“A Justiça Constitucional é como um espelho, ou seja,
reflete a imagem das lutas políticas supremas de um país”. (Charles Eisenmann)
Introdução*
No âmbito da pesquisa sobre Jurisdição Constitucional faz-se mister revermos o papel desempenhado pelo Supremo Tribunal Federal ao longo da história, de modo a propormos a adequada compreensão do papel do STF na sua função política de transformar ou não a sociedade brasileira e de concretizar os Direitos Fundamentais. Sem dúvida nenhuma, o estudo do STF se enquadra como um dos artífices mais importantes para dar um outro sentido à função do judiciário entre nós.
Para tanto, devemos constatar se há ou não uma possível associação entre a vontade majoritária consagrada nas urnas eleitorais e as decisões judiciais expressas pelos ministros do Supremo, principalmente através da análise dos votos dos quatro ministros nomeados pelo Governo Lula (Joaquim Barbosa, Eros Grau, Cezar Peluso e Ayres Britto), tendo em vista uma perspectiva comparativa entre as propostas de Campanha de Governo e as fundamentações destes ministros.
Para elucidarmos a função precípua do STF como guardião da Constituição, através da Jurisdição constitucional, definimos o termo segundo o Ministro Joaquim Barbosa, em que “A Jurisdição Constitucional deve representar uma verdadeira democracia constitucional, ou seja, os tribunais devem atuar como órgãos colaborativos e consensuais, adaptados aos movimentos sociais; deve ser um instrumento de reação contra-majoritário a aquilo que ofende a dignidade da pessoa humana”.
Histórico do STF
A criação de um novo Tribunal era acalentada por poucos juristas no fim do Segundo Reinado.Vários foram os fatores que contribuíram para a consolidação do STF, como o contato com a Escola Exegética alemã, a sólida formação de juristas no Direito Romano e no Direito Canônico, o positivismo de Augusto Comte, a influência do pensamento político de Benjamim Constant, o Código Civil Napoleônico, a contribuição notória de Rui Barbosa. Esta exerceu enorme influência para a criação do STF, pois era um grande guardião dos direitos fundamentais além de ser autor intelectual da Carta de 1891, e por fim, a pressão positivista do Exército em pretender criar uma instituição que fosse capaz de colocar freios aos excessos do Legislativo.
Pelo decreto n¢ª 510, de 22 de junho de 1890, que estabeleceu uma Constituição provisória da República dos Estados Unidos do Brasil, o governo dispôs sobre a criação, composição e competência do STF. O STF foi concebido como uma instituição que deveria garantir a Constituição e entre outras funções incluem-se as de decidir da constitucionalidade dos atos dos demais poderes, julgar litígios entre os Estados e a União, e defender, na qualidade de ultima instância, os direitos do cidadão.
O Supremo só veio a ganhar relativa independência em relação ao Executivo, quando, em novembro de 1894, os ministros reformaram o regimento, ficando estabelecido que o presidente e o vice-presidente prestariam compromisso perante o próprio Tribunal. Gradualmente se firmava o principio da intervenção do Supremo no Executivo, quando este infringisse dispositivos constitucionais.Ficava reiterado o direito do Supremo de examinar a constitucionalidade dos atos do Executivo e garantir a supremacia da Constituição.
O papel mais importante da instituição nos primeiros cincos anos da Republica foi à defesa das liberdades civis e o estabelecimento da jurisprudência. Havia conseguido firmar-se como Terceiro Poder, cuja função era julgar a constitucionalidade dos atos do Executivo e Legislativo e defender os direitos dos cidadãos[1].
Apesar da freqüente falta de quorum, do visível partidarismo político de seus membros, do inevitável caráter classista dos Tribunais e do desrespeito do Executivo a algumas decisões do Supremo, não se pode negar que este tenha desempenhado um papel importante na construção das instituições republicanas e na defesa das garantias constitucionais e dos direitos dos cidadãos. É de se admirar que um Tribunal de Justiça pudesse funcionar num período em que o país viveu a maior parte do tempo em estado de sítio, suspensas todas as garantias constitucionais.Esse fato também explica a amplitude dada ao conceito de habeas corpus.
O desempenho do STF na avaliação da constitucionalidade dos atos do Legislativo e do Executivo, bem como na garantia dos direitos do cidadão num período de extrema instabilidade política, foi essencial para criar os fundamentos da Democracia no Brasil, constantemente violada pelas ações de congressistas, militares, policiais e governantes.
A Revolução de 1930 abriria um novo período na turbulenta história da democracia no Brasil. De 1930 a 1945, o STF viveu um dos mais difíceis períodos de sua história, quando foi obrigado a assistir passivamente a demissão de ministros, à alteração de seu funcionalismo e a invasão de suas prerrogativas pelo Executivo.
No processo de redemocratização do país, a tradição positivista ainda pesava fortemente sobre os ministros do STF, com influência das doutrinas da Igreja Católica, forjando um liberalismo conservador, paternalista e elitista, que transparecia nos seus julgados e encontraria suporte entre a maioria dos congressistas.
Com o Golpe de 1964, o STF foi atingido por varias medidas que interferiram na sua composição e limitaram seus poderes.Os direitos e garantias dos cidadãos, assim como a liberdade de comunicação, reunião e pensamento, ficaram subordinados ao conceito de segurança nacional.
Em uma análise sobre o comportamento do STF com o advento da Constituição de 1988 e conseqüente retorno ao Estado de Direito, percebemos o Supremo afeiçoado aos interesses do Executivo, pois salvo algumas alterações (como o repasse da aplicação do direito federal infraconstitucional ao recém-criado STJ, a instituição da Ação direta de Inconstitucionalidade Omissiva e do Mandado de Injunção) o STF manteve as feições básicas do período de arbítrio. Temos vários exemplos quanto à submissão e colaboração ao Executivo, Citamos um recente, em que o STF apelou pelos jornais, ao Executivo, para que alterasse as medidas provisórias que regulavam o Plano de Congestionamento Energético, e com as devidas alterações permitiram que as mesmas viessem a ter reconhecida a sua constitucionalidade, viabilizando com isso o racionamento energético em 2001. Também, a questão das eleições diretas é significativa para compreender a afinidade entre o Executivo e o STF[2].
Por outro lado, não se pode negar o avanço do STF em consolidar paulatinamente a postura de real independência perante o Poder Executivo, mas a subserviência é notória quando o assunto gira em torno de planos econômicos governamentais, pois diante inúmeros julgados como RE 228.321-RS-Rel, Min. Carlos Velloso[3].
Ao analisar a posição do STF frente às Ações Constitucionais típicas, percebemos que pouco se tem avançado. O exemplo do mandado de injunção[4] é polêmico e debatido pela doutrina nacional, mas não é o único. A ação civil pública também tem sofrido consideráveis restrições pelo Tribunal, entre as quais pode ser citada a impossibilidade de o Ministério Público discutir, por este instrumento, questões tributárias ao entendimento de que tal matéria não se enquadra no rol de interesses difusos ou coletivos, segundo o RE 195.056-PR-Rel. Min. Carlos Velloso, em 4.11.98. Além da sentença judicial em via de ação civil pública ter seus efeitos limitados à competência territorial do órgão prolator da respectiva decisão, sendo uma flagrante confusão dos conceitos de competência processual e jurisdição.
Um julgamento histórico do STF (Habeas Corpus nº82.424/RS)
A escolha deste caso é justificada pelo fato de ser emblemático para a questão dos Direitos Humanos no Brasil, além da importância do debate travado no STF sobre a amplitude da proteção contra o racismo, tema complexo e denso na sociedade brasileira.Também, por ser um julgamento, segundo o Ministro Celso Mello,”revestido de significação histórica na jurisprudência do país”, pois este é o momento do STF declarar os compromissos do Estado Brasileiro em favor da defesa e proteção da integridade e da dignidade humana
Em breve resumo sobre o caso, o paciente foi denunciado pelo crime de racismo contra judeu (art.20 de Lei 7.716/89, com redação dada pela Lei 8.801/90). Segundo a denúncia, na qualidade de escritor e sócio da empresa “Revisão Editora Ltda”, ao ter editado e distribuído ao público obras anti-semitas de sua autoria e da autoria de autores nacionais e estrangeiros, sustentou mensagens anti-semitas, racistas e discriminatórias, procurando com isso incitar e induzir a discriminação racial, semeando em seus leitores sentimentos de ódio, desprezo e preconceito contra o povo de origem judaica.
O processo chegou ao STF pela via do habeas corpus, primeiro remédio a integrar as conquistas liberais no Brasil, cujo argumento básico é que a conduta do paciente não se identifica com a prática de racismo, pois o crime que lhe foi imputado “foi contra judeus, contra o judaísmo, contra a comunidade judaica”, que não se insere entre os crimes decorrentes da prática de racismo, ou seja, os judeus não constituem uma raça e sim um povo, de acordo com o artigo 5º, inciso XLII: “a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei”.
A questão a ser resolvida no STF, portanto, se resume na assertiva: não sendo os judeus uma raça, mas sim um povo, revela-se impossível o cometimento de crime de racismo contra eles, não passando o caso de simples discriminação étnica ou religiosa, sendo esta a tese do habeas corpus levado a julgamento, a qual inspirou várias dúvidas e o confronto de diversas correntes de pensamento sobre alguns pontos tais como: o conceito de raça humana, o que vem a ser o racismo do ponto de vista jurídico-constitucional, se o povo judeu pode ser vítima de racismo, se eles são uma raça e os limites da liberdade de expressão do pensamento.
Analisamos as fundamentações dos Ministros, objetos da pesquisa, e que participaram desse julgamento. Ressaltamos que a análise dos votos, juntamente com o histórico do STF, em uma interface com a Proposta de Campanha do Governo LULA é o método para avaliarmos se realmente o Supremo atende aos fins da vontade majoritária. Primeiramente, em seu voto, O Ministro Cezar Peluso[5] parte do pressuposto de que, no campo científico pré-jurídico, ou extrajurídico, já não se conhece a existência de raças, senão a humana, o que se faz necessário é captar a idéia semântica do conceito de racismo para efeito de intelecção e incidência dessa regra constitucional. O ordenamento deu manifesto relevo valorativo de vigoroso repúdio a um recorte da realidade histórica, que é fruto da crença política-ideológica na inata superioridade de alguns homens sobre outros, à vista das suas graves conseqüências sociais, ao negar-lhe à reprovação penal a aplicação da regra geral de prescritibilidade das pretensões, que serve à paz social.O Ministro Peluso defende uma interpretação teleológica do termo racismo, sustentando que a definição do racismo tem de ser pragmática, mas no sentido de atender a esse procedimento lógico-jurídico material de pesquisa da racionalidade da norma. . Sua posição foi de indeferir o habeas corpus, afirmando que a intenção objetiva da norma constitucional é a de preservar os fundamentos da República (art.1º, II e III, da CF), preservando a integridade das pessoas, no que têm de substancial e universal, enquanto dotadas da mesma dignidade como iguais membros da raça.
Em uma interface biográfica perante este voto, pode-se inferir que Peluso utiliza sua experiência acadêmica e de magistrado ao enfocar que o Direito, assim como diversas ciências, utiliza-se de conceitos, categorias e termos de outras ciências, incorporando ao mundo jurídico e ao sistema normativo-jurídico, o que facilita o trabalho do intérprete. O que se enquadra no “princípio da moralidade” de Habermas, em que este defende a análise de diversas concepções, visões de mundo, com enunciados derivados de um diálogo/discurso público e racional, sendo este princípio elemento essencial ao processo de normatização racional do Direito; e que a validade de uma norma sustenta-se num discurso em que há a universalidade e reciprocidade de interesses.
Para o Ministro Ayres Britto[6], os princípios constitucionais ostentam a característica da inter-referência que se dá tanto por complementação quanto por oposição, e no caso concreto, o magistrado nem sempre tem a chance de compatibilização ou ajustamento deôntico, e por fim, a sua opção é por vezes radical, no sentido de ter que excluir a incidência de um dos princípios em confronto.Sendo que o fenômeno da inter-referibilidade por oposição é de maior ocorrência no curso das relações que os particulares travam entre si com o propósito de exercitar direitos e garantias individuais.Britto antecipa a sua preferência pela norma-princípio que melhor assegure a aplicabilidade de outras normas jurídicas que tem a ver com o preâmbulo da CF, os fundamentos (incisos de I a V do art 1º da CF) e os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil (incisos de I a IV do art.3º da CF), no sentido de que sua preferência prestigiará o princípio que imponha menos sacrifício aos demais. Em prol do paciente, aduz que a proibição da venda de livros não consta na Lei nº 8.081/90, e a comercialização de livros faz parte da liberdade empresarial ou de iniciativa segundo a CF (inciso IV do art. 1º e do caput do art.170). Britto concede o habeas corpus, tratando de impedir a consumação da nulidade absoluta (retroatividade da lei penal para prejudicar o réu).[7] Também, para fundamentar o seu voto, Britto se utiliza de inúmeras questões inerentes ao mérito da causa.[8]
Ao analisarmos a fundamentação do seu voto, Britto se aproxima da característica de suas publicações na seara constitucional, ao exame da interpretação e aplicabilidade das normas constitucionais. Não é difícil verificar que como militou na advocacia, Britto evidenciou sua característica de advogado ao utilizar inúmeros meios como doutrina, lei, dentre outras fontes do direito para defender seu voto e uma mácula de positivismo, ao aplicar estritamente a lei ao caso concreto.
Durante o seu voto, Britto, deixa transparecer a sua vocação literária, ao utilizar a literatura, o português (semântico/coloquial), para diferenciar termos, interpretar o sentido do vocábulo “preconceito” e discriminação”ao dar significação coloquial aos substantivos “prática”, “racismo”, além de suscitar a ambivalência presente do termo “racismo”, cita escritores como o poeta como Castro Alves, o sociólogo Gilberto Freire e o antropólogo Darcy Ribeiro.
Por fim, cabe uma análise em uma interface dessas fundamentações diante da proposta de Campanha do Governo Lula, em que há a preocupação com a importância da proteção de direitos fundamentais, sendo um programa de caráter democrático e principalmente popular.[9] Podemos concluir que, como Ministro encarregado de fazer cumprir as expectativas do eleitorado, a vontade majoritária consagrada nas urnas eleitorais, em seu voto, o Ministro corresponde à Campanha de Governo atendendo aos fins propostos pela equipe do Presidente LULA, pois a Campanha de Governo pretende cumprir as convenções e resoluções internacionais que tratam sobre o tema de forma ampliada e incluindo todas as minorias, e como no caso em questão, incluindo os “judeus”. E assim como a proposta de governo, Peluso, pretende, em toda a sua argumentação, preservar os fundamentos da República (art. 1º, II e III, da CF) e conseqüentemente a dignidade da pessoa humana. Assim como Britto, em que cita a importância das ações afirmativas da igualdade material, que tem sido recusada aos pobres e a igualdade civil, que tem sido negada aos segmentos sociais.
Diante deste habeas corpus 82424/RS concluímos, que de inúmeras maneiras os ministros corresponderam a campanha de Governo, mesmo tendo características diferentes evidenciadas diante de suas respectivas biografias, ideologias, trajetória de vida, adotando um posicionamento liberal ressaltando os Direitos Fundamentais, assim como defendeu a equipe do Presidente Lula, para que fosse legitimado.
Conclusão.
É clara a insuficiência e a incapacidade do STF em tutelar de forma isolada a ordem constitucional, ao investigarmos a sua atuação ao longo da história. Apesar de momentos de brilhantismo e demonstrações de devotamento à ordem constitucional, o distanciamento do Supremo da sociedade e do restante do Judiciário são os fatores que contribuem para a não consecução dos fins propostos pela corrente comunitarista nacional (O STF vir a ser guardião único dos valores constitucionais), e da não efetivação da Democracia Brasileira.Diante das pressões
governamentais, o STF não se consolida como instituição independente e garantidora do devido processo constitucional nos parâmetros do Estado Democrático de Direito.
Com este breve ensaio, pretendemos suscitar um debate sobre a importância atribuída à Jurisdição Constitucional, a função do STF como guardião da Constituição e uma demonstração de como é relevante analisarmos as fundamentações dos Ministros, uma vez que devem refletir os rumores sociais, além de ser um instrumento que influi na realidade da comunidade, para que, a partir daí, possamos falar em uma Democracia legítima.
Acadêmica de Direito da UFRJ e bolsista do CNPq –PIBIC- UFRJ
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