I – Do Código de Menores ao Estatuto da Criança e do Adolescente: uma transição necessária
A Constituição Federal de 1988 foi efetivamente um avanço em termos de conquistas da sociedade na busca de direitos mais amplos para o cidadão, obedecendo a tendências modernas e exigências cada vez mais acentuadas trazidas pelo desenvolvimento da sociedade brasileira.
Os infantes e os jovens foram contemplados com mudanças importantes, previstas no artigo 227, caput, da Constituição Federal. Entre elas se encontra o princípio da cooperação, onde não só o Estado como também a família e a sociedade como um todo são chamados à responsabilidade pela implementação dos direitos dos pequenos.
Com o advento do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei Federal nº 8069/90), houve a continuidade dessa linha de pensamento do constituinte, procurando sempre se estabelecer um ritmo de trabalho na comunidade de forma a efetivar a interação do Estado com a sociedade com vistas a uma melhoria gradativa de condições de vida para infantes e jovens como um todo.
Com a chegada dos anos 90, houve o apogeu de um clima de mobilização de entidades sociais e governamentais no sentido de dar um tratamento diferenciado a crianças e adolescentes. Havia a sensação de que nossos jovens estavam sendo tratados como coisas, relegadas a instituições onde eram literalmente empilhados, sem um atendimento condigno com sua condição peculiar de desenvolvimento.
Esse tempo de transição de um modelo de assistencialismo (como o do Código de Menores) para a estrutura de atendimento mais abrangente, tomando crianças e adolescentes como sujeitos de direitos numa prioridade de ação (da Lei nº 8069/90) foi bem registrado por MÁRCIO THADEU SILVA MARQUES[1].
Essa noção em que se tomam as crianças e os adolescentes como sujeitos de direitos encontra eco na doutrina internacional, como bem preconizam FRANÇOIS TERRÉ e DOMINIQUE FENOUILLET:
“Há em todo homem vivo em sociedade o ser individual e o ser social, levado em consideração pelo grupo e, a esse título, tratado como um sujeito de direito. De chofre, podemos dizer que as pessoas, essas são os sujeitos de direito”[2].
O advento da Lei nº 8069/90 foi um marco histórico para crianças e jovens. Não que as mudanças fossem sentidas rapidamente, mas elas estão sendo absorvidas pela sociedade ano a ano, de um modo sensível e heterodoxo, fazendo com que os integrantes do meio comunitário circundante lancem novos olhares sobre a questão do jovem em situação precária (objetiva ou subjetivamente falando).
O menor do Código de Menores foi extirpado de nosso vocabulário jurídico para dar lugar à criança e ao adolescente indicados pela Lei nº 8069/90, tratamento esse mais humanizado em relação à legislação anterior.
Também havia pela Lei nº 6697/79 a menção ao jovem em situação irregular (artigos 1º, inciso I, e 2º, caput). Igualmente foi abominada essa expressão pela nova legislação, pois ficava a nítida impressão de que havia uma categoria regular de crianças e adolescentes, mais bem-vista pela comunidade e favorecida pelos elementos exógenos de poder social.
A respeito do tema, destaca-se a posição da MARTHA DE TOLEDO MACHADO, para a qual havia, na vigência do Código de Menores, uma disparidade entre duas visões da infância: uma tida como `normal`(com família, educação e vida estruturada) e outra `desviante`(de caráter marginal, desprovida de meios, alheia ao sistema).[3]
Como resultado, o Estatuto da Criança e do Adolescente alijou essa noção (menor em condição irregular), substituindo-a pela noção positiva de situação de risco para petizes e jovens (artigo 98 da Lei nº 8069/90).
Os incisos I e II do referido artigo fazem menção a atitudes, omissivas ou não, por parte do Estado, da sociedade e dos pais que impliquem risco aos jovens. O inciso III é direcionado para crianças e adolescentes que venham a cometer ato infracional.
Pela ótica contemporânea, não mais temos a atuação do Estado com relação a crianças e adolescentes no meio social, implementando-se políticas públicas tímidas com o entendimento de que apenas os jovens em situação crítica deveriam ser favorecidos (ainda que de forma bastante sofrível).
O Estado, afastando-se do modelo implementado pelo Código de Menores, buscou adequar-se – ainda que com atitudes consideradas atualmente insatisfatórias – ao modelo preconizado pelo ordenamento jurídico brasileiro no sentido de garantir à criança e ao adolescente as condições para o regular desenvolvimento em diversos aspectos (saúde, educação, cultura, lazer, esporte, convivência familiar etc.).
Para o legislador, não basta que o atendimento estatal nessa área seja pautado pelo respeito às políticas públicas de uma forma mínima. De acordo com as regras do Direito da Infância e da Juventude, essa tutela estatal deve vir de uma maneira suficiente a propiciar condições que tragam qualidade de vida a nossos jovens em termos de atendimento de demandas.
No caso das crianças, são elas atendidas pelas políticas públicas para prevenir riscos ou afastar majoração de danos físicos e/ou psíquicos resultantes de ausência de cuidados, maus-tratos ou derrelição comunitária.
O mesmo se aplica aos adolescentes, com um plus: o de internação (como medida sócio-educativa extrema, de acordo com o artigo 112, inciso VI, da Lei nº 8069/90), referente a ato infracional que o jovem venha a praticar, como meio de garantir não só a tranqüilidade comunitária como também o de proteger o infrator em si, evitando que se exponha ainda mais à seara criminógena.
Em todas essas hipóteses, é flagrante a atuação governamental no sentido de tutelar os jovens. De uma forma ou de outra, o Estado exerce seu poder, com o apoio, velado ou não, da comunidade, atendendo a crianças e/ou adolescentes para fim de evitar influências perniciosas ou atitudes nocivas que eventualmente possam retardar a marcha de desenvolvimento infanto-juvenil.
O que se deve ter como foco de atenção é a necessidade de um patrulhamento da atividade estatal, como meio de garantir à criança e ao adolescente o atendimento num espectro o mais abrangente possível, a fim de que não surjam seqüelas indeléveis em função de uma implementação de políticas públicas malsucedidas.
II – A doutrina da proteção integral dos direitos da criança e do adolescente
Muito se fala no mundo contemporâneo a respeito do tratamento diferenciado que deve ser dispensado à criança e ao adolescente. Tal se consubstancia num paradigma próprio da Declaração Universal dos Direitos da Criança, efetivada pela Assembléia Geral das Nações Unidas em 20 de novembro de 1959.
Naquela manifestação dos povos legitimamente reunidos, mais especificamente em seu Princípio 2º, o dever de proteção da criança foi posto nos seguintes termos:
“A criança deve gozar de proteção especial, e a ela devem ser dadas oportunidades e facilidades, pela lei e outros meios, para permitir a ela o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social de um modo saudável e normal e em condições de liberdade e dignidade. Na edição de leis para esse propósito, o melhor interesse da criança deve ser a consideração superior”[4].
Outro texto de destaque para demonstrar a enorme relevância em relação aos direitos fundamentais da criança e do adolescente é o artigo 19 da Convenção Americana sobre os Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica, 1969), ratificada pelo Brasil no Decreto nº 678/92:
“Toda criança tem direito às medidas de proteção que sua condição de menor requer, por parte da família, da sociedade e do Estado”.
Aqui já temos esboçado de forma individualizada o princípio da cooperação, em que todos são responsáveis pelo atendimento adequado das necessidades básicas da criança e do adolescente na condição de pessoas em situação peculiar de desenvolvimento.
Não apenas a família é responsável, com a atribuição inicial dos valores fundamentais a respeito do bem agir no meio comunitário. Temos a obrigação concorrente por parte do Estado, na condição de ente com poder superior, que atuará sempre que houver necessidade, e da sociedade, na qualidade de agente cooperativo, e todos com o objetivo comum de propiciar aos infantes e jovens um ambiente sadio e livre de riscos de toda espécie.
Destaca-se a importância do conceito a delinear o trinômio família-sociedade-Estado como decisivo para a implementação e respeito aos direitos da criança e do adolescente, não havendo a exclusão de um deles quando da atuação do outro. Aí reside o ponto fulcral do princípio da cooperação estabelecido pelo artigo 18 do Estatuto da Criança e do Adolescente.
Poderá haver a soma de esforços entre os agentes para a consecução da finalidade de alcance de uma qualidade de vida satisfatória para crianças e adolescentes. Nunca se conceberá a exclusão. Nesse labor, há a colaboração de todos.
Se do ponto de vista filosófico é imaginada a construção de uma mentalidade solidária em prol da infância e da juventude, protegendo-se crianças e adolescentes pelas suas próprias peculiaridades de vida incipiente, sob a ótica do Direito vemos plena responsabilidade dos três atores no plano de atendimento das necessidades infanto-juvenis.
Posteriormente, houve a aprovação da Convenção Internacional dos Direitos da Criança (UNICEF) em 20 de novembro de 1989 pela Assembléia Geral das Nações Unidas. Por esse acordo, em seu artigo 3º, item 1, foi estabelecido que “todas as ações relativas às crianças, levadas a efeito por instituições públicas ou privadas de bem-estar social, tribunais, autoridades administrativas ou órgãos legislativos, devem considerar, primordialmente, o interesse maior da criança”.
Essa disposição da Assembléia Geral das Nações Unidas tem como linha-mestra não apenas orientar os Estados-Membros no tocante à elaboração das políticas públicas referentes à questão da criança e do adolescente, mas também exigir deles resultados efetivos para buscar o bem-estar dos jovens de forma superior e incondicionada.
No que se refere às doutrinas jurídicas de proteção à criança e ao adolescente no Brasil, faz-se referência a lição de TÂNIA DA SILVA PEREIRA[5], que destaca três fases distintas no trato do assunto, que começou a ser abordado com mais ênfase em nosso ordenamento jurídico a partir do século XIX.
Segundo a jurista, inicialmente foi formada a doutrina do direito penal do menor, concentrada nos Códigos Penais de 1830 e 1890 e preocupada “especialmente com a delinqüência”. Era necessário que se observasse se o jovem tinha discernimento para a prática de determinado ato lesivo.
Posteriormente, passou a vigorar a doutrina jurídica da situação irregular (com o advento da Lei nº 6697/79, também denominada Código de Menores). TÂNIA DA SILVA PEREIRA descreve a vigência de tal linha de atuação como de “política assistencialista fundada na proteção do menor abandonado ou infrator”[6].
Todavia, essa doutrina se mostrava francamente insuficiente para a abordagem adequada do tema da criança e do adolescente na dita “situação irregular”. Havia de certa forma um paternalismo que se mostrava descabido, já que era conferido ao Poder Público um arbítrio a respeito de quem merecia ou não ser caracterizado como pessoa em nessa situação marginal.
Nesse ponto, cabe fazer menção à figura do “juiz bom pai de família”, que recebia o caso concreto junto à Vara de Menores, elaborava uma noção a respeito do que ocorria com a criança ou adolescente em situação irregular sponte sua e com base em suas deduções de caráter estritamente subjetivo e pessoal adotava as medidas que mais lhe pareciam adequadas para a satisfação dos interesses daquela pessoa que a ele era apresentada, tendo em vista as disposições contidas no Código de Menores.
Ainda segundo TÂNIA DA SILVA PEREIRA, a partir da promulgação da Constituição Federal de 1988 teve início a vigência da doutrina jurídica da proteção integral – segundo ela, “a população infanto-juvenil, em qualquer situação, deve ser protegida e seus direitos, garantidos, além de terem reconhecidas prerrogativas idênticas às dos adultos”[7].
Contudo, essa idéia do “juiz bom pai de família” trazida pelo Código de Menores estava imbuída de uma estrutura falha, posto que a atitude do Magistrado no momento de aplicar a norma ao caso concreto vinha carregada de subjetividade, não dando margem alguma para a elaboração de conceitos restritos aos interesses fundamentais infanto-juvenis.
Ainda sobre o que vem a ser a proteção integral dos direitos da criança e do adolescente, manifesta-se ROBERTO JOÃO ELIAS:
“(…) aquela que abranja todas as necessidades de um ser humano para o pleno desenvolvimento de sua personalidade”[8].
Essa proteção integral dos direitos inerentes à criança e ao adolescente vem estampada de forma inequívoca logo no artigo 1º do Estatuto da Criança e do Adolescente, que trouxe à luz a questão da tutela global desses interesses de modo que ficou consolidada a noção de busca incansável do que vem a ser o melhor para petizes e jovens como forma de garantia de um desenvolvimento adequado.
Todas essas idéias foram fundidas em um conceito de aplicação ampla, consubstanciado no disposto no artigo 1º da Lei nº 8069/90, que dispõe textualmente “sobre a proteção integral à criança e ao adolescente”.
Compreendem-se, em se tratando de proteção integral, todas as iniciativas por parte da família, da sociedade e do próprio Estado (no enfoque já abordado do que vem a ser o princípio da cooperação) no sentido de garantir à criança e ao adolescente um ambiente propício a seu regular e peculiar desenvolvimento.
O paradigma da proteção integral dos infantes e jovens é estabelecido numa tomada de atitudes positivas, amplas e irrestritas por todos os envolvidos nesse processo ligado intimamente à vida das crianças e dos adolescentes, de modo que não se excluam quaisquer gestos tendentes a assegurar seus direitos fundamentais.
Tanto essa noção de proteção integral engloba toda e qualquer iniciativa favorável aos infantes e jovens que o próprio artigo 3º da Lei nº 8069/90 diz que eles “gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei” (grifos meus).
Vai mais além o referido texto legal ao assegurar à criança e ao adolescente, “por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades” – vale dizer, atuando não de forma estritamente positivista, mas destacando também outras iniciativas, ainda que extra legem (desde que sejam compatíveis com os ideais de moralidade e ética em sociedade), em favor das crianças e dos adolescentes.
O legislador também contemplou a proteção integral como idéia de adoção de toda e qualquer iniciativa voltada para o bem-estar de crianças e adolescentes no artigo 4º da Lei nº 8069/90.
Essa idéia é recorrente quando analisamos os termos utilizados pelo referido dispositivo legal ao disciplinar o atendimento de petizes e jovens (“primazia”, “precedência”, “preferência”, “destinação privilegiada de recursos públicos”), demonstrando uma clara tendência da mens legis de salvaguardar os direitos fundamentais da criança e do adolescente, dando-lhes um tratamento diferenciado.
Note-se inclusive o disposto no artigo 5º do Estatuto da Criança e do Adolescente, para o qual será “punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais” (grifo meu).
O artigo 18 da Lei nº 8069/90, por seu turno, sintetiza as noções fundamentais do que vem a ser a cooperação universal integrada ao princípio da proteção integral, à medida em que “é dever de todos velar pela dignidade da criança e do adolescente, pondo-os a salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor” (grifos meus).
Na fase infanto-juvenil da vida humana, há a estruturação da personalidade, com reflexos diretos na psique do ser que irão durar por toda a existência da pessoa. Também é nesse período fugaz que se processa o desenvolvimento físico da criança e do adolescente – e o bem-estar depende dessa estrutura que está sendo construída durante o lapso do hiato que se estende por toda a infância e a adolescência.
Com o atendimento integral dos direitos das crianças e dos adolescentes, garante-se a passagem para a vida adulta com um mínimo de qualidade de vida, eliminando-se riscos desnecessários para o corpo físico e para a esfera psíquica a envolver essas pessoas em condições diferenciadas de desenvolvimento.
Exemplifica-se com o caso de crianças e adolescentes portadores de necessidades especiais. Dependem elas de cuidados intensivos para um desenvolvimento sadio, já que necessitam de terapias específicas (fonoterapia, audioterapia, fisioterapia, entre outras).
Devemos analisar o caso sob o enfoque do trinômio família-sociedade-Estado para que esse atendimento ao portador de necessidades especiais se dê sob a forma mais abrangente possível, minimizando os efeitos deletérios decorrentes da falta de cuidados destinados a preservar a saúde dessa pessoa e lhe assegurando qualidade de vida.
Busca-se o apoio inicial da família[9] para a obtenção de meios para satisfazer as necessidades da criança ou adolescente portador de necessidades especiais.
Se não há meios suficientes para que determinada criança ou adolescente receba tratamento adequado (como no caso de ausência de recursos materiais por parte da família para custear o atendimento especializado), tem-se como necessário recorrer à sociedade, segundo pilar na estrutura de cooperação para a consecução dos objetivos tendentes a proteger a criança e o adolescente[10].
A sociedade entra em cena neste caso com a função complementar de fornecer meios para a plenitude dos direitos das crianças e dos adolescentes. Ainda nos referindo ao exemplo do portador de necessidades especiais, temos a comunidade atuando com as organizações não-governamentais, entidades filantrópicas etc.
Ainda em termos de defesa dos interesses fundamentais da criança e do adolescente, a sociedade também exerce papel essencial quando participa ativamente da elaboração de políticas públicas para essa área de atuação do Estado (como no caso dos Conselhos dos Direitos da Criança e do Adolescente, indicados no artigo 88, inciso II, da Lei nº 8069/90) e no atendimento individual ou coletivo de demandas referentes a infantes e jovens (em se tratando dos Centros de Defesa da Criança e do Adolescente – CEDECA).
No caso de haver impossibilidade de atendimento das necessidades básicas da criança e do adolescente pelos organismos sociais circundantes, será a vez de acionar o próprio Estado. Se ele já tiver sido procurado anteriormente e se mantido inerte em proporcionar condições para o respeito aos direitos infanto-juvenis, será o caso de movimentar o aparato judicial para compeli-lo a tanto.
Não basta que se proceda em relação aos infantes e jovens apenas e tão-somente com o norte de um bom agir por parte da sociedade, de um atendimento de seus interesses com o olhar de samaritano, da boa conduta, da caridade comunitária. A proteção a que se refere o Estatuto da Criança e do Adolescente é aquela total, sem limitação no campo da ação nos parâmetros éticos do ponto de vista lógico-formal.
Para o cumprimento das metas estabelecidas pela Lei nº 8069/90 no que se refere à proteção integral, devemos fazer uma leitura cuidadosa desse conjunto de normas, de modo que não se aja sob a ótica meramente formalista[11]. Se determinado direito da criança e do adolescente não estiver porventura previsto na legislação (vista de um modo global, não se restringindo apenas ao Estatuto da Criança e do Adolescente), isto não servirá de óbice para o atendimento das necessidades infanto-juvenis[12].
Tanto esse paradigma encontra lastro normativo que a própria Lei nº 8069/90, em seu artigo 6º, deixa bastante claro que, “na interpretação desta Lei levar-se-ão em conta os fins sociais a que ela se dirige, as exigências do bem comum, os direitos e deveres individuais e coletivos e a condição peculiar da criança e do adolescente como pessoas em desenvolvimento”.
Justifica-se a inteira tutela dos direitos infanto-juvenis no fato de crianças e adolescentes serem pessoas em condição peculiar de desenvolvimento – vale dizer, estão crescendo para a convivência em um mundo hostil, sujeitando-se a todas as dificuldades enfrentadas pelos seres humanos e necessitando de um meio circundante que lhes propicie elementos suficientes para que direitos básicos como vida, saúde, convivência sócio-familiar e educação lhes sejam garantidos na integralidade.
Tal como a planta que precisa de água, adubo e terra fértil para se desenvolver, a criança e o adolescente necessitam de um ambiente adequado para que cresçam física e mentalmente saudáveis, vivendo felizes em um meio circundante harmonioso e positivo.
A ratio essendi da doutrina da proteção integral da criança e do adolescente reside, portanto, na necessidade de garantir a petizes e jovens todos os direitos fundamentais que lhes são inerentes enquanto pessoas em condição peculiar de desenvolvimento, removendo-se todos os obstáculos que eventualmente surjam no caminho vital que estão a trilhar, mediante a adoção de medidas (nas órbitas comunitária, administrativa, judicial etc.) para a defesa intransigente de seus interesses.
III – Os portadores de deficiência e sua defesa no âmbito do Estatuto da Criança e do Adolescente
O tema envolvendo infantes e jovens portadores de deficiência não é novo e constantemente vem à tona – ainda mais quando veiculado pela imprensa (no caso de maus-tratos cometidos contra portadores de alguma deficiência física ou mental) ou pelos próprios veículos de comunicação artística (teatro, cinema, televisão etc.).
A questão basilar é a seguinte: qual a proteção de que crianças e adolescentes nessa situação desfrutam à luz dos preceitos estatuídos na Lei nº 8069/90?
A Magna Carta vigente, em seu artigo 196, aponta a saúde como um “direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”.
Mais à frente, o texto constitucional deixa bastante claro em seu artigo 227 o papel de todos nós, em verdadeiro princípio tuitivo, na garantia dos direitos fundamentais da criança e do adolescente:
“É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão” (grifos meus).
Já a Lei n° 8069/90 é taxativa em diversos excertos sobre o dever de todos na proteção integral dos direitos fundamentais de crianças e adolescentes.
Inicia-se pelo artigo 4°, que determina o atendimento de crianças e adolescentes com prioridade absoluta na efetivação dos direitos basilares, abrangendo a “precedência de atendimento nos serviços públicos ou de relevância pública” e a “preferência na formulação e na execução das políticas sociais públicas” (alíneas ‘b’ e ‘c’), aí compreendidos os direitos básicos de saúde e educação[13].
A negligência que porventura venha a ferir, efetiva ou potencialmente, os direitos fundamentais das crianças e dos adolescentes, é passível de banimento, na forma da determinação expressamente contida no artigo 5°.
O artigo 7° busca assegurar aos jovens o “direito a proteção à vida e à saúde, mediante a efetivação de políticas sociais públicas que permitam o nascimento e o desenvolvimento sadio e harmonioso, em condições dignas de existência”.
Já o artigo 11, em seus §§1° e 2°, é categórico em indicar a necessidade que têm crianças e adolescentes portadores de deficiência de recebimento de atendimento especializado, sendo de incumbência do Poder Público fornecer gratuitamente àqueles que necessitarem todos os recursos relativos ao tratamento ou reabilitação, sem exclusão de qualquer que seja.
Para que seja garantido o direito à saúde da criança e do adolescente portador de deficiência, faz-se necessário também observar as políticas de atendimento, que abrangem como tópico de suas linhas-mestras “as políticas sociais básicas” (artigo 87, inciso I, da Lei n° 8069/90).
O Estatuto da Criança e do Adolescente também garante o tratamento médico para a criança ou adolescente que dele necessitar (artigo 101, inciso V), caso haja ação ou omissão da sociedade ou do Estado (artigo 98, inciso I).
Em termos mundiais, a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança (UNICEF), de 20/11/89, indica em seu artigo 23 a obrigação que têm os Países signatários de amparar de forma ampla e irrestrita as crianças portadoras de deficiência:
“1. Os Estados Partes reconhecem que a criança portadora de deficiências físicas ou mentais deverá desfrutar de uma vida plena e decente em condições que garantam sua dignidade, favoreçam sua autonomia e facilitem sua participação ativa na comunidade.
“2. Os Estados Partes reconhecem o direito da criança deficiente de receber cuidados especiais e, de acordo com os recursos disponíveis e sempre que a criança ou seus responsáveis reúnam as condições requeridas, estimularão e assegurarão a prestação da assistência solicitada que seja adequada ao estado da criança e às circunstâncias de seus pais ou das pessoas encarregadas de seus cuidados” (verbis).
Igualmente se tem como certo que, a respeito da possibilidade de perpetuação de situação apontando para a omissão de qualquer pessoa, física ou jurídica, no atendimento da criança e do adolescente portadores de deficiência em seus direitos básicos, deve haver o correspondente controle estatal.
Controle administrativo é o exercido, como está a sugerir, na via administrativa, enquanto que controle judicial é aquele realizado mediante intervenção do Poder Judiciário. De outra parte, diz-se abstrato o controle quando desencadeado a partir do conhecimento da existência de violação a normas fundamentais referentes ao Estatuto da Criança e do Adolescente.
Do mesmo modo, afirma-se que, diante da possibilidade de haver qualquer risco (potencial ou efetivo) para o infante e o jovem portadores de deficiência, abre-se o caminho para a busca da tutela integral e prioritária, sendo de incumbência de todos a busca de melhores condições para a implementação dos direitos básicos de pessoas nessas condições peculiares de desenvolvimento.
Para tanto, o Ministério Público surge como legítimo representante de infantes e jovens portadores de deficiência para pleitear o que for necessário para que essas pessoas possam atingir um padrão de vida minimamente satisfatório.
Com a formação de procedimentos administrativos ou, em último caso, a propositura de ações civis públicas de caráter individual (com interesses indisponíveis em jogo), coletivo ou difuso, o Promotor de Justiça, atento ao disposto no artigo 201, inciso V, da Lei nº 8069/90, terá condições de perseguir a qualidade de vida para aqueles portadores de necessidades especiais, trazendo-lhes de volta o respeito e a dignidade indispensáveis à pessoa humana, mormente em condições peculiares de desenvolvimento.
IV – Conclusões
Os textos legislativos, com o decurso do tempo, foram evoluindo no sentido de propiciar a persecução dos interesses fundamentais da criança e do adolescente, transformando-os legitimamente em sujeitos de direitos.
Crianças e adolescentes portadores de necessidades especiais, antes relegados a segundo plano na órbita dos direitos fundamentais da pessoa humana, hoje em dia têm instrumentos jurídicos ao alcance para a procura de soluções para problemas antes infindáveis, decorrentes dos males que os afligem.
Esses instrumentos, tanto no âmbito administrativo como na esfera judicial, decorrem de uma política de cooperação em que é formado o trinômio família-sociedade-Estado, chamando a todos para a responsabilidade conjunta como forma de busca de esforços encadeados para a procura de soluções para a questão do infante e do jovem, com destaque para os portadores de necessidades especiais.
Além desse princípio cooperativo estabelecido pela Lei nº 8069/90, vale lembrar também o objetivo legal de prioridade absoluta da criança e do adolescente, com a inclusão social dos portadores de necessidades especiais, com a aquisição de meios para a readaptação (cadeiras de rodas, próteses, órteses e afins), medicamentos e inserção em tratamentos terapêuticos, tudo com vistas ao alcance de um padrão de vida satisfatório para os infantes e jovens com alguma deficiência.
Igualmente se inserem aí os esforços para a inclusão em escolas, especializadas ou não, e o transporte público adequado para a condução dessas pessoas para os institutos de tratamento e unidades de ensino.
Qualifica-se como um dos parceiros mais atuantes para a busca desses meios, tanto no âmbito administrativo como no judicial, o Ministério Público, que por meio de procedimentos administrativos (o inquérito civil, por exemplo) e da ação civil pública pode buscar alternativas para a solução dos problemas vivenciados pela criança e pelo adolescente que têm necessidades especiais.
Dessa forma, atingem-se os objetivos delineados pela Constituição da República e pela própria Lei nº 8069/90, em que, mediante uma política de interação entre todos e com a união de esforços, são contempladas crianças e adolescentes portadores de necessidades especiais com meios suficientes para que se atinja um padrão de vida minimamente digno e respeitável no meio comunitário.
Informações Sobre o Autor
Francismar Lamenza
Promotor de Justiça da Infância e da Juventude da Lapa
Mestre e Doutor em Direito Civil pela Faculdade de Direito da USP