codificação criminal.
É preciso ter em mente que, para que se possa ter a potencial consciência da ilicitude, deverão estar presentes o discernimento e a capacidade, expressos, na forma de consciência, sem os quais não será possível considerar a conduta como passível de punição. Isto é o que ocorre, hodiernamente, com as condutas praticadas por sujeitos que ainda não alcançaram o marco etário imposto pelo sistema biológico. Assim, a “consciência” a que se faz referência neste tópico é antecedente lógico e necessário para que se venha a analisar, em momento diverso e posterior, a “potencial consciência da ilicitude”. Malgrado sejam termos similares, é fundamental que seja feita tal distinção, evitando algaravias conceituais.
É de grande valia ressaltar, que a exata demarcação dos limites a serem impostos para a imposição de penas a sujeitos delitivos juvenis, que apresentem a consciência e capacidade de determinação, vai muito além das pretensões acadêmicas do presente trabalho, o qual se contenta com o levantamento de dúvidas e questionamentos da atual sistemática a que se submetem crianças e adolescentes transgressores. Para que fosse possível apontar a referida delimitação, seriam necessários tanto o amadurecimento técnico quanto aprofundados estudos na temática, o que ainda não se apresenta viável, na atual conjuntura de pesquisa[38].
5. A Consciência em Jean Piaget[39]
É importante trazer referências aos estudos desenvolvidos por Jean Piaget para contrapô-los, em alguns aspectos, com divergências e críticas, ao que foi anteriormente asseverado pela psicanálise freudiana[40]. Aquele trabalhou com o desenvolvimento da criança e do adolescente, considerando-o indissociável da vida intelectual, dos aspectos de vida social e da afetiva, sem relegá-los a segundo plano, pois “as construções mentais, esquemas ou estruturas da inteligência estão impregnados de elementos sociais e afetivos desde os primeiros meses da vida infantil, mas precisamente desde o momento em que a criança separa o seu próprio corpo dos objetos que povoam o real”[41].
Para tanto, faz uso de conceitos como esquemas[42], estruturas[43], acomodação, motivação[44], interesse[45], valor[46] e sentimento. Destes, terá importância para a presente pesquisa a forma como se entrelaçam os esquemas e as estruturas, por via da motivação e interesse, determinantes para a busca do equilíbrio, os quais serão de precípua relevância para ajudar na conformação do que chamamos de consciência. Faz-se mister trazer à baila que se utiliza, aqui, o termo “consciência” mesmo que não tenha sido exatamente este o usado por Piaget no desenvolvimento de suas teorias e conceituações.
Os indivíduos irão desenvolver suas atividades e raciocínios pautando-se em uma necessidade de encontrar o equilíbrio após serem desequilibrados por quaisquer fatores externos ou internos. Na intenção de formar o sustentáculo para resistir a tais movimentos, forma-se a construção do esquema ou estrutura, conforme seja mais ou menos complexa a situação. Portanto, é possível afirmar, segundo esta concepção piagetiana, que a necessidade de resistir aos desequilíbrios momentâneos é que irão colaborar para a construção da consciência do indivíduo, no caso, das crianças e adolescentes[47].
Desta forma, tem destacável importância a influência que pode ser exercida por um ordenamento jurídico-penal mais repressivo, por intermédio, por exemplo, da flexibilização do marco presuntivo de inculpabilidade, sobre a mente de jovens sujeitos delitivos, e a forma como isto poderá abrandar o aumento dos níveis de criminalidade na realidade social brasileira. Segundo escólio de Anália Rodrigues, “Piaget aceitou […] que a necessidade desencadeia a conduta em direção ao objeto (energética), desde que haja interesse (valorização do objeto).”[48]. Assim, a possibilidade de infligir penalidades mais rigorosas cria a necessidade de comportamento (energético) de forma a ser tido maior respeito ao ordenamento jurídico, o objeto, in casu[49].
Sobre a necessidade de impingir maior coercitividade às disposições normativas, evitando o direcionamento de condutas desviadas do que se reputa como de interesse social, é de grande valia destacar, dentre as fases de desenvolvimento trabalhadas por Jean Piaget, aquela denominada racional-altruística-interiorizada, a qual, de acordo com o escólio de Samuel Pfromm Netto[50]:
“É o mais alto nível de maturidade moral, desenvolvendo-se notadamente na adolescência e na idade adulta. O indivíduo não somente possui um conjunto interiorizado de princípios morais, segundo os quais julga e dirige sua conduta, como também conta com um autodomínio racional e é capaz de avaliar objetivamente os resultados de determinado ato em determinada situação, aprovando-o ou reprovando-o em função das consequências ou do benefício que possa proporcionar a outrem ou a si mesmo”. (Grifou-se)
Pode-se entender que o endurecimento punitivo poderá influenciar e determinar o interesse do jovem no sentido do cumprimento das normas, o que não se perfaz, atualmente, por conta do sistema que foi instituído pelo Estatuto da Criança e do Adolescente. Isto porque, “Toda conduta é ditada por um interesse ou por um objeto valorizado – dinamizador da ação. Há vários interesses ou objetos valorizados, num mesmo momento, e o organismo age em função do interesse maior.”[51]. Desta forma, se não há normas rigorosas, não haverá o correlato interesse de cumpri-las, pois, segundo será considerado pelos infratores juvenis, vai valer a pena correr riscos de sofrer a incidência de (leves) corretivos em troca da ampla liberdade de atuação, o que não se faria presente caso a resposta punitiva estatal fosse mais rígida.
Neste ponto, pode ser encontrada outra diferenciação entre as teorias sufragadas por Freud e Piaget, pois:
“Na visão piagetiana (1975, p. 272 e 273), quando um indivíduo se submete a uma norma, ocorre um funcionamento psíquico diferente daquele proposto por Freud: “(…) não se trata daquela simples submissão inconsciente ao ‘superego’, mas antes de um sistema autônomo paralelo aos sistemas racionais”, o social, por exemplo.
Diante de uma norma ocorre um conflito e o indivíduo mobilizará a vontade – regulação afetiva – para resolvê-lo.
[…] As normas, assim concebidas, criam um compromisso do indivíduo com relação aos outros. Por isso, a pessoa matura socialmente, quando se vê diante de regras que visam o bem comum, submete-se a elas através da reciprocidade, ou seja, respeita a lei, mesmo que esta lhe imponha sacrifícios, desde que sinta que esta lei beneficia a sociedade da qual faz parte e pode beneficiá-la no futuro”.[52]
Além disso, ainda assevera-se que:
“A criança aprende a respeitar as regras ou normas morais[53] vivendo em sociedade. Nesta, dois tipos de relações merecem ser destacadas: as coercitivas e as cooperativas. As relações sociais coercitivas, impostas de fora, baseiam-se na autoridade e no respeito do inferior ao superior. Levam à chamada moral heterônoma[54]. Assim, crianças pequenas, não podendo criar suas normas em colaboração com o ambiente, interiorizam as normas dos pais ou da sociedade.”[55] (grifos no original)
Portanto, será maior a intensidade do interesse do indivíduo que ainda não completou 18 anos, mas goza de consciência e capacidade de determinação, caso passe a ter receio de sentir as consequências punitivas jurídico-penais, que não podem se fazer incidir, ainda, por conta das amarras constitucionais e legais, hoje positivadas. Esta frouxidão punitiva, baseando-se nas lições de Piaget, interfere na intensidade e conteúdo do interesse apresentado pela criança e adolescente em desenvolvimento, o que termina por ser uma não vedação (ou, por via diversa, uma permissão) à ocorrência de práticas delitivas por tais sujeitos.
6. CAPACIDADE DE DISCERNIMENTO?
O presente tópico servirá para demonstrar as razões da adoção de uma flexibilização apenas unilateral, ou seja, perquirindo-se a capacidade e consciência de jovens que ainda não atingiram os 18 anos. Muitos, de forma açodada, poderiam questionar se este posicionamento não estaria apartado de um ideal de Estado Democrático e Constitucional de Direito, uma vez que, se o jovem menor de 18 anos poderá ter questionada a sua capacidade de determinação e potencial consciência da ilicitude diante de um caso concreto apresentado, por que motivo também não poderia ocorrer a flexibilização “para cima”, ou seja, de adultos que já ultrapassaram o marco legal de responsabilização criminal, mas, mesmo assim, ainda não apresentam o necessário discernimento ou capacidade para serem alvos da mais dura reprimenda estatal.
Diante de tal questionamento, é possível asseverar que caso fosse possibilitada a flexibilização “para cima”, ou seja, aos maiores de 18 anos, estar-se-ia indo na contramão, de encontro a todo o desenvolvimento recente que se pode perceber não só no Direito Penal, mas também no Direito Constitucional, através da concessão dos direitos políticos a jovens com 16 anos, como também no privatístico ramo do Direito Civil, em que se percebe lentas e graduais reduções das idades de capacitação e discernimento, com o advento do não tão mais novo Código Civil de 2002.
Assim, serão a seguir elencados alguns institutos que demarcam o atual posicionamento e direcionamento do ordenamento jurídico como um todo, pois não se pode interpretar ou buscar a mens legis sem que se faça um confrontamento sistemático, que envolva o confronto de institutos de um determinado ramo com todo o desenvolvimento histórico e gradual de institutos dos demais ramos do direito. Caso contrário, o Direito Penal, por conta de uma vetusta e conservadora postura que pode ser intitulada como pseudo garantista e humanitária, estará indo em direcionamento oposto a todo o ordenamento jurídico pátrio atual; isto não mais demonstra ser o comportamento ideal, para que não se descole ainda mais este ramo do direito da sua realidade circundante e continue a ser considerado como o último vagão no comboio das transformações sociais.
O direito ocupa-se precipuamente com a regulação normativa dos fatos sociais que emergem das relações interpessoais, servindo como modelo formulador de comportamentos. De outra forma não poderia proceder o Direito Penal, o qual se preocupa com a tipificação de condutas, ditas criminais, e as respectivas sanções a serem impostas, não se podendo descurar do princípio da legalidade e muito menos da anterioridade. Por conta disso, é possível encontrar dispositivos normativos, tanto no Código Penal, em seu primeiro artigo, inaugurando a sistemática penal brasileira, quanto no rol de direitos e garantias fundamentais, no art. 5º, inciso XXXIX da Constituição Federal.
Contudo, faz-se mister trazer à baila uma questão que se tem mostrado de grande relevância, mas que tem sido negligenciada por grande parte dos doutrinadores penalistas que atuam na área: cada vez mais o direito penal encontra-se desgarrado do meio social circundante. Não é por outro motivo que Eugenio Raúl Zaffaroni[56] observa que:
“[…] desde a sua reformulação moderna a partir do século XVIII, o discurso jurídico-penal sempre se baseou em ficções e metáforas, ou seja, em elementos inventados ou trazidos de fora, sem nunca operar com dados concretos da realidade social”.
Além disso, é cada vez maior o número de crimes praticados por indivíduos que ainda não alcançaram o marco etário absoluto de inculpabilidade, mas que já apresentam total consciência da ilicitude do fato cometido ou capacidade de determinar-se com esse entendimento. Entretanto, pouca, ou nenhuma, providência tem sido tomada para alterar esta situação. Por conta disso, é importante demonstrar que outros ramos do direito estão se atualizando, ou buscando isso, o que não tem sido feito com a mesma frequência no direito penal.
6.1. Confrontação sistemática com demais ramos do direito e seus institutos
Diante da constatação de descolamento do texto normativo do meio social que pretende regular, no âmbito do direito civil, ocorreu uma recente reforma, instituindo uma nova codificação cível, onde o sujeito com 16 anos apresenta uma vontade a ser respeitada[57]. Assim, é possível que o relativamente incapaz pratique alguns atos a serem considerados válidos quando apenas assistido, e não mais representado, manifestando e tendo sua voluntariedade acatada pelo direito. Por que motivo, então, um sujeito apresenta capacidade para tomar decisões que repercutem em seu patrimônio jurídico, na seara civil, mas ainda mostra-se absolutamente incapaz de entender o que comete na esfera criminal?
Como pode um sujeito decidir sobre o testamento, ou deliberar acerca do casamento, um dos institutos mais solenes e formais do direito civil e continuar a ser considerado incapaz de entender o caráter ilícito dos seus atos? Na esfera cível o jovem tem discernimento sobre a licitude dos atos que pratica, mas na seara criminal continua a ser um incapaz. Esta é uma contradição que precisa ser solvida, uma vez que a codificação civil atualizou-se, em oposição ao que não tem acontecido com o vetusto código criminal, o qual permanece com a mesma sistemática desde a década de 1940.
Além disso, pode-se trazer como exemplo o instituto do casamento[58], o qual é tido por muitos civilistas como o ato mais solene previsto no ordenamento jurídico brasileiro, o que leva alguns a questionarem acerca da sua posição, se seria um instituto de direito público ou de direito privado. Contudo, divergências doutrinárias à parte, o que não se pode negar é o caráter solene e formal presente neste ato do direito civil. Por conta disso, o acontecimento da união entre indivíduos de sexos diferentes repercute em diversas esferas do patrimônio jurídico daqueles que celebram o matrimônio.
Com o estado matrimonial, criam-se novos vínculos, tanto dos nubentes entre si como entre estes e os parentes do outro, com a concepção de laços e relações que os fazem passar a assumir direitos e obrigações recíprocos, acarretando mudanças nas esferas não só pessoal como também patrimonial daqueles que estão envolvidos. Além disso, altera-se o estado civil, passando os nubentes a ser considerados casados, estabelecendo “comunhão plena de vida, com base na igualdade de direitos e deveres dos cônjuges”[59] e “homem e mulher assumem mutuamente a condição de consortes, companheiros e responsáveis pelo encargo da família”[60].
Com relação à capacidade para firmar tal vínculo, o Código Civil estabelece que, a partir dos 16 anos, homens e mulheres podem se casar, mas impõe que esteja presente a autorização de ambos os pais, ou de seus representantes legais, até que completem a maioridade civil[61], necessitando ser assistidos, posto ainda sejam relativamente incapazes. É possível perceber que na esfera cível o indivíduo, mesmo apresentando dezesseis anos, já demonstra voluntariedade para aderir ao instituto considerado mais solene e formal do direito civil, mas ainda continua sem capacidade e discernimento para ser responsabilizado por seus atos na esfera criminal.
Além disso, seria negligente deixar de mencionar que, em casos excepcionalíssimos, o Novo Código Civil de 2002 possibilita a celebração do casamento por aqueles que ainda não completaram a referida marca etária, o que ocorre para ser evitada a imposição ou cumprimento de pena criminal ou para casos de gravidez[62]. Com relação ao casamento de uma jovem que ainda não completou os dezesseis anos, é interessante a crítica formulada por Maria Berenice Dias.
Ela afirma que “em caso de gravidez, se houver casamento sem autorização, não é cabível sua anulação por motivo de idade (art. 1.551). Assim, uma jovem com menos de 16 anos, para casar sem precisar da autorização de ninguém, nem dos pais, nem judicial, basta engravidar!”[63]. É interessante notar que o Código não faz nenhuma menção, nesses dois casos, para a idade núbil mínima, pressupondo a capacidade de consentir para o casamento ao dispor de discernimento para a prática de atos sexuais. Além disso, mesmo com a viuvez, a separação, ou o divorcio, o menor de dezoito anos não irá retornar ao anterior status de incapaz.
Não convém discutir o acerto ou erro dos citados dispositivos do Código Civil, mas é inegável que é uma sistemática que busca se aproximar muito mais da realidade social circundante, até mesmo por apresentar idades menores do que a do anterior código. Com isto, busca-se uma maior legitimidade e adequação do ordenamento jurídico abstratamente posto ao meio que pretende normatizar, o que não ocorre com a manutenção de um marco presuntivo absoluto de incapacidade criminal decorrente de um ultrapassado e antiquíssimo Código Penal.
Por fim, pode-se fazer referência ao direito de testar. O Direito das Sucessões trata da disposição do patrimônio jurídico de um indivíduo que faleceu aos seus descendentes e sucessores, onde uma pessoa insere-se na “titularidade de uma relação jurídica que lhe advém de outra pessoa, e, por metonímia, a própria transferência de direitos, de uma a outra pessoa”[64]. Pode esta transmissão de direitos ocorrer por disposição da própria vontade do indivíduo ou por disposições expressas de lei[65]. A sucessão hereditária ou causa mortis é conceituada como o “modo de adquirir, a título universal ou singular, bens e direitos que passam de um sujeito que morre, aos que lhe sucedem, isto é, passam a ocupar a sua situação jurídica”[66].
O Direito das Sucessões é um livro do Novo Código Civil que, por conta da relevância que é dada à transmissão de direitos de um sujeito a outro, quase goza dos mesmos formalismos e solenidades que o Direito de Família, anteriormente tratado em breves linhas. Diante disso, cria o legislador inúmeras restrições e formalidades envolvendo os documentos que se dispõem a tratar da transferência causa mortis de direitos. Contudo, em mais um lampejo de atualidade da nova sistemática da codificação civil, permitiu-se que o menor relativamente incapaz testasse. Ou seja, reconhece-se a capacidade de testar do indivíduo que apresenta apenas 16 anos, tendo relevância jurídica, no âmbito cível, a manifestação de vontade e consciência deste sujeito de direitos.
Assim, um dos elementos de validade do testamento é a capacidade[67] do testador para que explane o que o deseja, representando a sua manifestação volitiva. Os menores de dezesseis anos, tidos como absolutamente incapazes, não tem o poder de deliberar. Portanto, “não é de ser recebida a sua vontade para produzir consequências post mortem”[68]. Contudo, o relativamente incapaz não é impedido de testar, apresentando, portanto, manifestação de vontade a ser respeitada pelo ordenamento jurídico[69]. Esta é uma hipótese em que a manifestação do relativamente incapaz é considerada válida, mesmo sendo feita sem a interferência do seu assistente ou tutor, tendo-se em vista o caráter personalíssimo[70] deste ato.
Desta forma, resta evidente a maior proximidade destas disposições normativas do Código Civil com as necessidades do meio social, adequando-se às mudanças que acontecem com o decorrer dos anos. Tendo-se em vista que o próprio ordenamento jurídico brasileiro concede discernimento, capacidade e vontade a indivíduos que ainda não apresentam 18 anos, não soa contraditório ainda serem considerados incapazes sujeitos delitivos que não alcançaram tal marco etário? Por conta dessa incongruência, mostra-se plenamente possível a defesa da flexibilização do marco presuntivo absoluto de incapacidade criminal.
Além disso, segundo Maurevert Paranaguá[71]:
“O homem, desde o seu nascimento, tem potencialmente capacidade jurídica; porém, nos primeiros estágios de sua existência, quando já desprendido do seio materno goza de vida própria, na infância e subsequentes adolescência e primeira juventude, carece de capacidade para agir com plena transcendência jurídica e é considerado irresponsável pelos atos ilícitos que vier a praticar, por não possuir ainda, segundo uma concepção no nosso entender de certa forma ultrapassada, consciência, liberdade, inteligência e vontade consciente.”
É relevante salientar que a referida citação foi efetuada ainda em inícios dos anos 1980, numa época em que ainda não se faziam presentes as realidades normativas do novo regramento civil apresentado pelo Novo Código Civil de 2002. Neste tempo, o citado autor, um professor de Direito do Menor, já sentia que era injustificada a reiterada afirmativa de que o jovem menor de 18 anos não apresenta capacidade para arcar com as consequências da voluntariedade de suas condutas.
Conforme afirmado ao tratar da formação da consciência do indivíduo, não pode ser esquecido que tal situação consciente não é conformada da noite anterior ao décimo oitavo aniversário para o dia seguinte, mas sim continuadamente formulada e moldada por todos os fatores que incidem sobre a criança e o adolescente, incluindo-se, entre esses fatores, a possibilidade de sofrer a incidência do aparato punitivo penal. Com a forma que tem sido concedida a apenação de condutas delitivas praticadas por menores de dezoito anos, tem restado fortemente debilitado esse fator domesticador do animal humano, o que contribui para a não formação da ideal consciência do jovem, o qual se sente livre para cometer as mais bizarras condutas ilícitas, por ter certeza de que não será devidamente punido.
Todavia, não restam dúvidas de que o Direito Penal é o meio mais gravoso de interferência estatal no patrimônio jurídico de seus cidadãos. Por conta disso, é importantíssimo repetir que a interferência não será efetuada sobre sujeitos delitivos juvenis que ainda não apresentem a idade psicológica requerida, recaindo, tão-somente, sobre jovens delinquentes que já se mostrem com maturidade suficiente para serem alvo de tal reprimenda.
Assim, a flexibilização do marco presuntivo absoluto não vai recair sobre os indivíduos teleologicamente idealizados como alvos das normas protetivas da criança e do adolescente, mas apenas sobre aqueles que já possam responder criminalmente, apresentando o discernimento para isso, sendo que, por conta das disposições cíveis, não há como desconsiderar que possam tais sujeitos manifestar vontade e consciência válida e capaz de repercutir no Direito.
Por último, mas não menos importante, deve-se trazer à baila o confrontamento entre a concessão de capacidade e consciência para emanação da vontade eletiva de jovens pela Constituição Federal de 1988 por meio do exercício dos direitos políticos e a ausente possibilidade de se impor punições a tais sujeitos. Malgrado não tenha o presente trabalho a pretensão de reduzir a maioridade penal, mas sim flexibilizar o marco etário presuntivo de incapacidade criminal para possibilitar a imposição de verdadeiras e adequadas penas a jovens infratores, em mais uma situação far-se-á menção aos dezesseis anos, tal como ocorre com os direitos políticos concedidos pela Constituição Federal[72].
Pimenta Bueno[73], em face da Constituição do Império, já conceituava os direitos políticos como sendo “as prerrogativas, os atributos, faculdades ou poder de intervenção dos cidadãos ativos no governo de seu país, intervenção direta ou indireta, mais ou menos ampla, segundo a intensidade do gozo desses direitos”. Hoje, os direitos políticos podem ser entendidos como direitos fundamentais que possibilitam a participação do indivíduo na conjuntura do Estado, sendo manifestação da soberania popular e reafirmação do pluralismo político, um dos fundamentos da República federativa do Brasil[74].
A Constituição Federal contém normas que regulam os requisitos e condições que devem ser supridas pelo indivíduo para que possa participar ativamente (direitos políticos positivos), por meio da eleição de representantes políticos, e regras que limitam esta esfera de direitos, caso venha a infringir alguns dos mandamentos constitucionais, resultando na perda ou suspensão desses direitos (direitos políticos negativos).
Atualmente, é possibilitado, facultativamente, o alistamento eleitoral e o voto ao indivíduo que seja maior de dezesseis e menor de dezoito anos. Assim, não mais se justifica a manutenção da irresponsabilidade penal, por exemplo, ao jovem que apresente 16 (dezesseis) anos, vez que já lhe é possibilitada a escolha de Vereador, Prefeito Municipal, Governador de Estado, Deputados, Senadores e, até mesmo, do Presidente da República. Esta contradição entre permitir o voto, presumindo-se que a partir de tal idade o indivíduo terá discernimento para decidir seus representantes políticos, e presumi-lo incapaz de entender o caráter ilícito do seu comportamento, é uma incoerência que não mais se sustenta, necessitando de alterações.
Além disso, como compatibilizar a possibilidade de o sujeito participar dos processos seletivos e exercer direitos políticos, com a impossibilidade de cometer crimes eleitorais? Se já possui capacidade de determinação e consciência para fazer parte do jogo político, não há o que possa justificar o seu afastamento, ao menos, da responsabilização pelo cometimento dos crimes que se encontram previstos na Lei nº 4.737, de 15 de julho de 1965, o Código Eleitoral.
Estes são apenas alguns exemplos de situações em que o sistema jurídico reconhece que o jovem já apresenta consciência e capacidade de determinação, mas ainda continua a considerá-lo, na seara penal, como um incapaz, verdadeiro retardado que não tem capacidade de comportar-se de acordo com o seu discernimento. Diante desse total afastamento da codificação criminal com a realidade circundante, faz-se imprescindível colacionar entendimentos sufragados por Eugênio Raúl Zaffaroni[75], o qual promove críticas neste mesmo sentido, tal qual se pode inferir do seguinte fragmento:
“[…] semelhante pobreza de sustentação na realidade social evidencia que, nos últimos dois séculos, reincidiu-se em um jogo de ficções recorrentes, que apenas acentuou a debilidade do discurso jurídico-penal, precipitada agora em crise.”[76]
Por fim, não se pode deixar de reiterar que, malgrado seja o referido ramo do direito um gravoso instrumento de intervenção estatal no conjunto de direitos e liberdades individuais, deve-se levar em consideração que:
“O direito penal tende ao aperfeiçoamento da pena, porém não temos acompanhado a evolução de outras ciências. Estamos, ainda, apegados aos resquícios do passado. Temos tido medo de inovar. O dinamismo do direito penal deve ser uma constante na vida social.”[77] (grifou-se)
Em 1987, momento anterior ao implemento da nova Constituição Federal e da atualização civilista introduzida pelo Novo Código Civil, havia quem defendesse que:
“O limite de menoridade penal considerado pela lei coincide com o momento em que o desenvolvimento biológico e intelectual do menor permite a emancipação de sua força de trabalho e sua metamorfose em cidadão com todos os seus predicados. Assim, a redução do limite de idade [para a responsabilização criminal] emanciparia precocemente o menor, mas apenas no que se refere à punição por um ato ao qual imputada consciência e responsabilidade.”[78] (grifou-se)
De fato, nesta época, o jovem de 16 anos ainda não gozava de tais amplos direitos e privilégios, não podendo, portanto, praticar atos carregados de voluntariedade e produtores de efeitos na orbita jurídica. Contudo, o que se pode depreender disso é que, atualmente, houve uma completa inversão do que foi dito acima, pois o indivíduo, agora, passa a gozar e dispor de uma plêiade de direitos civis e políticos, conforme explicitado nas últimas passagens, mas não tem a correlata responsabilidade criminal, sendo, ainda, considerado como irresponsável e inimputável, de forma apriorística e excludente, não sendo, ao menos perquirida sua capacidade de determinação ou de entendimento.
7. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante de tudo quanto foi exposto, pode-se chegar às seguintes ilações:
A. A mera redução da maioridade penal não é o objetivo do presente trabalho, pois isto poderia terminar possibilitando a imposição de penas a indivíduos que ainda não completaram a maturidade psicológica, o que, sem dúvida, é repugnável e contrário aos ditames constitucionais, ferindo princípios fundamentais e objetivos albergados por nossa Carta Magna. Por meio da flexibilização do marco legal presuntivo e absoluto de incapacidade criminal será possível infligir sanções, tão-somente, a jovens infratores que, malgrado ainda não tenham atingido a idade limite, apresentem o necessário discernimento e capacidade de determinação, o que possibilitaria uma satisfatória resposta punitiva estatal a tais sujeitos.
Assim, não se mostra como o comportamento mais condizente pretender apenas diminuir o marco, pois isto geraria um duplo erro: primeiro porque iria fazer incidir o mais gravoso instrumento punitivo estatal sobre indivíduos que ainda não apresentam a idade psicológica para tanto, o que se mostra claramente inconstitucional e ilegal, pois terminaria por ferir a teleologia das normas protetivas do menor infrator; e, em segundo lugar, porque continuaria a não albergar indivíduos delitivos que já alcançaram a capacidade e discernimento, mas não serão alcançados, pois foi irracionalmente atribuído um novo marco etário, menor, é verdade, diminuindo as chances de isso ocorrer, mas ainda deixando sem a devida responsabilização criminal aqueles sujeitos que já se demonstrem aptos a fazer incidir a punição penal.
B. Tem grande importância a influência exercida por um ordenamento jurídico-penal mais repressivo sobre a mente de jovens sujeitos delitivos para abrandar o aumento dos níveis de criminalidade na realidade social brasileira. Com o aparato punitivo mais rigoroso, cria-se a necessidade de comportamento (energético) em direção ao respeito do ordenamento jurídico. Isto irá influenciar e determinar o interesse do jovem no sentido do cumprimento das normas, o que não se perfaz, atualmente, diante do sistema instituído pelo Estatuto da Criança e do Adolescente. Se não há normas rigorosas, não haverá correlato interesse de cumpri-las, valendo a pena correr riscos de sofrer a incidência de (leves) corretivos em troca da ampla liberdade de atuação. A frouxidão punitiva, na concepção piagetiana vai interferir na intensidade e conteúdo do interesse apresentado pela criança e adolescente em desenvolvimento, o que resulta em uma não vedação, ou uma permissão, ao cometimento de práticas delitivas por tais sujeitos.
A flexibilização do marco etário é imprescindível para que possamos, via aparato punitivo estatal, tentar moldar, domesticar a conduta de jovens infratores, o que não tem ocorrido por conta das desproporcionais penalidades que vêm sendo impostas. As curtas, ineficientes e desproporcionais medidas socioeducativas já não suprem nem correspondem aos anseios da sociedade, que presencia a ocorrência de crimes hediondos, sem recebimento do correspondente castigo. É como já havia, há muito, afirmado Cesare Beccaria “deve haver, assim, uma proporção entre os delitos e as penas” [79].
C. A isonomia e proporcionalidade têm sido relegadas em nome de uma pseudotutela de indivíduos que, em tese, ainda não teriam atingido a maturidade psicológica, mas, em verdade, já detêm a total consciência da ilicitude do fato que cometem ou a capacidade de determinar-se de acordo com tal entendimento, podendo, e devendo, responder criminalmente pelas condutas que praticaram. Deve-se ter, todavia, extrema cautela para que esta forma de responsabilização não venha a ser uma vindita imposta nos casos de grande repercussão e clamor público, sem que seja satisfatória e exaustivamente analisado o discernimento do jovem delituoso.
D. O sistema punitivo aplicável às crianças e adolescentes imposto pela Constituição Federal, pelo Estatuto da Criança e do Adolescente e pelo Código Penal encontra-se em dissonância com os anseios e alvedrios dispostos no corpo social circundante; faz-se necessária a readequação normativa para que tal sistema não perca totalmente a sua legitimidade, transformando-se em nada mais que folhas de papel escritas.
E. Diante das possibilidades de casar, testar e exercer direitos políticos, demonstrando o inimputável que possui condutas carregadas de voluntariedade, respeitadas e protegidas pelo ordenamento jurídico, resta inconcebível a continuada afirmação de que o jovem não possui discernimento ou capacidade de determinação para ser alvo de reprimenda penal. Não colabora com a segurança jurídica. A possibilidade de praticar tais atos encontra-se submetida a marcos etários determinados, possibilitando que sujeitos ainda imaturos gozem de tais direitos. Contudo, por via da flexibilização do marco atualmente positivado, o sistema punitivo penal englobará apenas aqueles que tenham sua capacidade e discernimento atestados por meio de um “incidente de capacidade”, possibilitando que sejam julgados em varas criminais comuns ou especializadas de infância e juventude.
F. Não mais adianta continuar com um sistema antigo, ultrapassado e que já se mostra totalmente descolado do meio social circundante. A dogmática penal não deve estar restrita a belas e brilhantes elucubrações teóricas abstratas, apartadas do meio em que estão insertas. Não se pode continuar a ter o medo de inovar, tem-se de ser ousados e desapegados a estas irracionais escoras, amplamente combatidas no presente trabalho, para que se possa não só readequar como reaproximar o discurso jurídico-penal à realidade que o cerca, evitando a sua completa introspecção.
Para identificar a capacidade de compreensão e discernimento que possibilitará a responsabilização criminal do menor infrator, os juristas precisarão buscar a solução para o problema da imputabilidade em outras disciplinas, sendo imprescindível recorrer à transdisciplinariedade, não mais se restringindo ao isolamento jurídico que ainda grassa neste meio acadêmico.
Informações Sobre o Autor
Daniel Melo Garcia
Advogado; Graduado pela Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia; Membro associado do Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito