Resumo: Este trabalho tem como objetivo a análise do fenômeno da preclusão em relação às matérias de ordem pública. Fenômeno esse que traduz a essência da segurança jurídica e o direito à não eternização da lide. O estudo ainda identifica a evolução do instituto na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça.
Palavras-chave: Preclusão. Matérias de ordem pública. Segurança Jurídica.
Abstract: This work has the objective of analyzing the phenomenon of estoppel, in its consumative aspect, of matters of public order. This phenomenon reflects the essence of legal certainty and the right to non-eternalization of the dispute. The study also identifies the evolution of the institute in the jurisprudence of the Superior Court of Justice.
Keywords: Preclusion. Matters of public order. Legal Security.
Sumário: Introdução. 1. O fenômeno da preclusão 2. A preclusão aplicada às matérias de ordem pública. Considerações finais. Referências.
INTRODUÇÃO
O fenômeno da preclusão é tema dos mais relevantes no direito processual civil, sendo fundamental para o impulso do processo e a boa estruturação do procedimento, impedindo a repetição de atos ou mesmo o retorno a fases processuais já exauridas. Possui previsão expressa na legislação processual civil há tempos, e manteve-se com tal prestígio com o advento no novo Código de Processo Civil.
Diante de tamanha importância, a preclusão merece um estudo apurado, e o presente artigo se propõe a investigar os contornos do instituto, com especial destaque ao confronto da preclusão com as matérias de ordem pública, cuja alegação é permitida ao longo de diversas fases do procedimento
A abordagem da preclusão das matérias de ordem pública vai ao encontro do movimento processual que vem criando mecanismos para dar cada vez mais efetividade ao direito constitucional à duração razoável dos processos, e, principalmente, conferindo eficácia à segurança jurídica.
Para tanto, primeiramente será abordado o conceito de preclusão, bem como sua respectiva previsão no Novo Código de Processo Civil, sua função no processo, e em seguida passando ao enfrentamento do tema central, que é o confronto da preclusão com as alegações de matérias de ordem pública.
1 O FENÔMENO DA PRECLUSÃO – CONCEITO E PREVISÃO LEGAL
Partindo da premissa conceitual clássica, o jurista Chiovenda define a preclusão em uma perda de um poder processual ou da possibilidade de rediscutir ou rejulgar questões. Isto é, revela-se uma espécie de estabilidade processual, e, consequentemente, um fenômeno essencial durante o trâmite do processo, que merece ser linear com a razoável duração.
Essa visão conceitual clássica, contudo, encontra-se ultrapassada pela hodierna doutrina e jurisprudência brasileiras. Isto porque o conceito de preclusão não pode se limitar aos atos das partes, deve ser estendida também aos juízes no decorrer do processo. Nesse ponto vale destacar a previsão no Código de Processo Civil de 2015, art. 507, in fine:
“Art. 507. É vedado à parte discutir no curso do processo as questões já decididas a cujo respeito se operou a preclusão.”
Hodiernamente a preclusão é definida como a extinção de situações processuais, englobando qualquer sujeito, partes ou juiz, embora o art. 507 somente mencione que às partes é vedada a rediscussão. Nesse ponto, merece destaque a recente previsão legal no Novo Código de Processo Civil, a título de exemplo, o art. 494, o qual prevê a preclusão direcionada ao juiz.
Cumpre ressaltar que uma das principais consequências da preclusão é a “irreversibilidade tendencial” do procedimento, isto é, a promoção da estabilização de situações processuais, o que contribui para o desenvolvimento ordenado do processo pautado na segurança jurídica com o fito de assegurar a sua razoável duração.
Infere-se que essa previsão expressa na legislação processual visa combater que juízes revejam suas decisões a qualquer tempo, na mesma instância, sem que haja um incremento cognitivo para tal, bem como evitar que em instâncias subsequentes as partes, que não tenham utilizado de instrumentos recursais, atravessem petição suscitando matérias preclusas e assim reconhecidas pelas instâncias iniciais.
Nos dizeres do renomado processualista Fredie Didier Júnior[1]:
“Preclusão é técnica processual que favorece a duração razoável do processo e a segurança jurídica. A preclusão também serve para efetivar o princípio da boa-fé, pois protege a confiança na estabilidade da relação processual. É, pois, técnica que está em total conformidade com a intenção de aprimoramento da legislação processual e com o princípio do devido processo legal, que estrutura o modelo de processo civil brasileiro”.
Nessa esteira, a doutrina tradicional, capitaneada por Chiovenda, elenca três espécies de preclusão, são elas: temporal, consumativa e lógica.
Essas espécies assim foram definidas em razão dos motivos que geram a preclusão. A preclusão temporal é motivada pelo decurso do tempo com previsão no art. 223 do NCPC; já a preclusão consumativa é motivada pelo fato de já ter sido exercida aquela conduta especifica, com previsão no art. 200 e 507 do NCPC; por fim, a preclusão lógica é motivada pela incompatibilidade do ato com o exercício de ato anterior, isto é, essa última espécie de preclusão advém do instituto do venire contra factum proprium, com previsão no art. 1.000 do NCPC.
2 A PRECLUSÃO APLICADA ÀS MATÉRIAS DE ORDEM PÚBLICA
Sob a ótica da boa-fé processual, como desdobramento do devido processo legal, agregada à confiabilidade no dever processual de uma coesa condução processual, entendemos que a preclusão, em sua vertente consumativa, merece ser aplicada às matérias de ordem pública já arguidas e devidamente decididas no curso do processo.
Dessa forma, deve-se enxergar com as devidas ressalvas a afirmação de que as questões de ordem pública podem ser alegadas em qualquer tempo ou grau de jurisdição, uma vez que, decidida a questão, preclui para as partes a rediscussão da matéria, bem como para o juiz a possibilidade de reanalise da mesma, sob pena de crassa ofensa à segurança jurídica e a boa-fé processual.
Em homenagem à didática pensemos no seguinte caso concreto: O autor “K” ajuíza uma demanda com o fito de obter a substituição de sua garantia em um contrato imobiliário, contrato esse em que o autor “K” é devedor de parcelas remanescentes. Em síntese, o autor visa substituir a garantia de hipoteca por depósito judicial. Narra o autor, em sua exordial, que é devedor do réu “I”, inclusive enumera as parcelas e destaca valores, ou seja, confessa judicialmente um débito para com o réu “I”.
Durante o trâmite desse processo judicial de substituição de garantia, o réu “I” ajuíza uma ação de execução em face do autor “K”, que visa, em síntese, executar os valores inadimplidos pelo autor “K” no supracitado contrato imobiliário.
Veja, são duas ações distintas em momentos distintos.
No decorrer do processo judicial de substituição de garantia de hipoteca por depósito judicial, o autor “K” alega prescrição – matéria de ordem pública – de suas parcelas inadimplidas, leia-se, já confessadas em sua exordial.
Ato subsequente é a sentença proferida nos autos desse processo no sentido de julgar procedente a substituição da garantia por depósito judicial. No tocante à matéria de prescrição das parcelas inadimplidas pelo autor “K”, explanou o juiz que, embora a matéria não tenha sido alegada inicialmente pela parte em sua exordial, por se tratar de matéria de ordem pública, entendeu por julgá-la em sua sentença e corretamente a rechaçou sob o fundamento da ocorrência do fenômeno da preclusão lógica. Isso porque o autor “K”, ao alegar a prescrição após o saneamento do feito, leia-se, após o ajuizamento da ação de execução pelo réu “I”, teve um comportamento incompatível com o exercício de seu ato anterior, qual seja, o ajuizamento da ação em que confessa ter a dívida com o réu “I” e visa somente a substituição da garantia.
Nitidamente o autor “K” formulou a alegação de prescrição (de uma dívida que outrora reconhecera como legítima e exigível) como “contra-ataque” à demanda executiva ajuizada pelo réu “I”, razão pela qual se mostra irretocável o comando sentencial que considerou preclusa a alegação da matéria de ordem pública.
No mesmo caso, pensemos na seguinte situação: ao proferir a sentença, o magistrado analisa de forma detida a questão e julga que não há que se falar em prescrição. As partes recorrem de outras matérias, nada tendo sido veiculado acerca da prescrição. Sobrevém o Acórdão do Tribunal, que nega provimento aos recursos. Suponhamos que o autor “K”, em sede de Recurso Especial, visa rediscutir a questão da prescrição já decidida pela primeira instância. Deve o Tribunal Superior julgar a questão, em virtude de se tratar de matéria de ordem pública?
Entendemos que não, pois se esbarra novamente na preclusão, desta vez em sua espécie consumativa. Como em sede de sentença, o magistrado de primeiro grau enfrentou a matéria e não houve recurso das partes especificamente sobre este ponto, deu-se o trânsito em julgado, sendo defeso às partes rediscutir a matéria posteriormente em recursos extraordinários, sob pena de violação à segurança jurídica, à boa-fé processual e à coisa julgada.
Vimos, portanto, duas situações em um mesmo caso concreto em que a alegação de matéria de ordem pública (prescrição) esbarra na preclusão, seja ela lógica ou consumativa.
Corroborando o entendimento acima, asseveram os eminentes doutrinadores Teresa Arruda Alvim Wambier, Fredie Didier Jr., Eduardo Talamini e Bruno Dantas (p. 1308):
“Por outro lado, mesmo para as “matérias de ordem pública”, tem-se entendido que estas podem ser atingidas pela preclusão consumativa, não podendo ser alegadas pelas partes sucessivas vezes (o que pode configurar abuso de direitos processuais) nem revistas pelo juízo, na mesma instância, sem alterações fáticas ou jurídicas que permitam uma nova cognição (STF, Ap 470-MG, rel. Min. Joaquim Barbosa, j. 17.12.2012, dje 22.04.2013)
(…) Também entendemos que as matérias de ordem pública podem ser atingidas pela preclusão lógica(…)”
Nessa esteira, vale transcrever dois julgados recentes do Superior Tribunal de Justiça, intérprete maioral da legislação processual civil, que ratificam o entendimento de que a preclusão tem o condão de atingir as matérias de ordem pública:
“DIREITO CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO INTERNO EM RECURSO ESPECIAL. INCLUSÃO DE EMPRESA SUCESSORA NO POLO PASSIVO EM EXECUÇÃO DE SENTENÇA. LEGITIMIDADE PASSIVA. COISA JULGADA. PRECLUSÃO. 1. Não obstante as matérias de ordem pública possam ser apreciadas a qualquer momento nas instâncias ordinárias, a existência de anterior decisão sobre a mesma questão, quais sejam, as teses afetas à ilegitimidade passiva, impede a sua reapreciação, no caso, por existir o trânsito em julgado da mesma, estando assim preclusa sua revisão. Precedentes. 2. Agravo interno não provido”. (AgInt no REsp 1424168/RJ, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 13/06/2017, DJe 19/06/2017)
“RECURSO FUNDADO NO NOVO CPC/2015. TRIBUTÁRIO. PROCESSUAL CIVIL. FALTA DE PREQUESTIONAMENTO. SÚMULA 282/STF. PRESCRIÇÃO. MATÉRIA DE ORDEM PÚBLICA. DECISÃO JUDICIAL. FALTA DE IMPUGNAÇÃO OPORTUNA. PRECLUSÃO. 1. O Tribunal de origem não se pronunciou sobre a tese defendida no recurso especial de que o “débito originário, que é o executado, diante da informação da própria recorrida, Fazenda Nacional, foi alterado por força de parcelamento efetivado, com pagamentos, amortizações e juros diferenciados, que não vieram aos autos, tornando ilíquidas as CDAs apresentadas”, daí por que seria ilíquida a CDA que lastreia o executivo fiscal. Incidência da Súmula 282/STF. 2. Inviável analisar-se novamente a prescrição, ainda que se trate de matéria de ordem pública, quando reconhecida a existência de coisa julgada sobre o tema, ante a ocorrência da preclusão consumativa. Precedentes.
2. Agravo interno a que se nega provimento” (AgInt no AREsp 1061148/RS, Rel. Ministro SÉRGIO KUKINA, PRIMEIRA TURMA, julgado em 09/05/2017, DJe 16/05/2017)
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Buscou-se, por meio do presente trabalho, analisar a fenômeno da preclusão em confronto com as matérias de ordem pública.
Em respeito à boa-fé processual, consectário do devido processo legal, a preclusão visa, além de inibir a repetição de atos processuais já praticados ou a rediscussão de matérias já acobertadas pela garantia constitucional da coisa julgada, também combater que as partes ou o juiz atuem de forma desleal, frustrando expectativas legítimas de outros sujeitos processuais.
Dessa forma, entende-se que a regra de que as matérias de ordem pública são passíveis de arguição em qualquer tempo ou grau de jurisdição não se reveste de caráter absoluto, visto que podem encontrar óbice na preclusão, na medida em que tal instituto protege as garantias constitucionais da segurança jurídica, da coisa julgada e da duração razoável dos processos, entendimento que cada vez mais ganha guarida na doutrina e na jurisprudência de nossos Tribunais Superiores.
Sendo assim, a abordagem da preclusão das matérias de ordem pública vai ao encontro do movimento processual que vem criando mecanismos para dar cada vez mais efetividade ao direito constitucional à duração razoável dos processos, e, principalmente, conferindo eficácia à segurança jurídica.
Procuradora Federal da Advocacia Geral da União em Brasília/DF, Bacharel em Direito pela Pontifícia Univer-sidade Católica de Goiás (PUC/GO) e Especialista em Direito Público e Advocacia Pública pela Universidade Cândido Mendes
Procurador Federal da Advocacia Geral da União em Brasília/DF, Bacharel em Direito pela Faculdade de Direi-to de Vitória (FDV) e Especialista em Direito Público
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