1. Introdução
O intuito do presente texto é apresentar as principais decisões da Corte Européia de Direitos Humanos – CEDH em matéria previdenciária, as quais seguem, de modo muito similar, o acatamento às regras previdenciárias dos países signatários, demonstrando clara deferência ao Legislador, o qual possui, em regra, a atribuição de alocar recursos escassos.
A análise dos julgados da CEDH é particularmente interessante, apesar das especificidades da jurisdição internacional, devido a sua ação pioneira na apreciação de lides previdenciárias, propiciando algumas decisões interessantes, além de dirimir, em derradeira instância, os conflitos previdenciários irresolutos em países que deram origem ao Welfare State.
De modo geral, restará manifesto, a preocupação com o equilíbrio financeiro e atuarial do sistema, o que chama a atenção para o pouco caso nacional com o tema, pois a atenção aos requisitos atuariais ainda é, no Brasil, incipiente[1]. Em verdade, no contexto atual brasileiro, o discurso do equilíbrio financeiro e atuarial é somente utilizado como instrumento de negativa das prestações previdenciárias, embora raramente comprovados, até pela quase que completa inexistência do cálculo atuarial nos regimes públicos de previdência no Brasil, não obstante a previsão constitucional.
2. A Corte Européia de Direitos Humanos – Papel em Questões Previdenciárias
A Convenção para Proteção dos Direitos Humanos e Liberdades Fundamentais foi elaborada pelo Conselho Europeu, adotada em Roma em 04 de novembro de 1950 e entrou em vigor em 03 de setembro de 1953[2]. A Corte Européia de Direitos Humanos somente foi criada em 1959[3], completando 50 anos de existência.
Para garantir a aplicabilidade da Convenção, foram criadas a Comissão Européia de Direitos Humanos, em 1954, e a Corte Européia de Direitos Humanos, em 1959, além do Comitê de Ministros do Conselho Europeu. Todavia, com o Protocolo nº 11, em novembro de 1998, a Comissão foi extinta, cabendo à Corte analisar os casos, diretamente[4].
Anteriormente à inclusão do Protocolo nº 11 na Convenção, havia proibição expressa no sentido de pessoas, individualmente consideradas, ingressarem com alguma ação na Corte Européia, salvo quando o tema não fosse solucionado na Comissão, além de ter esgotado toda a jurisdição interna de seu país (de modo muito similar à Corte Interamericana de Direitos Humanos). Todavia, com a inclusão do aludido Protocolo, em 1998, a Comissão foi abolida e a Corte, que funcionava somente em determinadas épocas, passou a atuar durante todo o ano. No entanto, a necessidade de esgotar as instâncias internas ainda perdura.
Na Convenção, há o tradicional catálogo de direitos civis e políticos, mas sem previsão expressa de um direito à seguridade social, ou mesmo previdência social. Todavia, diversos casos previdenciários são apresentados à Corte, com base, principalmente, no art. 1º do 1° Protocolo, de 1952, ao tratar da proteção da propriedade[5], art. 6º, referente ao direito a um julgamento justo[6], e o art. 8°, que trata do direito ao respeito à vida privada e familiar[7]. Não obstante, até a vedação à tortura já foi utilizada como fundamento para ações na Corte Européia de Direitos Humanos, embora, nesta hipótese, com decisão voltada ao fornecimento de medicamentos a imigrantes[8].
A admissão de direitos previdenciários como uma propriedade do segurado foi inicialmente rechaçada pela Corte, em 1960, mas posteriormente admitida, em 1971, partindo-se da premissa que, ao verter contribuições ao sistema protetivo, há um direito à parcela do fundo previdenciário, que pode ser afetado de acordo como venha a ser gerido, embora, nesse primeiro caso concreto, a pretensão tenha sido indeferida devido ao caráter solidário do sistema de proteção social[9]. Uma aceitação mais ampla deste preceito, em matéria previdenciária, somente veio em 1994[10]. Também não é incomum encontrar-se lides previdenciárias como instrumento de garantia da liberdade real e, portanto, dotada das mesmas prerrogativas de defesa que os direitos civis[11].
Interessante observar que a Corte Constitucional alemã também adota os direitos previdenciários como derivados do direito de propriedade do segurado, não sendo raras as demandas judiciais com tal embasamento jurídico. Embora a Corte alemã seja apontada como pioneira, seus precedentes iniciais sobre o tema, em 1980, foram posteriores às primeiras decisões da Corte Européia[12].
Muitas demandas da Corte Européia têm grande semelhança com lides previdenciárias no Brasil, como as tentativas de vinculação da renda mensal do benefício a regras inflexíveis, freqüentemente associadas ao patamar remuneratório dos trabalhadores ativos, as quais, tanto aqui como na Corte Européia, têm sido claramente rechaçadas, não havendo direito, assegurado pela Convenção, ao recebimento de quantia certa pelo sistema[13].
A Corte Européia já admitiu, expressamente, até a possibilidade de redução do benefício já concedido, desde que visando, comprovadamente, estabelecer um sistema previdenciário eficiente e equilibrado[14]. De acordo com a Corte, deve-se aferir a proporcionalidade entre os meios empregados e o objetivo a ser atingido[15]. O balanço adequado entre justiça social e a economia do Estado não seria alcançado se imposto ao segurado um ônus excessivo[16].
Da mesma forma, outro tema muito recorrente em matéria previdenciária, é aquele referente a mudanças no regime jurídico. No âmbito da Corte Européia, tais mutações têm sido amplamente aceitas, mesmo que afetando pessoas já jubiladas, especialmente quando o valor atual das prestações é preservado[17].
Curiosamente, há até mesmo decisões que envolvem tentativas de dispensa contributiva dos regimes previdenciários, alegando convicções religiosas, devidamente rechaçadas, sob o argumento de que a proteção da Convenção à liberdade de credo nem sempre se estende ao comportamento na esfera pública [18].
Enfim, o que se percebe, sem muita dificuldade, é a deferência da Corte Européia aos preceitos atuariais da matéria previdenciária, permitindo adequações no regime jurídico e mesmo ações excepcionais visando o equilíbrio do sistema. Acredito que a breve menção a tais precedentes, oriundos de uma Corte especializada em direitos humanos, externe a importância dos encargos financeiros dos regimes protetivos, os quais, se ignorados, podem levar a falência de todo o regime, excluindo gerações futuras da proteção social.
Ademais, tais demandas demonstram que os países signatários, de modo geral, foram deferentes em suas decisões, preservando o equilíbrio o plano de custeio de seus respectivos sistemas protetivos, o que motivou a litigância na Corte Européia.
Conclusão
Embora a isonomia seja um argumento freqüente para os Tribunais estenderem benefícios não expressamente previstos, é fato que o equilíbrio financeiro e atuarial do sistema também é premissa a ser observada. Tais lições, de uma Corte especializada em direitos humanos, expõem a relevância do tema, preservando o sistema de proteção social para gerações futuras.
A proposta deste breve texto foi, ainda que de forma incipiente, propiciar alguma reflexão sobre como agem, na realidade brasileira, as instâncias ordinárias, com interpretações das mais extensivas e mesmo benevolentes, aproveitando-se da péssima qualidade do texto normado, enquanto o STF, com a elevada responsabilidade de exarar a última palavra é, em regra, mais deferente ao legislador ordinário e as interpretações exaradas pelo Executivo.
A posição de nossa Corte Constitucional é facilmente compreensível, pois se providas todas as teses razoavelmente criadas e fundamentadas (e não são poucas), o gasto previdenciário seria aumentado enormemente, podendo gerar o colapso do sistema.
É sabido que o sistema previdenciário brasileiro não possui um plano de custeio adequadamente dimensionado ao plano de benefício, dentro do que se espera em qualquer regime previdenciário. O cálculo atuarial tornou-se obra de ficção, sendo o último trabalho sério, neste sentido, desenvolvido quando da elaboração da antiga Lei Orgânica da Previdência Social – LOPS (Lei nº 3.807/60). Desde então, a necessidade do equilíbrio atuarial funciona somente como uma espécie de palavra de ordem, bradada pelo Executivo federal quando se opõe a determinada tese contrária à sua visão.
Como solução para as contendas atuais, a Corte Constitucional poderia, como subsídio para a decisão, demandar demonstrativo preciso do eventual aumento de gasto alegado pelo Executivo; exigir projeção atuarial adequada e, na ausência de impedimento matemático preciso que invalide a universalização da pretensão, desde que fundada no melhor direito, prover o requerido, dando validade real aos dispositivos constitucionais em matéria previdenciária.
A extensão judicial de benefícios não necessariamente é algo inviável para um sistema previdenciário, podendo, ao revés, estimular solução adequada, a ser fixada pelo legislador ordinário, como aumento de contribuição, elevação de requisitos para concessão de outros benefícios ou mesmo redução da renda mensal futura.
Enfim, a vantagem do cálculo atuarial é não ser impedimento intransponível a mudanças, mas ser a ferramenta de ajuste, não só a novas premissas biométricas, como aumento de expectativa de vida, mas também a interpretações dada pelos Tribunais. O que se deve evitar, repita-se, é a extensão desenfreada das pretensões previdenciárias, em total descompromisso com a realidade financeira.
Professor da Fundação Getúlio Vargas – FGV Direito Rio; Doutorando em Direito Público – UERJ; Mestre em Direito Previdenciário – PUC/SP
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